Leitura Em Comunidades Ágrafas Wany Sampaio
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Unesp - Universidade Estadual PaulistaPrograma de Pós-Graduação em Educação EscolarRod. Araraquara - Jaú, Km 1 Telefone: (16) 3301-6212/6242CP - 174 14800.901 E-mail: [email protected]
Araraquara - SP www.fclar.unesp.br/pos
Disciplina: Leitura e escrita: das práticas culturais às práticas pedagógicas.
Profª Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo
Aluna: Wany Bernardete de Araujo Sampaio
PRÁTICAS DE LEITURA EM COMUNIDADES ÁGRAFAS1
SAMPAIO, Wany Bernardete de Araujo2
RESUMO
Este trabalho apresenta algumas reflexões sobre práticas de leitura em sociedades ágrafas; são
consideradas práticas de leitura visual – excluída a leitura da escrita - e de leitura auditiva, bem como o
papel da narrativa oral e dos narradores autorizados enquanto fontes de leitura nessas sociedades; são
utilizadas para a análise situações observadas em trabalho de campo realizado na sociedade indígena
Amondawa, que habita a área indígena Uru-eu-uau-uau, localizada na região central do estado de
Rondônia, Brasil .
Palavras-chave: Práticas de leitura; leitura visual; leitura auditiva; sociedades ágrafas; narrador/narrativa.
ABSTRACT
This paper presents some thoughts on practices of reading in societies without written; we considered
visual practices of reading - not including the reading of writing - and practices of reading by listening;
also it was examined the role of oral narrative and permitted narrators as sources of reading in these
societies; we used to analyze situations observed in the fieldwork carried out in indigenous society
Amondawa, which live in the indigenous area Uru-eu-uau-uau, located in the central region of the state
of Rondonia, Brazil.
Key words: Practices of reading, visual reading, auditory reading; societies without written; narrator/
narrative.
1 Texto apresentado à Profª Drª Maria Rosa Martins de Camargo como requisito avaliativo da disciplina
“Leitura e Escrita: das Práticas Culturais às Práticas Pedagógicas”. (DINTER UNIR/UNESP-Araraquara
– agosto 2008)2 Aluna do Programa de Doutorado em Educação Escolar – UNESP/Araraquara. [email protected]
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1. INTRODUÇÃO
Refletir sobre as práticas de leitura em sociedades letradas é tema largamente
difundido e com vasto material bibliográfico disponível. Entretanto, esta mesma
reflexão não se dá com tanta freqüência com relação a comunidades ágrafas; talvez isto
se deva ao fato de que muitas das correntes de discussão se fundamentem na concepção
de que a leitura está estreitamente vinculada à escrita.
Neste texto, então, busco traçar um esboço de reflexão, ainda que sem muitos
suportes teóricos, sobre práticas de leitura em comunidades ágrafas. Para tanto, analisei
práticas de uma comunidade indígena específica – o povo Amondawa - que habita a
área indígena Uru-eu-uau-uau, localizada na região central do Estado de Rondônia,
Brasil. A comunidade se constitui, atualmente, de cerca de 130 pessoas.
Tenho estudado a língua e a cultura Amondawa ao longo de pelo menos 12 anos.
Meus estudos com relação a esse povo iniciaram-se junto ao Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC – UNIR/CNPq), através do qual desenvolvi
vários projetos de pesquisa.
A partir destes estudos, tenho cultivado um trabalho de apoio à educação
escolarizada na aldeia Amondawa, elaborando e disponibilizando para a escola diversosrecursos didáticos, desde a propositura de um sistema de escrita – pois a comunidade
era ágrafa – , confecção de cartilhas de alfabetização e livros de leitura bilíngüe, até o
registro de textos míticos e históricos.
Falar dos Amondawa, para mim, portanto, significa falar de minha própria
história enquanto pesquisadora em Lingüística e também das pequenas contribuições
que consegui dar a esta sociedade indígena no que se refere ao processo de implantação
e implementação de uma escola em sua aldeia, com vistas ao desenvolvimento dachamada educação escolar indígena.
Neste texto, entretanto, dados os seus objetivos primeiros, limitei-me apenas aos
aspectos da leitura enquanto prática cultural em sociedades ágrafas. Desta sorte, meus
comentários se reportam aos aspectos da leitura visual – excluída a escrita como a
conhecemos – e da leitura auditiva, que eram as práticas vivenciadas pelos indígenas
antes do advento da escola.
