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Estudos Feministas, Florianópolis, 13(2): 256, maio-agosto/2005 227 Licia Fiol-Matta Lehman College, City University of New York “Mulher “Mulher “Mulher “Mulher “Mulher-raça”: a reprodução da -raça”: a reprodução da -raça”: a reprodução da -raça”: a reprodução da -raça”: a reprodução da nação em Gabriela Mistral nação em Gabriela Mistral nação em Gabriela Mistral nação em Gabriela Mistral nação em Gabriela Mistral Resumo esumo esumo esumo esumo: O artigo desmascara a posição pública assumida por Gabriela Mistral como defen- sora dos povos indígenas, argumentando que no âmbito privado sua posição foi absolutamen- te oposta a qualquer afirmação sexual pública não-normativa. A autora sugere três opera- ções críticas para a leitura da obra de Mistral sobre o sujeito da “raça” latino-americana: a recusa da negritude (Mistral reage a ela com ansiedade, sexualização e patologização, ou seja, com atitudes brancas estereotipadas), a cumplicidade da linguagem da diversidade com as práticas do pensamento supremacista branco (evidenciada em sua correspondência) e o papel da queerness no nacionalismo racializado de Mistral (sua atitude queer acabou ajudando a aprimorar a heteronormatividade e o projeto racial latino-americanista). Palavras-chave alavras-chave alavras-chave alavras-chave alavras-chave: Gabriela Mistral, queer, normatividade sexual, raça, povos indígenas. Copyright 2005 by Revista Estudos Feministas A poeta, educadora e prêmio Nobel chilena Gabriela Mistral (1889–1957) é um exemplo de intelectual queer latino-americana que através de seu discurso nacionalista se tornou útil à instituição de uma normatividade sexual e racial. Este artigo amplia o alcance do debate sobre a identidade sexual de Mistral examinando sua condição de “mulher-raça” [“race woman”], uma posição pública que ela estabeleceu com ímpeto, e que é oposta a qualquer afirmação sexual pública não-normativa. 1 Para o público latino-americano, Mistral assumiu a matriz heterossexual. Mas sua queerness estava mesmo completamente fora da visão pública? Certamente Mistral aludia à sexualidade reprodutiva toda vez em que falava de raça. Ela consistentemente retratava-se como spokesperson da América Latina – referindo-se à “nossa raça” – posando de mãe mestiça da nação. Mistral dedicou muitos textos ao tema de uma cultura unificada latino- americana, alcançada através de processos de reprodução individual e social. Conhecida por sua defesa 1 Race woman, termo tomado de empréstimo dos estudos afro- americanos, que se refere à mu- lher militante que abraça e de- fende a raça. Freqüentemente suas ações e seus textos se adap- tam aos padrões normativos que definem a raça, pressupondo um discurso de gênero conservador e heteros-sexualizado. Algumas vezes a mulher-raça pode ser mais crítica em relação ao sexis- mo das lideranças masculinas correspondentes. Ar Ar Ar Ar Artigos tigos tigos tigos tigos

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Licia Fiol-MattaLehman College, City University of New York

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RRRRResumoesumoesumoesumoesumo: O artigo desmascara a posição pública assumida por Gabriela Mistral como defen-sora dos povos indígenas, argumentando que no âmbito privado sua posição foi absolutamen-te oposta a qualquer afirmação sexual pública não-normativa. A autora sugere três opera-ções críticas para a leitura da obra de Mistral sobre o sujeito da “raça” latino-americana: arecusa da negritude (Mistral reage a ela com ansiedade, sexualização e patologização, ouseja, com atitudes brancas estereotipadas), a cumplicidade da linguagem da diversidadecom as práticas do pensamento supremacista branco (evidenciada em sua correspondência)e o papel da queerness no nacionalismo racializado de Mistral (sua atitude queer acabouajudando a aprimorar a heteronormatividade e o projeto racial latino-americanista).PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: Gabriela Mistral, queer, normatividade sexual, raça, povos indígenas.

Copyright 2005 by RevistaEstudos Feministas

A poeta, educadora e prêmio Nobel chilena GabrielaMistral (1889–1957) é um exemplo de intelectual queerlatino-americana que através de seu discurso nacionalistase tornou útil à instituição de uma normatividade sexual eracial. Este artigo amplia o alcance do debate sobre aidentidade sexual de Mistral examinando sua condição de“mulher-raça” [“race woman”], uma posição pública queela estabeleceu com ímpeto, e que é oposta a qualquerafirmação sexual pública não-normativa.1

Para o público latino-americano, Mistral assumiu amatriz heterossexual. Mas sua queerness estava mesmocompletamente fora da visão pública? Certamente Mistralaludia à sexualidade reprodutiva toda vez em que falavade raça. Ela consistentemente retratava-se comospokesperson da América Latina – referindo-se à “nossaraça” – posando de mãe mestiça da nação. Mistral dedicoumuitos textos ao tema de uma cultura unificada latino-americana, alcançada através de processos dereprodução individual e social. Conhecida por sua defesa

1 Race woman, termo tomado deempréstimo dos estudos afro-americanos, que se refere à mu-lher militante que abraça e de-fende a raça. Freqüentementesuas ações e seus textos se adap-tam aos padrões normativos quedefinem a raça, pressupondo umdiscurso de gênero conservadore heteros-sexualizado. Algumasvezes a mulher-raça pode sermais crítica em relação ao sexis-mo das lideranças masculinascorrespondentes.

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LICIA FIOL-MATTA

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dos povos indígenas da América Latina, ela freqüente evigorosamente aludia ao processo de mestiçagem.

Através da posição de “race woman” Mistral ajudouo Estado a administrar as populações racialmenteheterogêneas da América latina, tidas como problemadesde as guerras de independência. Tanto no âmbitopúblico quanto no privado ela se ocupou de assuntos quevariaram da classificação e ordenação hierárquica das“misturas” raciais ao status de negros latino-americanos nodiscurso nacionalista, da mestiçagem desejável no territóriolatino-americano à mestiçagem perigosa para além davigilância atenta do Estado.

É tentador separar as identidades sexual e racial emMistral, considerando uma como privada e a outra comopública, uma secreta e outra em estridente exposição.Normalmente um dilema como o de Mistral costuma seranalisado em partes: uma identidade por vez. A história desua vida romântica é separada daquela de sua carreirapública, e até sua figura pública se desdobra de acordocom a narrativa da maternidade republicana. Uma atençãoindiscreta aos detalhes inventados de sua existência privadacasa alegremente com uma visão hagiográfica de seupapel em assuntos internacionais. Mas para entender acomplexidade de Mistral mais amplamente, torna-se útilexaminar suas identidades pública e privada menos comoblocos distintos e mais como entrelaçadas einterdependentes.

Examinar a interseção entre raça e sexualidade emMistral é fundamental em mais de um sentido. Desfazer mitossobre ela é importante, mas entender toda uma mitologiacolocada a serviço do Estado é crucial. Tanto a mistura racial(sexualidade coletiva) quanto a sexualidade ambígua deMistral (vista como assunto privado) envolvem ademarcação social entre o sexo aceitável e o inaceitável;nas duas instâncias, o sexo é codificado como reprodução.No projeto de Estado que Mistral ajudou a articular, areprodução significava não só maximizar os corpos dasmulheres no sentido de produzir trabalhadores fortes eadministrar famílias produtivas, patriarcais e heterossexuais,mas também estabelecer e reforçar os parâmetros sobrequem pertence à nação, racialmente falando. Essa é averdade sobre o sentido restrito de Estado-nação emergente– o que é ser um chileno? quem pode ser considerado ummexicano? – e sobre o sentido expansivo, massivo mesmo,do latino-americanismo. Reforçar a estrutura dopertencimento envolvia um papel subterrâneo, mas nãomenos forte para a sexualidade “silenciosa” de Mistral. Comojá discuti em outro texto, a fala sobre reprodução e cuidadocom a infância funciona como um closet que

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paradoxalmente tornou público o que era para permanecerprivado.2 No contexto mais amplo da sexualidade públicaou coletiva, Mistral usa a mesma linguagem paraestabelecer uma linha firme e muitas vezes onerosa paradefinir o pertencimento à nação. Estabelecer a conexãoentre sua queerness e o discurso racial que ela adotou comsucesso é o objetivo deste artigo.

Uma análise intersecional revela que aheterossexualidade simbólica de Mistral se prestou a garantirou beneficiar, não a heterossexualidade per se (isto é, nãoa todos os heterossexuais, indistintamente), mas umaheterossexualidade específica, concebida para o projetodo Estado. Mistral ofereceu seu próprio corpo comorepresentação de toda uma raça – uma raça criada a partirde uma tradição inventada.3 Mas como uma mulher quenão deu à raça filhos biológicos, e que andava semprejunto com mulheres, pôde se tornar o símbolo duradouroda mãe nacional? Sua sexualidade vivida não coincidiacom a prescrição nacional, mas sua queerness era o grandetrunfo de sua pose relativa ao nacional?

Em The Politics of Posing, Sylvia Molloy classifica aadoção dessa pose queer latino-americana como perversa,tal como a adoção de uma atitude efeminada ou sodomitadiante das masculinidades prescritivas. Ao expandir oconceito de pose para incluir poses como a de Mistral, esteartigo articula uma noção de exposição mais próxima à dedispositivo. Molloy discute a pose da queer como um tipode resistência sexual e de gênero a uma ideologianacionalista prescritiva:

quero pensar diferente sobre a pose na América Latina;não como a atitude óbvia e sem-graça de certas fêtesgalantes fantasmagóricas, um punhado de afetaçõescorporais ou textuais em conflito com discursos epreocupações nacionais e continentais dos quais a AméricaLatina vem se recobrando ultimamente, mas como umaprática de oposição e uma afirmação cultural decisiva cujovalor político e cuja energia desestabilizadora vou tentarrecuperar e avaliar.4

Mistral assumiu uma pose aberta e direta, como mãe,como mestiça, mas essa pose encorajou – em vez dedesestabilizar – o discurso nacional. De fato, posar faz parteda efetividade do nacionalismo, já que envolve acomplicada questão da identificação. Latino-americanosconservadores devem ter sentido que suas identidadescomo sujeitos nacionais não sofreram qualquer ameaçacom a ascensão de uma mulher queer como Mistral, mas oproblema vai além. Como estabeleceu Foucault, o poderassume a mais fraca de suas condições quando não fazmais do que negar. A figura de Mistral possibilitou aos

2 Licia FIOL-MATTA, 1995, p. 201-229.

3 Elizabeth Rosa HORAN, 1997, dis-cute uma fusão entre o corpo deMistral e a nação. Horan trata damonumentalização da figura deMistral após sua morte através deescultura pública, moeda e afins.

4 MOLLOY, 1998, p. 142.

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cidadãos tornarem-se parte da natureza produtiva do poder,especificamente através dos prazeres da identificação –prazeres que com certeza sustentaram diferentes ações,tanto as liberacionistas quanto as repressivas.5 Não erasimplesmente uma pose pro patria, do tipo que Molloyobserva no Ariel de José Enrique Rodó – uma pose construídapara esconder um desejo homoerótico, visível apenas nomomento em que Próspero acaricia a estátua de bronzede Ariel e “descobre Rodó”.6 O exemplo de Mistral forneceum modelo para a incorporação da queerness no projetode Estado e deixa claro que a queerness latino-americananão era assim tão invisível quanto se podia considerar.

É no mínimo paradoxal e extraordinário que Mistraltenha obtido o status de guardiã simbólica da famílianacional. Tivesse ela escolhido enfatizar sua inconstânciapublicamente – sua masculinidade, suas escolhas naorganização de sua vida íntima, seu fracasso em casar eter filhos – sem alçar o jogo de identificação a uma escalanacional e transnacional, o Estado, com seus amplosrecursos, teria massacrado suas ambições. O Estado, porém,foi atraído por sua queerness, por aquilo que ela, e só ela,pôde conseguir no reino biopolítico de poder. Assim a uniãofoi consumada: Mistral apareceria na esfera pública comoa grande estrela do Estado, posando como alguém que,de tão ligada à causa nacional, sacrificou suas mais carasaspirações pessoais para o bem dos “filhos da nação”, osdela e os do Estado, ou seja, para o bem dos cidadãos.

Mistral quase sempre planejou e executou suaparticipação na agenda do Estado. Considere suadeclaração sobre seu próprio potencial, bem como sobresua atenção, intensamente voltada para si mesma, em umacarta de 1923 a Pedro Aguirre Cerda:

de todas as nações latino-americanas, o Chile é a quemenos se esforça para fazer propaganda no exterior. Elenão se importa com sua imagem, ou então acredita queapenas ministros e cônsules possam gerar essapropaganda; mas estes ficam apenas na boa vida e nãodivulgam as coisas do Chile. Acredito poder fazer o queeles ainda não fizeram, e poder fazê-lo com as únicasferramentas da propaganda efetiva: as escolas e aimprensa.7

Sem dúvida a noção quase mercenária de culturade Mistral carrega um bocado de autoproteção. No entanto,poderia essa noção ter excedido as exigências daautoproteção? Além disso, faria ela algum sentido para alémde uma deliberada autopromoção? Mistral identificava-secom o projeto nacional?

