Leirner, Piero. Resenha Sobre Um Grande Cerco de Paz

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Antonio Carlos Souza Lima. Um Grande Cerco de Paz. Poder tutelar,indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1995,335 págs. + Caderno Iconográfico.

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  • Antonio Carlos Souza Lima. Um Grande Cerco de Paz. Poder tutelar,indianidade e formao do Estado no Brasil. Petrpolis, Vozes, 1995,335 pgs. + Caderno Iconogrfico.

    Piero de Camargo LeirnerDoutorando-Depto. de Antropologia/USP

    Quando li Um Grande Cerco de Paz pela primeira vez, em 1993, ento rea-lizando uma pesquisa de mestrado sobre o Exrcito e o Calha Norte, pare-cia ter encontrado uma fonte inesgotvel de informaes compiladas porAntonio Carlos de Souza Lima naquela sua tese de doutorado (1992), tama-nha era sua abrangncia tanto etnogrfica quanto terica. possvel afirmarque o livro, lanado quatro anos depois da tese e mesmo tendo sintetizadoconsideravelmente esta, ainda seja o mais completo estudo sobre relaes entreo Estado e populaes nativas no Brasil, ou, como diz o autor, das relaesque se estabeleceram entre variadas formas de administrao, institudas desdea chegada dos portugueses ao territrio do que hoje chamamos RepblicaFederativa do Brasil, e os povos nativos a esta parte do continente america-no.(:11). Suas dimenses tericas vo muito alm do que estamos acostu-mados em teses recentes, mrito, sem dvida, do autor e de sua relativamen-te longa incurso no tema, desde o comeo da dcada de 80. Tamanhaabrangncia permite algumas leituras, e, deste modo, apresentarei uma es-pecfica, de um leitor parcializado pelo contato que teve com um objeto se-melhante, embora distante no tempo e na abordagem. Ao leitor interessado,sugiro que alm do prprio livro, tome contato com a leitura de Henyo Barreto(1996) , talvez mais fiel obra.

    O livro est montado em quatro partes. Na primeira, Conquista e podertutelar, Souza Lima realiza uma cuidadosa e complexa montagem terica,justificando sobretudo os temas e categorias por ele empregados ao longo dotexto. Na segunda parte, A disciplinarizao do campo, mostra como sedeu a sociognese do SPI Servio de Proteo aos ndios , e, ancorado

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    na sua construo terica anteriormente realizada, d um outro contorno aeste rgo, alm daquele que se reconhece nas montagens ideolgicas que sefaz a respeito de Rondon e do prprio Servio. Na terceira e quarta partes,podemos dizer que ele estabelece uma contraposio ao que seria este mode-lo de burocracia implementado pelo SPI, mostrando as divergncias entre aprtica e a ideologia, por um lado, e as vicissitudes histricas, por outro.

    Seu objetivo, para tal, fazer uma etnografia da formao do Estado noBrasil atravs de uma de suas modalidades: a relao de conquista entre seusempreendedores e as populaes nativas brasileiras. Para isto a pesquisacentra seu foco em um aparelho especfico do Estado que d conta desta re-lao: o SPI (antes SPILTN Servio de Proteo ao ndio e Localizaode Trabalhadores Nacionais -, na data de sua criao, em 1910)1, levandoem conta a figura de seu idealizador, Cndido Rondon. Pela sociognese destergo, reconstitui-se uma clara ligao/vocao militar/militarizante, justi-ficando em parte a opo de Souza Lima de apoiar sua anlise numa noode conquista semelhante de Todorov e outras tantas de inspirao fou-caultiana que remetem a tcnicas disciplinares e militarizantes tpicas da for-mao das naes europias. Derivadas destas e de outras noes, o autorchega ento sua prpria, definida pelo seu contorno etnogrfico: o podertutelar. Temos a realizao, neste sentido, de uma autntica arqueologia doEstado brasileiro, desvendada luz de uma intensa crtica s categoriasnativas (do Estado, ou de seus aparelhos) usadas para definir afinal o queseriam estes nativos: ndios, tal qual os conhecemos. Eis a a chave antro-polgica que vai distinguir Um Grande Cerco de Paz de um trabalhohistoriogrfico, de um lado, e de um trabalho que se reuniria sob o rtulodaqueles que falam da construo do Estado nacional, de outro (:12).

