legitimidade monárquica na hispania visigoda (672-711)
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BRUNO MIRANDA ZÉTOLA
LEGITIMIDADE MONÁRQUICA NA HISPANIA VISIGODA (672-711)
Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisitado parcial à conclusão do Curso de Graduação em História do Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Renan Frighetto
CURITIBA
2004
ii
AGRADECIMENTOS
A todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização deste trabalho.
Aos professores do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná, que
contribuíram para nossa formação acadêmica. Um especial agradecimento ao professor Renan
Frighetto, que sempre nos incentivou a ir às fontes e aprofundarmo-nos em nosso tema de
estudo, transformando nosso entusiasmo pela História em trabalho científico.
Aos amigos com os quais trocamos idéias a respeito da História, contribuindo para o
desenvolvimento de nossos estudos. Aos meus pais, Murillo e Mirian, e a Anneluize, pelos
ensinamentos que nos legaram e que, mesmo não gostando dos godos, compreenderam nosso
escopo e nos motivaram a seguir em frente.
iii
SUMÁRIO
LISTA DE FONTES E ABREVIATURAS ............................................................................................... iv RESUMO ...................................................................................................................................................... v INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................... 01 Antigüidade Tardia ................................................................................................................................... 01 O problema da sucessão monárquica no Reino Hispano-Visigodo ....................................................... 03 Fontes .......................................................................................................................................................... 05 1 POLÍTICA E SOCIEDADE NA HIPANIA VISIGODA DA SÉTIMA CENTÚRIA ....................... 08
1.1 O Monarca Visigodo ............................................................................................................................. 08 1.1.1 Primus Inter Pares ............................................................................................................................... 08 1.1.2 Atribuições Monárquicas ..................................................................................................................... 10 1.2 A Sociedade Hispano-Visigoda Na Sétima Centúria ......................................................................... 14 1.2.1 Pequenos proprietários, servos e libertos ............................................................................................. 15 1.2.2 A Nobreza ............................................................................................................................................ 19 1.2.3 O Episcopado ....................................................................................................................................... 22 1.3 Antecedentes Políticos .......................................................................................................................... 27 1.3.1 O Reinado de Chindasvinto ................................................................................................................. 27 1.3.2 O Reinado de Recessvinto ................................................................................................................... 30 2. TRAJETÓRIAS POLÍTICAS DOS ÚLTIMOS MONARCAS HISPANO-VISIGODOS .............. 33 2. 1 Wamba .................................................................................................................................................. 33 2.1.1 A ascensão de Wamba ......................................................................................................................... 33 2.1.2 A Rebelião do Duque Paulo ................................................................................................................ 35 2.1.3 As leis militares de Wamba ................................................................................................................. 38 2.1.4 Atritos régio-eclesiásticos .................................................................................................................... 39 2.1.5 A conspiração contra Wamba .............................................................................................................. 40 2.2 Ervígio .................................................................................................................................................... 42 2.2.1 A ascensão de Ervígio ......................................................................................................................... 42 2.2.2 Relações régio-nobiliárquicas .............................................................................................................. 44 2.2.3 A sucessão de Ervígio .......................................................................................................................... 47 2.3 Égica ....................................................................................................................................................... 48 2.3.1 Relações régio-nobiliárquicas .............................................................................................................. 49 2.3.2 Instabilidade Política ........................................................................................................................... 51 2.3.3 – Tentativa de unidade político-religiosa ............................................................................................ 52 2.3.4 – A associação de Witiza ..................................................................................................................... 55 2.4 Witiza ..................................................................................................................................................... 56 2.4.1 – A predominância da nobreza ............................................................................................................ 56 2.4.2 – Opa, irmão de Witiza ........................................................................................................................ 58 2.5 Rodrigo .................................................................................................................................................. 60 2.5.1 A ascendência de Rodrigo ................................................................................................................... 61 2.5.2 Disputas pelo poder ............................................................................................................................. 62 2.5.3 O auxílio estrangeiro ............................................................................................................................ 63 2.5.4 – A Batalha do Rio Guadalete ............................................................................................................. 64 3. TEORIAS DE LEGITIMAÇÃO MONÁRQUICA ............................................................................. 67 3.1 Formas de Ascensão ao Poder ............................................................................................................. 67 3.1.1 Electio .................................................................................................................................................. 68 3.1.2 Usurpatio .............................................................................................................................................. 69 3.1.3 Adoptio ................................................................................................................................................ 71 3.2 – Formas de Manutenção do Poder .................................................................................................... 72 3.2.1 Princeps Christianus Sacratissimus ..................................................................................................... 73 3.2.2 Relações régio-nobiliárquicas .............................................................................................................. 76 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................................... 80 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................... 85
iv
LISTA DE ABREVIATURAS E FONTES
Adf. Tert. Chron. – Crônica de Alfonso III. Ed.: GIL FERNÁNDEZ, J., MORALEJO, J. L.,
RUIZ DE LA PEÑA, J. I. Crónicas Asturianas. Oviedo: Servicio de publicaciones de la
Universidad de Oviedo, 1985.
Braul. Caesarg. Epyst. – BRÁULIO DE ZARAGOZA. Epistolário. Ed.: BARLOW, C. W.
Iberian Fathers. Vol. 2. Washington: The Catholic University of America Press, 1969.
Chron. 754 – Crônica Moçárabe de 754. Ed.: MIGNE, J. P. Patrologiae Latinae. XCVI.
Turnholti: Brepols, 1994.
Chron. Alb. – Crônica Albeldense. Ed.: GIL FERNÁNDEZ, J., MORALEJO, J. L.,RUIZ DE
LA PEÑA, J. I. Crónicas Asturianas. Oviedo: Servicio de publicaciones de la
Universidad de Oviedo, 1985.
Conc. – Concílio. Edição de VIVES, J. Concílios Visigóticos e Hispano-Romanos. Madrid:
Barcelona-Madrid: Instituto Enrique Flórez, 1963.
Herod. Hist. – HERÓDOTO. História. Ed.: BRITO BROCA, J. (trad.) Heródoto. História.
Rio de Janeiro: Ediouro, 1989.
Isid. Hisp. Etym. – Isidoro de Sevilha. Etimologias. Ed.: OROZ RETA, J., CASQUERO, M.
A. M.. San Isidoro de Sevilla: Etimologias. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos,
1943.
Iul. Tol. Hist. Wamb. JULIANO DE TOLEDO. Historia Wambae. Ed.: LEVISON, W. E.,
HILLGARTH, J.N. Corpus Christianorum. Series Latina. CXV. Turnholti: Brepols,
1976.
L.V. – Lex Visigothorum. Ed.: SCOTT, S.P. (ed. e trad.) The Visigothic Code (Forum
Iudicum). Boston: Boston Book Company, 1910.
Ps. Fred. Chron. – Crônica do Pseudo-Fredegário. Ed.: MIGNE, J. P. Patrologiae Latinae.
XCVI. Turnholti: Brepols, 1994.
Tac. Germ. – TÁCITO. Germânia. Ed.:HUTTON, M; WARMINGTON, E.H. Tacitus.
Cambridge/Londres: Harvard University Press, 1970.
v
RESUMO
O presente estudo analisa o processo de legitimação monárquica no Reino Hispano-Visigodo de Toledo em seus últimos decênios, nos quais cinco monarcas ascenderam ao poder: Wamba (672-680), Ervígio (680-687), Égica (687-702) Witiza (700-710), Rodrigo (710-711). O objetivo geral é a análise da legitimidade dos poderes monárquicos de um soberano num reino que não possuía um bem definido critério de sucessão monárquica. Assim, nosso pressuposto foi que o trono visigodo estava disponível a qualquer nobre que detivesse ampla clientela, haja vista o crescente processo de “protofeudalização” que se verificava na Península Ibérica. Nossa pesquisa desenvolveu-se em torno de dois eixos. Analisou-se, através da trajetória política de cada monarca, não apenas como cada um se alçou ao poder, mas também os mecanismos que utilizaram para usufruir de suas potestades. O resultado dessa análise foi sistematizado também em duas vertentes, que nos desvelaram as principais estratégias de sucessão monárquica e de exercício das prerrogativas régias. Em relação à primeira, a despeito de serem várias as formas de sucessão (electio, adoptio, usurpatio), foi constatado que o trono normalmente recaía sobre um nobre que detivesse grande patrimônio e, conseqüentemente, uma poderosa clientela armada. Quanto à segunda, notou-se uma improfícua tentativa de se sacralizar as prerrogativas reais. Por uma e outra razão a legitimidade monárquica na Hispania Visigoda era extremamente condicionada às habilidades políticas de cada monarca em negociar com a nobreza. De fato, embora a monarquia fosse forma inconteste de governo, a pessoa que ocupava o trono não desfrutava da mesma legitimidade, a não ser que contasse com amplo apoio nobiliárquico. Essa fragilidade da figura do rei face à nobreza findou por favorecer a derrota dos visigodos para os muçulmanos em 711, pondo termo ao Reino Hispano-Visigodo de Toledo. Palavras-chave: Monarquia Hispano-Visigoda; Legitimidade Monárquica.
1
INTRODUÇÃO
Antigüidade Tardia e o Reino Visigodo
Em 476 o ostrogodo Odoacro depõe Rômulo Augusto, o último imperador do
Ocidente, e envia as insígnias deste a Constantinopla. Esse fato, meramente simbólico,
representa o fim de um longo e paulatino processo de enfraquecimento político da pars
occidentalis do Império Romano. Nos séculos seguintes, seu espólio será dividido entre os
povos germânicos, que haviam migrado em direção à bacia mediterrânica. Visigodos, francos,
suevos e outros erigiram, assim, as monarquias tardo-antigas ou romano-germânicas.
Em verdade, os reinos constituídos na Antigüidade Tardia se inspiraram em grande
medida nas instituições políticas romanas. Seria ingenuidade de nossa parte acreditar que o
ingente legado político de Roma teria se extinguido repentinamente. De fato, como aponta
Renan Frighetto, “cabe-nos questionar se essa ‘passagem’ da antiguidade ao medievo foi tão
imediata, automática, para podermos impor o fim de um período histórico e o princípio doutro
ao ponto de colocarmos em segundo plano toda e qualquer possibilidade de ‘trocas’ e
permanências culturais, políticas, econômicas, sociais e religiosas entre ambos”.1
Essa época de transição é a Antigüidade Tardia, datada grosso modo entre os séculos
V e VIII. Amiúde preterida nas obras historiográficas tradicionais, a Antiguidade Tardia
torna-se objeto de estudos mais consistentes a partir das décadas de 1960 e 1970.2 Nesse
sentido, a Historiografia tem se esforçado para romper com o estigma, que por muito
perdurou, de que os séculos seguintes à queda de Roma foram “uma era de barbárie sombria e
estática”. Novos estudos têm redirecionado a interpretação acerca da Antigüidade Tardia,
demonstrando que se trata de uma época de grandes desafios e de profundas reorganizações
sócio-políticas. De fato, a partir do século V a Europa assiste a formação das monarquias
germânicas tardo-antigas, nova ordem sócio-política favorecida, de um lado, pelas migrações
germânicas; de outro, pela própria fragmentação da pars occidentalis do Império Romano.
Uma dessas monarquias foi justamente a dos visigodos que há tempos já figuravam na
História da Antigüidade Ocidental. Tácito, na época alto-imperial, descrevia os godos como
1 FRIGHETTO, R. Cultura e poder na Antigüidade Ocidental. Curitiba: Juruá, 2000. p. 19. 2 Pelo menos desde as décadas de 1960 e 1970 a historiografia vem se ocupando desse tema. Dois exemplos dos mais significativos são os textos de MARROU, H. I. Decadência Romana ou Antiguidade Tardia? Lisboa: Aster, 1979; e BROWN, P. O fim do mundo clássico. Lisboa: Verbo, 1972.
2
um povo que era fielmente submisso a seus monarcas.3 Nos séculos que seguiram, os
visigodos converteram-se ao cristianismo4, derrotaram um imperador5, venceram os hunos6, e
saquearam Roma em 410. Após percorrerem um grande périplo em busca de um território em
que pudessem erigir uma entidade política estável, os visigodos são admitidos na região da
Gália como povo federado ao Império Romano.7 Com capital em Toulouse, a existência dessa
entidade política é muita efêmera. Após a batalha de Vouillé, em 506, na qual os francos
derrotam os visigodos, estes se deslocam para a Península Ibérica, onde erigirão a fortiori em
Toledo sua capital. Na antiga Hispania romana, os visigodos fortaleceram as instituições
político-administrativas de seu reino até serem derrotados pelos invasores islâmicos em 711.
3 Tac. Germ. XLIII, 6. “Trans Lugios Gotones regnantur, paulo iam adductius quam ceterae Germanorum
gentes, nondum tamen supra libertatem. Prontius deinde ab Oceano Rugii et Lemovii; omniumque harum
gentius insigne rotunda scuta, breves gladii et erga reges obsequium”. 4 A conversão dos visigodos ao cristianismo foi favorecida pelos esforços de Ulfila, no século IV. Entretanto, Ulfila convertera-os ao cristianismo ariano, o que implicou em sérias conseqüências políticas para os visigodos. 5 Trata-se do imperador Valente, que sucumbiu com a maior parte de seu exército frente aos visigodos na batalha de Adrianopla em 378. 6 Na batalha de Campus Mauriacus, em 451, atribui-se mais aos visigodos que aos romanos o mérito de rechaçarem as tropas de Átila. 7 Segundo Pérez Sanchez, “Ya desde tiempos de Constantino vemos a los visigodos com el “status” de federados
y recibiendo subsídios.[...] Será tras el paso del Danubio debido al ataque huno y más tarde con el foedus
firmado entre Teodosio y Fritigerno el 3 de octubre del 382 cuando el grueso del ejército godo servirá al
Imperio bajo sus propios jefes a título de federados”. PÉREZ SÁNCHEZ, D. El Ejército en la Sociedad Visigoda. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1989. p. 33. No entanto, o acordo em que Roma admitia a instalação dos visigodos na Aquitania Secunda foi firmado em 418 por Honório e Vália; fundamentado na legislação de 398 que permitia a hospedagem, de forma provisória, àquelas pessoas que levassem a cabo atividades civis ou militares de caráter público. Ibid., p. 53.
3
Da primeira à oitava centúria de nossa era, o curso da História impôs significativas
mudanças na organização política dos godos. Inúmeras transformações políticas ocorreram
desde a época da tribo “bárbara” descrita por Tácito até a organização de um reino católico
provido de complexas instituições políticas. De fato, pouco a pouco o Reino Visigodo de
Toledo vai ampliando seus domínios peninsulares e, pari passu, fortalecendo sua forma
administrativa de governo – a monarquia. O Rei, que na época das migrações germânicas não
era mais que um primus inter pares da nobreza de armas; a fortiori, no Reino de Toledo,
passa a ser investido de afazeres burocráticos, religiosos, militares e políticos.8
Nesse sentido, a conversão dos visigodos ao catolicismo niceísta é o fator mais
importante, sob o prisma político, para os destinos da monarquia visigoda. Não só o monarca
ganhava o poderoso amparo ideológico da Igreja Católica, como suas atribuições e funções
transformavam-se. Ele seria, doravante, um princeps christianus sacratissimus. Seria uma
figura sagrada, que teria por objetivo guiar seu povo rumo a Jerusalém celeste. Essa
conversão ocorreu no Concílio III de Toledo, celebrado em 589 sob a égide do rei Recaredo.
Foi recebido, pois, por todos os bispos de Deus a suplica da fé sacrossanta que lhes apresentava o rei, e lendo-na o notário com voz clara se ouviu: Ainda que o Deus onipotente tenha nos atribuído a subir ao cume do reino em favor e proveito dos povos, e tenha encomendado o governo de não poucas gentes ao nosso régio cuidado, recordamo-nos, porém de nossa condição de mortais e de que não podemos merecer de outro modo a felicidade da futura beatitude a não ser dedicando-nos ao culto da verdadeira fé e agradando ao nosso Criador ao menos com a confissão do que é digno .9
No entanto, existem permanências que desafiam o tempo e permanecem quase
incólumes face ao inexorável curso da História. Uma delas é a legitimação do poder. Tanto
um chefe tribal como um príncipe cristão possuem a necessidade de legitimar seus poderes
perante as instituições políticas de suas épocas.
O problema da sucessão monarquia no Reino Hispano-Visigodo de Toledo
A monarquia visigoda, porém, é um caso singular no Ocidente Tardo-Antigo pois, a
despeito dos exemplos dos vizinhos francos e do próprio Reino Visigodo de Toulouse, o
critério de transmissão de poder não era a hereditariedade.10 Destarte, apesar de algumas
tentativas nessa direção, fazia-se necessário buscar outra forma de se legitimar o poder
monárquico. Assim, no Concílio IV de Toledo, realizado em 633, a nobreza eclesiástica,
8 VALVERDE CASTRO, M. A. Ideología, simbolismo y ejercicio del poder real en la monarquía visigoda. Salamanca : Ediciones Universidad de Salamanca, 2000. p. 286. 9 Conc. III Tol. Tomus. 10 GARCIA MORENO, L. A. Historia de España Visigoda. Madrid: Cátedra, 1998. p. 323.
4
encabeçada por Isidoro de Sevilha, instituiu a monarquia eletiva como forma de governo entre
os visigodos.
Que ninguém prepare a morte dos reis, mas que morto pacificamente um rei, a nobreza de todo o povo, juntamente com os bispos, designarão de comum acordo o sucessor do trono, para que se conserve entre nós a concórdia da unidade, e não se origine nenhuma divisão da pátria e do povo por causa da violência e da ambição.11
Sem embargo, foram poucos os monarcas que ascenderam ao trono ipso facto via
eleição. Isso porque a eleição foi, em grande escala, nada além de um ato formal que coroava
a ascensão – não importa de que forma – de determinado monarca ao trono. Em outras
palavras, o que queremos dizer é que se a monarquia era a forma inconteste de governo entre
os visigodos, a transmissão de poder via eleição não detinha a mesma legitimidade. De fato,
embora entrelaçadas, a legitimidade de uma forma de governo é coisa bem distinta da
legitimidade de um governante.
Vale ressaltar que jamais houve contestação ao regime de governo monárquico eletivo.
Todas as revoltas que existiram na Hispania Visigoda, pretendiam sempre destronar um rei
para substituí-lo por outro; nunca modificar os fundamentos da monarquia12. Isso significa
que, a despeito da instituição monárquica estar consolidada no âmbito da política visigoda, a
legitimidade do monarca fundamentava-se muito mais em suas qualidades pessoais do que
nos fundamentos da monarquia. Justamente por isso, tratava-se de uma legitimidade efêmera,
que não resolvia o problema da transmissão do poder. A legitimidade monárquica tinha a
duração de um reinado.
Se por um lado, não houve contestações acerca da legitimidade do regime de governo
hispano-visigodo; por outro, o mesmo não aconteceu em relação à pessoa que estava à frente
desse regime. Isso porque o rei visigodo era ele mesmo o principal objeto da crença na
legitimidade, o que fez da transmissão de poder um problema insolúvel. Exatamente por isso,
a necessidade de legitimação era constante, pois todo monarca que era entronizado possuía a
necessidade de buscar uma forma própria de se legitimar. Seu desafio em busca da
legitimidade era incutir, em uma parcela significante e significativa da população, um grau de
consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de recorrer ao uso da força, a
não ser em casos esporádicos. Dada esta questão, nosso intuito é investigar as estratégias
pelas quais os soberanos visigodos conseguiram legitimar o exercício de suas prerrogativas. A
partir do estudo singularizado de cada reinado, pretendemos traçar algumas considerações
11 Conc. IV Tol. c. 75. 12 VALVERDE CASTRO, op. cit., p. 268.
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gerais sobre o problema da legitimidade monárquica no Reino Visigodo de Toledo. Todavia,
deteremos nossa análise a um período específico da monarquia visigoda – seus quatro
derradeiros decênios (672-711), nos quais cinco monarcas ascenderam ao trono: Wamba
(672-680), Ervígio (680-687), Égica (687-702), Witiza (700-710), Rodrigo (710-711).
Optamos por este recorte cronológico por dois motivos. Primeiramente, por ser este período
um dos mais ricos para se estudar a legitimidade monárquica na Hispania Visigoda. Diversas
foram as formas de ascensão e os estratagemas políticos que os soberanos visigodos lançaram
mão para se legitimar. Ademais, após a ascensão de Wamba, as lutas internas entre as
diferentes facções políticas tornam-se mais agudas, reforçando a necessidade de os soberanos
legitimarem de forma mais enfática suas prerrogativas.
Fontes
Como as fontes são as ferramentas do historiador, convém explicitarmos agora, para
que o leitor acompanhe nossa linha de raciocínio, quais foram aquelas que utilizamos para
fundamentar nossa argumentação. A legitimação monárquica é um processo que envolve
inúmeros fatores, vertentes e possibilidades. Portanto, a análise desse processo deve
considerar um amplo espectro de fontes nas quais pode haver indícios do esforço dos
soberanos para legitimarem sua posição.
Uma das fontes mais ricas de que dispomos são as atas dos concílios eclesiásticos.13
Nas ocasiões de suas celebrações, reunia-se a mais fina nobreza eclesiástica – acrescida,
algumas vezes, da companhia da nobreza laica – para deliberar sobre os mais diversos
problemas da época. Muitas de suas decisões tinham peso de lei. Uma plêiade de resoluções –
perdoar, excomungar, privilegiar, perseguir – era possível através de seus cânones. Uma
limitação que tal fonte possui é o fato de ser o lapso entre um concílio e outro, muitas vezes,
bastante amplo. Ademais, o Concílio XVII de Toledo, celebrado em 694, foi o último cujas
atas se preservaram. Dessa forma, somente os três primeiros monarcas de nosso recorte
cronológico – Wamba, Ervígio e Égica – podem ser estudados através dos concílios.