Em 1918 Mistral foi enviada a Magalhães, a provínciamais ao sul do Chile, com uma missão específica, chilenizar:

7 MISTRAL, 1992, p. 100. Grifo meu.

6 MOLLOY, 1998, p. 150 e 151.

5 Para um estudo mais extensodesse fenômeno em Mistral, verFIOL-MATTA, no prelo.

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“eu tive que chilenizar sua terra natal [a de Roque EstebanScarpa], por ordem de meu ministro e amigo”.8 Essasafirmações, conjugadas com o conhecimento de grandesatos de protesto contra o Estado, comuns à época, revelamuito sobre o projeto racial do Estado:9 assimilar ou aniquilarpopulações indígenas na província, promover a imigraçãodo norte da Europa para “branquear” a raça no Chile (Mistralmenciona iugoslavos e alemães no mesmo texto) esimbolicamente implantar a idéia da lealdade dos cidadãosà nação chilena, visando mais especificamente às classestrabalhadoras. Mistral falava com rancor sobre sua estadaem Magallanes, se bem que as mesmas prerrogativasnacionais que ela às vezes rejeitava com veemênciatenham orientado seus discursos público e privado até suamorte. Embora Mistral insinuasse perplexidade quanto a seupapel nessa empreitada, ela o internalizou e o viveuplenamente, a ponto de seus próprios sentimentos semesclarem no projeto racial do Estado.10

A preocupação de Mistral com as fronteiras nacionaistornou-se obsessiva em seus discursos e práticas raciais.Nesse sentido, ela (e o Estado) praticaram uma espécie deprofilaxia social. Mas uniram as práticas individuais e sociaisdessa profilaxia a tal ponto que elas foram experimentadascomo uma coisa só. Quando lido através das lentes da raça,o discurso mistraliano não é “pessoal”, como sua tãopropalada, mas não muito convincente, fábulaautobiográfica nos faria acreditar. Mistral aparece comoalguém diferente da mulher e esposa frustrada que nuncaencontrou outro amor capaz de se equiparar ao primeiroromance, ou, de maneira mais crucial, como a defensoraincondicional de todas as crianças, todas as mães e todasas “minorias” raciais.

Pode-se dizer que Mistral foi movida por um desejode se erigir como um pilar em discursos de apelo às massas,e como uma atriz das transformações que ocorreram emparte pela ativação desses discursos. Suas durasexperiências relativas a gênero e sexualidade, emboramuito reais, não compensaram a maturação de umaidentificação racial anterior com o Estado-nação. De fato,seu “segredo revelado” interagiu com sua identificação aoprojeto racial chileno e com sua desmedida ambição deancorar o Estado racial. É fundamental perceber que aidentificação racial de Mistral não foi reflexo de suapersonalidade única; o tratamento que ela dedica aosoutros racializados e à mestiçagem pode às vezes pareceridiossincrático, mas ela própria acabou sendo construídapor conta do projeto racial, ao mesmo tempo que deu formaa ele ao se tornar sua ativa enunciadora. Identificaçõesraciais coletivas em fluxo – experimentadas pela maioria

8 Roque Esteban SCARPA, 1977, v.1, p. 18. Sobre chilenizar, ver tam-bém Volodia TEITELBOIM, 1991, p.87.9 Atos organizados de protesto in-cluíram a revolta de trabalhado-res de Puerto Natales e Punta Are-nas em 1919 e 1921, respectiva-mente. O Estado reprimiu violen-tamente as duas manifestações,massacrando igualmente traba-lhadores e pessoas indígenas.Mistral foi alocada em Punta Are-nas durante a primeira revolta ejá havia deixado a região naépoca da segunda. VerTEITELBOIM, 1991, p. 87-91.

10 Ver o prefácio de Mistral paraSCARPA, 1977, p. 11-25. Esse pre-fácio foi escrito quase três déca-das depois de Mistral ter saído deMagalhães. É possível que Mistral,ao saber da intenção de seuamigo de compilar um livro sobreseus primeiros anos no Chile, te-nha pensado em influenciar suarecepção e moldar a percepçãopública de sua estada em Maga-lhães. Ela insistiu em escrever oprefácio.

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dos cidadãos latino-americanos durante o período de umamodernização desigual – foram refratadas unicamenteatravés de Mistral, fortalecendo-se rumo a uma identificaçãonacional comum, costurada de acordo com o desejo doEstado.

Mestiçagem e Mestiçagem e Mestiçagem e Mestiçagem e Mestiçagem e queernessqueernessqueernessqueernessqueerness

Mistral é normalmente saudada como a grandedefensora das populações indígenas da América Latina,particularmente dos mestiços. A mestiçagem, comoaparece neste ensaio, não é uma mistura racial espontânea,ditada por movimentos e contatos entre populações, masum fenômeno sustentado e administrado pelo Estado. Amistura racial foi toda uma arena de políticas e práticasdiscursivas, exigindo classificação, perícia e vigilância.11 Asaulas de Foucault no Collège de France, em 1976, sobre agenealogia do racismo, especificamente sua noção daviolência do biopoder, são perfeitamente adequadas a essadiscussão. De acordo com Foucault, a violência do biopodertem menos a ver com atos de matança do que comexclusões institucionalizadas e hierarquias desenhadas paragarantir que somente alguns tenham a “capacidade deviver” em uma sociedade normalizadora.12 Uma genealogiafoucautiana da mestiçagem no trabalho de Mistral – umatentativa de definir condições para sua emergência, etambém de localizá-la – indica que ela tomou esse conceitodiretamente de José Vasconcelos e do grande projeto deconstrução de nação após a Revolução Mexicana. Alémdisso, tal genealogia também sugere claramente que paraMistral a mestiçagem significou essencialmente aarticulação de uma noção cultural de “unidade” a serviçode uma agenda integracionista.

A mestiçagem implica um binarismo que marginalizalatino-americanos e descendentes de africanos. Na melhordas hipóteses, estes são folclorizados como uma minoria“exótica”; na pior, são literalmente eliminados. Mas antesde explorar mais amplamente o tratamento dado ao sujeitonegro latino-americano, é conveniente revisitar uma questãocrítica no discurso racial de Mistral: o caráter de sua “defesa”das populações indígenas.

Por mais que pareça chocante hoje, a jovem Mistralfoi atraída pela crença na supremacia branca. Ana Pizarrorelata que já no início da carreira, nos feriados em que secomemorava o Dia da Raça, Mistral falava da “salvaçãodo branco” e da “pureza da raça”.13 Curiosamente ela sóabandonou seu discurso virulento e começou a falar emnome das populações indígenas depois de sua primeiravisita ao México em 1922, quando Vasconcelos a convidou

13 Ana PIZARRO, 1997, p. 49.

11 Para vários relatos dessa preo-cupação disseminada com amistura racial “certa ou errada”,ver Nancy Leys STEPAN, 1991;Richard GRAHAM, 1990; e ThomasE. SKIDMORE, 1993.

12 Veja também a brilhante análi-se das aulas de Foucault feita porAnn Laura STOLER, 1995.

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como parte de suas reformas educacionais. Mas essamudança era sincera e humanitária, ou uma adoçãoestratégica de um discurso de normalização? Pizarroacredita na primeira opção.14 No mínimo, a mudança deMistral foi impecavelmente oportuna.

O primeiro dos ministros da educação do Méxicomoderno, Vasconcelos foi o primeiro empregadorinternacional de Mistral. Seu convite aumentousubstancialmente nela o sentimento de poder pessoal sobreas políticas culturais da época, e pode-se argumentar queela tenha percebido em sua defesa das populaçõesindígenas uma oportunidade. Jaime Quezada acredita queMistral mudou de idéia em Magalhães, ou seja, antes dedeixar o Chile. Mas não há textos pedagógicos do períodoque glorifiquem o indígena ou o mestiço no Chile. Quezadabaseia-se nos textos que Mistral escreveu em 1932 e 1948,que na verdade mostram o quanto ela aprimorava seupassado chileno e seu papel na chilenização do país. Omodelo de administração racial do Chile encontrava-seclaramente na Argentina, seu vizinho de Cone Sul, não noMéxico populista.15 Aguirre enviou Mistral a Punta Arenaspara dirigir uma escola de meninas. Escolas de meninaseram dirigidas a filhas privilegiadas da burguesia nascente,não a filhas de trabalhadores, e certamente não a filhas depopulações indígenas. Enviada à região mais propriamenteindígena do Chile, e também a mais afetada pelaimigração, para dirigir uma escola de “verdadeiras”mulheres nacionais, Mistral supostamente evitaria qualquerrisco de promiscuidade sexual. Como aponta Jorge Salessi,na Argentina uma sofisticada literatura pedagógica ecriminológica abordou os “perigos” do lesbianismo(chamado “fetichismo” e “uranismo”) no mundo homo-socialdas escolas de meninas. Essa tarefa de Mistral teria sidomera ironia histórica?

Sua consciência de seu alto prestígio depois da visitaao México colaborou com o tom autoritário de sua cartapara Aguirre citada acima. Sua visita ao México tem tambémíntima relação com um detalhe interessante. Vasconcelostinha atração por ela devido a sua queerness, rejeitandooutros modelos de femininidade que ele poderia terimportado do Cone Sul. Em uma alegre confidência a seuamigo Radomiro Tomic, Mistral comenta a impressão quesua imagem causou em Vasconcelos no México:

basta-me, eu te asseguro, estar em pé de igualdade comos outros cônsules, apesar de ser mulher. Isso seria suficiente,repito. Vou voltar no tempo para esclarecer os fatos a você.[O presidente Arturo] Alessandri disse a Vasconcelos, quandoeu estava no México, que este havia cometido um grandeerro trazendo ao México Gabriela Mistral em vez de

14 Pizarro percebe também queMistral mudou sua posturasupremacista depois de sua visi-ta ao México em 1922, mas so-bre isso nossos pontos de vista di-vergem. Pizarro escreve: “o olharde Mistral muda no México, é cla-ro, e esse novo olhar se reafirmano Brasil, numa época em queGilberto Freyre e Sérgio Buarquede Holanda empreenderam umareleitura fundamental da culturanegra” (PIZARRO, 1997, 49). Freyree Buarque de Holanda fizeramparte de uma tendência à nor-malização e contribuíram com oque Foucault chamou de“governamentalidade”. Em rela-ção aos negros, a visão racistade Mistral permaneceu a mesma.Se houve alguma mudança, foiter-se tornado mais sanguinária.Suas referências ao Brasil cristali-zaram justamente esse racismoperigoso.15 Quezada também atribui a de-cisão de Mistral de defender po-vos indíigeas a sua missão noMéxico, mas ele insiste: “essaabordagem das verdades dosíndios teria começado mesmo em1919, em seu exílio emMagallanes” (QUEZADA, 1994, p.12).

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[Amanda Labarca Hubner]. E num banquete, depois disso,Alessandri apresentou Mistral a Vasconcelos e a fez sentarperto dele. Quando Alessandri se levantou para sair,Vasconcelos disse a ele: “dessas [como Hubner] nós temosmuitas no México; demais na verdade. Mas essa que eutrouxe comigo [Mistral] é diferente e queer”. Ele riu ao mecontar isso.16

Quando Mistral conta esse episódio, ela eVasconcelos estão compartilhando uma piada secreta. Suaconfiança em seu “amigo” Tomic coloca esse relatodiretamente no reino do discurso pessoal, mas Mistral é bemclara quanto às conseqüências de sua queerness para suaschances de uma vida pública em um mundo de homens. Acomparação com Amanda Labarca Hubner, talvez afeminista chilena mais importante da época, éinequivocamente favorável ao desdém que Mistral, e talveztambém Vasconcelos, mostrava pela prevalência daimagem pública da mulher. Essas feministas não seadequariam a uma imagem transnacional, ou ao papel deporta-voz. Elas nunca provocariam o ilimitado fascínio queMistral evidentemente se sentia capaz de provocar. Otestemunho de muitos de seus contemporâneos confirmaque essa impressão não era falsa e reforça a evidência deque sua “masculinidade” em muito colaborou com essaatração.17

Vasconcelos estava em busca de um ícone incomum– uma mulher descentrada. O que ela representava, paraele, não era “um grande alívio cultural, parecido com o‘não temos disso por aqui’ de certas construções denacionalidade angustiantes”, mas exatamente o oposto.18

Vasconcelos finalmente achou a forma corporal dafemininidade que ele queria. Queerness é aquilo que oMéxico não tinha, e aquilo de que supostamente precisava.Evidentemente, Vasconcelos pensou que precisavaincorporar a queerness para que seu esforço educacionalnacionalista funcionasse. Aí se encontra seu brilhantismoperverso; sendo um homofóbico de primeira ordem, elecontratou intelectuais e escritores gays e lésbicasproeminentes para dar suporte a sua reforma educacional.A efetividade dessa tática sensibilizou também Aguirre, masVasconcelos parece ter tido uma visão muito maissofisticada. Ele viu que havia algo desprezado na queerque podia estar ligado ao outro racializado, igualmentedesprezado, algo sobre a inclusão da queer como um sersolitário e inacessível que poderia fazer avançar a inclusãosimbólica das populações indígenas nos mesmos termos.