    Seu campo acadmico repousa, portanto, num terreno em que a antropo-logia surge como crtica a uma historiografia narrativa e como crtica auma cincia poltica que v o poder estatal como uma modalidade histricanica e, sobretudo, inevitvel. Nada de novo se no se tratasse de fato de umacerta histria de um certo Estado, e no de uma tradicional abordagem an-tropolgica que v sempre este objeto como um outro em relao conflituosaaos sem voz da nossa sociedade. No que isto se constitua num enganoacadmico, longe disso, mas, de fato, tradicionalmente acabamos por deixar

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    estes atores os poderosos, para resumir em um segundo plano, sime-tricamente inverso ao que sempre foi feito por uma parcela da cincia polti-ca com os no poderosos na construo destes objetos chamados de Es-tado ou sociedade ou poder ou poltica.

    De outro lado, est tambm um problema gerado pelo objeto de pesquisapropriamente dito, o SPI, e as categorias nativas derivadas da relao entreo Estado e as populaes indgenas. Indigenismo e poltica indigenista, for-mariam por assim dizer o lxico ideolgico que marcou a ao, atravs doSPI, da administrao do governo dos ndios. E, embora o rol de institui-es que esteja na disputa pela definio deste lxico seja enorme, foi o SPIquem concretamente converteu isto em ao governamental monopolizada.Ento, digamos, o recorte de Souza Lima tambm se define pelo contornodo que se falou sobre o SPI, e quem falou. A figura de Darcy Ribeiro apare-ce quase como nica neste campo, e no so poucos os problemas que a cir-cundam. Um Grande Cerco de Paz se molda, tambm, pela crtica a Ribei-ro que, colado a uma posio idealista e como funcionrio que era do SPI,mais estaria preocupado com uma tomada de posio do que propriamen-te interessado em pesquisar antropologicamente este rgo. Estaria este per-sonagem, portanto, na posio de um intelectual orgnico, e a literaturaacadmica sobre o SPI reduzida a fragmentos.

    Juntando, deste modo, este espectro de problemas acadmicos, Souza Limacomea a delinear o seu prprio problema: definir categorias que dem con-ta da traduo do que no plano histrico do Estado brasileiro se mostrou comoadministrao de uma forma de poder equacionada pela relao ns-outros.O drama desta histria reside justamente no fato de que o Estado l a equa-o ns-outros como uma contradio a ser superada, etapa absolutamen-te necessria para se estabelecer o imaginrio de uma nao, e exemplos nofaltam em nossa mitologia, como a idia das trs raas; da as modalida-des de guerra, conquista e poder tutelar estarem no centro da anlise, j quea supresso da alteridade nunca um processo com ausncia de uma certaviolncia simblica, quando no fsica mesmo. No entanto, muito longe dese tomar uma postura reducionista, quando, por exemplo, se pensa a guerracomo simples aniquilamento, e, pelo contrrio, tendo como bases a idia deSimmel de que o conflito constitutivo de novas relaes2 e a idia de Foucault

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    de que o poder a guerra prolongada por outros meios (pp. 44-45), SouzaLima sai do binmio destruio/resistncia para pensar a relao entre o poderpoltico estatal e as populaes nativas como uma modalidade diferenciadada guerra, que envolve um assenhoramento/assujeitamento (sic) destas po-pulaes. Aproxima-se, portanto, da noo de conquista de Todorov, pen-sada como um empreendimento semitico que envolve uma alteridade muitomais radical do que aquela experimentada por um conjunto de batalhas.Isto de certa maneira justificado pelo argumento de que, historicamente, aconquista se apoiou no estabelecimento de um corpo (militar) especializadonas relaes com os nativos, a construo de uma malha interpretativa so-bre o outro e tambm um certo butim aproveitado simblica e materialmentepelo conjunto conquistador.