Para a legitimação de Wamba, uma fonte indispensável é a Historia Wambae, de
Juliano de Toledo.14 Trata-se de um relato no qual o metropolitano visigodo narra a ascensão
13 VIVES, J. Concilios Visigóticos e Hispano-Romanos. Barcelona/Madrid: Instituto Enrique Flórez, 1963. 14 LEVISON, W. e HILLGARTH, J. N. Corpus Christianorum. Series Latina CXV, Turnholti: Brepols, 1976.
6
de Wamba e sua campanha contra os rebeldes da Gália. O texto prima pela descrição de
atitudes e virtudes creditadas a Wamba, que o qualificam como um bom soberano.
Duas crônicas serão utilizadas em nosso estudo – a Crônica de Afonso III, e a Crônica
Moçárabe de 754.15 A primeira, redigida no século IX, tenta associar os astúres a determinado
segmento nobiliárquico visigodo. Nesse sentido é possível que ela denote, deliberadamente,
determinados monarcas como excessivamente “bons” ou “maus”. Quanto à segunda, escrita já
durante a dominação islâmica na Península Ibérica, relata o processo de expansão
muçulmana, traçando um paralelo entre os acontecimentos políticos dos visigodos, bizantinos,
e muçulmanos. Embora se desconheçam seus autores, tais fontes são deveras importantes,
principalmente para auxiliar-nos a elucidar a legitimação monárquica de Witiza e Rodrigo, de
quem dispomos de poucas referências.
Algumas outras fontes podem, eventualmente, ser aproveitadas de forma menos
sistemática. As Etimologias de Isidoro de Sevilha, por exemplo, são uma obra de referência
que nos permitem definir melhor a acepção de um conceito ou o significado de determinado
símbolo ou rito.16 A legislação visigoda também pode ser utilizada em determinados casos,
para perceber que diretriz política determinado rei está seguindo.17 Porém, as crônicas, a
Historia Wambae e as atas dos concílios serão as principais fontes de nosso estudo.
Este se encontra dividido em três capítulos. O primeiro funciona à guisa de
contextualização sóciopolítica do Reino Hispano-Visigodo em meados da sétima centúria.
Apresentamos de maneira sucinta os grupos sociais da Hispania Visigoda, enfatizando as três
forças políticas do Reino – monarquia, aristocracia e episcopado. Ademais, tratamos
brevemente dos reinados de Chindasvinto e Recesvinto pois, sem um conhecimento ainda que
superficial do governo desses soberanos, dificulta-se um melhor juízo do desenvolvimento
político no ocaso do Reino Visigodo de Toledo. No segundo capítulo são analisados os
processos de legitimação monárquica dos últimos cinco reis visigodos. Busca-se uma
articulação entre a forma de ascensão e a estratégia utilizada pelo monarca para legitimar seus
poderes. Esse momento de nosso estudo tem de privilegiar, necessariamente, a curta duração.
A análise de processos de legitimação monárquica no Reino Visigodo de Toledo, haja vista a
15 FERNADEZ, Juan Gil. Crônicas asturianas. Oviedo: Publicaciones del Departamento de Historia Medieval, 1985. WOLF, K. B. Conquerors and Chroniclers of Early Medieval Spain. Liverpool: Liverpool University Press, 2a. ed., 1999. 16 OROZ RETA, J. e CASQUERO, M. San Isidoro de Sevilla: Etimologias. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2000. 17 A obra foi publicada em Boston pela Boston Book Company em 1910. A versão que temos à mão foi disponibilizada pela internet através do site http://libro.uca.edu/vcode/visigoths.htm
7
inexistência de um processo sucessório institucionalizado, precisa ser feita caso a caso,
perseguindo as estratégias políticas de cada um dos monarcas. O que não significa dizer que
essa análise estará desarticulada de uma consideração de durações mais longas. Não se pode
elidir, por exemplo, a conjuntura política de tentativa de instauração de uma ideologia
teocrática, ou a estrutura econômica feudal, que tem suas origens nesse período. Porém, mais
que uma sobreposição de durações, consideramos a existência de uma interpolação de
durações para uma melhor compreensão dos fenômenos históricos.18 Nesse sentido, nosso
segundo capítulo, que traça a trajetória política dos últimos soberanos hispano-visigodos,
privilegia o tempo curto, mas não se desvincula de durações mais longas. A partir dos dados
obtidos da observação de cada um dos últimos cinco reinados, podemos então, no terceiro
capítulo, sugerir algumas hipóteses acerca do problema da sucessão e da legitimação do poder
monárquico. Fazemos uma espécie de sistematização dos processos sucessório e legitimador,
apontando para as formas mais recorrentes empregadas pelos monarcas para solucionar um e
outro problema.
Não pretendemos, ao cabo dos três capítulos, apresentar teorias generalizantes, mas
apontar alguns elementos significativos em âmbito político. Nosso maior escopo, porém, não
é acadêmico, mas social. Isso porque o entendimento das formulações políticas e do exercício
do poder é algo extremamente necessário para o desenvolvimento da cidadania. A experiência
histórica, nesse sentido, favorece de forma imane os questionamentos, as reflexões, e o
posicionamento dos cidadãos face ao universo da política. Desse modo, mesmo que o objeto
de pesquisa esteja cronologicamente situado na sétima centúria, o estudo da legitimidade de
poder na Hispania Visigoda pode contribuir para a reflexão acerca das nossas instituições
políticas. É verdade que muita coisa mudou nesse grande espaço de tempo. Entretanto, muitos
elementos inerentes à política no mundo clássico e tardo-antigo chegaram à atualidade sem
grandes transformações. Um desses elementos é justamente a necessidade de que um poder
seja legitimado para que possa ser exercido.
18 BOIS, G. Sur la mutation de l’an mil. In: De la Antigüedad al Medievo (siglos IV-VIII). – III Congresso de Estudios Medievales. Ávila: Fundación Sanchez Albornoz, 1993. p. 551.
8
1 – POLÍTICA E SOCIEDADE NA HIPANIA VISIGODA DA SÉTIMA CENTÚRIA
1.1 – O Monarca Visigodo
A monarquia é um sistema político dos mais antigos. Na concepção do mundo
clássico, define-se como o governo de um, em contraposição ao governo de todos, a
democracia.19 Desde a época de Tácito, na primeira centúria de nossa era, tem-se
conhecimento da existência de monarcas entre os povos germânicos. Alguns séculos depois,
quando os visigodos se apresentam como uma entidade política estável, tem-se a monarquia
como forma de governo. Naturalmente, existem muitas diferenças entre um rei de uma tribo
germânica e entre um rei de um reino católico. A figura do monarca foi ganhando atribuições
e direitos que não possuía antigamente. Uma rápida análise desse processo, bem como das
prerrogativas inerentes à potestade régia se fazem necessárias para que se possa melhor
compreender o processo de legitimação monárquica na Hispania Visigoda.
1.1.1 – Primus Inter Pares
Nas estruturas sociais primitivas dos povos germânicos, os reis possuíam um caráter
sagrado. Com o passar do tempo, devido à necessidade de uma melhor organização militar
para se defender de ataques estrangeiros, a realeza foi investida de um caráter bélico. Essa
monarquia de cunho militar se assenta mais propriamente na antiga figura dos duques “que
controlam o povo mais pelo exemplo que pelas ordens, e pelo meio da admiração que consiste
na prontidão e num lugar conspícuo na frente da linha de batalha”.20
A instituição monárquica, porém, não era perene. Somente em casos de guerra é que se
elegia um rei para melhor coordenar as empresas militares. O processo de destribalização e
conseqüente estratificação, ocorrido nas sociedades germânicas, alterou o mecanismo de
eleição monárquica.21 Remotamente, uma assembléia constituída de todos os homens livres
era que detinha o direito de eleição. Com o decorrer do tempo, surgiu uma aristocracia 19 Já em Heródoto há uma discussão entre os melhores sistemas de governo no mundo clássico. É célebre a passagem em que os sábios gregos discutem sobre qual seria – entre oligarquia, democracia e monarquia – o melhor sistema político. Herod. Hist. 3, LXXX-LXXXIIII. Essa discussão será retomada em moldes parecidos por Aristóteles. 20 Tac. Germ. VII, 1. Sobre o caráter sagrado das antigas monarquias germânicos conferir VALVERDE CASTRO, op. cit. p. 20. onde a autora aponta para a fundamentação no elemento ducal das monarquias germânicas. 21 VALVERDE CASTRO. op. cit. p. 21
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político-militar que avocou para si a exclusividade de eleger o rei. Substituindo os laços de
parentesco, os vínculos pessoais passam a nortear as relações entre o monarca e o povo. Tais
vínculos eram forjados, em grande medida, graças à esperança de receber uma grande parte de
um butim numa empresa militar.22 Era também a melhor maneira que o rei possuía para
garantir a fidelidade de seus guerreiros e de ser reconhecida e legitimada sua posição de
destaque. Caso o rei não correspondesse às expectativas de ser um bom chefe militar, sua
legitimidade acabava.
Desse modo, para os povos germânicos dos primeiros séculos de nossa era, a eleição
do rei estava diretamente associada à guerra. Ele era um autêntico primus inter pares daquela
nobreza de sangue e das clientelas a ele vinculadas.23 Sua função consistia exclusivamente em
conduzir seu séquito nas empresas militares.
Quando, no século quarto, a pressão dos hunos desencadeia um movimento migratório
mais intenso por parte dos povos germânicos para dentro do limes do império romano, o papel
dos reis vai começar a ganhar um viés político. De fato, esses monarcas apresentam-se como
representantes de seus povos frente à autoridade imperial. Os diversos tratados entre romanos
e germânicos serão firmados com chefes reconhecidos como representantes de seus povos,
caso de Atanarico e Alarico para os visigodos. Com a desestruturação política do Império
Romano do Ocidente, no século IV, criou-se um vazio político, que foi, aos poucos,
preenchido por novos elementos. No mundo urbano, tem-se a figura dos bispos, que se
projetam como verdadeiros representantes e defensores das populações citadinas. No mundo
rural, esse poder vai ser ocupado tanto pelas aristocracias regionais como pelos grupos
germanos ali estabelecidos. E, entre estes últimos, a figura do seu respectivo rei passaria a
ocupar um lugar de proeminência.24
Dessa forma, se fazia necessário fortalecer a monarquia pois, se campanhas vitoriosas
aumentavam o prestígio político e o séqüito militar de um rei, um fracasso militar colocava
termo a sua posição de proeminência. Tratava-se de uma instituição política intermitente
amparada numa tênue legitimidade auferida de êxitos militares.
Face à nova conjuntura social em que se encontravam após terem migrado para o
Império Romano, os visigodos precisavam fortalecer a instituição monárquica. Segundo
Valverde Castro, o processo de consolidação monárquica se assentou em dois pilares: a
22 Tac. Ger. XIV, 2. Tácito escreve que jovens de tribos que não estavam em guerra buscavam tribos que estivessem guerreando, para oferecerem seus serviços militares em troca de uma parte do butim. 23 FRIGHETTO, op. cit., p. 50. 24 Ibid. p. 54.
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tentativa de impor estirpes régias, fortalecidas ideologicamente ao convertê-las em
descendentes de deuses e de heróis; e pela ampliação de atribuições monárquicas para âmbitos
distintos do militar.25 O primeiro elemento teve lugar no Reino Visigodo de Toulouse, que
não é nosso objeto de análise; e não terá grande aceitação, a fortiori, no Reino Visigodo de
Toledo. Já o segundo elemento nos é de fundamental importância. Isso porque as atribuições à
instituição monárquica se fazem em detrimento da total autonomia de que desfrutava a
aristocracia visigoda. Como teremos oportunidade de observar, essa aristocracia jamais
consentiu com uma monarquia autoritária, embora tivesse que aceitar, em certos períodos, a
atuação de reis centralizadores.
1.1.2 – Atribuições Monárquicas
Por certo que a antiga função de chefe do exército não se eclipsou com novas
atribuições ao monarca visigodo. Porém, modificou-se. Após a conversão ao catolicismo não
era mais, em tese, butins e saques que interessavam ao chefe do exército visigodo. Essa
função lhe era atribuída, doravante, para que zelasse pela segurança de seu povo e garantisse a
paz interna. Incluía-se nesse âmbito não apenas a defesa contra povos estrangeiros – como
bizantinos e francos – mas também a conversão religiosa com o objetivo de promover uma
unidade político-religiosa. Assim, Recaredo usou o exército para debelar revoltas de arianos
contrários à conversão ao catolicismo, e diversos outros reis lograram campanhas contras
vascos e outros povos pagãos no extremo norte da península. O problema era que o exército
real não era suficiente para atender às demandas militares do reino. É preciso que o monarca
recorra a séqüitos privados de poderosos senhores locais. Portanto, para que possa existir uma
unidade em torno da figura do rei como chefe militar, faz-se necessária a utilização dos
antigos laços de fidelidade entre os germanos, conforme descrevera Tácito. A aristocracia
romano-germânica, ao prestar juramento de fidelidade ao monarca, contraía obrigações para
com o Estado.26 Dentre elas está a disposição de seus séqüitos de guerreiros que, ao fim e ao
cabo, compõem um único exército público. Entretanto, muitos nobres utilizaram suas
comitivas, ou seja, parte do exército do rei, em favor de seus próprios interesses em
detrimento da publica utilitas.27 Assim, embora dependente de poderosos domini, o rei
25 VALVERDE CASTRO. op. cit., p. 24. 26 SÁNCHEZ, op. cit., p. 131. 27 VALVERDE CASTRO. op. cit., p. 235
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visigodo católico tinha a função de chefe supremo do exército, que lhe era encarregado com o
objetivo de proteger o catolicismo.
Outra atribuição que recebera o monarca visigodo fora a legislativa. Urgida da
necessidade de se constituir uma entidade política autônoma, desde o tempo de Teodorico I os
reis visigodos avocaram para si essa tarefa. Entretanto, o direito consuetudinário irá perdurar
até que Eurico promulgue um código legislativo, na segunda metade da quinta centúria. Trata-
se de uma estatização do direito, que vem atender às necessidades de formação de uma
entidade política autônoma, como o Reino Visigodo de Toulouse. Com a conversão ao
catolicismo, porém, a legislação tinha, em tese, que harmonizar as necessidades sociais com a
ideologia católica. Era obrigação do soberano lutar contra o mal, sendo esse o objetivo de se
promulgarem as leis.28 O rei, como ungido do senhor, era a fonte soberana de uma legislação
teleológica, cujo objetivo era guiar seu povo segundo os desígnios de Deus.
É por isso que aristocracia não compartilhava, diretamente, dessa atribuição
monárquica. Mas o episcopado sim. De fato, não apenas pela promulgação de códigos se
exercia tal potestade régia. Os concílios eclesiásticos se transformaram, a partir de meados da
sétima centúria, em supremas instâncias legislativas e judiciárias. As deliberações acordadas
nesses encontros, tal como no mundo bizantino, ganhavam caráter de legislação civil com
uma lex in confirmatione concilii ao cabo do concílio.29 O último código publicado no Reino
Visigodo de Toledo foi o Líber Iudicorum, de Chindasvinto, anterior portanto ao nosso
período de análise. Entretanto, existem algumas leis aditadas a esse código pelos últimos
soberanos visigodos que demonstram a legislatura como uma prerrogativa muito peculiar à
monarquia também no ocaso do Reino Visigodo.
O poder judiciário também foi atribuído ao monarca visigodo. Desde muito cedo,
graças à necessidade de se formar uma unidade política estável, o direito teve seu eixo
gravitacional transferido da esfera privada para a pública. O monarca era o juiz supremo de
seu povo. Porém, dada a imensidão de sua atribuição, o rei delega seus poderes para que
nobres possam julgar em seu nome as querelas de âmbito local e regional. Com a conversão
ao cristianismo, também os bispos passam a exercer essa tarefa, zelando para que os
funcionários régios não se excedessem em seus cargos. Embora seja o legislador e juiz
supremo, o rei não consegue dar conta de atender à todas as querelas e de fazer cumprir todas
as suas determinações. Assim, ao fim e ao cabo o papel judiciário que cabia ao rei era o de
28 Ibid. p. 227. 29 Ibid. p. 228.
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nomear juízes e de ser a ultima instância de apelação. Para exercer essa atribuição ele precisa
recorrer à nobreza laico-eclesiástica para que colabore nessa função. Ademais, o poder
judiciário jamais foi um monopólio régio. A aristocracia e o episcopado julgavam e
penalizavam livremente seus dependentes.30
Substituindo a autoridade imperial antes mesmo da queda de Roma,31 o rei visigodo
arrola para si as atribuições fiscais e financeiras na região da Aquitânia, no século quinto.
Esse processo também está vinculado com a formação de uma entidade política autônoma.
Era necessária a criação de um erário régio que desse governabilidade à monarquia
independentemente da fortuna pessoal do monarca reinante. Assim, paulatinamente, os
soberanos visigodos se apropriam do mecanismo imperial de coleta de impostos, submetendo
tanto a antiga aristocracia romana, como a nobreza visigoda ao pagamento de tributos. A
monarquia era a maior beneficiária dessas contribuições, embora boa parte dos impostos fosse
desviada antes de chegar ao erário régio. Porém, decretar ou suspender o pagamento de
impostos era uma atribuição exclusivamente monárquica. Em algumas ocasiões de seca e
fome, os soberanos visigodos decretaram a suspensão do pagamento de impostos para
amenizar as dificuldades.32 Obviamente são medidas que envolvem a piedade e a justiça,
virtudes peculiares ao princeps christianus sacratissimus. Do mesmo modo, compete ao
príncipe evitar que os funcionários do fisco régio cometam abusos, recomendação expressa
nos concílios. Assim como no caso do poder judiciário, também aqui o episcopado deveria ter
uma função de zelar para que os funcionários régios não se excedessem. Como a Igreja era
uma grande proprietária de terras, porém, os interesse nobiliárquicos e eclesiásticos
convergiram para atenuar a pressão fiscal régia e sobretaxar seus dependentes.33 Os reis,
entretanto, também desrespeitaram o sistema tributário. As atas do concílio VIII de Toledo
nos revelam queixas de nobres contra monarcas que agregavas as tributações não ao erário
régio, mas à sua fortuna pessoal.34 Assim, desrespeitada de ambos os lados, o fisco
convertera-se em outra atribuição monárquica.
Finalmente, tem-se a atribuição monárquica mais elementar a um reino – a
administração. Quando os visigodos migraram para dentro do Império Romano, o rei não 30 Ibid. p. 232. 31 Ibid. p. 91 32 Um exemplo é Ervígio, que decretou tal medida em 683 através de um concílio geral. Conc. XII Tol. c. III. “De tributorum principali relaxatione in plebe”. 33 VALVERDE CASTRO. op. cit., p. 232-240. 34 Conc. VIII Tol. c. 10 “(...) erunt in conquisistis oblationis gratissimae rebus non prospectantes proprii iura
conmodi sed consulentes patriae atque genti; de rebus congregatis ab eis illae tamtum sibi vindicent partes quas
ditaverit auctoritas principalis (...)”.
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tinha que administrar nada além de seus súditos e as relações com a autoridade imperial ou
outros povos. Não era necessário um grande grau de organização administrativa para tanto.
Com a desestruturação do Império Romano Ocidental, na segunda metade do século quinto,
Eurico se vê às voltas com o problema de ter que substituir a antiga estrutura administrativa
romana por uma própria para o Reino Visigodo de Toulouse. O aparato administrativo torna-
se mais complexo, e admite-se a participação da aristocracia galorromana na burocracia
estatal. Cria-se o Officium Palatinum, composto pela nobreza romano-germânica, que
assessora diretamente o rei. Também as magistraturas locais precisam ser reorganizadas.
Tendo os visigodos deslocado-se para a Península Ibérica após a derrota para os francos em
506, a administração do novo reino segue os mesmos moldes do Reino Visigodo de Toulouse.
A aristocracia hispano-romana juntamente com a nobreza visigoda ingressam na burocracia
estatal, assessorando o rei em âmbito geral e local. Como obviamente não podia administrar o
reino sozinho, era atribuído ao monarca o papel de escolher os funcionários que o auxiliariam
nessa tarefa. Como sói acontecer quando o princeps christianus sacratissimus partilha o
poder, ele deveria zelar para que os funcionários de sua administração fossem idôneos e não
oprimissem o povo, nem prejudicassem o reino.35 Note-se que essa freqüente especificidade,
de o rei zelar pelos funcionários que escolhe para exercer determinada atribuição monárquica,
reflete que é o soberano a origem de todo o poder. Essa atribuição de onipotência ao monarca,
porém, não passava de uma malograda ideologia católica. Na prática, as necessidades do
governo fizeram com que todas essas atribuições monárquicas fossem impossíveis de serem
exercidas unicamente pela figura do rei.
* * *
A necessidade de se formar uma unidade política estável foi o fator fundamental para
que a monarquia visigoda fosse investida de novas atribuições. Esse processo ocorreu ao
longo do século V, quando foi constituído o efêmero Reino Visigodo de Toulouse. Com a
conversão ao catolicismo, essas atribuições permanecem no Reino Visigodo de Toledo,
embora dispostas, em tese, a serviço da cristandade. No último quartel do século VII, porém,
o processo de feudalização da Hispania Visigoda já está avançado. Tal fato é um óbice para o
perfeito exercício dos poderes monárquicos uma vez que o soberano depende, cada vez mais,
35 Conc. XIII Tol. c. 2.
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da aristocracia para poder governar. Fica evidente que a antiga nobreza germânica, aliada à
aristocracia romana, jamais admitiu uma monarquia centralizadora, que os alijasse do cerne
do poder. À medida que as necessidades sóciopolíticas investiam novas atribuições ao papel
do monarca, essas novas atribuições tiveram de ser compartilhadas com a aristocracia, pois o
soberano não tinha meios de exercê-las sozinho. Assim, a aristocracia deve ser entendida não
como um grupo social, mas como uma instituição política que, no caso do Reino Visigodo de
Toledo, sobrepujou a instância monárquica. As relações entre rei e nobres oscilaram entre
colaboração e indisposição. A relação entre a instituição monárquica e a nobiliárquica foi,
sempre, de confronto. Os bispos tentavam mediar esse embate, fortalecendo o papel político
da Igreja. Para um melhor entendimento dessa configuração social faz-se necessário uma
apreciação, ainda que breve, sobre a sociedade hispano-visigoda da sétima centúria.