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Para apresentar minhas reflexões, organizei o texto em um único tópico (seção
2), no qual situo minhas concepções sobre práticas de leitura visual e auditiva, bem
como sobre o papel da narrativa oral e dos narradores autorizados enquanto fontes de
leitura em sociedades ágrafas; nestes sub-tópicos, utilizei como exemplos situações por
mim observadas na sociedade indígena Amondawa, durante vários anos de meu trabalho
como pesquisadora.
2. PRÁTICAS DE LEITURA NA SOCIEDADE AMONDAWA
Quando conheci os Amondawa, por volta do ano de 1992, eles eram, ainda, um
povo recém contatado, dado que seus primeiros contatos com o não índio aconteceram
por volta de 1986. A vida sedentária a que foram submetidos ocasionou-lhes muitas
doenças e eles foram reduzidos a 42 indivíduos.
O momento cultural em que foram contatados os Amondava pode ser comparado
a um período que corresponderia a uma transição do Paleolítico Superior (em termos de
organização social) para o Neolítico (em termos de produção) visto que apresentavam
estes indígenas organização social em aldeias, agrupamentos baseados em famílias e
clãs, ritos funerários, uso freqüente de magia, agricultura rudimentar, fiavam o algodão,
teciam redes e fabricavam cerâmica; apresentavam também o domínio de armas como o
arco e a flecha, feitos da pupunheira silvestre; os ossos de animais eram utilizados
apenas como adornos e o nomadismo era parte de seu ethos. Não tinham o
conhecimento da escrita nem do uso de metais. Observe-se, também, que estas fases
culturais na (pré)história da humanidade levaram quase 500 mil anos em seus processos
de transformação, até o surgimento da escrita e da definição de instituições como o
Estado e a religião. (SAMPAIO, 1998)
Com os Amondawa, em torno de menos de 10 anos de contato, as mudanças
foram avassaladoras... Mas, para não fugir do tema, tentarei voltar o meu olhar apenas
para as práticas de leitura existentes naquele momento no seio da sociedade indígena.
Uma sociedade ágrafa pode ler? Sabe ler? Como isto ocorre? Que concepção de leitura
embasa estas questões?
Primeiramente devo esclarecer que concebo a leitura não apenas vinculada aos
suportes da escrita. Vou me apoiar, portanto, na concepção de prática de uma leitura
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cultural, lugar de produção de sentido, de compreensão e de gozo (GOULEMOT,
1996: 107). Nesse contexto, então, uma sociedade ágrafa pode desenvolver práticas de
leituras eficientes e eficazes para suas relações socioculturais. Vejamos algumas destas
práticas observadas na sociedade Amondawa.
2. 1. A leitura visual
Considero leitura visual como aquela leitura que fazemos com nosso aparato
visual, com o nosso olhar. Este tipo de leitura, nas sociedades letradas, geralmente está
ligado aos textos escritos em diferentes suportes e gêneros. Nas sociedades sem escrita,
entretanto, a leitura visual acontece através da observação das pessoas e de suas relações
com a natureza; os fenômenos naturais, os astros, as plantas, os animais, as florações, os
rios, etc., constituem-se em unidades geradoras de significados e sentidos; portanto, são
espécies de textos diferentes daquilo que tradicionalmente concebemos como texto.
Embora não sejam urdiduras de escrita, tais textos são urdiduras de palavras proferidas a
partir da leitura de elementos visuais que compõem seqüências significativas,
aprendidas e apreendidas socialmente nas comunidades indígenas. Demonstro, a seguir,
alguns exemplos do que considero como práticas de leitura visual na cultura
Amondawa.
a) A noção de tempo: os Amondawa, como outros povos tupi-kawahib, não
possuem lexicalizadas palavras específicas para ontem, hoje, amanhã; na
língua, estas noções estão vinculadas a elementos gramaticais representativos
das noções de presente (agora), passado, e futuro (imediatos, próximos e
distantes). No mundo cultural Amondawa, na realidade cotidiana, tais noções
são evidenciadas pela leitura visual dos astros (sol, lua, estrelas); as estações
do ano são evidenciadas pela leitura da presença abundante ou escassa das
águas, de determinados frutos e animais.
b) A noção de lateralidade: os Amondawa não possuem lexicalizadas palavras
para direita/esquerda. A noção de lateralidade se evidencia a partir do ponto
de vista e da posição do observador em relação à posição e disposição das
coisas, objetos, pessoas e animais no mundo. Assim, se o observador se
posiciona de frente para a parte lateral de uma casa, por exemplo, este lado,
para o observador, é a frente da casa ou, como diríamos em nossa cultura, o
lado da frente. Esta é uma forma bem peculiar de leitura, pois o próprio
corpo do observador (leitor) é a sua referência inicial.