Naturalmente, Mistral explorou a lição regional doMéxico. Tendo em mente, com convicção, a visibilidadeinternacional que a Revolução Mexicana havia atingido,

16 Luis Vargas SAAVEDRA, 1995, p.102.

17 Discuto isso de modo maisaprofundado em FIOL-MATTA, noprelo.

18 MOLLOY, 1998, p. 154.

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ela criou uma autêntica pedagogia transnacional. Suareivindicação por uma “propaganda” maior em favor dogoverno chileno reflete uma mudança importante emrelação à atitude que demonstrava nas cartas a Aguirrequando era ainda uma desconhecida professora de escolanas províncias do Chile. Nessas cartas Mistral submetia-seplenamente a ele, vendo nele “o comandante”: “para mim,ministro, você será sempre a autoridade intelectual eespiritual cujo credo pedagógico espero um dia tornarrealidade, a fonte da aprovação que mais me satisfaz e dacensura que mais me entristece”.19 Ela percebeu queprecisava de um protetor homem agindo em seu nome paraassegurar aquilo a que Juan Villegas Morales deu o nomede papel do Estado como mecenas.20 O que a jovem Mistralnão compreendeu plenamente antes de 1922 foi opotencial de sua queerness. Mesmo sabendo que seuconsiderável talento literário a resgataria de um ambientechileno sufocante, Mistral queria mais. Ela se identificou como poder e foi atraída por ele. Apesar de sua postura dedefensora das populações indígenas, Mistral era branca eidentificada como tal, o que parcialmente explica o fatode sua pose de mestiça ser encarada como queer. Seudiscurso racial ao mesmo tempo autoriza e desautoriza suaqueerness.

A feiúra que Mistral reconhecia em si mesma, suapose de alguém que se odeia e age sem pensar, assumeum caráter totalmente diferente quando justaposta a suaexcessiva identificação com o “índio”, universalmentereconhecida.21 As duas poses têm semelhançassurpreendentes. Talvez Mistral tenha tido de fato sentimentosprofundos em relação ao índio e ao mestiço. Certamenteela levou a sério sua identificação cruzada com eles. Maisimportante, essa identificação – que é queer – teve umadimensão política e social de valor histórico inestimável.Mistral incorporou a imagem pedagógica do índio e domestiço. Graças a ela, essa imagem chegou às escolas daAmérica Latina. Os ensaios “A la mujer mexicana” e “El tipodel indio americano”, altamente antologizados, quandoexaminados rapidamente, são meros exemplos dadisseminação dessa imagem.

Mistral ofereceu uma fábula atraente: um objetobonito confundido com um feio, um ícone milenar e singularfatalmente apartado da vida social, uma estranhezamerecedora de uma curiosa combinação de admiração epena. Essa narrativa mostrou como foi possível amar edesprezar o outro, além de amar e desprezar a si mesma.Mistral encorajou a identificação de cidadãos latino-americanos com essa imagem de pessoa da terra;encorajou também, através de sua figura queer, sujeitos

19 Mistral escreveu essa carta nodia 2 de outubro de 1918, dePunta Arenas (ver SCARPA, 1977,v. 2, p. 333).20 MORALES, 1980.

21 Quando Mistral tinha 25 anosde idade, por exemplo, ela sedescreveu como “esta buenavieja que hace versos” (IsauroSANTELICES, 1972, p. 73).

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nacionais a se fecharem em um jogo psicológico com oEstado-nação. Identificação, identificação cruzada econtra-identificação tornaram-se os principais exercícios decidadania.22

Enquanto sua auto-apreciação como feia coincidiacom sua glorificação do indígena como bonito, Mistralconcentrou-se, nas décadas de 20 e 30, na classificação docorpo indígena. Apesar de ter lecionado desde 1914 e deter escrito regras de comportamento para professores deescola, além de peças elogiosas ao sistema de ensinopúblico, Mistral escreveu seus mais vigorosos textos sobreeducação uma década depois. Eles revelam suapreocupação com a “nossa raça”; tomando emprestadauma expressão de Michael Omi e Howard Winant, o “sensocomum racial” permeou seu trabalho até sua morte.23

Considere-se um trecho de “El tipo del indio americano”(1932):

uma das razões da repugnância nativa pela confissão dapresença índia em nosso sangue, uma das origens de nossomedo de contar ao mundo que somos mestiços leais, é achamada feiúra do índio. Assumimos isso como umaverdade irrefutável; aceitamos isso sem questionar. Issoaparece lado-a-lado com expressões como “o índio épreguiçoso” ou “o índio é mau”.[...] Devíamos ter ensinado nossas crianças sobre a belezadiferenciada e oposta das raças. Um olho comprido e finoé bonito no mongol, mas deprecia um rosto caucasiano.Uma cor amarelada, variando de um tom de palha ao dapele de um carneiro, acentua a delicada natureza do rostochinês. No europeu ela sugere um sangue depauperado.Cabelos encaracolados são uma coroa gloriosa na cabeçado caucasiano; no mestiço eles sugerem algo do mulato,e então preferimos as lisas madeixas do índio.24

Para além da interpretação racial da beleza nesseensaio, Mistral analisa misturas raciais em termos binários,considerando vantagens e desvantagens. A oposição bináriabeleza/feiúra e a idéia vasconceliana de “seleção estética”orientam todos os seus escritos depois de 1922 e bem podemser interpretadas como subtexto de sua subseqüenteautocaracterização como índia ou mestiça, cada vez maisfreqüente e altamente problemática. Sua transformaçãoracial, produzida no discurso, era tão profunda que se tornoulugar-comum na esfera pública a referência a Mistral comomestiça. Seus biógrafos e críticos assumiram essaidentificação como fato biográfico, o que persiste até hoje.

A negação feita por Mistral da “chamada feiúra doíndio” é geralmente lida como uma defesa do “elementoíndio” na configuração racial do sujeito latino-americanouniversal. Em um arguto ensaio sobre Mistral e Victoria

22 Para uma lúcida explicaçãodesses termos psicanalíticos, apartir da perspectiva queer, verDiana FUSS, 1995.

23 OMI e WINANT, 1994, p. 67.

24 MISTRAL, 1978a, p. 179.

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Ocampo, Amy Kaminsky reconhece o uso problemático queMistral faz dos estereótipos ao desenhar um índiosimbolicamente bonito; seu famoso ensaio “Silueta de laindia mexicana”, de 1923, por exemplo, “faz pouco maisdo que trazer a índia para o campo de visão e transformá-la num objeto de beleza”.25 Kaminsky acredita, porém, queMistral, em essência, de fato se importou com as populaçõesindígenas, e que ao assumir essa causa ela se tornou umaoutsider social. Mas essa não parece uma leitura superficial?É vital contextualizar a “defesa” feita por Mistral e desvelaro lugar de onde a idéia de feiúra surgiu. Para revelar o queessa defesa possibilita – ou pelo menos o problema que eladesconsidera – é útil primeiro ponderar a considerávelinfluência de Vasconcelos.26

Em seu tratado La raza cósmica, de 1925,Vasconcelos apresenta uma verdadeira narrativaexcepcionalista, colocando a América Latina diretamenteno centro dos assuntos internacionais através de umaconstrução racial, ou, nas palavras de Omi e Winant, deum projeto racial.27 A mestiçagem, propõe Vasconcelos,constitui a especificidade racial da América Latina, bemcomo sua vocação para a centralidade. Essa região, por sisó, contém as quatro raças do mundo, o que significa quea próxima (e para ele a última) raça líder – a quinta raça,ou raça cósmica – vai nascer na América Latina.Curiosamente, o processo de miscigenação não é aleatório;é meticulosamente seletivo. Em um trecho altamentequestionável mas fascinante, Vasconcelos prevê que “raçasfeias” vão “sair de circulação” voluntariamente, a partir doprincípio de “eugenia estética”, ou do critério de “gosto”.

Os tipos inferiores da espécie vão ser absorvidos pelo tiposuperior. Assim, por exemplo, o negro vai ser capaz de sesalvar e pouco a pouco, através da extinção voluntária, asraças mais feias vão pavimentar o caminho para as maisbonitas. As raças inferiores, através da educação, vão setornar menos prolíficas, e os melhores exemplares vãoascender na escala do aprimoramento étnico. Nessaescala, o tipo supremo não é o branco, mas uma novaraça, a qual o branco também terá que desejar para quese atinja a síntese. O índio, enxertado numa raça com aqual tenha afinidades, vai dar o salto sobre o vazio de ummilhão de anos que separa Atlantis de nossa época. Empoucas décadas de eugenia estética o negro vaidesaparecer, junto com os tipos que o instinto livre da belezasinaliza como fundamentalmente recessivos, nãomerecendo portanto sobreviver. Desse modo haverá umprocesso de seleção por gosto. Será muito mais eficientedo que o brutal critério de seleção darwinista, que podeser relevante, quando muito, para espécies inferiores, nãopara o homem.28

25 KAMINSKY, 1993, p. 118-119 e121.

26 Embora eu isole Vasconcelos,ele não foi o único a praticar aideologia da mestiçagem, muitomenos seu autor. Para uma intro-dução à genealogia desse mo-delo no México, ver Alan KNIGHT,1990.27 “Definimos formação racialcomo o processo sócio-históricopelo qual categorias raciais sãocriadas, ocupadas, transforma-das e destruídas”; “propomos for-mação racial como um processoenvolvendo projetos historica-mente situados nos quais corposhumanos e estruturas sociais sãorepresentados e organizados”;“projetos raciais desenvolvem o‘trabalho’ ideológico de construiressas ligações. Um projeto racialé simultaneamente uma interpre-tação, representação ou expla-nação da dinâmica racial e umesforço para redistribuir recursosde acordo com linhas raciais es-pecíficas” (OMI e WINANT, 1994,p. 55-56).

28 VASCONCELOS, 1996, p. 42-43.Grifo meu. Agradeço a Julio Ra-mos me chamar a atenção paraesse trecho.

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Esse trecho estabelece três claras conexões entreVasconcelos e Mistral. Primeira, ambos associam o sexo àtransmissão da “cultura”, seja a cultura do europeu, sejamas das comunidades indígenas e negras da América Latina.Segunda, ambos privilegiam o branco e a cultura ocidental,ainda que Vasconcelos simbolicamente eleve o mestiço. Ofato de a quinta raça não ser idêntica à raça brancasublinha as ambivalências do texto de Vasconcelos: umsentido de inferioridade racial diante da “verdadeira”brancura e um vago mas excessivamente importante sentidode pânico racial surgiram a partir de uma relação iminentee íntima, ainda que involuntária, com os Estados Unidos. Essasensibilidade é transparente na comparação entre negro eíndio. Enquanto reconhece a existência dos negros naAmérica Latina, Vasconcelos relata com satisfação que “elesforam transformados quase inteiramente em mulatos”. Eainda usa a negritude para demonstrar que a América Latinanão só tem uma estratégia melhor do que a americanapara lidar com sua população negra (a assimilação), mastambém está mais bem posicionada para obter sucesso namiscigenação, porque tem um outro mais palatável (o índio).

Os norte- [i.e., os anglo-] americanos são muito firmes emsua decisão de manter sua linhagem pura, mas é claroque isso é possível porque eles têm o negro diante deles –o outro pólo, precisamente oposto ao elemento que elespoderiam eleger para formar a mistura. No mundo ibero-americano o problema não é assim tão extremo. Temosmuito poucos negros, e a maioria já foi transformada empopulações mulatas. O índio é uma boa ponte para amestiçagem.29

Superficialmente, as populações indígenas saem-semelhor nesse esquema do que as negras, mas é importantenotar que elas também estão fadadas a desaparecer noprocesso de mestiçagem. É precisamente nesse contextoque aparece a atitude de Mistral em defesa das populaçõesindígenas. A comparação entre esses dois grupos, ambospobres e provendo boas pontes para a mestiçagem,constitui o pano de fundo contra o qual se pode considerartanto os critérios estéticos, primordiais nas primeirasdescrições que Mistral faz do “elemento indígena”, quantoseu recurso à idéia de “feio/não feio”. Embora essascategorias tenham sem dúvida relação com o racismo desenso comum da época, o fato de Mistral assumir todo umdiscurso racial nos âmbitos público e oficial exemplifica umgênero de discurso mais sofisticado.

Em uma terceira conexão, Vasconcelos propõesubstituir “o brutal critério de seleção darwinista” por uma“eugenia estética”: “assim que a educação e o bem comumestiverem disseminados, não haverá mais o perigo da mistura

29 VASCONCELOS, 1996, p. 37.

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de tipos em oposição direta. As uniões vão ocorrer apenasde acordo com [...] a lei da afinidade, sendo refinadas pelosentido da beleza”.30 Vasconcelos isola apenas educaçãoe parâmetros do “bem comum” como os principais meiospelos quais o “gosto” e a “eugenia estética” serão cultivadosem massa. O Estado supostamente vai administrar essaspráticas, embora o ensaio não o afirme. O texto tambémnão indica as crianças como o telos desse esforço, comocidadãos em miniatura ou aspirantes a cidadão. Infância eeducação são precisamente as arenas nas quais Mistral seposiciona de forma astuta e agressiva. Tramando os fios queVasconcelos deixa soltos, ela insiste em afirmar que a misturacorreta funda a intervenção pedagógica, uma vez que acriança nacional é a construção desejada pelo sistemapúblico de educação (para enfatizar a noção foucaultianade educação primária).