1.2 – A Sociedade Hispano-Visigoda Na Sétima Centúria
Para um melhor entendimento dos processos políticos que se perpetraram na Península
Ibérica do século VII, fazem-se necessárias algumas considerações sobre a sociedade hispano-
visigoda da época. A divisão mais elementar que se pode fazer nessa sociedade é entre
homens livres e dependentes. Essa divisão, porém, oculta uma plêiade de estamentos sociais
heterogêneos. As chamadas “profissões liberais”, dificílimas de serem enquadradas em um
determinado segmento social, são propício indicativo para pensarmos que a sociedade
visigoda não era composta de estamentos fossilizados. Dessa forma, havia uma relativa
mobilidade social, consoante as condições políticas do momento.
Ademais, cabe lembrar que, na Antigüidade Tardia, o mundo rural e os grupos sociais
a ele adstritos passaram a assumir um lugar de destaque frente à considerável diminuição das
referências relativas ao mundo urbano da época clássica.36 O que não significa dizer que as
cidades se eclipsaram por completo. Há indícios de que algumas delas continuaram a ter uma
pulsante vida urbana.37
Mas eram realmente as estruturas agrárias que, preponderantemente, determinavam a
economia e a sociedade visigoda. Apesar de boa parte da riqueza da aristocracia ser
constituída de bens móveis – como jóias e metais preciosos – sua fundamental base
36 FRIGHETTO, op. cit., p. 63. 37 GARCIA MORENO, op. cit., p. 267. Segundo o autor, principalmente a região Baetica e algumas regiões da Lusitania conservaram alguns vivazes núcleos urbanos.
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econômica era a posse de terras.38 Mais do que isso, a posse de terras com farta mão-de-obra
era especial objeto de disputa entre os diversos segmentos nobiliárquicos hispano-visigodos.39
Uma vez que a maior parte da população trabalhava em grandes latifúndios – pertencentes a
poderosos domini – é natural que existissem regimes de trabalho os mais diversos, de modo
que nos restringiremos a uma contextualização mais ampla acerca de quem era essa mão de
obra e qual suas relações com seus domini. Ademais, percebemos uma certa tendência nas
fontes hispano-visigodas em polarizar os grupos camponeses e a nobreza, dirimindo as
especificidades dentro de cada segmento. Apesar de ser uma divisão generalizante, ela capta
bem o clima de hostilidade mútua entre os dois grupos.
1.2.1 – Pequenos proprietários, servos e libertos
Como dissemos, a divisão mais elementar da sociedade hispano-visigoda é entre
senhores e dependentes. Estes poderiam ser escravos, libertos ou encomendados. A estes
últimos, que em tese deteriam a melhor situação entre os grupos dependentes, as fontes
atribuem termos pejorativos como humilores, pauperes e minores loci personae.40 Tal fato
pode ser interpretado como uma tentativa de polarizar a sociedade, enquadrando-se a
aristocracia laico-eclesiástica de um lado, e um grupo único de dependentes do outro.41
Assim, tem-se um grupo camponês bastante heterogêneo, que pouca coisa tem em comum
além de sua situação de miséria.
Na base da sociedade, os escravos não constituíam uma classe uniforme, distinguindo-
se através da origem de sua condição – que podia ser por meio de guerras, comércio, traição,
matrimônio, dívidas e, a mais comum, por nascimento.42 Embora tal leque de condições
38 Ibid. p. 225. 39 À guisa de exemplo da valoração da terra a partir do número de pessoas que nela trabalham citamos duas passagens. O Conc. XVI Tol. c. 5. “(…) ea scilicet ratione, ut ecclesia quae usque ad decem habuerit mancipia
super se habeat sacerdotem; quae vero minus habuerit mancipia aliis coniugatur ecclesiis”, sugere que a igreja que tinha menos de 10 escravos não conseguia se manter. Já o Concílio X de Toledo, ao revogar uma doação de 500 servos feita pelo bispo Ricimiro de Dumio, dá uma idéia mais aproximada do número de escravos que deveria contar o patrimônio de cada igreja. Conc. X. “Tol. Item aliud decretum eorundem prafatorum pontificum
editum: (...) edidisse quoque quosdam líberos ex eiusdem ecclesiae familis, quibus etiam cum aliis ad se
pertinentibus amplius quam quinquaginta repperitur utriusque sexus dedisse mancipia”. 40 FRIGHETTO, op. cit., p. 147. 41 FRIGHETTO, op. cit., p. 99. GARCIA MORENO, op. cit., p. 243. ORLANDIS, J. Historia de España: Época Visigoda. Madrid: Gredos, 1987. p. 175. 42 ORLANDIS, op. cit. p. 174.
16
implique em diferenciações sócio-jurídicas, a aristocracia enquadrava-os todos nos mais
baixos escalões da sociedade, seja no aspecto político-econômico, seja no cultural.43
Os escravos poderiam ser libertados e ganhar a condição jurídica de libertos, ainda
inferior à dos nascidos livres, os ingênuos.44 As manumissões, num primeiro momento,
poderiam ser plenas ou in obsequio – estratégia que transformava o dono do escravo em
patrono do liberto, mantendo-no como força de trabalho de sua propriedade. Justamente por
isso, as manumissões in obsequio parecem ter sido as mais freqüentes. No caso dos escravos
da Igreja, aliás, a adoção da liberdade in obsequio era justificada pelo argumento de que a
Igreja, como patrona, nunca morria.45 Trata-se de uma estratégia antiga, pois no Concílio III
de Toledo, celebrado em 589, já se aludia a essa prática que, no decorrer do tempo, foi
ficando mais recorrente.46 O processo culmina quando, durante o reinado de Égica, este
decreta uma lei que obriga todo liberto a permanecer sob a dependência de seu antigo
senhor.47
Esse endurecimento da legislação foi mais contundente nos últimos decênios do século
VII, e parece ter deflagrado uma onda de fugas de escravos. De fato, há uma lei decretada por
volta do ano 700, que atestava não existir cidade, praça forte, aldeia, granja ou lugarejo no
reino em que não se encontrasse oculto algum escravo fugitivo.48 A despeito de toda uma
legislação cada vez mais severa contra a fuga de escravos49, o processo era inexorável. Os
escravos fugiam e viviam à margem da sociedade, praticando o banditismo ou
“bandoleirismo”. Assim, na segunda metade do século VII, os testemunhos de Bráulio de
Zaragoza e de Valério do Bierzo denotam como os bandos de criminosos armados para roubar
eram assaz freqüentes nos caminhos e nas montanhas do reino hispano-visigodo.50 Por outro
43 FRIGHETTO, em op. cit., nos traz um exemplo dessa mentalidade através das Etimologias de Isidoro de Sevilha: “(...) o famulum era, na concepção isidoriana, simplesmente aquele que nascia no seio de uma família
servil, enquanto a ancilla era aquela que prestava apoio aos seus senhores e o liberto era considerado como um
indivíduo que num princípio estava submetido ao jugo da escravidão’’. As definições de Famulum, Ancillae e Libertus estão respectivamente em Isid. Hisp. Etym. IX, 4, 43; IX, 4, 44; e IX 4, 47. 44 Isid. Hisp. Etym. IX, 4, 46. “Ingenui dicti, quia in genere habente libertatem, non in facto, sicut liberti”. 45 Conc. IV Tol. c. 70 De professione libertorum ecclesiae: “Liberti ecclesiae, quia numquam moritur eorum
patrona, a patrocínio eiusdem nunquam discedant, nec posteritas quidem eorum (..)”. 46 Conc. III Tol. c. 6 “(…) ut si qui ab episcopis facti sunt secundum modum canones antiqui dant licentiam, sint
liberi, et tamen [a] patrocinio ecclesiae tam ipsi quam ab eis progeniti non recedant.”. 47 L .V. V, 7, 20. (Egica Rex): De transgressoribus libertorum. 48 L. V. IX 1, 21. (Egica Rex): De mancipiis fugitivis, et de susceptione fugitvorum. “(...) ita ut non sit penitus
civitas, castellum, vicus, aut villa, vel diverorium in quibus mancipia latere minime dignoscantur (...)”. 49 GARCIA MORENO, op. cit., p. 248 “De las 21 leyes que constituyen el primero título del libro IX del Liber Iudicorum – denominada “De los que huyen y de los que los ocultan” – 16 son antiquas; de Chindasvinto, 1, de
Ervigio, 2, y de Egica-Witiza, otra más. Lo que indica la continuidad de un problema, el de los esclavos
fugitivos, y su agravación en los últimos decenios del siglo VII”. 50 Ibid. p.249.
17
lado, na hora de usurpar o trono ou de se opor à dominação do Estado, muitos nobres
serviram-se de pessoas marginalizadas para obter um certo apoio social e um suporte
armado.51 Também são notáveis algumas menções sobre a prática do suicídio52, revelando
serem as relações sociais nesse período, amiúde, insuportáveis.
Outro grupo camponês que merece destaque é aquele formado pelos pequenos
proprietários, denominados privati. Trata-se de proprietários livres, senhores de parco
patrimônio particular. Seus bens imóveis soíam limitar-se a uma pequena porção de terra,
onde se encontravam algumas construções simples. Seus bens móveis geralmente reduziam-se
ao seu instrumental agrícola e aos animais que lhe pertenciam.53
Esse segmento social sempre sofreu grande pressão econômica e política da nobreza
fundiária hispano-visigoda, ávida por incorporar as terras dos pequenos proprietários ao seu
patrimônio. Esses, porém, possuíam fortes razões para se colocarem sob o patrocínio de um
poderoso dominus. De fato, os pequenos proprietários eram obrigados a arcar com pesados
tributos herdados da administração baixo-imperial, tais como o capitatio e o iugatio.54
Imposto pessoal e territorial, respectivamente, que os pequenos proprietários penavam para
pagar, haja vista a rudimentariedade das técnicas e a imprevisibilidade do tempo. Entrando
sob o patrocinium de um grande proprietário, os privati eximiam-se daquelas cargas
tributárias. Para tanto, os pequenos proprietários entregavam suas terras a um determinado
senhor, e deviam a ele o pagamento periódico de um census. Em contrapartida, através do
contrato de precaria, recebiam a garantia de segurança por parte de seu patronus e um lote de
terra para trabalhar, geralmente aquele que havia sido sua antiga propriedade.55 Havia também
o contrato de placitum, que reconhecia a hereditariedade da precaria concedida a um
encomendado. Ademais, os encomendados usufruíam de alguns direitos de caráter
comunitário, tais como a utilização de bosques e prados para o cultivo de frutas, apascentar
um pequeno rebanho e caçar. Todas essas atividades estavam sujeitas a uma tributação e, a
proporção do usufruto desses direitos estava vinculada à extensão da propriedade cedida.
51 O Conc. VIII Tol. c. 10. “(…) non forinsecus aut conspiratione paucorum aut rusticarum plebium seditioso
tumultu (...)”. 52 Conc. XVI Tol. c. 4. De disperantibus: “(...) Quorundam etenim hominum tam grave inolevit disperationis
contagium, ut dum fuerint pro qualibet neglegentia aut disciplinae censura multati aut pro sui purgatione
sceleris sub poenitentiae satisfactione custodia[e] mancipati, incumbente disperationis incommodo se ipsos
malunt [a]ut laquei suspendio enecari aut ferro vel aliis mortiferis casibus interimere (...) “. 53 FRIGHETTO, op. cit., p. 90. 54 Ibid. p. 91 55 Ibid. P. 95.
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É evidente que a vida dos pequenos proprietários que se colocavam sob o patrocínio
de um dominus não era a mais confortável do mundo. Estavam sujeitos a diversas tributações
e lhes eram impostas inúmeras restrições. Entretanto, era uma situação muito mais confortável
do que a daqueles que tentavam resistir às pressões econômicas, sociais e políticas da nobreza
hispano-visigoda. Corroborando a hipótese de que cada vez mais os privati preferiam o
patrocinium de um dominus face à insegurança da posse de sua própriedade privada, há uma
lei decretada por Chindasvinto que proíbe a venda, troca, ou doação da propriedade de um
privati para qualquer indivíduo de outro grupo social56, leia-se illustres. De fato, o erário
régio só tinha a perder com esse processo, haja vista que a aristocracia possuía meios de
negociação mais contundentes e meios de desvio mais eficazes para atenuar a carga tributária
que lhe cabia. Assim, a despeito da tentativa de alguns monarcas, a tendência de afluxo de
encomendação de pequenos proprietários em direção a potentados locais era cada vez mais
forte.
Dessa forma, tem-se, na segunda metade da sétima centúria, um reino em que a
maioria da população goza de poucos direitos políticos. Servos, libertos e encomendados,
apesar de constituírem a parte majoritária da população, são alijados do mundo da política.
Sob o prisma econômico, porém, assumem destacada posição, pois sua força de trabalho é o
elemento primordial na valoração das propriedades rurais. Essas propriedades rurais serão
justamente o eixo das relações de poder entre as três forças políticas do reino visigodo –
monarquia, episcopado e nobreza. Disputas régio-eclesiásticas, régio-nobiliárquicas e intra-
nobiliárquicas têm em vista favorecimentos e prerrogativas relativas à propriedade rural. Vale
ressaltar que, uma vez que tanto o rei quanto os bispos saíam dos quadros nobiliárquicos, os
interesses de um e outro grupo político eram, muitas vezes, convergentes. De fato, a despeito
da heterogeneidade desse universo social, pode-se afirmar que havia um grupo que constituía
a fina flor da sociedade hispano-visigoda – a nobreza fundiária. Desta nobreza dirigente
faziam parte tanto os nobres laicos como os indivíduos pertencentes às mais altas hierarquias
eclesiásticas.57
56 L.V. V, 4, 19. (Chintasuintus Rex) 57 FRIGHETTO, op. cit. p. 66.
19
1.2.2 – A Nobreza
No âmbito nobiliárquico podemos discernir basicamente três tipos de nobres. Tem-se a
nobreza fundiária, a nobreza palatina, e uma nobreza local. As duas primeiras estão muito
imbricadas, haja vista que boa parte da nobreza fundiária estava a serviço do rei.
Dentro dessa nobreza fundiária há um grupo de homens que as fontes tardo-antigas
denominam viri illustri.58 Durante o período baixo imperial, os viri illustri eram a camada
mais elevada da ordem senatorial, detendo amplas concentrações de villae e de fundi. Com a
desagregação política do Império Romano do Ocidente, esses homens emergiram como os
responsáveis pela defesa e segurança das populações rurais menos favorecidas, localizadas
nas proximidades das suas grandes propriedades. Em troca desta segurança, grande parte
destes camponeses via-se obrigada a entregar as suas terras para os illustres, passando a viver
sob a forma de colonos.59 Esta era a base do já aludido regime de patrocinium. Um vasto
patrimônio fundiário é vital nesse sistema, pois o patronus oferecia a concessão de terras para
seu séqüito privado de guerreiros como pagamento pela prestação de serviços militares
prestados. Destarte, o prestígio político de um vir illuster depende de seu patrimônio
fundiário, pois só este lhe permite armar uma vigorosa clientela, capaz de proteger seus
dependentes. O patrimônio fundiário de um illuster geralmente era formado por doações
régias ou inter-nobiliárquicas, embora a nobreza hispano-visigoda costumasse patrimonializar
terras que lhe eram concedidas in stipendium.
Segundo Isidoro de Sevilha, um illuster deveria pertencer a uma nobre família
detentora de um glorioso passado, e ser dotado de sabedoria e virtude.60 Nada mais lógico que
uma pessoa que, em tese, reunisse todas estas características, fosse designada para exercer
funções administrativas para o monarca. O escalão superior dessa aristocracia dirigente eram
os duques, termo que designava os chefes do exército.61 Entretanto, também eram duques os
governadores das seis províncias em que se dividia o Reino Visigodo.62 Já os distritos
visigodos eram administrados pelos iudeces. Por fazerem parte da Aula Régia, os iudeces
58 Conc. Tol. VIII. Tomus. “...vos etiam illustres viros, quos ex officio palatino huic sanctae synodo interesse
mos primaevus obtinuit ac non vilitas exspectablis honoravit et experimentia aequitatis plebeium recotres
exegit”. 59 FRIGHETTO, op. cit., p. 69. 60 Isid. Etym. X, 126. “Inlustris nomen notitiae est, quod clareat multis splendoris generis, vel sapientiae, vel
virtutis, cuius contrarius est obscure natus [Idoneo]”. 61 Isid. Etym.IX, 3, 22. “Dux dictus eo quod sit ductor exercitus”. 62 ORLANDIS, J. op. cit. p. 202. “Parece probable que desde las reformas de Leovigildo cada provincia contase
regularmente con su propio duque”.
20
recebiam também o título de comites – condes.63 Daí que os territórios sob sua administração
serem denominados comitatus. Tanto no caso da nomeação para cargo de duces como na de
comites, percebe-se a importância política dessa nobreza fundiária. Em certos casos, uma
determinada família possuía tal prestígio em determinada região de modo que o cargo de
comes transmitia-se de pai para filho.
Além da nobreza fundiária, havia a nobreza palatina. Essa era constituída por nobres
que possuíam especiais laços de fidelidade com o rei. Estes nobres integravam uma instância
burocrática chamada Ofício Palatino, que se divida em várias seções.64 O administrador de
cada seção também recebia o título de comes. Esses comites, juntamente com o resto da
nobreza civil e com a nobreza eclesiástica formavam o Palatium, ou Aula Régia. Esses
indivíduos constituíam a elite dirigente do reino, gozando de plenos direitos políticos e
prerrogativas jurídicas.
Esses e outros servidores da administração régia eram fideles do monarca, estando, em
maior ou menor medida, a ele vinculados. Entretanto, por terem os pilares de seus poderes em
seus domínios regionais, esses nobres vão buscar um afastamento do poder régio, objetivando
ampliar suas próprias esferas de poder. Ademais, muitas vezes os nobres excederam-se nas
atribuições que lhes foram confiadas, trazendo prejuízo para a população e para o monarca.
De fato, as fontes indicam uma grande arbitrariedade dessa nobreza fundiária em relação aos
seus cargos. No Concílio XIII de Toledo, Ervígio se viu impelido a baixar uma lei que privava
do cargo um nobre que se mostrasse incapaz e negligente em seu ofício.65 É verdade que, por
ter ascendido de forma irregular, as medidas de Ervígio eram brandas em relação à nobreza,
não interferindo no patrimônio da nobreza, apenas em seus cargos. De todo modo, ficam
evidentes as dificuldades ocasionadas pela tendência centrípeta da nobreza visigoda.
Monarcas mais enérgicos, como Chindasvinto e Wamba, tenderam a adotar uma postura
política mais dura, que atenuasse o poder dessa nobreza.
Havia ainda um tipo de nobreza formada, sobretudo, de famílias hispano-romanas que
viviam distantes de Toledo. Por não estarem vinculadas diretamente com algum membro do
officium palatino, ou por estarem associadas a um clã rival ao do monarca reinante no
momento, esse segmento da nobreza fundiária ficava à margem da administração régia. Mas
63 Ibid. p. 204. 64 Sobre as atribuições de cada seção vide ORLANDIS, op. cit.,. p. 200. 65 Conc. XIII Tol. c. 2. “(...) aut servitii sui officio torpentes aut in commissis sibi actibus repperiuntur esse
mordaces vel potius neclegentes, erit principi licitum huiusmodi personas absque aliquo eorum infamio vel rei
propriae damno et servitii mutatione corrigere et in commissos talium alios qui placeant transmutare”.
21
nem por isso deixava de ter pujante prestígio social em suas regiões de estabelecimento.66
Assim como os demais nobres, eram possuidores de amplos domínios e, por conseguinte,
armavam poderosos séqüitos de guerreiros. Esses potentados locais – maiores loci – também
fortaleciam seus poderes forjando laços de fidelidade entre si, ou com nobres mais influentes.