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c) Os caminhos da floresta: a floresta, como um espaço que abriga outros
espaços: de caça, pesca e coleta (frutos, plantas medicinais, mel, etc.), é
também um espaço que abriga muitos perigos. Para não se perderem na
selva, os indígenas se orientam por sinais deixados no caminho: um galho
quebrado aqui, outro acolá; montinhos de pedras e/ou arbustos; sinais de
cortes em caules de árvores.
d) Os tabus: um exemplo bem interessante de leitura visual é o arco-íris: para
os Amondawa, ver um arco-íris significa um mau presságio: é a mão de
tupanangá (deus indígena) que está jogando doenças sobre a terra; não se
pode passar por baixo de um arco-íris, pois isto causa a morte; não se pode
beber água do rio onde morre o arco-íris, pois isto trará doenças e,
consequentemente, a morte.
Este modo de decodificação de símbolos e sinais pela leitura visual
assemelha-se ao que conhecemos como leitura de imagens. Os indígenas lêem as
imagens que têm da sua realidade exterior, atribuindo-lhes significados e
sentidos. E é a atribuição de significados e sentidos que traz as marcas de
subjetividade de cada leitor.
2. 2. A leitura auditiva
Quando ouvimos textos, também estamos, de certa forma, lendo esses textos.
Nas culturas não letradas, a oralidade é a forma privilegiada de produção de textos que
possibilitam a leitura dos ouvintes. Na sociedade Amondawa, pude observar muitos
momentos destas práticas de leitura:
a) A audiência dos narradores: nas noites de lua, costumávamos ficar em torno
do cacique Tari - narrador por excelência, que herdou de sua mãe a autoridade
de narrar – ouvindo as histórias e mitos dos Amondawa. Embora estes fossem
momentos solenes e formais, em que se deve respeitar a autoridade do narrador,
eram também, e sobretudo, momentos de prazer, alegria, tristezas, recordações e
muito aprendizado. Na leitura ouvida, realizada a partir de narrativas míticas e
históricas, todos os ouvintes - especialmente as crianças - aprendiam os
ensinamentos de seus antepassados, as lutas e a história de seu povo. Ao
recontarem as histórias e mitos, as crianças, ao seu modo, sempre atribuíam um
novo sentido aos textos por elas ouvidos, fazendo, assim, a sua própria leitura.
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b) Os ensinamentos dos adultos às crianças: geralmente se diz que a educação
indígena é informal. Nada mais errôneo. Nada há de informal quando o pai leva
seu filho para aprender a caçar, pescar, andar na floresta, conhecer os rios,
preparar as roças, plantar e colher. O fabrico de diferenciadas flechas, para
diferentes finalidades, também é ensinado com rigor. Os pais descrevem
oralmente a arte do fazer, na medida em que o demonstram em atos e a criança é
conduzida a realizar a ação. O aprendiz precisa ler e compreender o texto oral; a
partir daí ele poderá criar variações no objeto, o que significa liberdade para
atribuir novos sentidos àquilo que aprendeu na leitura ouvida. As mães ensinam
as meninas a fabricarem pulseiras, colares, anéis, redes, panelas de barro,
cozinhar, cuidar das crianças mais novas, a conhecerem as ervas medicinais,
tecerem o algodão, entre tantas outras atribuições do trabalho feminino na
sociedade Amondawa.
Tudo isso se dá com base na oralidade e se constitui em leitura ouvida, realizada
a partir dos textos orais. Eu ouso dizer que tal leitura se caracteriza por ser
eminentemente uma leitura áudio-visual, apoiada no ato do fazer. Alguém poderá dizer,
é certo, que as práticas de leitura por mim aqui consideradas, não se constituem
realmente em leituras de textos, pois me refiro a práticas culturais específicas de
sociedades ágrafas cujos modos de decifração são enunciáveis apenas a partir dos
próprios textos (CHARTIER, 1966).