A expressão eugenia estética tenta tornarfilosoficamente palatável uma ação social insossa. Aadministração da vida social levou à eliminação de certossujeitos sociais e à erradicação de suas culturas. Essa perdade vida – vida das pessoas, vida das culturas – precisa sermascarada como continuação de outra vida, isto é, a vidade uma nação tão gloriosa e importante. Mistral era a favorda eugenia? De acordo com a historiadora Asunción Lavrin,Mistral participou de debates sobre programas de eugeniana América Latina. Suas “idéias sobre eugenia socialreproduziam aquelas de higienistas e cientistas feministasde sua geração, e sem dúvida tiveram por base suaexperiência no Chile”. Lavrin escreve que Mistral defendeua caridade social organizada para o combate a sífilis,tuberculose e alcoolismo, acreditando piamente que “aqualidade da nova geração” estava em jogo. Em umpanfleto governamental sem título, de 1926, ela falou deum “patriotismo biológico” como conceito mais adequadoao Estado do que nacionalidade ou raça, defendendo umpapel especial para mulheres como trabalhadoras sociais.“As idéias de Mistral sobre o papel das mulheres nos sistemasde promoção de saúde nacionais iriam em pouco tempose tornar uma realidade política e pedagógica, visto queas nações do Cone Sul haviam lançado escolas de serviçosocial, confiando a suas graduandas papéis similares aosque ela sugeria.”31

Mistral claramente reteve o conceito denacionalidade e aderiu à idéia da América Latina comouma “raça”, ao contrário do que indicavam suas afirmaçõesde 1926. Mas sua defesa do “patriotismo biológico” acaboutraindo nela uma compreensão eugenista das populações,que seriam formadas por elementos de raças superiores einferiores. Ensaios em que ela copia o modelo mexicano

30 VASCONCELOS, 1996, p. 23.

31 LAVRIN, 1995, p. 163-164.

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de mestiçagem obviamente não têm como demonstrar essefato, mas quando se levam em conta seus ensaios sobre oparadigma argentino da imigração branca é impossívelsustentar com alguma convicção que Mistral via aspopulações indígenas com a mesma consideração comque via os brancos.32 Mesmo imigrantes brancos eram àsvezes uma questão difícil para ela; em “El floklore argentino”,ela fala de folclore como “a defesa da raça contra aimigração perigosa”, aparentemente tomando emprestadauma página da política americana: “‘a Argentina para osargentinos’, plagiando Monroe; conquistando os imigrantese os nativos [...] através do folclore”.33

Em seu importante estudo sobre os projetos deeugenia da América Latina do início do século XX, NancyLey Stepan sintetiza o relacionamento entre raça epertencimento nacional da seguinte forma:

O desejo de “imaginar” a nação em termos biológicos, de“purificar” a reprodução das populações de acordo comnormas de hereditariedade, de regular o fluxo de pessoasatravés de fronteiras nacionais, de definir em novos termosquem poderia e quem não poderia pertencer à nação –todos esses aspectos da eugenia levantaram questões degênero e raça e produziram propostas ou prescriçõesinvasivas na articulação de novas políticas estataisconcernentes aos indivíduos. Através da eugenia, emresumo, gênero e raça foram amarrados à identidadenacional.34

Mistral deixou-se atrair pelo problema da definiçãoda população nacional, da determinação de quem seriaparte dela, e também pela argumentação sexual queautorizava esse discurso. Suas opiniões constituíam umaforma sutil e insidiosa de eugenia; longe de estaremconfinadas a um círculo reduzido de especialistas cominfluência sobre a medicina e a saúde, essas opiniões foramnaturalizadas América Latina afora como “coisas a fazer”.Acessível a instituições de massa como as escolas e aimprensa, sua “fala da raça” se tornou sinônimo de umacompreensão nacional de si mesmo, e essencial para oregistro afetivo do pertencimento nacional.

Negritude e Negritude e Negritude e Negritude e Negritude e queernessqueernessqueernessqueernessqueerness

Os críticos entendem que quando Mistral menciona“a raça” ela se refere a uma civilização, não a característicasbiológicas ou a distintas populações da mestiçagem.35 Suasreferências a uma raça mestiça latino-americana, propõemeles, representam um reconhecimento de 400 anos demestiçagem cuja suposta linha de chegada mais ou menoscoincide com o advento do Estado moderno latino-

32 Sobre a admiração de GabrielaMistral pelo projeto racial argen-tino ver MISTRAL, 1978b; MISTRAL,1979a; e MISTRAL, 1979b.

33 MISTRAL, 1979c, p. 58-59.

34 STEPAN, 1991, p. 105.

35 Ver, por exemplo, PatricioMARCHANT, 1996.

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americano, ratificado por um contrato social liberal quedispensa revisões. No entanto, fica claro que aspreocupações raciais de Mistral não se referiam diretamente– mas apenas tangencialmente – à sobrevivência de umacivilização vivendo sob a pressão de outras, especialmenteseu temido vizinho do norte. Suas preocupações gravitavamem torno de três questões-chave: 1) saber se negros eimigrantes eram parte da mestiçagem latino-americana;2) o que fazer se eles fossem; e 3) como privilegiarpopulações indígenas sobre as negras em uma construçãobinária que, enquanto glorificava a heterogeneidade latino-americana, controlava seu impacto com firmeza.

Mistral entendeu a conexão, e o contraste, entreconstruções raciais indígenas e negras no contexto doprojeto de Estado. A condição atribuída à mulher indígenagira em torno disso. Em um ensaio pedagógico anterior, “Ala mujer mexicana” (1922), ela escreve: “disseram a vocêque sua pureza é uma virtude religiosa. É também umavirtude cívica: seu útero sustenta a raça; as massas cidadãsnascem serenamente de seu seio, acompanhando o fluireterno das primaveras de sua terra natal”.36 Em outraspalavras, a mulher indígena é o receptáculo vedado noqual a raça se mantém pura, o vaso em que a reproduçãoé aceitável. Essas projeções relativas a fazer a mulherindígena se sentir pura ressoam instantaneamente no projetoeugenista de aprimorar a qualidade da população. Aligação entre o corpo da mulher indígena e o da mulhernegra torna-se crucial. Enquanto a mulher indígena é umreceptáculo da raça, uma espécie de mãe nacional, amulher negra é o veículo pelo qual a semente nacional e,portanto, a vida nacional se perdem.

Mistral também se viu como receptáculo da raça.Patricio Marchant resumiu o apelo de Mistral como mãe:

Mistral aparece na mitologia chilena, tanto a popularquanto a literária, [...] como a mãe por excelência [...],competindo com a Virgem Maria por essa posição. Mãepor excelência porque ela é mãe sem filhos. Umapossibilidade que ativa o desejo se o lugar do “filho legítimo”existe como um vácuo [...], se o desejo infantil tem relaçãocom o de ser o filho real, o único, o mais amado. Em termospsicanalíticos, o inconsciente sabe que isso é impossível –precisamente a razão que torna a mãe leal, pura, virgem,boa.37

Mistral colocou a mulher indígena em uma posiçãosemelhante: inacessível e remota, afastada de seus filhoslogo ao dá-los à luz. A mulher negra é o avesso. Muitoacessível e natural, vulnerável demais para trair a raça pela“miscigenação”,* ela se torna o próprio agente da poluiçãobiológica nacional.

36 MISTRAL, 1924, p. 173.

37 MARCHANT, 1996, p. 67.

* “Intermingling” no original [N. doT.].

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No ensaio “Primer recuerdo de Isadora Duncan”(1927), amplamente antologizado, Mistral compara o corpobranco de Duncan com o corpo negro de Josephine Baker.Ela privilegia o primeiro como depositário da beleza estéticae associa o segundo ao declínio da arte. Esse textodocumenta o racismo de Mistral contra descendentes deafricanos, chegando a sugerir uma atitude simpática àsupremacia branca americana. O ensaio começa com umareferência indireta ao linchamento e, conscientemente ounão, explora a narrativa do linchamento imprimindo um tomsutil mas sensacionalista. A narrativa estrutura-se sobre umaconstrução racista da violação sexual do corpo de umamulher branca ou, mais especificamente, do corpo daesposa do homem branco, aquela que carrega seus filhos.Dessa vez, porém, o corpo de uma mulher negra, Baker, é oagente da transgressão. A narrativa de Mistral é homoeróticae racista. Duncan é o objeto do desejo de Mistral (comoagudamente percebeu o crítico Alberto Sandoval Sánchez),mas foi indiretamente violentada por outra mulher – umamulher negra, Baker.38 A dança “grega” é, numa linguagemfigurativa, transgredida pelo Charleston, que na opinião deMistral é uma dança sexual e degradante, executada porpessoas animalescas e degradantes.

Isadora era também uma yankee, mas uma yankeeirlandesa, e de qualquer forma pertencia a uma geraçãoque não havia caído no porão malcheiroso dos traficantesde escravos.Que vingança curiosa os negros impuseram aos inglesesda América do Norte. Eles que comem, rezam e existemisolados; eles que não podem ter nos braços o corpo deuma mulher branca sem que os filhos de Lynch desçamsobre eles entornando pelo chão sua única parte branca,ou seja, seus cérebros; foram eles que levaram ao inimigo(o Super Homem Branco, como alguns o chamam) seusrebolados obscenos. Eles criaram para os brancos os ritmosbestiais para os quais Nova York agora desperta, com osquais ela vive, com os quais ela dorme.Isadora deixou esse enorme salão de Charleston em que omundo se transformou – não tarde demais, graças a Deus,e com a elegância de uma visitante delicada, que abre aporta e se retira discretamente ao ver que seus anfitriõesestão bêbados.39

Essa passagem cinicamente vale-se da relação quea narrativa do linchamento estabelece entre raça esexualidade ou, mais concretamente, entre negritude,sexualidade e crime. Simultaneamente, ela entra emressonância com o suposto horror das relações sexuais entremembros de raças opostas (um horror já visto em La razacósmica de Vasconcelos). Mistral, na verdade, distingue

38 SANDOVAL SÁNCHEZ, 1996, p.139-151.

39 MISTRAL, 1978c, p. 118.

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uniões corretas e incorretas em “El tipo del indio americano”,escrito pouco depois de “Primer recuerdo de IsadoraDuncan”; aqui ela fala com cuidado da constituição domulato (mistura de branco e preto). O tema das uniõesindesejadas ecoa depois nos comentários de Mistral sobreas conseqüências do casamento de mexicanos comnegras. O pânico domina seus escritos sobre essas uniões,e ela revela ansiedade para se mostrar distante de qualquerherança de negritude. Um modo de denegar a existênciade negros na América Latina foi deslocar a negritude paraos Estados Unidos. Em outro texto em que menciona dança,a comparação aparece de novo: “gosto do tango! Eu dissepara Lombardi. Alguns tangos triunfaram por 20 anos sobreo blues americano. Esses ritmos negros não nos vão trazernenhum bem; eles não são nossos”.40

Boa parte do artigo de Mistral sobre Duncan descreveum objeto difamado, ou seja, o corpo de Baker, que carregaem si sua própria degeneração. O critério estético autorizaessa descrição violenta, tendo seu refrão na idéia de feiúra,implícita em termos bem marcados como “macaco”,“bestialidade”, “fedorentos” (que aparecem em todo oartigo) e no “rebolado obsceno” acima citado. EmboraSandoval Sánchez, o único crítico que examinou o texto,tenha observado corretamente o “olhar racista” de Mistralpara o corpo da mulher negra, ele entende que esse olharnão contém desejo e que essa falta de desejo, esse ódio,vem direto da negritude de Baker, percebida como umsubstituto de toda a negritude.41 Sandoval Sánchez lê nasimpática releitura que Mistral faz do corpo insinuante deDuncan a repressão da atração de Mistral por mulheres e,implicitamente, pela brancura. Mas seu desejo queertambém aparece no tratamento que dispensa ao sujeitonegro e que curiosamente não é reprimido.

Mistral reexamina e retrabalha o racismo injurioso de“Primer recuerdo de Isadora Duncan” quando visita paísesde fala espanhola do Caribe, e mais tarde o Brasil. Depoisdessas viagens, feitas no início dos anos 30, oafrodescendente torna-se um objeto a ser conhecido eincorporado ao discurso estruturado pelo “nós” doamericanismo. Em uma carta de 1933 ao escritor eintelectual mexicano Alfonso Reyes, Mistral escreve: “sofricom o inverno americano e com os hispânicos; ambos sãobrutais. Precisava conhecer uma região de nossa raça daqual eu nada sabia; a língua espanhola da América,suavizada por suas terras e virtudes; e o mulato e o negro,que são diferentes, tão diferentes de nosso mestiço ou denosso índio. (Como sinto falta do índio Alfonso!)”42 A presençado sujeito latino-americano negro complica a oposiçãobinária da mestiçagem e a ideologia mexicana segundo a

40 MISTRAL, 1979c, p. 62-63.

41 SANDOVAL SÁNCHEZ, 1996, p.145.

42 SAAVEDRA, 1991, p. 84.

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qual “somos todos mestiços”. Mistral substitui sua rejeiçãoinicial da negritude e seu desconforto com a condição demulato por uma “vontade de saber” e uma “vontade depoder” nietzscheanas. Assim que a negritude aparece comouma presença fundamental e inegável na América Latina,Mistral procura formas de conciliar negritude commestiçagem, ainda tentando assegurar que a oposiçãoíndio/branco continue a ser o motor da históriacontemporânea da América Latina e a razão de ser de todasas políticas raciais do Estado.