Um traço em comum entre os diversos tipos de nobres era a posse de um vasto
patrimônio, que era, ao fim e ao cabo, o que conferia a um nobre seu poder. Por isso alguns
monarcas, visando diminuir o poder da nobreza, adotaram algumas medidas que tinham como
alvos justamente o patrimônio nobiliárquico. Primeiramente, havia, por parte de alguns
monarcas, uma tentativa de interferir na aquisição de grandes patrimônios através de heranças
e doações inter-nobiliárquicas. Chindasvinto, restringindo a parte do patrimônio que ficara em
livre disposição, tentava evitar volumosas transferências de propriedades entre os nobres, fato
que possibilitava a formação de potências fundiárias ameaçadoras a sua supremacia. Também
proibiu matrimônios entre parentes de até sexto grau, visando ainda obstruir a formação de
grandes patrimônios familiares.67 Égica, visando diminuir a projeção de determinados nobres,
promulgou uma lei proibindo os juramentos entre homens livres68, pois os considerava uma
ruptura com o juramento ao monarca. Sob a mesma alegação de ruptura de juramento de
fidelidade, havia a grande ameaça aos bens da aristocracia – as temíveis, e freqüentes,
confiscações régias.69
Outras medidas também foram tomadas com o intuito de conter o grande poder da
nobreza. Chinsdasvinto e Recesvinto, em meados da sétima centúria, promoveram uma ampla
reestruturação nos quadros administrativos do reino. O que se logrou foi uma espécie de
militarização de cargos, conferindo às autoridades militares atribuições que outrora eram
peculiares a magistrados civis. Os duques, à guisa de exemplo, passaram a ser responsáveis
também pelas atribuições jurídicas e fiscais no âmbito provincial.70 A mesma coisa aconteceu
em cargos de menor magnitude. O thiufadus, por exemplo, que não era mais que um oficial
militar, passou, com a reforma de Chindasvinto, a desempenhar também funções civis. A
mesma coisa aconteceu com os antigos cargos militares de millenarius, quingentenarius e
66 ORLANDIS, op. cit.. p. 170. 67 GARCIA MORENO, op. cit., p. 163. 68 L.V. II, 1, 7. 69 GARCIA MORENO, op. cit., p. 232. 70 À guisa de exemplo, vide a lista de signatários das atas do Conc. Tol. XIII “Wademirus comes scanciarum et
dux (...) Recharedus comes scanciarum et dux (...) Argemirus comes cubiculi et dux (...) Egica comes scanciarum
et dux (...) Suniefredus comes scanciraum et dux”.
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centenarius.71 Evidencia-se, destarte, a tentativa régia de frear o poder dos poderosos domini
locais. Esta medida, entretanto, serviu unicamente para ampliar ainda mais os poderes das
grandes famílias aristocráticas que eram, em verdade, detentoras dos altos cargos
administrativos do reino.72
Em resumo, no que respeita à nobreza, pode-se afirmar que a posse de latifúndios era
condição sine qua non para que um nobre detivesse poder. Trata-se de uma nobreza
heterogênea que confere às relações régio-nobiliárquicas um matiz de complexidade e,
amiúde, ambigüidade. De fato, a concentração cada vez maior de terras nas mãos de uma
poderosa aristocracia permitiu-lhe atuar, ao mesmo tempo, como base de sustentação e como
limite às prerrogativas régias. Trata-se de um complexo jogo político, em que os jogadores
têm como tabuleiro o patrimônio fundiário, e como regra as concessões e confiscações de
terras. Assim, a situação do monarca era delicada, uma vez que ele precisava angariar o apoio
dessa nobreza centrípeta para deter uma mínima base de sustentação ao seu governo. Diante
dessa situação, é natural que o soberano buscasse outras bases de apoio para seu poder, de
modo a não ficar atrelado exclusivamente ao apoio nobiliárquico.
1.2.3 – O Episcopado
Uma vez ruído o edifício político-administrativo do Império Romano do Ocidente
criou-se um vazio de poder que muito rapidamente foi preenchido por outras instâncias. A
nobreza hispano-romana, como vimos, paulatinamente foi tomando para si, em esfera local, as
atribuições militares. Por outro lado, os bispos investiram-se das atribuições político-
administrativas, tornando-se os verdadeiros representantes de suas cidades. Funcionaram
como um elo entre o poder imperial e a monarquia hispano-visigoda. Face as contundentes
instabilidades do poder real nas primeiras décadas da monarquia toledana, os bispos gozaram
de grande independência e liberdade política em suas dioceses. Seu poder e autoridade
71 GARCIA MORENO, L. A. Estudios sobre la organización administrativa del Reino Visigodo de Toledo. Madrid: AHDE, 1974. p. 151 “como prueba final de todo cuanto estamos diciendo, bástenos recordar una ley de
Recesvinto por la que se ordena iudex todo aquel que tenga funciones judiciales, citándose entre estos últimos
al: dux thiuphadus, millenarius, quingentenarius, centenarius, que son todos los oficiales militares que, como
vimos, existían en el ejército visigodo”. A referida lei é a L.V. II, 1, 27. 72 FRIGHETTO, op. cit., p. 75. e GARCIA MORENO, Estudios sobre la organización administrativa..., p. 155. “(...) en el reino de Toledo, dada su estructura prefeudal los grandes puestos administrativos caen en
manos de la nobleza, ante lo cual el poder central nada puede hacer”.
23
descansavam não só em seu prestígio ideológico73, mas também na administração do cada vez
maior patrimônio eclesiástico.74
Com a conversão de Recaredo ao cristianismo niceísta, no Concílio III de Toledo em
589, a Igreja Católica passa a ser a Igreja do Estado. Relação ambígua, em que os dois lados
ganham e perdem alguma coisa. No caso dos bispos, eles têm moderada sua autonomia
política. Em contrapartida, têm reconhecidos, de fato e de direito, muitos de seus privilégios.
No mesmo Concílio III de Toledo, há um cânone que eximia os clérigos e os dependentes da
Igreja de exercer funções em negócios públicos ou privados.75 Esse privilégio é confirmado
no Concílio IV de Toledo76, em que os clérigos conseguem uma isenção fiscal completa.77
Nesse mesmo Concílio IV de Toledo, realizado em 633, tem-se a evidência máxima da
projeção política do episcopado ao longo da sétima centúria. No cânone 75, o episcopado
hipano-visigodo é investido da prerrogativa de, juntamente com a nobreza laica, eleger o novo
monarca.78 Nunca é demais lembrar que os bispos saíam do mesmo quadro da nobreza laica,
de modo que os interesses estão, muitas vezes, inexoravelmente imbricados. O melhor
exemplo disso é o da família de Frutuoso de Braga. Os membros de sua família, em meados
do século VII, eram senhores de cargos administrativos, sedes episcopais, e até mesmo do
trono real, com Sisenando.79
Diante da força política cada vez maior que detinham os bispos, e de suas íntimas
relações com o poder laico, é natural que as indicações de nomes para as sedes episcopais
atendessem critérios políticos. Teoricamente, a Igreja Hispano-Visigoda alinhava-se com a
doutrina do Concílio de Nicéia, afirmando que um bispo deveria ser eleito pelos demais
bispos da província e pelos cidadãos.80 Na prática, havia casos em que a nomeação de bispos
ia desde a simonia e designação direta do antecessor, até a nomeação de pessoas inabilitadas 73 Os bispos usavam ao máximo o aparato ideológico da Igreja para aumentar sua popularidade. O Concílio III de Braga nos dá conta de que alguns bispos, carregados por diáconos, portavam relíquias dos mártires no colo “como se eles mesmos fossem a arca da relíquia”. Conc. III Brac. c. 5 “De damnata praesuntione quorundam
episcoporum qui in festivitatibus martyrum ad ecclesiam procedentes appensis collo reliquiis ab albatis
diaconibus in sellulis vehuntur”. 74 GARCIA MORENO, Historia de España Visigoda. p. 287. 75 Conc. III Tol. c. 21. Ut non liceat iudicibus clericos vel servos ecclesiae in suis angariis occupare “Si qui vero
iudicum aut actorum clericum aut servum clerici vel ecclesiae in plubicis ac privatis negotiis occupare voluerint,
a comunione ecclesiastica cui inpedimentum facit efficatur extraneus”. 76 Conc. IV Tol. c. 47. De absolutione a laboribus vel indictionius clericorum ingenuorum. 77 GARCIA MORENO, Historia de España Visigoda. p. 237. 78 Conc. IV Tol. c. 45. “Sed defuncto in pace principe primates totius gentis cum sacerdotibus successorem regni
concilio conmuni constituant, ut dum unitatis concordia a nobis retinetur, nullum patriae gentisque discindium
per vim atque ambitium oriatur”. 79 GARCIA MORENO, Historia de España Visigoda. p. 347. 80 Conc. IV Tol. c. 19. “(…) Sed nec ille deinceps sacerdos erit, quem nec clerus, nec populus propriae civitatis
elegit, vel auctoritas metropolitani vel provincialium sacerdotum assensio exquisivit”.
24
ao cargo episcopal.81 Estas nomeações muitas vezes eram régias. De fato, dada a importância
política dos bispos, os reis tomaram para si a prerrogativa de nomear os bispos para as sedes
vacantes. Trata-se de um importante atributo do monarca, reconhecido em 599 e legitimado
em 681.82 Ainda no âmbito das relações régio-eclesiásticas, um importante instrumento
político do monarca era a criação de novas sedes episcopais. Uma nova diocese podia
fortalecer ou enfraquecer o poder de uma família local em relação à outra assentada em um
núcleo vizinho.83 A criação de novas dioceses, obviamente, não foi bem aceita entre os
bispos, sendo proibida em 681.84
Diante dessas prerrogativas eclesiásticas, aconteceu no seio da Igreja processo similar
ao que se perpetrava entre a aristocracia – a patrimonialização. Ocorria que os bispos
angariavam para si os bens eclesiásticos que lhes cabia administrar. O Concílio IV de Toledo
já condenava essa prática, afirmando que não sobrava dinheiro para restaurar as basílicas em
ruínas porque a avareza episcopal arrebatava tudo.85 O mesmo concílio revela que alguns
bispos arrebatavam ilicitamente bens de monastérios86, angariando assim bens de outras
esferas que não lhes cabiam. Corroborando esse processo, os bispos também estabeleceram
uma espécie de vínculo de dependência geral desde si até todos os humildes do reino,
obrigando todos os encomendadados de sua igreja a renovar o vínculo de dependência no
momento da consagração de um novo bispo.87 Também fomentaram um patrocínio pessoal
entre eles e os clérigos menores a ele ligados.
Em torno das sedes episcopais havia um grande número de clérigos de distinta
dignidade e importância – subdiáconos, diáconos, arquediáconos, presbíteros, arciprestes. Não
81 Conc. IV Tol. c. 19 “(…) dum alii per ambitum sacerdotia appetunt, alii oblates muneribis pontificatum
adsummunt, nonulli etiam sceleribus inplicati vel seculari militiae dediti indigni ad honorem sumi ac sacri
ordinis pervenerunt (…)”. Conc. VI Tol. c. IV “De damnatione clericorum per pecuniam ecclesiasticos gradus
adsequentium”. Conc. XI Tol. c. IX “Quid custodiri debeat ne per praemium quis episcopus fiat, vel qua
sentential feriatur qui post honorem acceptum per praemium ordinates fuisse detegitur”. Conc. III Brac. c. VII. “Ne promissione munerum honoris gratia venundetur”. 82 Conc. II Barc. c. 3 “(…) nulli deinceps laicorum liceat ad ecclesiasticos ordines praetermissas canonum
prefixa tempora aut per sacra regalia (...) Conc. XII. Tol. c. VI “(...) Unde placuit omnibus pontificibus Spania
et Galliae, ut salvo privilegio uniuscuiusque provinciae licitum maneat deinceps Toletano pontifici
quosquumque regalis potestas elegerit et iamdicti Toletani episcopi iudicium dignos esse probaverit”. 83 GARCIA MORENO, Historia de España Visigoda. p. 345. 84 Conc. XII Tol. c. 4. “Ut in locis ubi episcopus non fuit numquam episcopus ordinetur”. 85 Conc. IV Tol. c. 33 “(...) multi enim fidelium in amore Christi et martyrum in parrochiis episcoporum
basilicas construunt, oblationes conscribunt, sacerdotes haec auferunt atque in usus suos convertunt (...) inde
labentium basilicarum ruinae non reparantur, quia avaritia sacerdotali omnia auferuntur”. 86 Conc. IV Tol. c. 51 “(...) Nuntiatum est praesenti concilio eo quod monachi episcopali imperio servili opere
mancipentur et iura monasteriorum contra instituta canonum inlicita praesumtione usurpentur, ita ut pene ex
cenobio possesio fiat (...)”. 87 GARCIA MORENO, Historia de España Visigoda. p. 254.
25
eram só os bispos, mas toda a ordem clerical que tentava auferir vantagens de seu status
social. Os presbíteros das igrejas rurais, por exemplo, também engendravam laços com seus
auxiliares.88 Assim, no Concílio de Mérida de 666 há um cânone que obriga, por um lado, que
os bispos possuam arcepresbíteros e arquediáconos, mas, por outro, exige destes humildade e
reverência ao seu bispo.89 Uma das funções dos arcepresbíteros e arcediáconos era representar
os bispos nos concílios. Porém, com o passar do tempo, é cada vez menor o número de
arcepresbíteros e arcediáconos que firmam as atas conciliares, ao passo que aumenta o
número de bispos representados por diáconos e presbíteros. Esses dois indícios apontam para
o fato de que cada vez mais os bispos ficavam mais reticentes em ter em sua diocese um
arcepresbítero e um arcediácono, justamente porque estes gozavam de grande poder e criavam
problemas de obediência.90 Do ponto de vista econômico e social, a posição destes clérigos
devia ser bastante invejável.91 Fica evidente, destarte, que patrimonialização de bens e as
isenções da ordem clerical não eram prerrogativas episcopais.
O fato de a ordem clerical gozar de muitos e bons privilégios, levou muitos laicos a
construírem igrejas privada e até mesmo a converterem sua família numa ordem monástica
para tentar burlar os supracitados perigos de apropriação de seus patrimônios por parte da
monarquia. Nesse sentido, o cânone 16 do Concílio de Mérida é duplamente elucidativo.
Trata-se da proibição aos bispos de receberem mais do que um terço das rendas das igrejas
rurais.92 Tal cânone mostra-nos, por um lado, a construção de igrejas rurais como uma
estratégia da nobreza para proteger parte de seus bens dos confiscos régios; e, por outro, a
intervenção patrimonialista do poder episcopal, funcionando de forma análoga à nobreza
laica.
Havia casos de nobres que organizavam mosteiros em seus próprios domicílios,
unindo-se em comunidade com sua família e vizinhos. Faziam um simples juramento de
manter essa situação e de construir uma igreja e louvar um mártir. Essa situação era
totalmente irregular, e a Regra Comum considerava “tais reuniões serem não mosteiros, mas
88 Ibid. p. 254. 89 Conc. Emerit. c. 10 “(…) archipresbyterum, archidiaconum et primiclerium habere debeamus; sanctus quipe
est ordo et a nobis per omnia observandus. Ideoque placuit huic magna[e] synodo, ut quicumque ad officium
hoc pervenerit humilitatem pontific suo et reverantiam praebeat, ne quolibet modo superbiae fastum quilibet ex
his incurrat (…)”. 90 SALOR, Eustaquio Sánchez. Jerarquías eclesiásticas y monacales em época visigótica. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1976. p. 10. 91 GARCIA MORENO, Historia de España Visigoda p. 288. 92 Conc. Emerit. c. 16 “(…) ut nullus provinciae Lusitanae episcopus sentenciae huius terminum excedat, ne a
qualibet parrochitana ecclesia tertiam auferre praesumat; sed quaeque exinde consequi potuerat totum in
reparationem ipsarum baselicarum proficiat”.
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perdição de almas e subversão da Igreja”.93 Essas reuniões não deviam ser muito comuns, mas
mostram bem as vantagens que se auferia em entrar para a Igreja. Primeiramente tem-se a
isenção tributária e a estabilidade do patrimônio eclesiástico. Ademais, o aparato ideológico
da Igreja servia para que o clero se apropriasse de doações e ofertas feitas por fiéis de todas as
condições sociais.94 Entretanto, não se pode preterir a idéia de que o nobre patrono tinha sua
posição valorizada ao mandar erigir uma basílica ou mosteiro.95 De fato, no caso dos
mosteiros, as ofertas tinham por objetivo aproximar o donatário da intercessão divina através
da virtude da vida monástica. Intercessão que era buscada por todo tipo de gente, mas que era
tanto melhor para os monges, quanto mais rico fosse o donatário.
É óbvio que as concessões que o soberano legava ao clero não eram fortuitas. Como
tivemos oportunidade de constatar, os monarcas buscavam na Igreja um lenitivo à excessiva
dependência da nobreza laica. Ficava ao cargo dos bispos erigir uma ideologia que
transformasse o rei num primus super pares. Mais a frente veremos que, em tese, a Igreja
cumpriu seu papel, conferindo ao rei a atribuição de ser um princeps sacratissimus
christianus.
* * *
Fica nítido, assim, que as relações de poder entre as três forças do reino eram bastante
complexas. A aristocracia, ao mesmo tempo em que sustenta o poder régio tenta afastar-se
dele. Para tanto, amiúde, transforma suas terras em patrimônio eclesiástico, amparando-se em
determinadas prerrogativas patrimoniais da Igreja. Esta, em seu turno, tenta barrar os ardis
nobiliárquicos que, graças às igrejas privadas e mosteiros familiares, desviam consideráveis
emolumentos da arrecadação eclesiástica. A Igreja ainda tem o problema da “proto-
feudalização” em seu próprio seio, que faz com que bispos leguem a laicos patrimônios
eclesiásticos. O monarca tem de lidar com um e outro elemento. Deve conquistar o apoio
administrativo e militar da nobreza, e o amparo ideológico da Igreja. O grande problema que
se põe ao monarca é como afagar os ímpetos de uma e outra força sem que suas próprias
93 DÍAZ MARTINEZ, P. C. Formas económicas y sociales en el monacato visigodo. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1987. p. 34. 94 Ibid. p. 47. 95 Ibid. p. 46. “Estas donaciones, que serían en buena medida el sustento de algunos monasterios, tendrían en
suporte ideológico: la búsqueda de la intercesión divina o del apoyo de algún mártir (...)”. FRIGHETTO, op. cit., p. 87-88. Estudando regras monásticas, Frighetto afirma que “Em nosso juízo, existe uma íntima relação
entre o cristão muito fiel’ e o nobre protetor de uma fundação (...)”.
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prerrogativas fiquem seriamente comprometidas. Antes de analisarmos como Wamba e seus
sucessores lidaram com esse problema, faz-se necessário entender qual foi o legado político
que receberam de seus antecessores.
1.3 – Antecedentes Políticos
As disputas internas pelo poder, que sempre foram um estigma da monarquia visigoda,
eram favorecidas pela ausência de um processo de transmissão de poder plenamente
consolidado. A partir de meados da sétima centúria as dissensões ficam mais sevas, e o trono
é disputado por duas grandes facções nobiliárquicas. Uma delas é a de Chindasvinto, um dos
mais notáveis primates da época, que em 642 encabeça uma rebelião contra o poder régio
estabelecido. Este se encontrava fragilizado devido à juventude de Tulga, alçado rei em 639
com a morte de seu pai Chintila. As relações régio-nobiliárquicas se deterioram nesse período,
encontrando certo lenitivo durante o reinado de seu filho, Recesvinto, associado ao trono em
653.
1.3.1 – O Reinado de Chindasvinto
A Crônica Moçárabe do século VIII define bem a forma com que Chindasvinto
procedeu para chegar ao poder – demolindo os godos.96 De fato, após enviar o jovem rei a um
mosteiro, Chindasvinto promove uma grande depuração dos quadros nobiliárquicos hispano-
visigodos. As fontes chegam a estimar que o novo soberano teria eliminado 200 primates e
500 mediocres, dentro da já famigerada tradição do morbo gothico, além de condenar tantos
outros ao exílio acusando-os de traição.97
Chindasvinto contava com 79 anos quando conquistou o trono. A avançada idade não
o impediu de ser um monarca enérgico e atuante. Pelo contrário, sua experiência que contava
inclusive com participação em outras conjuras e intrigas, permitiu-lhe traçar uma vitoriosa
estratégia de articulação política e legitimação de poder. Se for verdade que Chindasvinto
eliminou boa parte da nobreza que lhe era hostil, também é fato que houve uma significativa
96 Chron. 754. XIII ”Chindasvinthus per tyrannidem regnum Gothorum invasum Hiberiae triumphabiliter
principatur, demoliens Gothos, sexque per annos regnat”. 97 Ps. Fred. Chron. LXXXII. “Fertur de primatibus Gotthorum hoc vitio reprimendo ducendos fuisse interfectos:
de mediocribus quingentos interficere jussit. Quoadusque hunc morbum Gotthorum Chintasvindus cognovisset
predomitium noncessavit quos in suspicione habebat gladio trucidare (...)”.
28
parcela da nobreza que apoiou seu alçamento ao trono.98 De outro modo, Chindasvinto não
teria como se sustentar, exclusivamente pela coação, no poder.
Destarte, estamos diante de um soberano que, embora tenha se lançado de forma
ilegítima ao trono, conseguiu legitimar seus poderes. A transmissão de poder foi ilegítima se
tivermos em conta que a monarquia visigoda, em tese, era eletiva.99 Porém, Tulga não fora
eleito, mas associado ao trono por seu pai, Chintila. Ademais, a legitimidade na monarquia
hispano-visigoda fundamenta-se muito mais na pessoa do soberano que nas atribuições da
instituição. Nesse sentido, a perseguição nobiliárquica fez parte da estratégia política de
Chindasvinto para se manter no poder. Seu poder foi legitimado através da aceitabilidade,
voluntária ou forçosa, de sua pessoa no poder.
Assim, Chindasvinto necessitava consolidar sua posição concedendo benefícios
patrimoniais àqueles nobiles que o apoiaram em detrimento de outros que seriam seus
potenciais rivais.100 A devassa nobiliárquica lhe permitiu um e outro ato: eliminou os nobres
que lhe eram hostis sob a justificativa de traição; e privilegiou os que o apoiaram graças ao
patrimônio confiscado daqueles. Portanto, apesar de se ter alçado de forma ilegítima ao trono,
Chindasvinto conseguiu, pela via das purgas, articular uma base de apoio que lhe permitiu
legitimar seu poder.