Neste ponto, reporto-me ao que diz Boudieu (1966) ao referir-se à questão da
decifração de textos, aludindo à metáfora da cifra:
A metáfora da cifra é tipicamente uma metáfora de leitor. Há um texto que é
codificado, logo trata-se de extrair o código para torná-lo inteligível. E essa
metáfora nos conduz a um erro de tipo intelectualista. Pensamos que ler um
texto é compreendê-lo, isto é, descobrir-lhe a chave. Quando de fato nem
todos os textos são feitos para serem lidos nesse sentido. (CHARTIER, R. &BOURDIEU, P. A leitura: uma prática cultural . In: CHARTIER, R. Práticas
de Leitura. Trad. Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 1996).
Isso significa assumir a concepção de que as pessoas podem ler – antes mesmo e
além da palavra escrita - quadros, mitos, rituais, gravuras, desenhos, sons musicais,
entre tantas outras unidades geradoras de sentido, pois a leitura é produto das condições
em que somos produzidos enquanto leitores.
Nas sociedades ágrafas, os leitores são produzidos em condições de práticas deleituras visuais (excluindo-se a escrita como hoje a conhecemos) e especialmente
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leituras ouvidas. Pode-se dizer que as sociedades ágrafas produzem e lêem textos orais
de diferentes gêneros: mitos, receitas culinárias, receitas medicinais; textos
instrucionais. Além disso, não se podem esquecer os ritos, as rezas, os cânticos, as
canções de ninar, as histórias de assombração, entre tantos outros gêneros textuais
próprios das sociedades não letradas. Por outro lado, os narradores autorizados, bem
como pais, mães, irmãos e irmãs mais velhas, cada um deles, ao (re)produzir um texto,
o faz com estilo e vocabulário próprios, adequando-se e adequando o texto a si mesmo e
a sua audiência.
2.3. Os narradores autorizados e as narrativas orais como fontes de leitura
Em se tratando dos narradores autorizados – aqueles que cultural e socialmente
possuem o poder de proferir as narrativas míticas e históricas nas sociedades ágrafas –
vale lembrar as palavras de Benjamin (1936):
A narrativa, que durante tanto tempo floresceu no meio de artesãos – no
campo, no mar e na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma
artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o „puro em
si‟ da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a
coisa na vida do narrador para em seguida retira-la dele. Assim se imprime na
narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso.
(BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai
Leskov. In Magia, Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985).
A arte da narrativa (contar e ouvir) pode ser considerada uma das principais
fontes - se não a principal - de leitura nas sociedades ágrafas: são narrativas do
cotidiano, narrativas míticas e históricas que passam de geração a geração. Cada
narrador, porém, imprime nelas a sua própria marca, o seu estilo, o seu jeito especial de
narrar, o que demonstra o seu jeito especial e subjetivo da leitura que fez do texto
enquanto se situava na condição de ouvinte.
Segundo Benjamin (id.: 210), a relação ingênua entre ouvinte e narrador é
dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado. Para o ouvinte imparcial, o
importante é assegurar a possibilidade da reprodução. Nesse sentido, o ato de narrar
nunca será um ato solitário, desde que o processo narrativo requer a relação
narrador/ouvinte, tanto para a conservação quanto para a (re)produção da narrativa e da
tradição. Vejamos um exemplo claro das marcas pessoais do narrador/leitor, bem como
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os aspectos de conservação e (re)produção – e eu ouso dizer recriação - em fragmentos
uma mesma narrativa mítica do povo Amondawa3:
MITO DA ORIGEM DA LUA
a) Narrador 1 – Tari Amondawa (1998)
A lua era uma mulher que ficou brava e foi ficar no céu. (Não sei se era assim. Minha
avó contou muito essa história; minha mãe contou muito também). A mulher ficou com raiva
porque o namorado dela arrumou outra namorada. Ela ficou brava e disse:
-Ah! eu não fico aqui mais não. Eu vou morar no céu.
Aí foi embora, subiu no pau lá em cima, muito alto. O pessoal chamou ela de volta e ela
dizia:
-Ah! eu vou embora daqui mesmo, eu vou embora.