As ideologias latino-americanas de democraciaracial tinham por base uma concepção da escravaturalatino-americana que a considerava benigna por sersupostamente mais afetiva e erótica.43 As queers nãoescapam desse legado. O desejo queer não é imune àsconstruções racializadas do erotismo ou à tentação de obtera condição de pertencimento à nação através do exercíciocoletivo da fetichização racial. Em termos globais, o desejoqueer tem sido normalmente associado à aceitação privadae à vergonha pública. Dentro da ordem liberal, acondescendência ou o ódio racial aparece normalmentesem censura em ambientes privados, sendo amenizado ousilenciado no discurso público. Assim, uma prerrogativa decidadania silenciada pelo liberalismo é o acesso a umaesfera privada na qual desejos queer proibidos interagemcom o erotismo racializado e hierárquico. Mistral exotiza esexualiza o sujeito negro nessa esfera privada. Suas cartasà antropóloga e etnógrafa cubana Lydia Cabrera é umexemplo. Antes de viajar ao Brasil, Mistral compartilhou suasintenções com Cabrera:

olha, de verdade, quando quiser ir para lá, por favor nãohesite e venha a nossa casa. Sou cônsul em Niterói, umapraia no Rio, separada da cidade por uma linda baía.Apenas meia hora de viagem. É uma sinecura, dificilmenteeu terei algo para fazer. Meu estado é o mais bonito e tema maioria dos habitantes. Lá as pessoas parecem cordiaise elegantes. E, é claro, há também o magnífico negro. 44

Na época dessa carta, Mistral estava morando naItália com sua secretária e companheira, a porto-riquenhaConsuelo Saleva, ou “Connie”, e atuava como cônsul doChile. Não se sabe se as cartas reunidas por Rosario Hiriartem Cartas a Lydia Cabrera: Correspondencia inédita deGabriela Mistral y Teresa de la Parra representam atotalidade da correspondência entre Cabrera e Mistral. Vistoque Mistral manteve uma correspondência volumosa comcentenas de pessoas, ao longo de toda sua vida, é provávelque haja outras cartas.

Molloy demonstrou que a troca de cartas entreMistral, Cabrera e a romancista mexicana Teresa de la Parra

43 O mais famoso proponente dateoria da “harmonia racial” é oinfluente Gilberto Freyre. VerMichael George HANCHARD,1994.

44 MISTRAL, 1988, p. 77.

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é codificada como lésbica. Molloy refere-se à participaçãode Mistral em algumas de suas “brigas de casal” e a seuesforço no sentido de que elas “juntassem os cacos”. Asassustadoras referências raciais de Mistral e sua falta deautocensura convidam a uma reflexão maior e, porquedirigidas a uma destinatária lésbica, podem significar umponto de vista comum relativo a “pessoas negras”. Mistralentende que o negro e a negra, ou a “negritude” em geral,são objetos de desejo de Cabrera e Parra.45 A companheiralésbica, que compartilha o elo secreto e o medo davergonha diante da sociedade, participa de um discursoproibido em outras regiões. Talvez o medo da própria Mistralde punição, e portanto de silenciamento, em termos sexuaisa tenha levado a declarações desinibidas em termos raciais.É curioso que Cabrera, autora conhecida de livros seminaissobre religiões e “folclore” afro-cubanos,46 seja depositáriadas fantasias raciais e racistas de Mistral, uma vez queCabrera explicitamente procura retratar os negros de Cubaem termos “respeitáveis”, como pessoas profundamentereligiosas.

Uma sexualização negativa do sujeito negro é claraem “Primer recuerdo de Isadora Duncan”, mas inicialmenteMistral entendeu a sexualização da negritude latino-americana de forma diferente. Em sua correspondência,ela recorrentemente alude à coleção Cuentos negros deCuba (publicada em 1936 na França e em 1940 naEspanha), de Cabrera, escrita para entreter Parra,companheira de Cabrera, quando ela estava na Suíça sobtratamento para a tuberculose que acabou sendo fatal.Certamente Mistral sentiu afeição por ambas, Cabrera eParra, mas havia ainda mais em jogo do que essa amizade:ela pode ter tido vontade de experimentar vicariamentedois circuitos de desejo. Um era o elo entre duas amantes;o outro, relativo à própria Mistral, relativo à incorporaçãodos contos folclóricos “afro-cubanos” de Cabrera à grandenarrativa da América.

Ao contrário de Mistral, Cabrera e Parra eram latino-americanas abastadas. Com residência no exterior,escrevendo em Paris, onde se conheceram em um barco,longe das praias cubanas, ambas usavam saias e vestidosde estilo impecável, cortavam seus cabelos curtos, no estiloflapper dos anos 20, esbanjavam uma atitudemarcadamente “feminina” e liberada. Sua relação com acausa nacional é de exílio, mas em um sentido diferente doque poderia ser para Mistral. Por um simples motivo: elasnão precisavam trabalhar, enquanto Mistral precisava. Alémdisso, o envolvimento inicial de Cabrera e Parra com odiscurso americanista ocorreu sob a influência européia doprimitivismo, em um mundo de boemia. Nem precisaram se

45 MOLLOY, 1995. Mistral pode nãoter simplesmente inventado essacomunidade. Cabrera e Parrapodem de fato ter compartilha-do esse conjunto de imagens denegros fetichizados e subservien-tes, que pode ter tido algo a vercom a criação das obras deCabrera, especialmente Cuentosnegros de Cuba.46 Os mais importantes são El Mon-te, Yemayá y Ochún e Lasociedad secreta abacuá.

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articular tanto para ter suas primeiras obras publicadas,enquanto Mistral, depois de labutar por 20 anos comoprofessora de escola no Chile, teve que atrair protetores(homens), e sem lançar mão de coqueteria feminina ou dedinheiro de família.

A ligação entre Cabrera e Parra podia ser ainda maisperturbadora para Mistral por causa da natureza trágicada doença de Parra. A doença é o principal princípioorganizador das auto-representações de Mistral. Ela ficouaté o fim ressentida por ter tido que trabalharininterruptamente desde pequena, mesmo depois de ficarfamosa. Irônica e lamentavelmente, ela às vezes sofreu defato com algumas doenças, incluindo diabete earterioesclerose, antes de morrer de câncer de pâncreas.Muitos críticos consideraram as referências de Mistral adoença, decadência e envelhecimento como reflexos fiéisde sua própria saúde, mas essa autocaracterizaçãocomeçou muito antes de seu sofrimento. É recomendável,portanto, separar sua própria experiência com doença edecadência de sua assunção de uma subjetividadedefinida por doença e trabalho excessivo. O tempo livredesfrutado por Parra e Cabrera atraía Mistralprofundamente. Definia as amigas como membros de umaclasse à qual ela sempre esteve longe de pertencer. Anecessidade psicológica de Mistral de se tornar o “sujeitodo trabalho” – sujeita ao trabalho, psíquico ou mental, etambém subjetivada por ele – tem relação com suanecessidade de se tornar sujeito da doença.

O modelo de escritora nacional de Cabrera e Parra– indivíduos livres das amarras da iconicidade – ressoouprofundamente na subjetividade atormentada de Mistral.Tendo- se decidido a representar uma espécie de ética dotrabalho latino-americana, Mistral escolheu evidenciar arelação utilitária entre o cidadão e o Estado. Mais do queisso, ela definiu em termos de gênero e de raça a relaçãode obediência ao bem comum, instaurando-a na psiquênacional ao posar de mestiça. Cabrera e Parra, ao contrário,permaneceram brancas convictas.

As cartas de Mistral a Cabrera inscrevem o erotismocomo fantasia racializada, envolvendo diretamente osnegros. A primeira carta começa com uma referência aum discurso racial supostamente compartilhado: “QueridaLydia: não me esqueci de você. Connie está semprepensando em você também. Acredite, nós duasexperimentamos um doce desejo: saber que você está umpouquinho feliz, mas não só com os negros”.47 O discursoracial funciona como provocação erótica entre casais queguardam certa relação de cumplicidade um com outro. A

47 Rosario HIRIART, 1988, p. 73. To-das as cartas a Cabrera aqui ci-tadas estão na edição de Hiriart;nenhuma tem data, mas todasforam escritas nos anos 30.

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conexão entre “felicidade” e um grupo não especificadoreferido como “los negros” é feita através desse óbvio tomerótico.

Nessa passagem Mistral explica a substância de seupróprio desejo diante de uma negritude dócil, prontamentedisponível:

Eu te amo demais, embora quase nunca o diga. Tive deme mudar algumas vezes; tive de me ocupar com umaquantidade enorme de correspondências, além de darconta de minha própria doença. E agora o problema denosso povo, imobilizado na França sem dinheiro. Acho quevou deixar este lugar em breve; não sei quando, ou paraonde vou. Tive – poucos meses atrás – um violento desejode ir para o campo; acho que vou fazer todo o possívelpara ir para um lugar de pouca gente, onde se fala umalíngua estrangeira, e onde eu possa viver na roça lidandocom as vacas no pasto e com as galinhas de Angola. Tenhovergonha de perguntar; às vezes me dá vontade deexperimentar uma grande aventura e ir embora para morar,sem emprego, num país americano semitropical e trabalharna roça. Você sabia que [o escritor francês Georges]Bernanos, de tão desesperado, foi para o Brasil e agoramora lá, num lugar bonito e bárbaro, que custou apenasduzentos francos por hectare? Sinto por você. A essa alturavocê deve ser a perfeita cidadã, senhora de Lyons ou Blois,mas cada vez mais eu sinto que um campo comcurandeiros negros, bananeiras e hortas de abacaxi é asolução, tanto para mim quanto para você. Espero poderte oferecer tudo isso em pouco tempo: um lugar sem o frioeuropeu, sem o homem branco decadente, e cheio detodos esses animais de sua [ilegível].Assim que conseguir isso eu te conto. Connie começou aarrumar meus papéis do consulado, de forma que eu possadormir e oferecer minha felicidade aos negros, às negras,e aos campos. Não pense que fiquei louca por causa daguerra; venho pensando muito nisso.48

Pessoas negras ocupam um espaço paralelo àqueledas mulheres e das populações indígenas, já que as trêscategorias são articuladas no discurso latino-americanistacomo representações de tempos arcaicos, anteriores àmodernidade. Mas além disso, para Mistral, bem como parao discurso americanista que ela ajudou a consolidar e queeventualmente representou, pessoas negras ocupavam umespaço muito diferente daquele relativo às populaçõesindígenas. Com certeza, tanto negros quanto indígenas sãopartes do espetáculo. Povos indígenas pertencem ao teatrodo trabalho; são circunspectos e afastados da vida social,ainda que contribuam materialmente com ela e ancoremo sujeito nacional em um tempo originário. Negros, porém,existem para Mistral em uma relação sem especificidade,

48 HIRIART, 1988, p. 74.

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mas claramente lúdica – não precisamente infantilizada. Ainteração entre eles e ela se dá num tempo de sonho, e sópode ter lugar num cenário pastoril, nos “campos”.

Curiosamente, mulheres e povos indígenas sãosempre sujeitos do trabalho, sempre úteis e produtivos, sejaem relação ao trabalho, seja em relação às crianças. Mistralafirma sonhar com o Brasil, onde poderia trabalhar menose “conseguir mais com seu dinheiro”, por assim dizer. O queprecisamente ela vai conseguir mais? Mais terra, mais tempopara escrever, e mais prazer – correndo pelos campos –,um desejo explicitado pela referência às pessoas negrascomo fetiches. Naquela passagem, Mistral “se casa” com otempo livre. Essa metáfora contrasta nitidamente com seu“casamento” real com Connie, que se entrega ao trabalhode manter em ordem os assuntos de Mistral, assim comofazem todas as suas “secretárias”. O casal lésbico surgecomo o epítome da ordem social, da utilidade, divorciadodo desejo. Cabrera e Parra, em parte por trafegar nessediscurso racial divertido (privado e sexualizado), representamum casal bem diferente.

O desejo de Mistral, transcendendo suas própriasfantasias, é projetado em uma tela nacional de fantasias.Ela exibe um claro interesse na publicação dos contosfolclóricos de Cabrera. Oferecendo-se para ter Cuentosnegros de Cuba publicado no Chile e para prefaciá-lo,Mistral repreende Cabrera por não trabalhar tão duro nolivro. Mistral argumenta que, uma vez que os contos forampublicados originalmente em francês (Contes nègres deCuba), seria imperativo que fossem publicados na Espanha,podendo assim encontrar seu verdadeiro público. Limitar olivro ao francês é literalmente um crime [uma villania].