Angariou o apoio de parte da nobreza, e alijou do poder outra parte. Essa, fazia o que
podia para tentar escapar das sevas perseguições régias. É provável que boa parte da nobreza
tenha entrado para o clero101, ou doado suas terras para a Igreja para depois recebê-las sob o
regime de precarium. Os imbricados vínculos que uniam nobreza laica e eclesiástica
favoreciam esse tipo de atitude. Chindasvinto, atento a esse processo, outorgou uma lei que
colocava bispos e outros clérigos desobedientes sob julgamento de juizes civis.102 Sabe-se que
essa espécie de “foro privilegiado” era uma das prerrogativas mais defendidas pela Igreja, o
que acabou por minar os laços régio-eclesiásticos.
98 ORLANDIS, op. cit., p. 151. “El golpe de Khindasvinto contó con importantes apoyos entre la aristocracia y
otros grupos sociales y no parece que hubiera de vencer grandes resistencias”. 99 Conc. IV Tol. c. 55. “Sed defuncto in pace principe primates totius gentis cum sacerdotibus successorem regni
concilio conmuni constituant, ut dum unitatis concordia a nobis retinetur, nullum patriae gentisque discindium
per vim atque ambitium oriatur”.Depois, no concílios V e VIII de Toledo, volta-se a afazer menção do caráter eletivo da monarquia visigoda. 100 FRIGHETTO, R. Os usurpadores, “maus” soberanos e o conceito de tyrannia nas fontes hipano-visigodas do século VII: o exemplo de Chindavinto. Curitiba: Anais da XIX Reunião da SBPH, 1999. p. 137. 101 Conc. VIII Tol. c. 7 “(…) quosdam enim aut eventu necessitam aut metu priculorum adeptos fuisse novimus
ecclesiasitcarum official dignitatum (...)”. 102 ORLANDIS, op. cit., p. 153.
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De fato, não foi só a nobreza laica que se enfraqueceu durante o reinado de
Chindasvinto. Muitos privilégios eclesiásticos foram revogados. Dessa forma, quando o
monarca convoca um concílio geral em Toledo, no ano de 646103, a presença de apenas 30
firmantes nas atas conciliares, dos quais 11 eram representes de bispos, evidencia a
divergência entre os altos quadros eclesiásticos e o monarca. Bráulio de Zaragoza, a maior
personalidade eclesiástica do momento, não compareceu e nem sequer mandou um
representante.104 Sob o prisma político o primeiro cânone é o mais significativo, pois legará
uma grande controvérsia ideológica. Esse cânone condena sob pena de excomunhão qualquer
clérigo que deserte para outro reino, e proíbe os futuros reis e bispos a mitigar a pena.105 É
possível que o experiente Chindasvinto se recordasse do exemplo de Sisenando que, com a
ajuda dos francos, conquistou o cetro real. Este receio justifica-se na medida em que parte da
nobreza visigoda fora exilada, de modo que não era improvável que alguns nobres
costurassem alianças com os francos para destronar Chindasvinto.
Com tantas animosidades régio-eclesiásticas, é natural que ao morrer Chindasvinto
fosse enquadrado no paradigma de tyrannus em epitáfio redigido por Eugênio II, bispo de
Toledo.106 Contudo, em nenhum momento as fontes coevas hispano-visigodas utilizam o
termo tyrannus para referirem-se a Chindasvinto. É provável que esta atitude estivesse
relacionada com a tentativa de reaproximação de alguns segmentos nobiliárquicos com
Recesvinto, filho do falecido monarca.107 De fato, no epistolário de Bráulio de Zaragoza há
uma carta em que ele, juntamente com o bispo Eutrópio e um nobre local, solicita ao monarca
que associe Recesvinto ao trono.108 Esperava-se que uma transição pacífica evitasse desejos
de vingança e revanchismos por parte da nobreza perseguida. A petição foi acatada e
Recesvinto associado como co-regente no início de 649. Chindasvinto viveu por mais quatro
anos, período em que os problemas políticos não puderam ser resolvidos por seu filho. Com a
morte do nonagenário monarca senior, Recesvinto levou a cabo uma política de
103 FRIGHETTO, R. Os usurpadores..., p. 136. “A sua realização quatro anos após a rebelião pode ser um
indício muito significativo das dificuldades impostas pela nobreza ao poder de Chindasvinto (...)”. 104 Na epístola 24 é possível ver o pessimismo de Bráulio quanto ao futuro do reino. Ademais, contribuíram para a animosidade entre Bráulio e Chindasvinto, o fato de o monarca ter requisitado seu arcediácono, Eugênio, para a sede vacante em Toledo. Cf. Braul. Caesarg. Epyst. 31, 32, 33. 105 Conc. VII Tol. c. 1. De refugiis atque perfidis clericis sive laicis.”(...) anathema fiat et velut praevaricator
catholicae fidei semper apud Dominum réus existatsquiquumque regum deinceps kanonis huius censuram in
quoquumque crediderit vel promiserit violandam”. 106 Eug. II. Tol. Epit. Chintas. “Chintasuinthus ego noxarum semper amicus, patrator scelerum Chindasuinthus
ego. Inpius obcaenus, probosus turpis iniquus, optima nulla volens, péssima cuncta valens quidquid agit quia
prava cupit, qui noxia quaerit, omnia commisi, peius et inde fui (...) em cinis hic redii sceptra qui regia gesii...”. 107 FRIGHETTO, R. Os usurpadores..., p. 137. 108 Braul. Caesarg. Epyst. 37.
30
reaproximação com a nobreza, que fazia fortes pressões para reduzir as represálias que seu pai
lhes tinha imposto.109
1.3.2 –O Reinado de Recesvinto
Nos quatro anos que governam juntos, percebe-se que as relações políticas ficam como
que em compasso de espera, aguardando o termo da existência do monarca senior. Quando
isso ocorre, em 653, Recesvinto prontamente convoca um concílio geral para tratar dos graves
problemas políticos engendrados pelo governo de seu progenitor. Certamente, o maior
problema em pauta era o das perseguições régias sobre os nobres. O agravante é que no
Concílio VII de Toledo, Chindasvinto fizera os bispos aprovarem uma determinação que
impedia traidores e expatriados de voltarem a ter suas antigas posses.110 Recesvinto lembrara
tal fato no tomus régio, de modo que bispos e nobres palatinos haviam sido obrigados a jurar
uma lei que não os permitia perdoar jamais aqueles que tivessem atentado contra a vida do rei
ou maquinado contra o povo e a pátria.111 Dessa forma, tendo em vista que para a mentalidade
da época um juramento era coisa das mais importantes, estabeleceu-se uma longa deliberação
sobre a possibilidade ou não de se conceder uma grande anistia à nobreza hispano-visigoda. O
cânone segundo, alegando que todos juraram as determinações de Chindasvinto mais por
medo do que por própria deliberação112, permitiu a Recesvinto mitigar as punições, usando
como justificativa inúmeros exemplos bíblicos de piedade e generosidade.
Tentando recuperar parte do patrimônio nobiliárquico que havia sido confiscado, os
bispos promulgaram um decreto que separava os bens pessoais do monarca dos bens
pertencentes à Coroa. Assim, eles pretendiam que os bens confiscados por Chindasvinto
109 GARCIA MORENO, L. A. Historia de España Visigoda. p. 165-167. 110 Conc. VII Tol. c. 1. De refugiis atque perfidis clericis sive laicis.”(...) anathema fiat et velut praevaricator
catholicae fidei semper apud Dominum reus existat squiquumque regum deinceps kanonis huius censuram in
quoquumque crediderit vel promiserit violandam”. 111 Conc. VIII Tol. Tomus “Itaque revolutis retro temporibus ita vos omneque populum iurasse recolimus, ut
cuiusquumque ordinis vel honoris persona in necem regiam excidiumque Gothorum gentis ac patriae detecta
fuisset vel cogitasse noxia detecta fuisset vel cogitasse noxia vel egisse, inrevocabilis sententiae multatus
atrocitate nusquam mererentur veniae remedium vel alicuius temperantiae perciperet qualequumque subsidium (...)”. Ao que tudo indica, além do cânone primeiro do Concílio VII de Toledo, também houve um juramento à L.V., II, 1, 6. 112 Conc. VIII Tol. c. 2 “(…) tamen pietatis intuitu et parcendi viam pandimus et misericordiam prorogamus;
huius sane promissionis incautae crudam cruentamque temperare sententiam illa qua maxime conpellimur
causa, quod haec duo mala licet sint omnio caustime praecavenda, tamen se periculi necessitas ex his unum
temperare contulerit, id debemus resolvere quod minori nexu obligare”.
31
entrassem para o erário régio, o que facilitaria uma futura devolução aos nobres.113
Recesvinto, porém estendeu a medida retroativamente até o reinado de Suintila.114 Assim,
tentava fortalecer o patrimônio da Coroa, que estava sob sua responsabilidade.
Essa estratégia de Recesvinto mostra um monarca mais aberto ao diálogo, porém,
extremamente perspicaz aos acontecimentos políticos. Num primeiro momento, as agitações
políticas eram mais intensas. De fato, pouco antes de assumir como monarca único,
Recesvinto teve que debelar uma revolta comandada por um nobre de nome Froia. Ao que
tudo indica, possuía apoio dos vascos nas regiões setentrionais.115 Em 666, temos indícios de
uma nova campanha militar de Recesvinto, provavelmente contra os vascos novamente.116
Além de melhorar as relações régio-nobiliárquicas e régio-eclesiásticas, outro feito
importante de Recesvinto foi a publicação do Liber Iudiciorum em 654. Trata-se de uma
monumental recompilação da legislação visigoda. Publicado em 12 livros e 526 capítulos,
contava com 317 leis antigas, ou emendadas, e as demais haviam sido redigidas por
Chindasvinto e Recesvinto. Os monarcas que os sucederam, poucas modificações fizeram no
Liber, de modo que ele se torna a última grande compilação jurídica do Reino Visigodo.
Recesvinto morre em sua propriedade de campo em Gérticos, em setembro de 672.
* * *
113 Conc. VIII Tol. Item Decretum iudicii universalis editum in nomine principis. “Adeo cum omni palatino
officio simulque cum maiorum minorumque conventu nos omnes tam pontífices quam etiam sacerdotes et
universi sacris ordinibus famulantes concordi definitione decernimus et obtamus, ut omnis conquistionibus
profligatio in omnium rerum viventium ac non viventium, inmobilium quoque et moveri valentium corpore vel
specie, forma vel genere, quae a gloriosae memoriae Chindasvinto rege a die quod in regno dinoscitur
conscendisse reppertus, quodlibet mobet extiterit augmentasse, omnia in serenissimi atque clementissimi domini
nostri Recesvincit principis perenni transeant potestatem et perpetuo deputentur in iure, non habenda parentali
successione, sed possienda regali congressione(...)”. Pouco depois, o decreto manifestava a intenção de Recesvinto em devolver alguns dos bens confiscados: “(...) ut quia grata voluntas gloriosi domni nostri
Reccesvincti Regis reddere decernit unicuique iustissime debita, nemo invasionis calumniam moveat aut damna
requirat, propter quod gloriosae memoriae genitorem eius quaedam indebite abstulisse constiterat”. 114 Conc. VIII Tol. Lex edita in eodem concilio a Recesvinto príncipe namque glorioso: “(...) De rebus autem
omnibus a tempore Suintilani Regis hucusque a principibus adquisitis aut deinceps si provenerit adquirendis
quaequumque forsitan princeps inordinata sive reliquit seu reliquerit, quoniam pro regni apice probantur
adquisitafuisse, ad successorem tantundem regni decernimus pertinere,ita habita potestate ut quidquid ex his
elegerit facere (...)”. 115 Ver continuatio hispania e o concílio dos pobres ajudando os usurpadores. 116 Conc. Emerit. Tomus. “(...) deinde serenissimo atque clementissimo principi nostro et domino gratiarum
actiones impendimus regi Recesvinto, optantes divinam misericordiam, ut qui ei tribuit regni potestatem
concedat et vitae felicitatem cum pacis quiete sicque eum de suis hostibus redat victorem, ut suorum inimicorum
colla ditioni eius subdat gratia sua favente (...)”. No mesmo concílio o terceiro cânone prega “Quid sit
observandum tempore quo rex in exercitu progreditur pro Regis gentis aut patriae statu atque salute”.
32
Conforme avança o reinado de Recesvinto, rareiam as fontes sobre seu governo. Após
o Concílio de Mérida, em 666, somente com Wamba em 675 os bispos voltarão a se reunir.
Ao que tudo indica, após ter levado a cabo a política de re-aproximação com a nobreza e
debelado alguns focos de resistência, Recesvinto teve um reinado sem maiores perturbações.
Descentralizou os poderes monárquicos, altamente concentrados durante o governo de seu
pai.117 Assim, após Chindasvinto ter “demolido os godos”, com Recesvinto a Hispania
descansou.118 Em seus últimos anos de reinado, Recesvinto se eclipsou do protagonismo
político, favorecendo a instalação de uma confusão babilônica no plano político.119 É nesse
difuso contexto político que se dá a ascensão de Wamba, e que se inaugura o período mais
conturbado do Reino Visigodo. As disputas entre os clãs pela coroa aumentam, o que obriga
os monarcas a disporem de todos os seus meios para se alçarem e se sustentarem no poder.
117 Conc. VIII Tol. Tomus “(...) Vos etiam inlustres viros, quos ex officio palatino huic sanctae synodo interesse
mos primaevus obtinuit ac non vilitas exspectabilis honoravit et experientia aequitatis plebium rectores exegit,
quos in regimine socios (...) In comune iam vobis cunctis et ex divino ministries idoneis et ex aula regia
rectoribus decenter electis, divini nominis adiuratione constrictis, adicio consensionis mae verum purumque
promissum, ut quodquumque iustitiae aut pietati salutarique discretionis vicinum decernere seu adimplere cum
nostro consensus elegeritis, omnia favente Deo perficiam et adversus omnimodam controversiarum querellam
principali auctoritate muniam ac defendam”. GARCIA MORENO, L. A. Historia de España Visigoda. p. 169. “También es posible que la situación sociopolítica del Estado se deteriorase en un sentido muy desfavorable al
poder central”. 118 Chron. Alb. XIV, 29. “(...) Huius tempore quieuit Spania (...)”. 119 Conc. XI Tol. Tomus “(...) Cernebamus enim quomodo babilonicae confusionis olla succensa nunc tempora
conciliorum avertet (...)”.
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2. – TRAJETÓRIAS POLÍTICAS DOS ÚLTIMOS MONARCAS HISPANO-
VISIGODOS
2. 1 – Wamba
Pouco se sabe da história deste rei antes de sua ascensão ao trono. O Concílio X de
Toledo menciona o inlustrem virum Ubanbanem, quando põe em pauta a questão do
testamento de um bispo da igreja de Dumio.120 Provavelmente trata-se do futuro rei Wamba,
que então exercia a função de conde do patrimônio. Esta hipótese sustenta-se ao cruzarmos as
informações contidas na Historia Wambae, de Juliano de Toledo. Segundo este autor Wamba
fora eleito rei no mesmo dia e lugar em que seu predecessor Recesvinto havia morrido – em
1º de setembro de 672 – na villa de Gérticos. O fato de se encontrar junto ao rei quando de
sua morte, é um indício de que Wamba ocupava uma posição de destaque na Aula Régia,
como a de conde, por exemplo. Ademais, Juliano de Toledo afirma que Wamba se recusava
em aceitar o trono alegando ter uma idade já avançada. Tendo em vista que o Concílio X de
Toledo, em que Wamba já era conde do patrimônio, fora celebrado em 656, o novo soberano
deveria ter cerca de quarenta anos.
2.1.1 – A ascensão de Wamba
A forma que Wamba ascendeu à monarquia toledana seguiu à risca as determinações
de Isidoro de Sevilha no Concílio IV de Toledo que pregava que “morto pacificamente um
rei, a nobreza de todo o povo, juntamente com os bispos, designarão de comum acordo o
sucessor do reino”.121 Embora fosse recorrente uma eleição para legitimar um soberano que já
havia alcançado o poder, a eleição em si mesma como forma de sucessão, era algo raro na
monarquia hispano-visigoda. Como Recesvinto já havia serenado os ânimos da aristocracia, e
não havia indicado um sucessor, tendemos a concordar com Garcia Moreno, que afirmou ser
Wamba uma solução política de compromisso para os altos dignitários palatinos, justamente
por causa de sua já avançada idade.122 A confiarmos no relato de Juliano de Toledo, a idade
avançada de Wamba foi exatamente um dos argumentos que ele usou para declinar do cargo
120 Conc. X Tol.. Tomus:“(...) ad nos in conventu sancti concilii ex directo gloriosi domini nostri Recesuincti
Regis per inlustrem virum Ubanbanen testamentum gloriosae memoriae sancti Martini ecclesiae Bracarensis
episcopi, qui et Dumiense monasterium visus est constyruxisse (...)”. 121 Conc. IV Tol. c. 75. 122 GARCIA MORENO, Historia de España Visigoda. p. 171.
34
que lhe era ofertado. Diante do impasse, um alto dignatário resolveu a questão de maneira
simples e ríspida. Ofertou a Wamba duas possibilidades – ou aceitava a decisão da nobreza
visigoda e tomava para si a coroa de rei, ou seria cortado pelo fio de sua espada.123 Perante
tais argumentos Wamba não titubeou em aceitar a função que se lhe ofertava. Essa anedota,
porém, mostra uma importante virtude cristã, a humildade, apanágio do bom soberano.
Seguindo o simbolismo católico da legitimidade de poder monárquico, Wamba foi a
urbs regia para a sagrada unção, bem como para receber os votos de fidelidade daqueles
nobres que não se encontravam em Gérticos quando da sua eleição. Embora Isidoro de
Sevilha já apontasse a unção como um poderoso símbolo de legitimação no primeiro terço do
século VII, Wamba foi o primeiro rei ungido que se tem notícia no Ocidente Tardo-Antigo.
Juliano de Toledo nos descreve detalhadamente essa cerimônia:
E quando chegou onde receberia bandeira da santa unção, na igreja pretoriana, a saber dos santos Pedro e Paulo, já famoso pelo culto régio ficando diante do altar divino, devolveu a fidelidade inerente do povo. Então com os joelhos curvados, pelas mãos do sagrado pontífice Quirico foi derramado o óleo em sua cabeça e a abundância da bendição se exibiu, quando imediatamente apareceu esse sinal de saúde. Pois logo dessa mesma cabeça, onde o próprio óleo foi derramado, um certo vapor de fumaça de modo similar a uma coluna ergue-se na cabeça, e do mesmo lugar da cabeça viu-se uma abelha voar para fora, o que mostrava sinais aparentes daquela felicidade que se seguiria.124
A presença da abelha é uma metáfora importante, denotando de forma apropriada a
linha política empregada por Wamba para legitimar suas atitudes. De acordo com Isidoro de
Sevilha em suas Etimologias, “abelhas possuem reis e exércitos”.125 Assim, além da liturgia
católica, a legitimidade de Wamba também se assenta nas armas. Por um lado a vontade
divina, a unção sacerdotal e o amor do povo convergiam na eleição de Wamba.126 Por outro, o
novo soberano logo descobriria, se ainda não soubesse, a importância do uso de armas para a
legitimidade do poder.
123 Iul. Tol. Hist. Wamb. 2. “Cui acriter reluctanti unus ex officio ducum, quase uicem omnius acturus, audacter
in medio minaci contra eum uultu prospiciens dixit:‘ Nisi consensurum te nobis modo promittas, gladii modo
mucrone truncandum te scias. Nec dehinc tamdiu exhibimus, quamdiu aut expeditio nostra te regem accipiat aut
contradictorem cruentus hic hodie casus mortis obsorbeat’.”. 124 Iul. Tol. Hist. Wamb. 4 125 Isid. Hisp. Etym. XII, 8,1. 126 Iul. Tol. Hist. Wamb. 2. “Adfuit enim in diebus nostris clarissimus Wamba princeps, quem digne principari
Dominus uoluit, quem sacerdotalis unctio declarauit, quem totius gentis et patriae communio elegit, quem
populorum amabilitas exquisiuit, qui ante regni fastigium multorum reuelationibus celeberrime praedicitur
regnaturus”.
35
2.1.2 – A Rebelião do Duque Paulo
Após todos os atos de legitimação possíveis, Wamba sentia-se seguro em relação a sua
estabilidade na instituição monárquica. De fato, com uma aparente ordem interna, na
primavera de 673, o soberano saiu para uma das habituais campanhas de castigo do exército
visigodo contra os vascos, na fronteira da Cantabria.127 Porém, quando apenas começava o
curso dessa campanha, chegou a Wamba a notícia de que, na Septimania, se havia deflagrado
um levante contra ele. Essa província – também chamada de Gália Narbonense – era uma
região problemática devido a sua localização periférica. Juliano de Toledo, em sua Historia
Wambae, não poupa esforços para insultar “a vil província da Gália”,128 onde aparentemente
havia uma grande concentração de judeus, que se constituíam em um óbice à unificação
religiosa do Reino.
Liderada por Ilderico, a sedição contou com a participação de notáveis figuras
eclesiásticas, como o bispo Gumildo de Maguelon e o abade Ranimiro, promovido a sede
episcopal de Nimes no lugar do bispo Aregio, fiel à Toledo. Contando com o apoio bélico
merovíngio, os rebeldes lograram facilmente controlar desde as terras mais orientais da
Septimania até as margens de Hérault.129
Wamba, diante da gravidade das notícias que lhe eram reveladas, decide enviar um
exército incontinenti. Para conduzir a expedição visigoda destinada a sufocar a revolta,
Wamba escolhera o duque Paulo.130 Não se sabe ao certo se essa obscura personalidade era
dux exercitus ou dux provinciae da Gália Narbonense. É possível que Paulo tenha sido
nomeado dux provinciae exatamente para extinguir a revolta. Na primeira oportunidade que
lhe apareceu, ocupando com seu exército a capital da Septimania, Narbona, o duque se
declarou abertamente em franca rebeldia a Wamba. Os antigos rebeldes que Paulo deveria
subjugar eram agora seus aliados. Para piorar a situação, o duque Ranosindo da Tarraconense
se aliou aos rebeldes, fazendo com que todo o nordeste peninsular caísse nas mãos dos
sediciosos.