Aí ficou no céu, ficou direto lá, virando lua.
b) Narrador 2 – Tangip Amondawa (1997)
Acho que era uma índia que virou lua, porque falaram mal dela. Todo mundo xingou ela.
Aí ele foi, subiu no pau... ela queria ficar no céu... depois ela voltou de novo com nosso povo.
Ela voltou e ficou lá outra vez... Ela quis ficar lá no céu pra clarear tudo aqui embaixo, porque
acho que antigamente num tinha nada claro assim de noite, né?
Os dois narradores, embora narrem o mesmo mito, possuem características bem
distintas quanto ao estilo e marcas pessoais. Saliento que ambos são narradores
autorizados, porém o narrador 1, que é cacique e mais velho, recebeu o poder de sua
mãe, que o recebeu de sua avó. E ele faz questão de deixar claro, em sua narrativa, o
princípio da autoridade a ele conferida; o narrador 2, mais jovem, pertence à linhagem
de guerreiros e está autorizado a narrar por sua linhagem; ainda assim faz referência aos
antepassados utilizando-se da palavra “antigamente”. Naturalmente que ambos ouviram
este mito narrado por outrem, mais antigos, e fizeram sua leitura particular.
3 As narrativas foram por mim coletadas em trabalho de campo realizado no período de 1996 a 1998,
juntamente com alunos pesquisadores do PIBIC/UNIR/CNPq e estão organizadas em uma pequenacartilha: Sampaio, W. B. A., Silva, V. & Miotello, V. (Orgs.). Mitos Amondawa. Porto Velho: EDUFRO,
2004.
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Vejamos, agora, como uma criança Amondawa, ao ouvir as duas narrativas
sobre a origem da lua, representa sua interpretação através do desenho, denotando,
nestas imagens, a leitura que realizou a partir do texto ouvido:
Figura 1. A Origem da lua (Kwari Amondawa: 1999)
Como se pode ver, a leitura ouvida proporciona a produção de novos textos orais
e também textos de imagens (desenho, pintura) no seio das comunidades ágrafas,estimulando a atividade criadora particular de cada indivíduo.
A simples reflexão sobre os exemplos aqui disponibilizados me leva a concordar
com Benjamin (op.cit.: 214 ) ao referir-se ao fato de que independentemente do papel
elementar que a narrativa desempenha no patrimônio da humanidade, são múltiplos os
conceitos através dos quais seus frutos podem ser colhidos. Neste caso específico,
então, a narrativa oral, através dos narradores autorizados, se revela como uma rica
fonte de leitura em sociedades ágrafas, como é o caso dos Amondawa.
3. CONCLUSÃO
Neste texto, eu quis refletir sobre práticas de leitura em sociedades ágrafas; este
objetivo conduz a reflexão proposta a uma ampliação do conceito de leitura para além
daquele vinculado ao texto escrito. A leitura, sob a perspectiva aqui apresentada, é
concebida como uma prática cultural em que são gerados sentidos, compreensão, prazer.
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Não podemos afirmar, considerando esta perspectiva, que comunidades não letradas não
podem ler, não sabem ler.
Se as sociedades ágrafas não dispõem de material escrito, então a produção de
sentidos pela leitura se dá de uma outra forma; os mundos natural e cultural seconstituem em fontes de leitura; são lidas as imagens e os sons; a imagem é o texto; a
fala é o texto.
Considerada a oralidade, em especial, tem-se na narrativa uma fonte riquíssima
de leitura; através da leitura ouvida os povos não letrados podem (re)produzir e recriar
novos textos visuais e auditivos, estimulados que são, pela leitura, em sua atividade
criadora.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In Magia
Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
CHARTIER, R. & BOURDIEU, P. A leitura: uma prática cultural . In: CHARTIER, R.
Práticas de Leitura. Trad. Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.
GOULEMOT, J. M. Da leitura como produção de sentidos. In: CHARTIER, R.
Práticas de Leitura. Trad. Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.
SAMPAIO, W. B. A., SILVA, V. & MIOTELLO, V. (Orgs.). Mitos Amondawa. Porto
Velho: EDUFRO, 2004.
SAMPAIO, W. B. A. A Saga dos Amondava: da horda selvagem à desordem pré-
capitalista. In: Revista Presença. Porto Velho: EDUFRO, l998.