    De certa forma, esta perspectiva da guerra de conquista tambm est atre-lada noo que Souza Lima tem da formao do Estado. Embora muito apoi-ado em autores como Norbert Elias e Benedict Anderson, Foucault quem do tom principal do que ele est chamando, ao unir estas perspectivas, de umprocesso sociogentico. A idia bsica consiste no fato de que o processo deindividuao que acompanha o surgimento dos Estados nacionais3 traz consi-go uma disciplinarizao da vida cuja expresso mxima seria a fora militar,sob a qual se imporia um controle centralizado a redes sociais a serem com-postas em uma nica comunidade poltica (:69). Portanto, um de seus pres-supostos o do poder disciplinar como a raiz de uma comunidade que deve semostrar soberana frente s outras, explicando, inclusive, o porqu da conquistacomo resoluo do impasse gerado pela alteridade. A forma histrica que estepoder assume na conquista, Souza Lima vai chamar de poder tutelar.

    Ao ter o controle da incluso/excluso de populaes na comunidade na-cional, o poder tutelar em outra medida confere o status destas na rede derelaes mais geral a que esto submetidas; deste modo, no se trata ape-nas de um instrumento disciplinador, convergente de alteridades, mas tam-bm de um elemento gerador de hierarquia dentro da prpria sociedade aque est submetido. Neste sentido, Souza Lima aponta para uma das pe-culiaridades da histria brasileira ao mostrar esta forma nica que o statusde ndio possui; evidentemente, estas peculiaridades podem remontar ainmeros fatores, mas nesta hora devemos ficar atentos ao que este tipo derelao pode nos ensinar.

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    A etnografia traz novas possibilidades ao desmontar o senso de que apa-ratos burocrticos como o SPI so isentos de contradies, como blocosmonolticos. Remontando a estrutura organizacional do ento SPILTN, comoparte integrante do MAIC Ministrio da Agricultura Indstria e Comr-cio, Souza Lima mostra, em primeiro lugar, a construo de um corpo ide-olgico primrio capaz de pr em cena o empreendimento da conquista. Deve-se destacar disto a elaborao de um sistema classificatrio previamente dadoa partir de concepes evolucionistas, em muito escaldadas num tipo depositivismo que proliferava na poca, especialmente na Escola Militar daPraia Vermelha, locus institucional originrio de Rondon e de seus primei-ros seguidores. Poder-se-ia dizer que, em certa medida, esse esquema orien-tou previamente a disposio do aparato em suas diversas ramificaes, se,como nos mostra Souza Lima a partir da segunda parte do livro a consti-tuio e a implantao do rgo -, a montagem deste corpo em dois planosrelativamente estranhos entre si, SPI + LTN, e sua subordinao ao MAIC,no evidenciassem uma histria (ou vicissitudes) em que emergem o confli-to, a barganha, a necessidade de alianas, enfim, algo longe do esquemasimplista que pensa de um lado um Estado, perfeito em suas acepes, deoutro uma sociedade que reage quase que peristalticamente aos seus impul-sos vitais. Seguindo a montagem deste corpo, o SPILTN enquadraria duasespcies de problemas nacionais que de certa maneira justificariam a suaexistncia: uma idia de nao respaldada na constituio de um singular povobrasileiro e um problema geopoltico de fixao de fronteiras.

    Extinta uma ordem imperial pela qual a nao podia ser imaginada atra-vs do prprio imperador, a Repblica deparou-se com uma srie de dificul-dades quanto incluso de populaes que se viam auto-suficientes, provo-cando, assim, uma descontinuidade poltica, econmica, e, principalmente,simblica em relao ao seu suporte ideolgico principal: a idia de naoformada por um corpo de cidados. Caberia ao SPILTN, ento, fagocitarestas descontinuidades reelaborando-as a partir de um inventrio prprio. Aidia era, de um modo geral, tornar ndios, brasileiros, reduzidos condi-o de brutos(apud p.120), parte da comunidade nacional, na condio detrabalhadores nacionais. Assim, se daria um destino ao butim de que falaSouza Lima, ao mesmo tempo em que haveria um reordenamento semitico,classificando, reelaborando e atualizando a idia de Brasil. Concretamente,