127 ORLANDIS, op. cit., p. 237. 128 Iul. Tol. Hist. Wamb. 5. “Quid enim non in illa (Gália) crudele uel lubricum, ubi coniuratorum
conciliabulum, perfidiae signum, obscenitas operum, fraus negotiorum, uenale iudicium et, quod peius his
omnibus est, contra ipsum saluatorem nostrum et dominum Iudaeorum blasfemantium prostibulum habebatur?”. 129 GARCIA MORENO, Historia de España Visigoda. p. 171. 130 Iul. Tol. Hist. Wamb. 7. “Fama haec cucurrit ad principem, moxque ad extinguendum seditiosorum nomen
exercitum per manum Pauli ducis in Gallias destinatur”.
36
Não reconhecendo a autoridade de Wamba, Paulo sugere uma assembléia entre os
rebeldes para a escolha do novo rei. A escolha recaiu, naturalmente, sobre o próprio duque
que, após ser aclamado, é ungido e coroado com a coroa que o “cristianíssimo” príncipe
Recaredo havia ofertado à Basílica de São Félix.131 Paulo, embora ascendendo tiranicamente
ao poder, zelava por todos os atos formais de legitimação e sacralização. Escrevia a Wamba
na qualidade de unctus rex, se proclamando senhor da Cartaginense e Narbonense.132
Ademais, Paulo despojara as igrejas da região de seus tesouros eclesiásticos para constituir
um erário e buscava apoio entre os inimigos clássicos dos visigodos – francos e vascos.
Talvez Paulo quisesse com tais alianças tentar se assenhorear de todo o Reino, mas, num
primeiro momento, é provável que ele estivesse mais preocupado em garantir a posse dos
territórios dos quais bradava ser rei.
Wamba, porém, não aceitava sequer o fato de ter perdido as duas províncias
setentrionais, e se apressava em providenciar uma grande expedição contra os sediciosos.
Após uma guerra relâmpago de sete dias, o soberano arrancou dos vascos um pedido de paz
que concede mediante pagamento de tributos. Depois, ignorando os prudentes conselhos de
retornar com o exército visigodo às suas bases para se abastecer de provisões e reforços para a
campanha contra duque Paulo, o enfurecido rei ordena que se marche rumo a Narbonense.
Dividindo seu exército em três frentes, Wamba reconquista de forma rápida e
surpreendente a maior parte dos territórios que Paulo avocava para si. A maior resistência em
direção à Gália encontrou a coluna visigoda que marchava nos desfiladeiros do setor central,
conhecido como “caminho de Perthus”. Nessa região se encontrava um intrincado sistema de
fortificações que os rebeldes acreditavam ser inexpugnável – os castri clausurae. Os
principais chefes rebeldes, que não queriam enfrentar o exército de Wamba em campo aberto,
se encontravam nessa região, tentado cerrar o caminho do exército real até o coração da Gália.
Após a tomada das fortalezas das Clausuras, ultrapassando-se a linha defensiva pirinaica, o
exército real só encontrou grande resistência na capital da Gália, Narbona, que é tomada após
um ataque naval e terrestre.
Após quase seis meses de irretocável campanha só restara a Wamba a conquista de
Nimes, onde Paulo e seus cúmplices que ainda não haviam sido capturados refugiavam-se.
131 Iul Tol. Hist. Wamb. 26. “Vnde factum est, ut uasa argenti quam plurima de thesauris dominicis rapta et
coronam illam auream, quam diuae memoriae Reccaredus princeps ad corpus beatissimi Felicis obtulerat, quam
idem paulus insano capiti suo imponere ausus est, tota haec in unum collecta studiosiu ordinaret secernere et
deuotissime, prout cuique competebat ecclesiae, intenderet reformare”. 132 Iul. Tol. Hist. Wamb. Epist. “In nomine Domini Flauius Paulus unctus rex orientalis Wambani regi austro”.
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Encontrando ferrenha resistência por parte dos defensores, que contavam com tropas francas,
o exército real teve alguma dificuldade para entrar na cidade. Refugiado na célebre arena
romana de Nimes – que possuía fortes muros – Paulo perde sua autoridade e a confusão
impera pelas ruas da cidade. Perdida a última gota de esperança os rebeldes finalmente se
rendem na manhã seguinte. O metropolitano da Gália, Argebado, atua como mediador e
obtém de Wamba a promessa de poupar a vida dos rebeldes. Trato firmado, dois duques a
cavalo jogavam Paulo aos pés de Wamba. A campanha terminara. Afastado um possível
ataque do duque franco Lupus, Wamba colocou muitos prisioneiros em liberdade e tratou
dignamente aos que continuaram cativos. Juliano de Toledo mostra aí outra virtude de um
príncipe cristão – a piedade.
Adite-se a essa, a virtude da justiça, pois três dias após da rendição, celebrou-se em
Nimes um julgamento público dos insurrectos. Paulo e mais cinqüenta e dois amotinados
foram réus numa assembléia assaz pomposa, na qual estavam presentes boa parte da nobreza
de armas visigoda. De acordo com a legislação visigoda, os réus, declarados culpados de alta
traição ao rei e à pátria, deveriam ser excomungados e mortos, embora pudesse o rei mitigar a
pena capital por cegueira ou outro suplício que lhe aprouvesse. Wamba, fiel à promessa feita
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ao metropolitano Argebado poupa a vida dos rebeldes. Regressando a Toledo depois de quase
meio ano que a deixara, o Rei entra em triunfo na capital, tal como os imperadores romanos.
Assim pois, a quase uma quarto de milha da cidade régia, Paulo, príncipe da tirania, e os restantes seguidores de suas sedições, com as cabeças decalvadas, com as barbas raspadas e os pés desnudos, maltrapilhos ou vestidos de hábito, são postos em carruagens de camelos. O próprio rei da perdição precedia na frente, digno de toda desonrosa confusão e coroado com negro laurel de coris. Seguia então a esse rei em uma larga disposição, a ordem de seus ministros, todos sentados nas mesmas carruagens que foram relatadas e submetidos às mesmas burlas, entrando na cidade daqui para lá, diante da presença do povo. 133
Segundo as informações de Juliano de Toledo, pode-se deduzir que o reinado de
Wamba estava fundamentado tanto nas virtudes cristãs como na força do exército. Porém,
quando este elemento prevalecer sobre aquele, as tensões régio-nobiliárquicas acentuar-se-ão.
2.1.3 –As leis militares de Wamba
Wamba, convencido pelos argumentos empíricos que a rebelião de Paulo lhe legara,
decretou duas leis visando um fortalecimento de seu aparato bélico. Promulgada nas calendas
de novembro de 673, elas denotam, por um lado, o perigo iminente das insurreições de
poderosos senhores locais, e, por outro, um possível preterimento dos deveres militares
nobiliárquicos. A partir desse momento, a relação entre o monarca e a nobreza laica e
eclesiástica se deterioraria significativamente.134 Esse recrudescimento não seria de todo
fortuito. Em sua lei L. V. IX, 2, 8 Wamba obrigava a todos os nobres – até mesmo os bispos –
a acudir o reino com todo valor e habilidade em caso de ataque estrangeiro ou rebelião
militar.135 O não cumprimento da lei seria considerado doravante um ato de infidelidade à
figura régia, passível de penas como prisão, exílio e perda de títulos e bens do dominus infiel.
Os clérigos, como quaisquer outros nobre, eram obrigados a conduzir seus séqüitos até
o campo de batalha em caso de necessidade. Mas, amparados no cânone XLV do Concílio IV
de Toledo136, escusavam-se de lutar a frente deles. Obviamente, não era a participação do
133 Iul. Tol. Hist. Wamb. 30. 134 FRIGHETTO, R. Usurpação, Tyrania e a dominação na Hispania Visigoda de finais do século VII: O exemplo de Wamba (672-680). Boletim do CPA ano V, nº 10. Pp. 39-56. Campinas: Gráfica do IFCH, 2000. p. 52. 135 L.V. IX, 2, 8 (Flavius Gloriosus Ubamba Rex): Quid debeat observari, si scandalum infra fines Hispaniae exsurrexerit: “ (...)si episcopus vel quilibet fuerit dignitatis, aut fortasse ex officio palatino, in quocumque ordine
sit constitutus, vel cuiuslibet persona fuerit dignitatis, aut fortasse inferior huius infidelitatis implicatus scelere,
non solum exsilio regletur, sed de eorum facultatibus quidquid censura legalis exinde facere vel iudicare
voluerit, arbitrio illius et potestati per omnia subiacebit (...)”. 136 Conc. IV Tol. c. 45: De clericis qui arma sumpserint: “ Clerici qui in quaquumque seditione arma volentes
sumserint aut sumserunt, reperti amisso ordinis sui gradu in monasterio poenitentiae contradantur”.
39
clero na batalha que se almejava. O que está em jogo são os poderosos séqüitos que tanto a
nobreza laica como eclesiástica possuíam.137 Ou seja, o clérigo conduz suas “tropas” até o
local de litígio e as encomenda a algum nobre laico.
O Rei provavelmente também queria evitar, com essa lei, que a entrada na clerezia
pudesse ser um subterfúgio para àqueles que queriam se escusar da obrigação militar.
Contudo, os bispos, figuras de resplandecente projeção social, se viam de repente obrigados a
deixar seus ofícios eclesiásticos para ir até um campo de batalha. Não só os eclesiásticos
corriam riscos de integridade como também toda sua clientela, que era patrimônio da Igreja.
Essa tentativa de centralização monárquica, após um período de relativa autonomia da
nobreza com Recesvinto, ia de encontro aos anseios da nobreza laico-eclesiástica. Fica
evidente que a nobreza, em especial a eclesiástica, não morria de amores por Wamba. 138
2.1.4 – Atritos régio-eclesiásticos
A tensão régio-eclesiástica verificada após a promulgação das leis militares encontrou
um suave lenitivo na convocação de um concílio eclesiástico em Toledo. Celebrado em 675,
reuniu sobretudo os bispos da Cartaginense. A presença de apenas 17 bispos – em
comparação aos 63 do III e 61 do XV Concílio de Toledo – pode denotar a indisposição do
episcopado hispano-visigodo em relação a Wamba. É possível, também, que se trate de um
sínodo regional, tal como o Concílio III de Braga, celebrado no mesmo ano. Em ambos os
sínodos, a maioria dos cânones versava sobre a indisciplina e abusos de comportamento do
clero, o que sustenta a hipótese de quer eram concílios locais, sem conotações políticas mais
amplas. Porém, como o metropolitano Quirico afirma que se passaram dezoito anos sem a
realização desses encontros,139 o mais provável é que Wamba tenha ordenado a reunião de um
sínodo geral, mas que os atritos régio-eclesiásticos tenham persuadido a maioria dos bispos a
não comparecer ao encontro.
137 De acordo com a versão de Scott da L.V. IX, 2,9. “Therefore, we hereby decree, that whenever anyone,
whether he be general, count, or gardingus, Goth, or Roman, freeman or manumitted slave, or any serf attached
to the service of the Crown, joins the army, he shall bring the tenth of his slaves with him; and in order that said
slaves may not come unarmed (…).” 138 É o caso de Valério do Bierzo. Por causa das leis militares Wamba teria perseguido a illustre família berciana de Ricimer. FRIGHETTO, R. em O soberano ideal na obra de Valério do Bierzo. Gerión, n.º 16, 1998. Servicio de Publicaciones, Universidad Complutense. Madrid. mostra como Valério confere a Wamba o protótipo do antígone do soberano ideal. 139 Conc. XI. Tol. Tomus. “(...) ut qui decursis longe temporibus ante post decem et octo scilicet labentium
annorum excursum in unum meruimus adregari conventum (...)”.
40
Agravando esse clima de tensão, Wamba tentou criar novas sedes episcopais que,
como visto anteriormente, eram um instrumento político para fortalecer ou enfraquecer os
poderes de determinada família.140 Assim, o Concílio XI de Toledo, celebrado no reinado de
seu sucessor, nos revela que Wamba criara um novo bispado, em Chaves, para seu protegido
Cuniuldo, tentando aproveitar os emolumentos do culto local do mártir Pimenio, o que não
agradou aos bispos da Lusitânia.141 Os bispos, afirmando que se tratou de um “ato injusto” de
Wamba, que “obrou como leviandade”, decretam a revogação desse bispado, bem como a
proibição de que se repitam esses “abusos tão insolentes e escandalosos”. Tal fato aumentou
as fricções entre a nobreza eclesiástica e o monarca, iniciadas com a publicação das leis
militares, aumentavam cada vez mais, engendrando um clima de hostilidade. Assim que
surgisse uma oportunidade, os bispos não hesitariam em destituí-lo do poder.
2.1.5 – A conspiração contra Wamba
Quando a sétima centúria entrava em sua oitava década, Wamba já deveria ser um rei
idoso e de saúde frágil. Nas primeiras horas da noite de 14 de outubro de 680 os magnatas
palacianos se depararam com o monarca privado de seus sentidos, num estado que
acreditavam ser de transe de morte. Incontinenti demandaram ao agora bispo de Toledo,
Juliano, que submetesse o rei à penitência pública. Esse ato era muito freqüente entre os fiéis
cristãos que desejavam morrer piedosamente e, obviamente, chegar mais rápido ao reino dos
céus.
Juliano seguiu à risca o cerimonial do Ordo Poenitentiae que recomendava o Liber
Ordinum da Igreja Visigoda. Tonsurou o monarca aparentemente enfermo de morte, o cobriu
com um cilício e sobre seu corpo traçou com cinzas uma cruz, enquanto exortava a
considerarem-no velut mortuus huic mundo – como morto para este mundo.142 Toda a
cerimônia transcorria conforme mandava o figurino quando eis que, para surpresa de todos, o
rei não só despertava de seu leito fúnebre como recobrava plenamente os sentidos. Todavia,
140 Conc. XII Tol. c. 4. “(...) sed etiam ita eum consuetus obstinationibus definisset, ut hic in suburbio Toletano
in ecclesia pretoriensi sanctorum Petri et Pauli episcopum ordinaret, necnon et in aliis vicis vel villilis similiter
faceret (...)”. 141 Conc. XII Tol. c. 4. “(...) Dixit (Estevão de Mérida) enim violentia principali se inpulsum fuisse, ut in
monaterio villulae Aquis, ubi veneralibile corpus sanctissimi Pimenii confessoris debito quiescit honore, novam
episcopalis honoris ordinationem efficeret.”. 142 ORLANDIS, J. Historia de España: Época Visigoda. p. 247.
41
Wamba perdera a majestade. A parte da nobreza que não lhe era favorável não tardou em
recorrer ao cânone 55 Concílio IV de Toledo para impedir seu regresso ao trono régio. Tal
cânone rezava que qualquer dentre os seculares que tivesse recebido a penitência da tonsura e
quisesse voltar à vida secular seria condenado diante da Igreja como verdadeiro apóstata,
sofrendo a pena de anátema.143
O conveniente ato da tonsura que destituíra Wamba do poder régio nos leva a refletir
sobre a estranha doença que acometera o monarca. Voltando-se os olhos para a Crônica de
Alfonso III – versão Rotense, redigida no século IX – obtém-se uma descrição bastante
elucidativa dos fatos, a se confiar nessa fonte.144 O cronista fala que Wamba foi vítima de um
complô palaciano, encabeçado pelo conde Ervígio, que misturou na bebida do rei uma poção
à base de spartus,145 levando-o a um profundo estado de dormência e aparente transe de
morte:
O já referido Ervígio como havia sido criado no palácio desde sua infância, e se viu enaltecido com o título de conde, concebendo insolentes e habilidosos desígnios contra o rei misturou na bebida uma erva cujo nome é esparto, e imediatamente o rei se viu privado dos sentidos. E quando o bispo da cidade e os notáveis do palácio, que eram leais ao rei, aos quais era totalmente desconhecido o assunto da poção, viram o rei desprovido dos sentidos, comovidos pela piedade, e com a intenção de que o rei não se fosse sem os sacramentos, lhe deram imediatamente o sacramento da confissão e da penitência. E quando o rei se recuperou da poção, soube que se lhe havia imposto o sacramento, se dirigiu a um monastério e ali viveu na religião por todo o tempo que viveu.146
Permanece a dúvida se Juliano de Toledo fazia parte ou não dessa conjura que
destituíra Wamba do poder. As constantes intromissões de Wamba em assuntos que os bispos
consideravam exclusivamente seus apontam para uma provável participação de clérigos no
complô. Irrefutável é a participação do conde Ervígio, proclamado rei no dia seguinte e
ungido uma semana depois, no domingo 21 de outubro de 680. Confinado em um retiro
monástico até o fim de seus dias, algo em torno do segundo lustro da década de 680, Wamba
certamente levaria consigo um grande ressentimento contra Ervígio, um de seus fideles regis.
O rei destituído era um nobre prestigiado e influente, cabeça de um poderoso clã que,
doravante, não mediria esforços para retornar ao cerne do poder do qual havia sido alijado.
143 Conc. IV Tol. c. 55. De poenitentibus viris ac viduis sive virginibus: “Quiquumque secularibus accipientes
poenitentiam totonderunt, et rursus praevaricantes laici effecti sunt, comprehensi ab episcopo suo ad
poenitentiam ex qua recesserant revocentur; quod si aliqui per poenitentiam inrevocabiles sunt nec admoniti
revertunur, vere ut apostatae coram ecclesia anathematis sentential condemnentur”. 144 Quem faz uma análise assaz pertinente dessa fonte é Frighetto em Usurpação, tyrania e a dominação na Hispania Visigoda de século VII... 145 Isid. Etym. XVII, 9, 103. “Spartus frutex virgosus sine foliis, ab asperitate vocatus. Volumina enim funium,
quae ex eo fiunt, aspera sunt”. 146 Adf. Tert. Chron. (Seb.) 2.
42
* * *
O modo pelo qual Wamba ascendeu ao poder, a electio, embora incomum, era o
previsto para a sucessão régia por Isidoro de Sevilha no Concílio IV de Toledo. Conferindo
um suporte ideológico ao seu poder, Wamba passou por todos os ritos que faziam de um
soberano uma figura sagrada. Para exercer a plenitude de suas prerrogativas, o monarca
lançou mão da centralização política e da coação militar. Esse fato não agradou grande parte
da nobreza laico-eclesiástica, acostumada a uma certa autonomia face ao monarca durante o
reinado de Recesvinto. Porém, como Wamba havia sido alçado ao poder de forma legítima,
para demovê-lo do poder seria necessário um pretexto também legítimo, como a tonsura, por
exemplo. Esse reinado mostra bem a força que possuíam os ritos católicos para alçar ou retirar
um monarca do trono.
2.2 – Ervígio
Ervígio governou por sete anos o Reino Visigodo. Sua participação no complô
palaciano que destronou Wamba o tornaria, em tese, um usurpador. Desse modo, jamais
conseguiria governar se não contasse com um amplo apoio da nobreza e do episcopado
hipano-visigodo, descontentes com a linha política adotada por Wamba. Isso fez com que
Ervígio tivesse de conceder muitos privilégios à nobreza e ao episcopado, enfraquecendo a
instituição monárquica.
2.2.1 – A ascensão de Ervígio
De acordo com as crônicas asturianas do século IX, durante o reinado de Chindasvinto
chegou à Península Ibérica um grego que fora expulso de seu país pelo Imperador Bizantino.
Chindasvinto o teria recebido magnificamente, concedendo-lhe sua sobrinha em
matrimônio.147 Dessa união, teria nascido Ervígio, que seria assim sobrinho-neto de
Chindasvinto. A despeito de toda a carga ideológica negativa que o cronista investe em
147 Adf. Tert. Chron. (Rot.) 2. “Tempore namquam Cindasuindi regis ex Graecia uir aduenit nominee Ardauasti,
qui prefatus uir ab imperatore a patria sua est expulsus mareque transiectu[s] Spania est aduectus. Quem iam
supra factus Cindauindus rex magnifice suscepit et ei in coniungio consubrinam suam dedit, ex qua
coniunctionem natus est filius nomine Eruigius.”.
43
Ervígio, como filho de um estrangeiro banido de seu reino, não existem razões para
discordamos de que ele realmente estava associado ao clã de Chindasvinto e Recesvinto.
Porém, mesmo contando com um grande amparo nobiliárquico, precisava de um respaldo
ideológico para assentar seus poderes, haja vista sua fragilidade política, resultado da
participação no complô que destronara Wamba.
Em verdade, a irregularidade com que se deu a ascensão de Ervígio lhe legaria uma
autoridade frágil, que daria a tônica de seu reinado. Para piorar a situação do conspirador, o
antigo rei ainda estava vivo, e pleiteava um revés de seu destrono. Contava para tanto com o
apoio de um clã forte e que ameaçava fortemente a posição conquistada por Ervígio.
Percebendo que se encontrava numa difícil situação, Ervígio convocou um concílio geral, que
se destinava a corroborar seu complô e garantir maior sustentação a seu reinado. Fazia-se
mister atrair o episcopado hispano-visigodo para seu lado. Assim, durante o inverno de 687
celebrava-se o XII Concílio de Toledo. Quem o presidia era Juliano de Toledo, bispo da urbs
regia e partidário de Ervígio. Juliano elaborou os cânones desse concílio com toda a argúcia
que lhe era peculiar a fim de que o juízo dos fatos favorecesse ao novo monarca.