Por que você não escreveu? Quando você vai terminar oque começou? Você quer seus Cuentos negros publicadosno Chile? Faça várias cópias datilografadas, e, já que vocêtem meu endereço, mande-os para mim. Está me ouvindo?O hispânico é um caso de suicídio nato, mas eu esperoque você ainda tenha três gotas de sangue índio e queelas te salvem [...]Quero que você publique a tradução espanhola dosCuentos de uma vez por todas. É um crime manter o livrosó em francês. Está me ouvindo? Sinto-me repetitiva teoferecendo um prefácio. É seu.49

Apesar da oferta, Mistral nunca escreveu o prefácio,e o livro nunca foi publicado no Chile. Em vez disso, o famosocunhado de Cabrera, o antropólogo Fernando Ortiz, redigiuo prefácio, e o livro foi publicado em Cuba em 1940.

O que Mistral teria escrito em seu prefácio para osCuentos? Certamente ela não teria incluído sua fantasiaracial sobre pessoas negras correndo pelos campos ou

49 HIRIART, 1988, p. 74 e 77.

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sobre curandeiros. Mas um tom impróprio teria vazado parao prefácio, como aconteceu com outros de seus escritossobre o Caribe e o Brasil. Seu ensaio “Antillas” foi malrecebido pela intellligentsia cubana, que se ofendeu comsua descrição das ilhas do Caribe como “um cigano nãomuito chegado a um banho”.50 As representações queMistral fez de crianças negras de escola em seus escritospedagógicos são comumente ofensivas. Em “Recado sobrelas voces infantiles”, por exemplo, ela as descreve comoseres que estão constantemente dançando, rindo ecantando. Balançando seus ombros e quadris “paraqualquer coisa”, elas são pequenos corpos prazerosos queàs vezes caem em uma introspecção impenetrável, quandose tornam melancólicos e calados. Em lugar algum nacorrespondência e na prosa conhecida e publicada deMistral aparece derrisão ou condescendência desse nívelem relação a populações indígenas.51 Elas são vistas comoinfantilizadas em outro sentido: no imaginário racista, elasexigem intervenção paterna para serem modernizadas. OEstado precisa supervisionar o trabalho delas. Pessoasnegras, ao contrário, são sexualizadas, como acontece comJosephine Baker ou com os “curandeiros”, ou criminalizadas,uma caracterização que se tornou pessoal depois da mortedo filho adotivo de Mistral.

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Os textos de Mistral sobre sua estada no Brasil, ondeo governo chileno a alocou, a pedido dela, assim queestourou a Segunda Guerra, são marcadamente negativos.Mistral não experimentou sua fantasia racial enquanto foicônsul em Petrópolis, e seu filho adotivo, Juan Miguel Godoy,suicidou-se em 1943. Esses dois eventos – a dissolução desua fantasia e o trauma da perda real – levaram Mistral acompor estridentes acusações de xenofobia contra umavaga categoria de mulatos brasileiros delinqüentes,negando a inclusão do Brasil na categoria da mestiçagem:

[para Tomic, 1948] lá se vão cinco anos desde o assassinatode Yin Yin (ele não cometeu suicídio; foi “suicidado” pormulatos xenófobos). Sua sombra caminha a meu lado. Masnão é terrível, e sim doce e fiel.[para Reyes, 1948]. Naquele país horroroso de que vocêgosta tanto – o Brasil – três médicos me arruinaram quandome trataram de diabetes e de amebíase tropical. São unsestúpidos, assim como a maioria da população.[para Tomic, 1951]. Você pode achar estranho, mas deixaeu te contar, eu não tenho intenção de sair da Itália. Acabeiamando esse país bem mais do que amaria uma pessoa.Eu me odeio por tê-la deixado e ido embora aturar axenofobia dos mulatos brasileiros. Eu sacrifiquei Juan Miguel

50 Citado em E. Fernández ARRE-DONDO, 1930, p. 1.

51 A correspondência e outros es-critos de Mistral não existem emregistro público editados de for-ma minimamente completa. Sãomuitas as lacunas na correspon-dência. Além disso, tendo escritoartigos e discursado por toda aAmérica Latina, nos Estados Uni-dos e na Europa, é provável queexistam outras peças de sua pro-sa além das atualmente conhe-cidas.

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por aquele país. Você o tem em alta estima porque oconhece muito pouco. Lá eu conheci a xenofobia maisodiosa e tribal.[Para Reyes, 1954] É tão triste não ter família, meus amigos!Não tenho nem um primo em quarto grau. Anos atrás escrevialguns versos mais ou menos assim: ‘Os meus vão comigonoite adentro’. E estava certa. Se tivesse alguém, eles omatariam, bem ao estilo brasileiro, e então diriam que elese matou, como Yin supostamente fez. (Como eu demoreipara entender isso! Como eu sofro por ele!) A ‘gangue’chegou a minha própria mesa numa noite de Natal.Cinicamente confessaram seu feito. Depois de eu terofendido a memória dele com esse ódio contido! Nuncase sabe todos os fatos sobre algo. Às vezes nem um pingo.52

A palavra mulataje apareceu pela primeira vez noartigo “El tipo del indio americano”, em 1932, pouco antesda correspondência com Cabrera. Para entenderplenamente as implicações da defesa sempre muitoevidente que Mistral faz da mestiçagem, é essencialentender as implicações conceituais da mulataje. A palavranão é meramente capaz de descrever uma mistura racialparticular – branco com negro – mas também denota apresença de uma ameaça racial: a destruição das criançasbrancas e da família branca. Mulheres indígenas podemfuncionar como receptáculos para carregar a semente dohomem branco. Sua marca racial é racionalizada comomenor, comparada com a marca degradante edeformadora atribuída a pessoas negras. A sexualizaçãodos negros leva a sua patologização como assassinos.

É central para a narrativa racial do Brasil feita porMistral a lembrança da morte de seu filho, carinhosamentechamado de “Yin Yin”. As circunstâncias do nascimento – eda morte – de Yin Yin não são claras. Mistral afirma que eleera seu sobrinho, filho de um irmão ilegítimo que ela nãoconheceu e de uma espanhola. Como exatamente ela olocalizou, ou foi encontrada pelos pais dele, nunca foiexplicado. Alguns críticos suspeitam de que Yin Yin não erade fato parente de Mistral, mas simplesmente um garotoespanhol que ela adotou enquanto morou na Espanha.Recentemente uma TV chilena transmitiu uma entrevista coma última companheira de Mistral, a americana Doris Dana.Dana alegou que antes de morrer Mistral “confessou” a elao segredo do nascimento de Yin Yin: ela própria seria a mãebiológica de Yin Yin. No entanto, Dana não acrescentououtros detalhes biográficos, nem forneceu qualquerindicação sobre quando o nascimento ocorreu, sobre comoe onde Mistral se escondeu nos últimos meses de gravidez,nem quem era o pai.53

Aos 16 anos Yin Yin ingeriu uma dose letal de arsênico,e sua morte foi considerada suicídio. Mistral, que nunca

52 SAAVEDRA, 1995, p. 150 e 131;SAAVEDRA, 1991, p. 220 e 160.

53 “‘SOBRINO’…, 1999; “POLÉMICA…,1999. Teitelboim menciona espe-culações anteriores a respeito doassunto (TEITELBOIM, 1991, p. 213).

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conseguiu superar a morte do filho, criou uma narrativa pelaqual ela se isenta de responsabilidade pelas ações dele.No trecho a seguir, de uma carta de 1954 para Reyes, porexemplo, Mistral relê o acontecimento como um assassinatoracialmente motivado por uma “gangue” de criançasnegras:

No Natal, a gangue que o atormentava na escola veio aminha casa. Todos quatro. Eu juntei coragem e pergunteipor que eles haviam matado uma alma tão doce, que foium amigo tão bom para cada um deles. Esta foi a resposta:– Sabemos que a madame ainda está contrariada comisso, mas tinha que ser.Eu pulei de minha cadeira e perguntei: por que “tinha queser”?– Ele tinha mais do que a parte que lhe cabia.– O que ele tinha a mais do que “a parte que lhe cabia”?Eu tinha que inventar alguma coisa para ele sair comigo.Eu tinha que dizer que iríamos comprar roupas e sapatospara mim.– Ele tinha o nome dele, o seu nome de escritora, madame,que lhe dava prestígio. E ele era branco demais para seupróprio bem.– Bandidos, eu disse. A brancura dele e a negritude devocês não eram culpa dele.54

Mistral acredita que a morte de seu filho resultou detrês fatores: ciúmes de suas posses materiais, o privilégio dabrancura, o prestígio da mãe escritora. Mistral posiciona-seno centro da narrativa, como razão do assassinato e comoa fonte última da brancura. A relação que importa é entreela e a “gangue”. A morte de Yin Yin é secundária. Mistralestá convencida de que a morte dele foi causada peloexcesso de negros em volta dele (são quatro crianças negraspara uma branca). Sob seu olhar racista, o desequilíbrio depoder favorece criminosos violentos. Curiosamente, a cenado crime é a escola, os criminosos são crianças da escolae a vítima é um aluno.

Esse trecho representa outro lado da fantasia racialdo excesso em Mistral. Nesse cenário rompe-se a díademãe–criança. A mulataje, palavra depreciativa que indicaa mistura racial de branco e preto, é responsável peladesaparição da família (branca). Em outras palavras, elainterrompe a mistura harmônica da mestiçagem e destrói afamília nacional. O sujeito negro torna-se excessivo outravez, mas agora é abertamente considerado violento,criminoso e cínico.

As crianças más (“bandidos”) alegam a importânciade Mistral como escritora como um dos motivos do“assassinato”, estabelecendo a ligação entre brancura,escrita, reconhecimento e fama. O narcisismo de Mistralduplica-se como narcisismo nacionalista no contexto de um

54 SAAVEDRA, 1991, p. 218.

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país conhecido por instituir políticas profiláticas deimigração, a fim de manter a chamada semente ruim dolado de fora. Na época essas políticas de imigraçãoandavam lado a lado com políticas de embranquecimento,não só no Brasil, mas em todos os países do Cone Sul.55 Emsuas aulas de 1976 no Collège de France, Foucault sugeriuque no biopoder a guerra entre as “raças” é substituída peloracismo de Estado, caracterizado por um impulso homicidae suicida rumo à purificação da própria raça, através doextermínio de elementos da mesma nação. A fábulamoralista de Mistral lembra de forma sinistra a observaçãode Foucault, uma vez que fornece uma justificativa racialpara a morte da raça, alegoricamente identificada no“assassinato” de Yin Yin.

Reyes foi o mesmo correspondente para quem Mistraldescreveu suas primeiras reações ao sujeito negro latino-americano; ele é o destinatário privilegiado quando Mistralescreve sobre suas preocupações raciais. A história da mortede seu filho, porém, não circulou apenas entre conhecidose amigos. Mistral a incluiu em seu relatório consular de 1947para a República do Chile, onde ela aparece como partedo registro de Estado: “minha trágica experiência no Brasil– a morte de meu parente, provocada pelo fato de ‘ele serbranco demais para seu próprio bem’ – permanece comouma ferida aberta em minha memória”.56 Especialistas emMistral concordam que a acusação de assassinato que elafaz é falsa e que Yin Yin cometeu suicídio. Atribuem anarrativa a lucubrações delirantes de Mistral, provocadaspela mágoa, pela doença e/ou pela idade. No entanto,suas implicações racistas e violentas não devem sersumariamente desconsideradas.

Poder-se-ia pensar que a acusação de xenofobiafeita por Mistral contra o Brasil estivesse restrita ao espaçoprivado ou extra-oficial, ou seja, a sua correspondência,mas um de seus últimos ensaios, “Imagen y palavra en laeducación”, apresentado como um discurso em 1956,pouco antes de sua morte, sugere algo diferente:

às vezes o estrangeiro vai até lá por ter lido no jornal que opaís precisa de especialistas nesse ou naquele ramo. Ouvai simplesmente para gozar de um clima recomendávelpara a saúde. De repente aparece um cadáver numapartamento ou na rua. A cidade então fica sabendo queuma criatura inofensiva, que um dia celebrava o belíssimopaís que o sustentava, foi eliminada sem qualquer razão.Só por causa de uma antipatia grotesca por um rosto brancode olhos azuis. A investigação começa. Quando o criminosoou seu cúmplice é encontrado, ele normalmente declarasem o mínimo remorso, e muitas vezes com orgulho de tereliminado o estrangeiro, que “o homem era branco demais

55 Ver SKIDMORE, 1990; e AlineHELG, 1990.

56 Citado em TEITELBOIM, 1991, p.214.

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para seu próprio bem”. Estou contando aqui minha própriaexperiência, a de meu parente. Eu a ofereço semmencionar o país, por respeito, já que é um país latino-americano. [...] Falo em nome daqueles que não podemfalar por si mesmos. Falo porque é absolutamentenecessário que nessas regiões do mundo nósacrescentemos ao código penal o crime da xenofobia,um crime pouco conhecido mas freqüente. Não vou daros nomes desses países, porque a única coisa com queme importo, enquanto cristã, é que o crime racialdesapareça de uma vez por todas da face da Terra. Falode crimes cometidos por causa de peles claras ou escuras,ou simplesmente por alguém falar uma outra língua.57

Essa passagem mostra a mesma ambivalência quereveste “Primer recuerdo de Isadora Duncan” quanto àsupremacia branca legalizada. Mistral coloca-se contracrimes raciais mas se recusa a escolher como exemplorepresentativo as vítimas óbvias do crime racial na AméricaLatina: povos negros ou indígenas. Em vez disso, o exemplode xenofobia que ela fornece é um crime inventadocometido contra Yin Yin (agora “um homem”).