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    isto significou uma ideologia que remetesse a uma noo do Estado-naocomo uma totalidade, um domnio social total, pretenso a preencher aslacunas tanto econmicas e polticas quanto as morais e simblicas destespobres brasileiros. Ora, em termos prprios ao terreno poltico, este mo-vimento de incluso (que sempre implica, ao mesmo tempo, a excluso dealguma outra coisa) a qualidade de um Estado soberano, incidente tantosobre o plano das representaes, atravs de um corpo de leis que imprime oque regra e o que exceo, quanto sobre uma base material alicerada noespao geogrfico. Nas palavras de Rondon, tratava-se de estabelecer umgrande cerco de paz, categoria esta que acabou por sintetizar os pressupos-tos de Souza Lima: a conquista, e sua forma histrica, o poder tutelar. Destemodo, a ao estatal acaba por se (con)fundir com uma ao militar:

    A imagem do grande cerco de paz revela-se em toda sua complexidadenas palavras do militar, sumarizando numerosos mecanismos ainda hoje emao: tcnica militar de pressionamento e forma de manter a vigilncia, aomesmo tempo assdio de um inimigo visando cortar-lhe a liberdade de cir-culao, os meios de suprimento e a reproduo social independente (semimplicar o ataque dos sitiantes), alm de defesa contra os de fora do cerco,como num cercado para as crianas, estabelecendo limites e constries aospor ele includos/excludos, numa amplitude que deveria justificar um nume-roso quadro administrativo de fato hoje em dia existente. (:131).

    A idia do cerco vem acompanhada, ao longo do texto, de uma recons-tituio da gramtica que o servio utilizava no empreendimento da conquista.Desde os postos4 at estratgias como atrao, agremiao e concentraocomo tticas do poder tutelar, temos aqui todo um lxico de categorias e es-quemas classificatrios que remetem ao universo militar. O uso deste mate-rial certamente levou Souza Lima a aproximar o SPI de um rgo senopropriamente militar, ao menos muito militarizado5. Do miolo do livro aimplantao do SPILTN sua parte final digamos, a parte mais histri-ca -, fica evidente a nfase que dada a este tipo de aspecto. Creio que a ex-plicao para este fato recai basicamente sobre trs pontos: o primeiro, porcausa de uma srie de contingncias macro-histricas que moldaram esta bu-rocracia de modo militarizado, como o anterior golpe republicano e os des-dobramentos sucessivos da CLTEMGA Comisso de Linhas Telegrficas

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    Estratgicas do Mato Grosso e Amazonas -, vulga Comisso Rondon; o se-gundo, ligado ao anterior, porque Rondon, cabea da burocracia, era ummilitar e tambm o eram vrios de seus ajudantes; terceiro, pois a idia denao daquele momento estaria coadunando com um certo esprito discipli-nar, ou um sonho militar de sociedade, remetendo a Foucault (:132).

    Cabe aqui fazer uma breve digresso6, de um leitor enviesado. Rondon foium oficial formado pela Escola Militar da Praia Vermelha, era aluno enquantoainda se conspirava a Repblica. Nesta poca, esta Escola representava paramuitos de seus membros um meio de asceno social, uma alternativa aochamado bacharelismo da Faculdade de Direito, o que era representado so-bretudo a partir de uma certa aristocracia do mrito, em oposio aofavorecimento tpico da rede de relaes que se tecia no Imprio. Este tipode representao, calcada num certo tipo de positivismo7 que enaltecia umalucidez cientfica baseada em paradigmas universais sobretudo matemti-cos -, traduzia-se, por assim dizer, numa idia universal de um indivduoportador de mrito por acmulo de saber. Construa-se, assim, uma espciede ideologia (no sentido dumontiano, j que estamos nos aproximando mui-to da idia de individualismo) calcada na oposio a tudo que era desdobra-mento de uma relao pessoal legitimada pela idia de Imperador, o quena prtica significava se opor no s aos bacharis mas tambm aos ofici-ais mais antigos, cujo mrito era chancelado por este circuito imperial, o queera suficiente para serem tachados de tacanhos. Note-se que estes oficiaiseram em grande parte formados e consolidados enquanto tal durante a Guerrado Paraguai, o que de certo modo os colocava dentro de um esprito com-batente. Eram parcas as excesses, entre elas Benjamin Constant, a quem,por uma srie de dados biogrficos e acasos histricos que o ligavam muitomais a um matemtico e massacrado pelas injustias do Imprio do que a umex-combatente tarimbeiro, foi outorgado e aceito o papel de lder desta mo-cidade militar. Neste esprito, Rondon se forma com um grupo cuja aspira-o militar propriamente dita era muito pequena, a ponto de na Escola exis-tir um grupo de militares pela paz ou mesmo do prprio Constant declararperante sua famlia que no gostava de usar uniforme. O positivismo or-todoxo a que Souza Lima reporta quando se refere a Rondon e seu secto,portanto, era um positivismo muito peculiar, praticado por uma organiza-