A maior ameaça provinha do clã do rei destronado. Isso porque a base de apoio que
elegera Wamba era – sempre foi – assaz pujante. Assim, o primeiro cânone abordava
diretamente essa questão. Os bispos aprovavam a eleição de Ervígio e a deposição de Wamba
de acordo com as provas que lhes eram apresentadas. Tais provas eram documentos,
certamente forjados, nos quais se afirmava estar escrita uma indicação de Wamba para que
Ervígio fosse seu sucessor, recomendando brevidade na unção do novo soberano.148 Ademais,
os bispos liberavam todos aqueles que tivessem contraído laços de fidelidade com Wamba,
para que abraçassem ao “sereníssimo” Ervígio como seu novo rei.149
O segundo cânone versava sobre a mesma questão, embora implicitamente. Os bispos
tolhiam qualquer possibilidade de alguém que tivesse recebido a penitência na enfermidade
querer voltar à vida civil uma vez de saúde recuperada. E mais, para deixar claro que a
penitência poderia ser aplicada a alguém privado de seus sentidos – caso de Wamba – aludia-
148 Conc. XII Tol. c. 1 “(…) scribturam quoque definitionis ab eodem editam ubi gloriosum dominum nostrum
Ervigium post se fieri regem exobtat; alliam quoque informationem iam dicti viri in nomine honorabilis et
sanctissimi fratris nostri Iuliani Toletane sedis episcope, ubi sub omni diligentiae ordine iam dictum dominum
nostrum Herbigium in regno unguere deberet et sub omni diligentia unctionis ipsius celebritas fieret; in quas
scribturas et subscribtio nobis eiusdem Wambanis principis claruit et omnis evidentia confirmationis earundem
scribturarum sese manifeste monstravit”. 149 Conc. XII Tol. c. 1 “Et ideo soluta maus populi ab omni vinculo iuramenti, qua epraedicto viro Wambae dum
regnum adhuc teneret alligata permansit, hunc solum serenissimum Ervigium principem obsequendum grato
servitii famulatu sequatur et libero (...)”.
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se ao exemplo das crianças que, mesmo recebendo o batismo sem consciência, não poderiam
evadir-se de seus deveres cristãos futuramente.150 Esses dois cânones conferiam um suporte
ideológico ao novo soberano, para que Wamba e os nobres a ele adstritos não pudessem
contestar a legitimidade de Ervígio. Nesse caso, a prática política precedeu a teoria.
2.2.2 – Relações régio-nobiliárquicas
Já nesse Concílio XII de Toledo, percebe-se a linha política pela qual governaria
Ervígio. Da sua frágil legitimidade decorre um enfraquecimento da monarquia face aos
poderes nobiliárquicos. O cânone sétimo modificava a L.V. IX, 2, 9 de Wamba, que privava
de testemunho àqueles que fossem acusados de não pegar em armas nas necessidades de
Estado.151 É importante ressaltar que Ervígio não revogava a lei em si. Ele apenas a
abrandava, haja vista a alegação de existirem locais nos quais os processos judiciários se
encontravam emperrados por falta de pessoas capazes de prestar testemunho. As outras
sanções como o degredo, confisco de bens, e açoite e decalvamento para pessoas de status
inferior, continuavam valendo. Isso significa que, na prática, Ervígio se encontrava com o
mesmo problema de Wamba – dependia militarmente de poderosos senhores locais e suas
clientelas. A dependência entre os homens se tornava mais enfática, e o processo de
feudalização avançava rapidamente em terras ibéricas. Foi provavelmente visando o apoio
daqueles domini que Wamba acusara de infidelidade e confiscara-lhes os patrimônios que
Ervígio pediu que se decretasse um cânone reintegrando à cristandade os que tivessem sido
culpados de qualquer crime contra o Estado ou o príncipe, assim que recebessem as graças do
rei.152
De fato, a relação régio-nobiliárquica passava, necessariamente, pela concessão e
confiscação do patrimônio fundiário. Tivemos oportunidade de observar como um rei
enérgico, tal como Chindasvinto, limitou somente à décima parte do patrimônio o benefício
150 Conc. XII Tol. c. 2. “Unde sicut babtismum quod nescientibus parvulis sine ulla contemtione in [fi] de tantum
proximorum accipitur, ita et poenitentiae donum quod nescientibus inlabitur absque ulla repugnantia
inviolabiliter hii qui illud exceperint observabunt”. 151 Conc. XII Tol. c. 7. “Et ideo quia legem illam a domino Wambane principe editam, quae de progressione est
exercitus adnotata huius principis nostri et domni Ervigii mansuetudo temperare dispossuit adeo adnuente nobis
glorioso et religiosissimo Ervigio principe nostro necessarium hoc sanctum concilium definivit; ut hii qui [per]
supradictum legem testeficandi dignitatem perdiderunt, recepto testimonio pristinae dignitatis causas exequi
possint debitae actionis, qualiter nobilitatis solitae titulum reportantes et quae de praeteritis legitime testificare
voluerint licentiae obtineant votum et a iudicibus nullis prohibitionibus arceantur (...)”. 152 Conc. XII Tol. c.3: “De culpatorum receptione vel conmunione apud ecclesiam”.
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hereditário que cabia a um ou vários herdeiros, e restringiu à quinta parte o que era de livre
disposição. Já Ervígio, era um monarca que usava mais da concessão, e não da repressão para
legitimar seu poder. Assim, necessitando do apoio nobiliárquico, elevou a um terço a parte do
benefício, especificando que tal restrição só afetava o patrimônio parafernal do testador, mas
em absoluto as doações régias, as quais podia dispor livremente. O mesmo acontece no caso
do dote. Chindasvinto fixara o máximo dote a ser pago pela família da noiva em mil sólidos.
Ervígio aumentou o limite para dez por cento da riqueza imobiliária, aditados a mil sólidos
em mobiliares.153 Ervígio cedia às pressões da nobreza, atenuando os óbices a uma maior
transferência intranobiliárquica de patrimônio.
Devido à pouca antecedência de sua convocação e seu desenrolar em pleno inverno, o
Concílio XII de Toledo contou com a presença de apenas 35 bispos. Seria conveniente reunir
o episcopado num quorum maior para que as disposições tratadas anteriormente ganhassem
mais força. Por essa razão, Ervígio convocou o Concílio XIII de Toledo, que contou com a
presença de 47 bispos. O número recorde de 26 viris illustribus que assinaram as atas do
Concílio XIII de Toledo, que em seu cânone IX confirmam as disposições firmadas no
concílio anterior, denotam a hipoteca nobiliárquica que sempre assombrou a frágil autoridade
de Ervígio.
O primeiro de seus cânones decretava uma determinação que faria Wamba revirar no
túmulo. O pérfido duque Paulo era anistiado.154 Não se tratava de uma medida com o intento
de atingir diretamente o ego do clã de Wamba. Na verdade Ervígio buscava, como sempre,
aumentar sua base política de apoio. Dessa forma, não só aqueles que participaram do levante
contra Wamba, mas todos os que tivessem sido culpados de infidelidade desde o reinado de
Chintila estavam anistiados.155 Se por um lado tal medida favorecia a alguns nobres, por outro
descontentava ao clã de Wamba.156 Isso porque Wamba concedera aos seus fideles boa parte
do espólio conquistado na luta contra os rebeldes da Narbonense. Se Ervígio conferisse aos
rebeldes as possessões que uma vez lhes pertenceram, teria de despojar os fideles de Wamba
da recompensa que receberam. A saída utilizada por Ervígio para tentar agradar a todos foi a
devolução aos rebeldes dos bens e propriedades que ainda estavam sob o poder régio. As
153 GARCIA MORENO, História de España Visigoda. p. 229. 154 Conc. XIII Tol. c. 1. “De reddito testimonie dignitatis corum quos profanatio infidelitatis cum Paulo traxit in
societatem tyrannidis.” 155 Conc. XIII Tol. c. 1. “Quod etiam et fillis eorum decernimus observandum, qui post admissum parentum
praememoratae profanationis scelus nati esse produntur, sive de ceteris omnibus qui ex tempore divae memoriae
Chintiliani Regis simili hucusque infamationis nota resperi sunt”. 156 GARCIA MORENO, Historia de España Visigoda. p. 178.
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terras confiscada que estavam fornecidas in stipendio e ad perpetuum não lhes seriam
devolvidas.
Ainda buscando um consenso em relação ao seu reinado, Ervígio propõe ao concílio
que se crie uma espécie habeas corpus para os nobres.157 Chindasvinto, o septuagenário
usurpador de Chintila, utilizara melhor do que ninguém um subterfúgio legal para obter
emolumentos – a acusação de traição.158 Uma vez feita a acusação, poder-se-ia arrancar a
confissão por meio de tormentos ou de provas falsas. Na melhor das hipóteses, o condenado
perdia apenas os seus bens. Ervígio proibia tal prática doravante. O nobre acusado seria
julgado por um tribunal misto de sacerdotum seniorum atque etiam gardingorum, e vedava-se
a utilização de torturas e maus-tratos bem como não se permitia encarcerá-lo ou confiscar seu
patrimônio.159
O cânone terceiro anistiava a cobrança de tributos não pagos desde o primeiro ano de
seu reinado.160 Tal medida era reflexo de péssimas colheitas, que castigaram a população com
uma grande fome. A memória desse flagelo permanecia viva na crônica que o clérigo
moçárabe da Continuatio Hispana redigiu em 754.161 Por outro lado, é possível que Ervígio
quisesse minimizar o problema da patrimonialização de pequenas propriedades. É provável
que os grandes do reino se aproveitassem da desesperada situação dos pequenos camponeses
para adquirir suas propriedades e convertê-los em dependentes. Assim, embora tenha feito
grandes concessões à nobreza, na pouca margem de manobra que possuía, Ervígio tentava não
debilitar por completo a potestade régia face aos poderes nobiliárquicos.
As relações entre Ervígio e a nobreza eclesiástica também eram convergentes. O maior
problema para o clero eram as leis militares de Wamba, mitigadas pelo novo soberano.
Ademais, as sanções decretadas no Concílio de Toledo XII contra pagãos e judeus favoreciam
tanto à Igreja, que confiscaria bens, como à monarquia, no âmbito de uma unificação político-
religiosa do reino.162 Todas essa benevolentes medidas de Ervígio teriam uma contrapartida
por parte da Igreja. No cânone quarto os bispos ameaçavam com pena de anátema qualquer
157 Conc. XIII Tol. c. 2. “Unde congruam devotioni eius sententiam decernetes hoc in comune decrevimus ut
nullus deinceps ex palatini ordinus grandu vel religionis sanctae conventum (...) non ante vinculorum nexibus
inligetur, non quaestioni subdatur, non quibuslibet tormentuorum vel flagellorum generibus maceratur, non
rebus privetur, non etiam carceralibus custodiis mancipetur, neque adhibitis hinc inde iniustis occasionibus
abdicetur, per quod violenta, oculta vel fraudulenta professio extrahatur (...)”. 158 GARCIA MORENO, Historia de España Visigoda. p. 179. 159 Ibidem. 160 Conc. XIII Tol. c. 3. “De tributorum principali relaxatione in plebe.” 161 Cont. Hisp. 23 “Cujus tempore fames valida Hispaniam depopulatur.” 162 Conc. XII Tol. c. 9. “De confirmatione legum quae iudaeorum nequitiam promulgatae sunt iuxta earundem
legum praefixum ordinem titulorum, qui in eodem canone adnumeratur”. c. XI “De cultoribus idolorum”.
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um que ousasse conspirar contra a integridade da família de Ervígio, uma vez que este tivesse
falecido. Isso porque “movidos pela piedosa solicitude, decidimos promulgar um decreto em
defesa da prole régia, e fazer extensiva a ela no futuro uma misericordiosa proteção, que não
temos podido corresponder aos benefícios de seu pai”.163 Note-se que teoricamente se
protegia a vida de seus familiares, mas não se garantia nenhuma prerrogativa administrativa
ou política. Um fato interessante é a proibição dos bispos que, uma vez morto o príncipe,
ninguém deveria casar-se com sua viúva.164 Essa proibição visava impedir que algum nobre
desposasse a viúva do antigo soberano visando o apoio nobiliárquico que sustentava seu
reinado. Trata-se de uma estratégia de ascensão monárquica que possuía precedente entre os
visigodos.
2.2.3 – A sucessão de Ervígio
A mesma crônica que legava a Ervígio o epíteto de tyrannus, conferia-lhe o status de
ter sido um governante piedoso e moderado para seus súditos.165 O mais poderoso dentre seus
súditos era, indubitavelmente, o duque Égica.166 Sobrinho de Wamba, ele estava a frente do
clã que amparava seu tio. Visando um apaziguamento do clã de Wamba, Ervígio oferecera a
mão de sua filha Cixilo a Égica, logo no começo de seu reinado. Tacitamente ficava acordado
que Égica seria seu sucessor, reforçando a prática do adoptio como critério de sucessão
monárquica. Ervígio nutria uma grande desconfiança em relação a seu genro. E não era para
menos; Wamba pedira em vida que Égica repudiasse a filha de seu arquirival com todas as
suas forças.167 Todavia, num primeiro momento, enquanto Ervígio ainda era vivo, Égica não a
repudia.
No final do ano de 687, sentindo-se enfermo de morte, Ervígio clama pela penitência
pública. Preterindo seus filhos legítimos, indica Égica como seu sucessor. A escolha pode não
ter sido a que Ervígio mais desejava, mas foi a possível face às circunstâncias sóciopolíticas
que se apresentavam no momento.
163 Conc. XIII. Tol. c. 4. “Et ideo piae sollicitudinis cura extenti defensionis decretorum promulgare
prae[e]legimus in regiam prolem, et tuitionis in futurum obtendere pietatem qui paternis beneficiis nequivimus
reddere vicem”. 164 Conc. XIII Tol. c. 5 “Ne defuncto príncipe relictam eius coniugem aut in coniugio sibi quisque aut in
adulterio audeat copulare”. 165 Adf. Tert. Chron. (Rot.), 3: “Post Banbanem Eruigius regnum obtinuit que tirannide sumsit. (...) ut ferunt,
pius et modestus erga subditis fuit.”. 166 Nas atas do Concílio XIII de Toledo Égica aparece como “comes scanciarum et dux ”. 167 Adf. Tert. Chron. (Rot.), 4: “Quumque regnum conscendit, abungulus eius Bamba rex ei precepit ut
coniungem dimitteret, eo quod pater eius Eruigius callide eum a regno expullisset”.
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* * *
A incansável busca de apoio político foi um estigma do reinado de Ervígio. Tal
fragilidade provém de três causas primordiais. Primeiramente sua personalidade não era
autoritária como a de Wamba ou Chindasvinto. Sua ascensão irregular ao trono também o
enfraquecia. E, o mais importante, Ervígio não possuía uma ampla clientela própria.168
Apoiava-se nos fideles de Chindasvinto, grupo do qual ele mesmo fazia parte. Dessa forma,
Ervígio foi quase um antígone de Sisenando e Chindasvinto. Estes também usurparam seus
predecessores, mas, ao contrário de Ervígio, possuíam um amplo respaldo nobiliárquico e
uma personalidade forte. Ervígio já começara seu reinado com uma hipoteca política: devia o
trono a um grupo de nobres que o apoiaram e à conivência do episcopado.169 Tal fato explica
as desmesuradas concessões feitas à nobreza laico-eclesiástica, caracterizando a linha política
pela qual teve seus poderes legitimados. Sua estratégia de manutenção de poder, malgrado o
enfraquecimento da instituição monárquica, foi mais bem-sucedida que a de Wamba.
2.3 –Égica
Égica foi ungido rei dos visigodos na igreja pretoriana dos Santos Apóstolos, em 24 de
novembro de 687,170 após ter sido indicado por Ervígio. Assim como este, Égica ascendia ao
trono com uma hipoteca política. No entanto, seu débito não se referia a um frágil apoio
nobiliárquico conquistado a duras penas como foi o caso de seu antecessor. A dívida de Égica
era moral, concernia em resgatar a honra de seu tio, deposto de forma esdrúxula. Tivemos
oportunidade de constatar que as mesmas fontes que apontam Ervígio como tyrannus,
distinguem-no como um monarca piedoso. Todavia, Ervígio fora piedoso ao extremo. Em
troca de uma débil sustentabilidade política, Ervígio enfraquecera a instituição monárquica e
fortalecera ainda mais os já pujantes poderes regionais.
Dessa forma, Égica ascendia ao trono com dois grandes escopos – vingar-se da
desonra que acometera seu tio e fortalecer o poder real. Wamba fizera-lhe jurar que deixaria
Cixilio, como retaliação a Ervígio. Todavia, Ervígio também exigiu alguns juramentos para
168 ORLANDIS, op. cit. p. 249. 169 GARCIA MORENO, Historia de España Visigoda. p. 176. 170 ORLANDIS, op. cit. p. 256.
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indicar Égica como seu sucessor. Entre estes estava um em que o novo monarca garantiria
integridade e apoio a sua nova família política. Entre a cruz e a espada - querendo vingar o clã
de seu tio retaliando a família de seu sogro e, ao mesmo tempo, sendo obrigado por juramento
oficial a proteger essa mesma família – Égica decide conquistar o apoio eclesiástico para a sua
causa.
2.3.1 – Relações régio-nobiliárquicas
Desse modo, o monarca convocou o Concílio XV de Toledo, para tentar solucionar o
problema. Segundo Égica, Ervígio lhe obrigara a jazer dois juramentos incompatíveis. Se por
um lado era obrigado a defender a família de seu sogro, por outro teria que ser um governante
justo e bondoso para seu povo. Égica asseverava que os diversos privilégios que Ervígio
cedera a seus filhos prejudicavam terceiros. Afirmara que se fosse cumprir as promessas para
privilegiar a família de Ervígio, não seria um monarca justo e ponderado. A preservação de
ambos os juramentos seria, dessa forma, algo impossível.171 A resposta do Concílio foi de
que, entre o interesse de alguns e o interesse de todo o povo, o segundo deveria prevalecer.
No entanto, Égica não estava autorizado a perseguir sua família política. É verdade que os
clérigos concordavam em haver impossibilidade de coexistência entre os juramentos, mas
aconselhavam Égica para governar a todos, povo e parentes, com um único e idêntico amor.172
Ao fim e ao cabo, a grande questão inserida no âmago desse problema é a dos
patrimônios nobiliárquicos. Como apontamos mais de uma vez, as relações régio-
nobiliárquicas passavam necessariamente pela política de confiscação e doação de
patrimônios. Tanto Wamba quanto Ervígio atenderam às suas bases de apoio. Este último
monarca, porém, fora muito mais astuto pois, ao exigir o juramento de Égica que zelaria pelo
bem de sua família, impedia o novo soberano de confiscar o patrimônio de seus fiéis. Trata-
se, na verdade, de um subterfúgio para burlar o juramento de não se apossar dos bens do
Reino, transferindo-os não a si mesmo, mas a seus parentes. Daí a importância para Égica de
171 Conc. Tol. XV, Tomus: “Acta sunt ista et specialibus conditionum probantur nexibus inligata. Quaerum
etiam duarum conditionum inevitalibem et sibi contrariam seriem et illarum quas ob protectionem filiorum
suorum mici exegit et istarum quas ob praeelectionem regni mici exigendas instituit, paternitatis vestrae
pertractandas consultibus destinavi, petens ut et benedictionibus vestries regno confirmatus inhaerem et
sanctionis vestrae regulis viam qua discreto calle periurii gradiar informatus agnoscam (...)”. 172 Conc. Tol. XV, Tomus: “Nec hoc quidem sic dicimus ut illa quae pridem pro cognates iurata sunt penitus
destrudantur sed potius unus idemque affectus populis cognastique servetur, unum quid ex duobus unitatis
gratiam redolens neutrum dividat sed conponat (...)”.
50
conseguir o apoio eclesiástico para anular o juramento, e poder beneficiar seu clã em
detrimento do de Chindasvinto e Ervígio.
Como o episcopado possuía laços com um e outro grupo político, a solução, embora
pendesse para o novo soberano, não lhe foi de todo favorável. Portanto, foi de forma velada
que Égica pôde destituir os fidelis de Ervígio e nomear na administração homens do seu grupo
de apoio. Possuímos a lista de signatários das atas dos Concílios XII e XIII de Toledo, durante
o reinado de Ervígio, e dos Concílios XV e XVI, sob o reinado de Égica. Analisando-as
percebemos claramente a tônica da mudança.
É notável a onipresença de Vítulo, que se manteve na cúpula do poder
independentemente do monarca reinante. Seu nome constava nas listas de Ervígio como
conde do patrimônio. Com Égica, além de manter esse cargo vai assinar como duque.
Possivelmente Vítulo era um vir illuster poderoso, que interessava a Égica garantir seu apoio.
Concílio XII (681) Concilio XIII (683) Concílio XV (688) Concílio XVI (693) Sesuldo Recaredo Recaredo Witiza Wimar Wimar Wimar Teudila Teudila Teudila Ostrulfo Ostrulfo Ostrulfo Salamiro Teodefredo Teodefredo Ildigiso Severiano Teudulfo Teudulfo Vítulo Vítulo Vítulo Vítulo Égila Adeliuvo Ataulfo Ataulfo Wadamiro Argemiro Égica Isidoro Sisebuto Walderico Walderico Cixila Cixila Sunifredo Gisclamundo Gisclamundo Giliango Alderico Salamiro Nilaco Severino Severino Audemundo Audemundo Audemundo Traserico Traserico Trasimiro Torresário Recaulfo Sigimiro Trasemundo Nausto Sisuldo Sonna Ara Ega Ega Suniemiro Paulo Ela David Requisindo Sisemundo Teodehito Bigesuindo Afrila Danila Teudemundo
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Mas era uma exceção. Dos 17 viri illustres que assinam as atas do Concílio XV, 10 já
faziam parte do grupo de nobres que apoiavam Ervígio. Esse Concílio aconteceu apenas um
ano depois da ascensão de Égica ao trono. A mudança ainda é sutil. É provável que tenha
pesado a grande autoridade de Juliano de Toledo, partidário declarado do grupo de Ervígio.