A parte culpada passa a ser um país inteiro,destacado como negro, latino-americano, de fala não-espanhola e criminoso. O Brasil é retratado como um paíscriminoso e perigoso. Mistral codifica a identidade negrado país, em linguagem oficial, como xenófoba – e o ódioao estrangeiro torna-se ódio à brancura. A Mistral que eramestiça agora é branca – “branca demais para seu própriobem”. E a Mistral escritora da nação latino-americana estáem perigo. Ela sintetiza a América Latina, e a América Latina– pelo menos aquela que tem que sobreviver – é branca.

Imigração e Imigração e Imigração e Imigração e Imigração e queernessqueernessqueernessqueernessqueerness

A mulher indígena é aquela que carrega os filhosmestiços da nação. A mulher negra cria os filhos negrosassassinos. Ambas são subordinadas, é claro, às elitesbrancas. As elites sempre buscam, como primeira solução,manter intacta sua brancura, seja preservando-se comopequeno e poderoso grupo proprietário de terras, isolandosuas mulheres de qualquer perigo de contágio, sejapromovendo agressivamente políticas que visam aembranquecer e europeizar a população em geral. Assim,não há como separar a sexualidade queer na AméricaLatina da prevalência branca na hierarquia social nacional.

Algumas notáveis queers latino-americanas, comoMistral, dedicaram-se, de forma igualmente notável, amanter seu status de “pessoas brancas”. Escritores eintelectuais queer dos mais importantes voltaram seusolhares para a imigração como solução para a

57 MISTRAL, 1979d, p. 195-196.

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problemática racial nacional. As manipulações discursivasda mestiçagem, da mulataje e da própria imigraçãoaconteceram ao mesmo tempo, adequando-se àssubjetividades e dando forma à escrita de boa parte docânone queer latino-americano.

Mistral não pôde buscar plenamente uma carreiraliterária no Chile, e foi indiretamente expulsa do país, mesmosendo considerada uma emissária, um símbolo nacional.Como já indicaram alguns especialistas em Mistral, a atitudedo Chile diante de seu próprio ícone sempre foi conflituosa.58

A ambivalência tinha relação com a condição ambíguade Mistral em relação ao gênero: o patriota internacionalmais famoso do Chile não era um “filho”, mas uma “filha”, eisso sem dúvida foi experimentado como um dilemapsíquico, sugerindo uma origem queer para a nação. A filhaamada do Chile era também a “mãe” da mesma nação,mas essa mãe mais parecia um homem. Mistral eramasculina, tanto na aparência quanto nos gestos, ehabitava uma esfera pública comandada por homens.59

A questão sobre quem pode entrar no Chile e quemnão pode domina os textos de Mistral sobre imigração. Noartigo “Sobre la mujer chilena” (1946), Mistral lista as“melhores” migrações do Chile, bem como as“improdutivas”.60 Sua insistência na diferença racial e naoposição entre misturas raciais corretas e incorretas éimpressionante; lembra sua argumentação sobre raçaexposta em “El tipo del indio americano” e depois ecoa emsua vida como uma espécie de paranóia, tendendo às vezesa um nacionalismo fascista.

A questão da reprodução também é central nasarticulações de Mistral em torno da imigração.Curiosamente, a imagem que ela faz da mulher indígena –isto é, uma mulher que superou a condição de abominávelpara tornar-se linda – estranhamente refletiu a experiênciada própria Mistral no Chile. De objetos de desdém e atéódio, ambas as imagens evoluíram para a beleza e para oreceptáculo privilegiado da nacionalidade, que no entantopermaneceram do lado de fora, de forma significativa.Mistral tornou-se um ícone reverenciado no Chile (em grandeparte fabricado), a partir do momento em que deixou deviver lá. Sua elevação foi resultado de seu deslocamentopara além dos confins nacionais. A mulher indígena podeter sido o receptáculo da raça, mas ela nunca foi louvadacomo um ator social importante, muito menos como um líder.

É lugar-comum dizer que Mistral foi a primeira chilenaa defender o mestiço e batalhar por melhorias nas vidasdos povos indígenas. Esse aspecto da mestiçagem, supõe-se, não pode faltar no discurso tradicional chileno sobreraça e nacionalidade. No entanto, toda a idéia de uma

58 Sobre a ambivalente recepçãode Mistral no Chile ver SANTELICES,1972; e TEITELBOIM, 1991.59 Elizabeth Rosa Horan registrauma das raras alusões diretas àmasculinidade de Mistral jápublicadas. É o texto “La signaturade la esfinge”, de ArévaloMartínez, que, “com sua capa deficção é o único a registrar aqui-lo que os contemporâneos deMistral pensavam e falavam so-bre o assunto, mas que não pu-blicaram (HORAN, 1994, p. 222).

60 MISTRAL, 1994.

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personalidade chilena, uma chilena autêntica, é um projetoracial em si mesmo (retomando a útil formulação de Omi eWinant). Além disso, não se trata do primeiro exemplo dereivindicação em favor dos índios no contexto da construçãonacional. Pensadores chilenos importantes já recorreram aum argumento biológico baseado na mistura racial paradesenvolver a idéia de uma personalidade chilena e deum destino coletivo.61 Néstor Palacios, autor de Raza chilena,glorifica o roto chileno como a gênese do chileno moderno,o descendente dos igualmente belicosos aruaques eteutônicos. Sua referência a uma “raça mestiça” representauma profissão de fé fascista à depuração racial, definidapela guerra civil social e biológica. Trata-se também de umamestiçagem completamente afetada pelo gênero:mulheres indígenas têm relação de paridade com homensbrancos. Palacios atribui o sucesso dessa mestiçagem à“boa sorte” dos teutônicos, que mantiveram sua raça “pura”até o momento em que conquistaram o Chile. Conformeesperado, ele privilegia a raça branca nessa construção.62

“Sobre la mujer chilena” dá um exemplo dasracializações diferenciadas de mulheres e de sua posiçãoestratificada na função de reprodução pelo bem da nação:

Basta olhar e ouvir por um breve momento para saber queo refúgio nas altas tocas dos condores é obra de uma únicamulher. O homem andino nada sabe além de descer àsminas [...] e dinamitar pedras. Ele não liga para si mesmo;ele não consegue formar um ninho. [...] Se ele não temessa mulher a seu lado, ele escorrega, dia após dia, parao barbarismo dos primeiros índios. O tipo de ação pura, deação sem preço que é a marca do homem chileno, deLautaro a Portales, parece tomar conta de suacompanheira, afastando-a das vicissitudes do sedentarismoe transformando-a em seu semelhante.63

A mulher é branqueada como o oposto do homemindianizado, dominado pela tendência ao barbarismo. Amulher é também masculinizada, assumindo a prerrogativamasculina, porque o homem se tornou perigosamenteefeminado, tanto quanto bárbaro. Considere a narrativa dePalacios sobre a Conquista: o teutônico forte chegou noúltimo minuto para fornecer sua semente à mulher indígenae criar a forte raça chilena. Mas aqui a mulher é branca, eo homem é índio. Ao contrário da mulher indígena,intemporal, imóvel, essa “mulher mestiça ou branca” está acaminho de compensar a falta de comportamentomasculino de seu “homem”.

Dizem que ela é “temperamental”. O ponto inicial de seuêxtase é quase sempre o amor, de cuja chama emerge amais sensata das ações, bem como a mais desenfreada

61 Referências importantes para ocaso do Chile incluem NéstorPALACIOS, 1986; Vicente PérezROSALES, 1970; e Francisco Anto-nio ENCINA, 1978.

62 Agradeço a Marcial Godoy in-dicar-me o texto de Palacios.Sonia Montecinos resgatou a for-mulação em seu interesssante li-vro Madres y huachos: alegoríasdel mestizaje chileno(MONTECINOS, 1991).

63 MISTRAL, 1994, p. 61.

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das fantasias. Essa mulher branca ou mestiça segue seuhomem rumo ao deserto de sal, sem repreendê-lo por seuexílio. Essa mulher corajosa vai criar seis filhos no CentralValley, espichando um salário capaz de sustentar apenasdois. Ela vai migrar para não perder sua natureza errante.Ela vai chegar às províncias argentinas ou à Califórnia, ondevai batalhar seu pão em meio a todos os estrangeiros. Seela é jovem e se arrisca a ir à escola, ali ela vai também sesair vitoriosa em tarefas criativas e na arte sutil de construirum lar.64

Mais do que uma noção sentimentalizada dematernidade ou um disfarce para a ausência de filhos daprópria Mistral, a reprodução é de fato uma questão dehierarquias, especificamente hierarquias raciais. A imigraçãonão é um caso de generosidade nacional, tolerância ousenso prático; é uma batalha a que o mais forte sobrevive.Aparece aqui, no entanto, o apelo a uma linguagempsicologizada, afetada pelo gênero. O dualismo entre açõessensatas e fantasias desenfreadas é altamente sugestivo nocontexto da lealdade nacional. Mistral fala de “amorabsoluto”, estabelecendo a mulher branca como exemploativo para a ralé, um tipo de veículo diferente daquele damulher indígena. Esse argumento sugere que o Estadoprecisa fazer mais do que apelar à razão ou ao utilitarismo;precisa também incorporar ou acender outras emoções,especialmente aquelas mais diretamente associadas àmulher queer, já que no fim do trecho acima há umaguinada um tanto queer em direção à educação que nãose encaixa bem na descrição.

Assim, Mistral torna queer o pensamento racialnacional. Entretanto, suas alianças silenciosas com oschilenos racialmente privilegiados têm uma genealogiaclara. Essas alianças são poderosas justamente por sereminternalizadas, silenciosas e inquestionadas. O discurso raciallatino-americano tende a resolver misturas raciaisconflituosas através de binarismos: mestiço indica branco/índio; mulato indica branco/negro. A questão da imigraçãoprovê o Estado com o assombroso espectro dascombinações intermináveis, mesmo quando ele utiliza aimigração para branquear a população. Esse é o contextono qual o alinhamento de Mistral ao modelo mexicano demestiçagem deve ser entendido.

Mistral considera a verdadeira heterogeneidaderacial algo perturbador, e só mesmo o binarismo implícitona mestiçagem era confortável para ela. Para Mistral, amestiçagem era uma construção plenamente afetada pelogênero, mais ou menos como o argumento de Palacios.Mistral discutiu suas idéias com seus contemporâneos. Emuma entrevista de 1948 a Salvador Novo ela esperava poder

64 PALACIOS, 1986, p. 62.

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fazer seu desconforto sobre o assunto chegar diretamentea Miguel Alemán, presidente do México.65

Alemán recrutou Mistral através de Jaime Torres Bodet,convencendo-a a voltar ao México. Alemán provavelmenteesperava que ela fixasse residência em Veracruz, já queela estava constantemente procurando o lugar perfeito paraviver e o clima perfeito em que pudesse cuidar de suasindisposições cada vez mais freqüentes. Mais precisamente,a saúde de Mistral justificava sua preferência por climas“tropicais”. Mas suas tentativas de fixar residência em PortoRico, no Brasil, em Santa Bárbara (na Califórnia) e emVeracruz estranhamente coincidem com agendas estataisrelativas a populações negras.

Não se sabe ao certo por que Mistral foi convidadapela segunda vez a morar no México. Por volta de 1948,quando chegou a Veracruz, ela já havia se afastado deVasconcelos, seu antigo anfitrião. O pesquisador mexicanoLuis Mario Schneider observa que “está faltando umainformação precisa sobre o objetivo da segunda visita deMistral ao México. Talvez a documentação seja encontradaalgum dia nos arquivos oficiais. A única coisa que sabemosao certo é que Jaime Torres Bodet, ministro de relaçõesexteriores, fez o convite oficial em nome do presidenteMigule Alemán”.66 Schneider percebe que deve ter havidoum motivo político para o convite, o que não seria desurpreender, uma vez que convites oficiais têm sempre umainclinação política. No entanto, é altamente significativo ofato de que Mistral tenha sido solicitada a fixar residênciaem Veracruz, historicamente o estado com a maiorpopulação negra no México. Ainda que, como Sagrario Cruze outros pesquisadores vindos da Antropologia jáapontaram, os mexicanos que vivem em Veracruz edescendem de suas comunidades negras raramente seidentificam como negros. Esses historiadores e antropólogosconsideram essa falta de auto-identificação umaconseqüência do esforço do Estado mexicano de promoveragressivamente a mestiçagem como a identidade dosmexicanos por excelência. Sustentam que os negrosmexicanos foram eliminados do discurso público para queos povos indígenas possam ser tidos como os verdadeirossubalternos do México. Alguns estudos sobre os negrosmexicanos da era colonial apareceram, mas poucapesquisa foi feita sobre a política adotada pelo governoem relação a eles imediatamente após a RevoluçãoMexicana. Pode-se argumentar, dada a importância deMistral no esforço de propaganda de Estados latino-americanos e à luz de sua correspondência e de suasentrevistas com intelectuais mexicanos, que o convite do

65 NOVO, 1948, p. 4.

66 SCHNEIDER, 1991, p. 10.

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governo estava ligado, pelo menos em parte, a uma políticadisfarçada em relação à negritude.