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    o militar mais peculiar ainda, dentro do que eles apelidavam de tabernculoda cincia. Sem querer reduzir a dimenso militar da questo, creio apenas quenesta hora, especialmente durante os anos de implantao do SPILTN, quandoeste era ainda demasiadamente atrelado figura de Rondon, este esprito militarse afasta um pouco daquele paradigma disciplinar sugerido por Foucault.

    No entanto, este mesmo paradigma encontra limitaes ao se olhar para oconjunto de Um grande cerco de paz, na medida em que ao longo da cons-truo da etnografia o autor vai mostrar uma dupla face do SPI: ao mesmotempo em que seria uma burocracia baseada num tipo de ao racional-le-gal, traria consigo o forte peso de uma ao carismtica baseada na figu-ra de Rondon. Alm disso, fica clara uma face do conflito desta rede admi-nistrativa quando mostrado que, embora no plano ideolgico haja amontagem da idia de uma burocracia sem conflitos que reporta a uma ca-deia de comando perfeita do posto ao Presidente, o que temos de fato aconstruo de alianas locais e de redes de relaes dentro do rgo que alvo de disputas e interesses. Assim, foi possvel encontrar um certo des-compasso entre as categorias normativas do SPI e a sua constituio, em certamedida decorrente de um processo mais amplo de formao do Estado naci-onal. Deste modo, Souza Lima desmonta tambm a idia de que uma buro-cracia uma administrao em certa medida autnoma ou exclusiva, paramostrar sua face informal calcada justamente em vicissitudes. Da, penso,uma das principais contribuies do livro: uma vez que a Cincia Poltica egrande parte da Sociologia tm como pressuposto a existncia do Estado comohorizonte das relaes sociais, somente um procedimento etnogrfico que otome como uma forma relativizada, imaginria e construda, contrastandocom os dados formais de sua constituio, pode captar uma outra face, a dasrelaes que se tramam na sua base e por fim do as caractersticas de suaambigidade, entre o particular e o universal, entre a lei e o costume, entreterritrio e espao, entre, enfim, a alteridade a que fatalmente est submeti-do quando encontra atores de carne e osso e no tendncias polticas. Mas,deve-se dizer, esta contribuio estende-se tambm e principalmente aosantroplogos, que, em parte, ignoram que este tipo de processo tambm ocorreno interior destas grandes organizaes, em geral deixadas de lado como senada pudessem ensinar a respeito de nossa prpria realidade.

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    Notas

    1 Passaria a ser SPI apenas em 1918.

    2 Tambm vista por Gluckmann (1963).

    3 O aparecimento de nacional com minscula fiel ao texto.

    4 Cujo sentido aponta para algumas das gradaes na hierarquia militar.

    5 Vale lembrar que, desde os anos 70, h um certo uso consensual da Cin-cia Poltica na definio dos regimes militares atravs do termo tutela(Coelho, 1990). O termo , a princpio, jurdico, e, embora no se definaexatamente assim, opera uma situao de mando e incapacidade, lembran-do muito as regras disciplinares das Foras Armadas.

    6 Baseada sobretudo em Castro (1995).

    7 Como bem mostraram Alonso (1994) e Castro (1995), os positivismos erammuitos.

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