Um desses intelectuais, Salvador Novo, oferece umponto de comparação interessante. Hoje ele seriaconsiderado um escritor gay “assumido”. Escreveu sobre suasfaçanhas sexuais em sua autobiografia, La estatua de sal,que ficou inédita e esquecida até o recente resgate feitopelo importante escritor e intelectual mexicano CarlosMonsiváis.67 A partir do texto, fica claro que ahomossexualidade de Salvador Novo era tudo menossecreta. Assim, torna-se razoável perguntar se a sexualidadede Mistral também não era apenas um fato conhecido, mastambém, talvez, um ingrediente da atração que ela exerciasobre o projeto que a coloca como mãe da nação.

Ao discutir a permanência de Mistral em Veracruz,Schneider alude a uma entrevista com ela feita por SalvadorNovo para a imprensa mexicana. Schneider destaca poucaslinhas da entrevista. O texto completo contém uma alteraçãosignificativa:

[Salvador Novo:] E então ouvi de seus lábios uma defesa,que transcrevo aqui e assino embaixo com extremo fervor:[Mistral:] “Há uma coisa para a qual eu deveria chamar aatenção do presidente Alemán. É uma situação grave eperigosa, e muito dolorosa, para esses mexicanos quecruzam a fronteira para trabalhar na Califórnia. É urgentee necessário que se cuide dessa situação imediatamente”.[Salvador Novo:] Gabriela Mistral mora em Santa Bárbara,Califórnia, estado da União cujas leis proíbem o casamentode mexicanos – “pessoas de cor” – com mulheres brancas.Quando estes acontecem, são anulados, e os noivos sãomultados, mas não são muito freqüentes. Os caminhões degado são carregados de trabalhadores mexicanos. Homenssolteiros são levados a morar em bairros separados, ondesão discriminados. O único contato que lhes é permitido écom mulheres negras, feias, da pior espécie. Com o passardos anos, toda a região ferve de criaturas mestiças desangue negro e mexicano, uma mistura que degrada eanula a boa raça mexicana.[Mistral:] “Por que em nome de Deus eles não deixam osmexicanos levarem suas mulheres com eles” [...][Salvador Novo:] Connie ouviu nossa conversa, e oferecianovos e dolorosos exemplos dessa situação trágica.68

Novo não exagerou a animosidade racial de Mistralao relatar a entrevista. Ela repete cada palavra do relatoem correspondência de 1950 com Reyes, referindo-se aessas crianças como uma ameaça à identidade nacional.“Logo ferve uma mulataje, e isso, isso é o que chamam demexicano!” Reyes responde: “É algo de fato muito sério acondenação da mulataje que você menciona. Vou falarcom as pessoas certas”.69

67 NOVO, 1998.

68 NOVO, 1948, p. 4.

69 SAAVEDRA, 1991, p. 193-194 e195.

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Aqui Mistral acredita que a questão da reproduçãonacional está em risco; ela acha que o sexo entre homemmexicano e mulher negra, assim como os filhos que deleresultam, é inaceitável, não é latino-americano. E há outrospontos a se considerar aqui, mais sutis e fascinantes. Primeiro,Mistral dirige-se a Salvador Novo, outro protótipo do escritornacional e, como Mistral, gay e empregado pelo Estado(no Ministério da Educação, nada menos). Segundo, aanedota encerra-se com uma referência a “Connie”,companheira de Mistral. Um triângulo de intelectuais queerdiscute a possível desaparição da raça mexicana, causadapor uma negritude não regulada, especificamente pormulheres negras. Todos se apropriam de mulheres da mesmanação como “suas”, servindo a uma função, a reprodução,que tem uma única finalidade: produzir os melhores filhosda nação, os mestiços. Mas nenhum desses três sujeitosqueer produziu biologicamente uma criança sequer, muitomenos mestiça. Mesmo o filho de Mistral era enfaticamenterepresentado como branco. A conversa deles levanta umaquestão: por que os filhos de homens mexicanos e mulheresnegras (supostamente americanas) não deveriam tambémser considerados mestiços?

Uma coisa é clara: Mistral esforçava-se para se tornaro receptáculo vedado da raça, precisamente como amulher indígena que ela glorificava. Ela se considerava umveículo de reprodução, guardiã da essência nacional eracial, e de um modo perverso sua queerness a incita a secolocar como alguém feita sob medida para a tarefa. Seem público ela freqüentemente se referia a si mesma comofeia, no âmbito privado ela pode muito bem ter se vistocomo especial, talvez até bonita. Referindo-se a mulheresnegras como “feias, da pior espécie”, não estaria ela seapresentando como o lugar da beleza, como produto deuma bem-sucedida “eugenia estética” promovida porVasconcelos? Cooperando com outros intelectuais queerpara estabelecer um ideal heteronormativo derespeitabilidade, não estaria ela afetando a forma da futuraqueerness latino-americana?

A idéia de raças feias, formulada por Vasconcelos,sobreviveu no trabalho de Mistral até o fim. Apesar doslouvores de seus discursos oficiais, Mistral nunca abandonoua crença íntima de que afro-latino-americanos não eramlatino-americanos e não tinham os requisitos estéticos “daraça”. Enquanto Vasconcelos acreditava na superaçãovoluntária das raças “inferiores” (das quais os negros são oexemplo que ele fornece), Mistral defende que os casaisde mexicanos e negras deram ao mundo filhos inaceitáveis,de heranças mestiça e negra, filhos que por definição nãopoderiam ser latino-americanos, já que não correspondiam

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ao critério estético. Note-se que essa visão não eraunicamente de Mistral. Era também de Reyes e de SalvadorNovo, dois pilares da mestiçagem latino-americana ideal.A escrita queer latino-americana, portanto, é, pelo menosem algumas ocasiões importantes, imbricada com o desejoheteronormativo.

ConclusãoConclusãoConclusãoConclusãoConclusão

Três operações críticas têm lugar na obra de Mistralsobre o sujeito da “raça” latino-americana. A primeira é arecusa da negritude.* Formulando-a de forma simples,populações negras existiram desde a era colonial em todosos vice-reinados. O fato de que essas comunidades nãosobreviveram no Cone Sul depois do século XIX indica quea fundação desses Estados-nações dependeu de umprocesso de esquecimento e reinvenção, não muitodiferente daquele da repressão na psicanálise. Como sedeve abordar o fato de Mistral louvar os negrospublicamente e desprezá-los no espaço privado? Será queos pesquisadores deveriam simplesmente negligenciar o fatocomo desimportante, em consideração à posição da Mistraldefensora de povos indígenas, mulheres e crianças? É algoextraordinário que Mistral tenha agido como se nunca tivesseouvido falar de populações negras na América Latina antesde suas viagens ao Caribe em 1930 e que tenha reagidoao sujeito negro com atitudes brancas estereotipadas:ansiedade, sexualização e patologização. A famosa fórmulafreudiana da recusa descreve per feitamente essaoperação. Mistral sabia que havia latino-americanos negros,mas para ela latino-americanos eram índios, e ponto final.As operações discursivas do latino-americanismoobliteraram o sujeito negro da representação estética epolítica.

A segunda operação presente na escrita de Mistralé a cumplicidade da linguagem da diversidade com aspráticas do pensamento supremacista branco.70 Algunscríticos negligenciam a narrativa de Mistral sobre a mortede Yin Yin como mera “loucura”, ou como desvio “pessoal”.A genealogia da mestiçagem em seu pensamentodemonstra, porém, uma bifurcação entre o que Mistraldeclarava publicamente e o que ela acreditava naintimidade. As confidências trocadas em meios menosformais, tais como correspondências e entrevistas, não eram,é claro, totalmente privadas; sua circulação dentro de umseleto grupo de intelectuais e leitores de periódicos sugere,para dizer o mínimo, uma ambivalência racial pública. Ogrito de Mistral dando conta do assassinato racial de YinYin, embora certamente afetado pela mágoa e talvez pela

70 Agradeço a Janet Jakobsen aformulação desse argumento emmeu trabalho.

* A escolha do termo “recusa”para o “disavowal” do originaldeve-se a seu uso na psicanáliseem português, visto que a auto-ra, mais adiante, lhe realça essesentido psicanalítico. Ambos ostermos correspondem àVerleugnung freudiana (cf. JeanLAPLANCHE e Jean-BertrandPONTALIS. Vocabulário da psica-nálise. São Paulo: Martins Fontes,1995. p. 436) (N. do T.).

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culpa, não pode ser atribuído apenas a esses sentimentos.Isto é, é possível estar magoada ou mentalmente instável etambém ser racista. Se alguns críticos diminuíram agravidade das acusações de Mistral, dadas ascircunstâncias extremas que as motivaram, eles apagaramoutro dado extremo: a caracterização que Mistral construiudos sujeitos negros nacionais.

A terceira operação é o papel da queerness deMistral em seu nacionalismo racializado. Mistral tornou anação queer, com certeza, porém essa atitude aprimorounão apenas a heteronormatividade, mas também osilencioso projeto racial latino-americano. Sua mágoamaternal e quaisquer alusões a sentimentos pessoais podemcomplementar, não obscurecer, a análise de seu discursomaternal nacionalista e do quanto ele tem a ver com agarantia da “reprodução da nação”. Enquanto o discursooficial de Mistral celebra as qualidades abstratas de mãe efilhos, algumas de suas outras falas não deixam dúvida deque algumas mulheres nunca deveriam ser mães nessesentido e que seus filhos nunca seriam considerados filhosda América Latina. Não há alianças necessárias, garantidasou previsíveis entre pessoas sexualmente oprimidas epessoas racialmente oprimidas. Mistral, enquanto queer, mastambém sua queerness projetada nacionalmente ajudarama articular o discurso do Estado sobre a reprodução danação, um exemplo do “direito à vida” proposto por Foucaultno âmbito do biopoder. Entre uma identidade sexualproibida e uma identidade nacional racista, permanecemas contradições de Mistral como mulher-raça: proclamandoos dogmas do latino-americanismo, trabalhando no interiorde suas formulações heteronormativas e de gênero, ereproduzindo o Estado racista e homofóbico.

NotaAgradeço a Ann Pellegrini, que me estimulou a mandar este artigo ao GLQ. Sinceros agradecimentos aCarlyn Dinshaw, David M. Halperin e ao anônimo revisor da GLQ por sua leitura crítica e estimulante. Soumuito grata aos que assistiram a palestras minhas feitas a partir deste artigo, e aos colegas que me convida-ram para elas. Agradecimentos especiais a Lisa Duggan e aos membros do Grupo de Queer Studies daUniversidade de Nova York pelo seu entusiasmo contagiante. Agradeço ainda a Amy Reading pelo diálogoeditorial. E mantenho profunda gratidão a Gayatri Patnaik pelas muitas horas que dedicou a ler e comentareste artigo. Ela me ajudou a articular minha pesquisa e minhas idéias com mais clareza, eloqüência eelegância. A ela eu dedico este artigo.

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LICIA FIOL-MATTA

264 Estudos Feministas, Florianópolis, 13(2): 227-264, maio-agosto/2005

[Recebido em fevereiro de 2004 eaceito para publicação em março de 2004]

“R“R“R“R“Race Wace Wace Wace Wace Womanomanomanomanoman”: R”: R”: R”: R”: Reproducing the Nation in Gabriela Mistraleproducing the Nation in Gabriela Mistraleproducing the Nation in Gabriela Mistraleproducing the Nation in Gabriela Mistraleproducing the Nation in Gabriela MistralAbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: This article unmasks Gabriela Mistral’s fiercely claimed public position, as the championof the indigenous peoples of Latin America, by arguing that in her intimacy her position wasabsolutely opposed to any public nonnormative sexual stance. The author proposes three criticaloperations for the reading of Mistral’s work, regarding the subject of the Latin American “race”:the disavowal of blackness (Mistral responds to it with anxiety, sexualization, and pathologization,i.e., stereotypical white responses), the complicity of the language of diversity in the practices ofwhite supremacist thinking (which is made clear in her correspondence), and the role playedby Mistral’s queerness in her racialized nationalism (her queerness helped improveheteronormativity and the Latin Americanist racial project).Key WKey WKey WKey WKey Wordsordsordsordsords: Gabriela Mistral, queer, sexual normativity, race, indigenous peoples.

Tradução de Luis Felipe Soares

Este artigo já havia sido publicado como "Race-Woman: Reproducing the Nation in Gabriela Mistral". GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, 6.4, 2000: 491-527. A publicação da tradução foi feita com autorização da autora.

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O arquivo disponível sofreu correções conforme ERRATA publicada no Volume 13 Número 3 da revista.