Passados seis anos, e sem mais a presença de Juliano de Toledo, apenas quatro dos dezessete
nobres que assinam as atas do Concílio XVI já haviam constado nas listas de Ervígio.
É interessante notar também que dos sete nobres que aparecem pela primeira vez no
Concílio XV, apenas um reaparece no XVI. E de todos os 16 nobres que aparecem no
Concílio XVI de Toledo, apenas quatro já haviam firmado seus nomes no Concílio XV. Em
verdade, o Concílio XVI mostra que, a partir de 693 houve uma “renovação” da nobreza. Tal
fato denota uma certa instabilidade nas bases de apoio de Égica. Essas instabilidades
perdurariam até a realização do Concílio XVI.
2.3.2 – Instabilidade Política
Após a morte de Juliano de Toledo, o abade Sisberto assume as rédeas da Igreja
visigoda.173 Sisberto herdava de Juliano sua querela com Égica. Essa cisão pode ter sido uma
das causas para a convocatória régia de um concílio geral fora de Toledo.174 Assim, realizou-
se em 691 o Concílio III de Zaragoza.175 A maioria de seus cinco cânones se refere a assuntos
de disciplina eclesiástica.
Todavia, em termos políticos, é o último cânone que interessa a Égica. Ele acena para
aquilo que Wamba lhe pedira – repudiar sua mulher Cixilo. Não trata o assunto de forma
explícita, mas aborda uma questão estratégica. Decretava que, morto o rei, a rainha deveria
imediatamente tomar o hábito religioso e ser enviada a um convento, por onde passaria o resto
da vida.176 Os bispos aludiam para a necessidade de que a viúva régia não fosse tida como
súdita e preservasse seu prestígio. Na prática, prevenia-se de uma possível aliança
173 Sua assinatura consta nos Concílios XIV e XV como Sisbertus abba. 174 FRIGHETTO, Uma tentativa de unidade político-religiosa... aponta para conotação geral do Concílio III de Zaragoza. 175 Ibid., p.62. para as razões para a realização desse Concílio em Zaragoza. Analisando as epístolas de São Bráulio, a Historia Wambae e a Crônica de Afonso III, o autor afirma que “a hipótese mais provável dirige-se à
realização dalguma campanha militar contra os francos ou vascos, sendo Zaragoza ponto obrigatório de
passagem em ambos casos”. 176 Conc. III Caesar. c. 5. “(...) deinceps relicita principis superiorem sententiam inlibato animo pudice servans
statim accersito ab hoc seculo piíncipe vestem secularem deponat, et alacri curiositate religionis habitum
adsumat. Quam etiam et confestim in cenobio virginum mancipadum esse censemus (...)”.
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conspiratória que a rainha pudesse fazer com algum nobre para eliminar o rei. Esse fato pode
indicar um clima de instabilidade em seu governo.
Em verdade, iniciava-se uma época de conspirações e de dura repressão. A Crônica de
Afonso III afirma que Égica submeteu às muitas pessoas que se rebelaram dentro do reino177.
A mais contundente dessas conspirações foi levada a cabo pelo novo primado toledano,
Sisberto. Este, juntamente com alguns nobres laicos, conspirava para derrubar Égica do poder.
Descoberto o plano, Égica reprime duramente os conspiradores e dá início a uma enérgica
política de renovação da nobreza.178 Através de juramentos pessoais Égica angaria um grande
apoio da nobreza laica eclesiástica.179 Sua L. V. II, 1, 7 decretava que funcionários
denominados dicussores iuramenti percorressem o Reino para receber de cada um dos ingenui
juramentos de fidelidade. Égica saía fortalecido, mas não a instituição monárquica.
Por isso a necessidade de Égica de fortalecer sua posição persistia. Na lista de
signatários dos concílios, um nome intrigante é o do conde Teodefredo. A Crônica de Afonso
III informa da existência de um filho de Chindasvinto de nome Teodefredo. É possível que se
trate da mesma pessoa. Égica, desconfiado de que Teodefredo conspirava contra ele, o teria
cegado e expulsado de Toledo. Assim, podemos perceber que o rei fazia tudo ao seu alcance
para fortalecer seu poder. Em certa medida, a política de Égica teve efeito, conforme mostram
as atas do Concílio XVI de Toledo.
2.3.3 – Tentativa de unidade político-religiosa
O Concílio XVI de Toledo foi o marco divisório no reinado de Égica.180 A partir daí é
que sua figura prevalece frente às instabilidades políticas e poderes regionais. Todos os seus
cânones parecem ter sido feitos sob medida para o processo de fortalecimento da débil
instituição monárquica que herdava de Ervígio.
A conspiração do bispo Sisberto, obviamente estava presente. Logo no Tomus os
bispos já apontam para o tratamento que se deve dispensar a membros “enfermos”.181 Depois,
no cânone IX, condenam Sisberto e seus cúmplices à pena de excomunhão, exílio, perda de
177 Chron. Adf. Tert. (Rot.). 4. “Gentes multas infra regnum tumentes perdomuit”. 178 Chron 754. 25. “Hic Gothos acerva morte persequitur.”. 179 GARCIA MORENO, Historia de España Visigoda. p. 183. 180 FRIGHETTO,Uma tentativa de unidade político-religiosa..., p. 68. 181 Conc. XVI Tol. Tomus “(…) et infirmis artubus diversis utpote aegrimoniorum vulneribus sauciatis congrua
medicamina apponamus, qua facilius queant et veternosa ulcera radicitus evelli et remedia exoptatae salutis
nancisci.”.
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títulos e confisco de bens.182 É interessante notar que os bispos novamente aludem ao
Concílio IV de Toledo, sob a égide de Isidoro de Sevilha, para condenar aqueles que
estendessem a mão contra o ungido do Senhor.
Para além dessa forte condenação aos pérfidos conspiradores, o Concílio XVI mostra
um rei que toma para si a supervisão das normas legislativas e canônicas.183 Em verdade,
Égica editaria 17 novelas em seu reinado.184 Dentre tais, podemos destacar dois grupos. O
primeiro é formado pelas L.V. II, 1, 7 e a L. V. II, 1, 8 que enfatizavam o problema da
infidelitas dos nobres com respeito ao soberano. No segundo, formado pelas L.V. XII 2, 5 e L.
V. XII, 2, 18. trata-se dos “inimigos” da unidade interna do reino, em especial os judeus.
Ambas essas questões referem-se a uma tentativa de fortalecimento da instituição
régia. Todavia, tanto o tema da infidelidade quanto o dos inimigos da ordem interna já
aparecem no Concílio XVI de Toledo.185 Daí podemos supor que Égica tentava fortalecer a
idéia de que as reuniões conciliares deveriam ter um caráter de foro político-legislativo, e o
episcopado hispano-visigodo estaria à serviço da vontade legislativa real. Isso porque Égica
buscou apresentar-se como autêntico promotor da unidade político-religiosa do Reino
Hispano-Visigodo em finais do século VII.186 É possível supor que tal atitude esteja investida
de uma atitude baixo-imperial romana comum à figura do imperator.187 Este, além de
conduzir os destinos políticos do reino, apresentar-se-ia como a autoridade máxima
religiosa.188 Ademais, Égica promove a damnatio memoriae de Ervígio, e uma aemulatio de
Chindasvinto e Wamba, associando sua imagem à força do primeiro e à sacralização e justiça
182 Conc. XVI Tol. C. IX “(…) ipse vero Sisibertus pro sui iuramenti trangressione facinorisque tanti
machinatione secundum antiquorum canonum institutionem qua praecipitur ut quisquis inventus fuerit talia
fecisse et vivente principe in alium adtendisse pro futura regni spe, a conventu catholicorum excommunicationis
sententia repelatur, honore simul et loco depulsus, omnibusque rebus exutus quibusque in potestate praedicti
principis redactis perpetui exilii ergastulo maneat religatus (...)”. Os outros conspiradores citados são Frogelo, Teodomiro, Liuvilana, Liuvigotona e Tecla. 183 Conc. XVI Tol. Tomus “Cuncta vero quae in canonibus vel legum edictis depravata consistent aut ex
superfluo vel indebito coniecta fore patescunt, accomodantes serenitatis nostrae consensus in meridiem lucidae
veritatis reducite (…)”. 184 FRIGHETTO, Uma tentativa de unidade político-religiosa..., p. 67. ORLANDIS, op. cit. p. 260 aponta para 16 novelas. 185 Em relação à infidelitas Conc. XVI Tol. c. 10: De his qui iuramenti sui profanatores extitisse noscuntur. Em relação aos “inimigos internos”, Conc. XVI Tol. c. 1: De iudaeorum perfidia; e c. 2. De idolorum cultoribus. 186 FRIGHETTO, Uma tentativa de unidade político-religiosa..., p. 68. 187 Ibid., p. 65. 188 Percebe-se nitidamente as características do imperator investidas por Égica em Conc. XVI Tol. Lex edita in confirmatione concilii: “In nomine Domini Flavius gloriosus Egica rex omnibus sanctissimis patribus in hac
sancta synodo residentibus: Ecce sanctissimi in Christo patres et apostólico dogmate fidelis populi ducatores,
synodicae adgregationis vestrae unionem illo fiducialiter hortatu convenio, quo religiosum nobis vestrae
sanctitudinis praebatis sufragium, nostraeque promulgationis consultus porrigatis omnimode praestolatum. (...)”.
54
do último.189 A sacralização de Égica dava-se através da unção e da exaltação de suas virtudes
cristãs – misericordia, pietas, clementia, iustitia, prudentia.190 Assim, justo e poderoso, com
essa imagem imperial de soberano católico, de princeps christianus sacratissimus, Égica
consegue governar de forma razoavelmente cômoda os nove anos seguintes de seu reinado.
O Concílio XVII de Toledo, realizado em 694, foi o último cujas atas se conservaram.
No entanto, desconhecemos a lista de signatários. Realizado na Igreja de Santa Leocádia, nos
arredores de Toledo, provavelmente foi presidido pelo bispo Félix, antigo bispo de Sevilha
que tomou o lugar de Sisberto por indicação do Rei.
A política de centralização político-religiosa de Égica, em especial as leis antijudaicas,
está fortemente presente nesse concílio. No Tomus régio, está presente um fato novo – a
chegada dos mouros. Égica afirmava que os judeus do Reino Hispano-Visigodo estavam
conspirando com os judeus das regiões ultramarinas para que conjuntamente destruíssem a fé,
o reino e o povo da Hispania.191 É possível que tal acusação tenha um fundo de verdade. Já
existiam indícios da expansão islâmica desde a época de Wamba;192 e a atitude dos judeus
quando da invasão de fato, apontam para essa possibilidade. Assim, o Concílio XVII
promulga leis duríssimas contra a comunidade hebraica. Os judeus eram reduzidos à servidão,
suas comunidades eram dispersadas, seus filhos entregues a tutores católicos.193 Os judeus da
Gália Narbonense, uma comunidade aparentemente maior, recebiam penas mais amenas.
189 Conc. XVI Tol. Tomus “(...) quae ex tempore divae memoriae praecessoris nostri domni Chindavinti Regis
usque in tempus domni Wambanis principis (...)”. 190 As qualidades que os bispos desejam a Égica aparecem logo no começo do Conc. XVI Tol. Tomus. “(…) ita
serenissimus ad religiosissimus praedictum Egicanem principem cuius iussu fraternitatis nostrae coetus est
adunatus, fidei suae conversatione stabilitat, prorogatione iustitiae muniat, pace locupletem reddat, impensione
misericordiae fulciat, virium fortitudine roboret, quo longevitatis muniis cluens commisa sibi regni gubernacula
discreto moderamine teneat et commissos sibi populos benigne regat, aeque disponat et iussu pietatis
modificet.”. 191 Conc. XVII Tol. Tomus “(…) praesertim quia nuper manifestis confessionibus indubie invenimus hos in
transmarinis partibus haebreos alios consuluisse, ut unanimiter contra genus chiristianum agerent praestolantes
perditionis suae tempus, qualiter ipsius christianae fidei regulam depravarent (...)”. 192 Chron. Adf. Tert. (Rot.), 2 “ Illius quoque tempore CCLXX nabes Sarracenorum Spanie litus sunt adgresse,
ibique omes pariter sunt delete et ignibus concremate”. 193 Conc. XVI Tol. c. VIII De iudaeorum damnatione: “(…) quod fore illi inferendum saevius decrevere, acrius
stirpare intendit, suis omnibus rebus nudati, et ipse resculae fisci viribus sociatate tam eorumdem perfidorum
personae quam uxorum eorum ac filiorum vel reliquiae posteirtatis a locis propriis exulatae per cunctas Spaniae
provincias perpetuae servituti subactae, his quibus eos iusserit servituros largitae, maneant usquequaque
dispersae (…)”.
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2.3.4 – A associação de Witiza
Além da questão dos judeus e das questões de disciplina eclesiástica, o Concílio XVII
de Toledo versava novamente sobre a esposa e a descendência régia. Ao que parece, Égica
resolveu fazer as pazes com Cixilo,194 e tanto esta quanto seus descendentes ficavam sob a
proteção da Igreja uma vez morto o Rei.195 Égica, no entanto, não esperou até sua morte para
garantir o futuro político de seu filho, Witiza. Mandara ungi-lo em 24 de novembro de 700.196
Witiza fora mandado para a cidade de Tuy, no antigo território dos suevos, para governar
como consors regni.197 Temos poucas fontes sobre esse período. Ao que tudo indica, durante
os dois anos de governo conjunto, Égica e Witiza defrontaram-se com dois feitos de armas.
Primeiramente, os bizantinos teriam tentado desembarcar na costa leste. Foram rechaçados
pelo conde Teodomiro de Orihuela.198 Depois, pai e filho tiveram que combater um levante no
sul encabeçado pelo duque Suniefredo, vir inlluster que consta nas atas do Concílio XIII de
Toledo.199 É provável que Suniefredo tenha inclusive se apoderado da capital, antes de ser
vencido por Égica.200
* * *
Égica morrera em 702. Graças a uma política enérgica, conseguira tornar-se um rei
forte. Todavia, tal fato não oculta o inexorável processo de fragmentação do poder régio.201
Os juramentos pessoais e a manutenção da fidelitas eram indispensáveis para esse
194 Conc. XVII Tol. c. 7 “(…) gloriosa domina Cixilo regina diutinis et felicioribus serenissimi nostri principis
Egicanis (...)”. 195 Para aqueles que atentassem de qualquer forma contra a integridade de Cixilo e os filhos de Égica, os bispos os condenariam a, de acordo com Conc. XVI Tol. c. 7 “(…) perpetue anathematis ultione damnatus et a pagina
caelesti abrasus, atque cum diabolo eiusque acrioribus suplliciis alligatus.”. Uma pena interessante, mas de efeito questionável. 196 ORLANDIS, op. cit. p. 265. Não se sabe ao certo a data de associação de Witiza como consorte do reino. Embora a maioria dos autores aponte o período entre 698 e 700, Garcia Moreno em História de España Visigoda p. 188 e COLLINS, R. La conquista árabe: 710-797. Barcelona: Crítica, 1989. p. 43. propõem a data de 694. 197 Adf. Tert. Chron. (Rot) 4 “(…)abebat ex ea filium adulescentem nominee Uitizanem, quem rex in uita sua in
regno participem fecit et eum in Tudensem cuiutatem auitare precepit, ut pater teneret regnum Gotorum et filius
Sueuorum”. 198 Chron. 754, 38. “Sed etiam sub Egica et Witiza Gothorum regibus, in Graecos qui aquoreo navalique
descenderant, sua in patria de palma victoriae triumohaverat”. 199 ORLANDIS, op. cit., p. 264 - 265. 200 Ibid., p. 265., Tal hipótese é levantada a partir do indício de cunhação de moedas em Toledo com o nome de Suniefredo e de uma lei decretada por Égica que foi firmada não em Toledo, mas em Córdoba. 201 FRIGHETTO, Uma tentativa de unidade político-religiosa..., p. 69.
56
fortalecimento do poder real. Égica talvez tenha sido o mais habilidoso dos últimos reis
visigodos. Reinou de forma enérgica e centralizadora. Porém, soube manter boa relação com a
maior parte da nobreza hispano-visigoda. Ademais, atraiu o interesse do episcopado com
medidas que visavam uma unidade político-religiosa no Reino, que favoreceria tanto à Igreja,
quanto ao monarca, investido na sacra figura do princeps sachratissiums chrisitanus.
Ascendeu pela adoptio, e da mesma forma, associou seu filho ao poder.
2.4 – Witiza
O reinado absoluto de Witiza, a partir de 702, é um período de escassez de fontes. Há
registros da realização do Concílio XVIII de Toledo. No entanto suas atas não resistiram à
impetuosa ação do tempo e se perderam no decorrer dos séculos.202 De fontes documentais, o
que há são apenas algumas linhas na Crônica Moçárabe de 754 e nas Crônicas Asturianas.
Torna-se, portanto, tarefa árdua levantar algumas hipóteses de como Witiza enfrentou o
problema da legitimidade monárquica. A historiografia visigoda, claramente filonobiliárquica,
não hesitou em definir como exemplos de bons monarcas àqueles que praticaram uma ativa
política de concessão de patrimônios à nobreza. Tal parece ter sido o exemplo de Witiza, que
se comportou como contraponto a seu progenitor e antecessor no trono.203
2.4.1 – A predominância da nobreza
Égica teria sido o último monarca visigodo a exercer um poder monárquico altamente
centralizado e autoritário. É verdade, porém, que esse poder desfrutado por Égica só existiu
após ele ter conseguido muitos laços pessoais de lealdade. Não se pode negar que Witiza se
esforçou para conseguir uma ampla base de apoio. Porém, ao que tudo indica, em seu reinado
a nobreza prevaleceu de forma irreversível sobre a monarquia.
Podemos levantar algumas hipóteses para a causa dessa relação de poderes através
dos relatos cronísticos. A Crônica Moçárabe de 754 relata que Witiza teve uma atitude
bastante díspar da de seu pai. Muitos dos nobres que Égica teria exilado, quando da devassa
202 Sabemos da existência de tal concílio, que teria sido presidido por Gunderico, através de uma alusão cronística e de um índice de um livro de concílios procedente de Celanova. Existem diversas hipóteses para o desaparecimento das atas do Concílio XVIII de Toledo. A que nos parece mais provável é a de que o momento conturbado tenha contribuído para a pouca difusão das determinações desse concílio. 203 GARCIA MORENO, História de España Visigoda. p. 229.
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nobiliárquica por ocasião da rebelião do abade Sisberto, teriam sido reintegrados aos seus
postos no governo, além de recuperarem seus bens confiscados.204 Dessa forma, o Oficio
Palatino, que fora profundamente alterado por Égica, era reinstaurado por seu filho.
Também livrou os nobres de um juramento que Égica lhes arrancara obrigando-os a
pagar novos tributos.205 Uma medida que, se por um lado angariava o importante apoio de um
determinado segmento nobiliárquico; por outro, debilitava ainda mais o já delicado erário
régio.
Se a Crônica Moçárabe relata Witiza de forma extremamente positiva, a Crônica de
Afonso III confere a esse monarca uma imagem assaz infame. Em verdade, enquanto a
primeira remete a uma idéia de uma idílica idade de ouro visigoda, a segunda impõe a Witiza
o rótulo de ser a causa da derrota hispano-visigoda para os mouros.
É significativo o fato de a Crônica Moçárabe relatar que Witiza liberou a nobreza de
seus laços inquebráveis, ao livrá-la da promessa que seu pai os obrigara. Essa talvez seja a
chave para entendermos porque essas duas crônicas qualificam Witiza de tão díspar forma. É
possível que, tal como Ervígio, Witiza fosse visto pelo cronista moçárabe como um rei
piedoso. Sabe-se que quando as crônicas relatam que um rei é extremamente piedoso, é
possível que se esteja diante de um rei politicamente fraco. Daí as críticas do cronista
asturiano, à serviço do rei das Astúrias, àquele que teria enfraquecido ainda mais a frágil
instituição monárquica.
Além dessa possibilidade, é provável que as crônicas asturianas tenham outro objetivo
político ao relatar de forma pejorativa o reinado de Witiza. É consenso que tais relatos têm o
claro objetivo de associar os primeiros reis astúres aos monarcas visigodos. Como Witiza teria
sido rex suevorum, precisava-se denegrir sua imagem para que algum descendente não
quisesse reclamar sua coroa frente aos desígnios expansionistas do Reino das Astúrias.206
Assim, associa-se não Witiza, mas Rodrigo aos reis astures. Witiza, apesar de ser filho
de Égica, é associado a Ervígio pela crônica, graças à descendência materna.207 Dessa forma,
204 Chron. 754, 29. “(…) qui non solum eos quos pater damnaverat, ad gratiam recipit tentos exsilio, verum
etiam clientulos manet in restaurando: nam quos ille gravi oppreserat jugo, pristine iste reducebat in gaudio; et
quos ille a proprio abdicaverat solo, iste pie reformans reparabat ex dono (...)”. 205 Chron. 754, 29. “Sicque convocatis cunctis, postremo cautiones quas parens more subtraxerat subdolo, iste in
conspectus omnium digno cremavit incendio; ”. 206 Hipótese aventada por ISLA FREZ, A. Los dos Vitizas. In: GERVÁS, M.; HIDALGO, M. J. e PÉREZ, D. (eds.). Romainzación y Reconquista en la Península Ibérica: Nuevas perspectivas. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1998. 207 Ibid. p. 307. Nesse estudo o autor traça um paralelo entre as crônicas asturianas.
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diferentemente de seu pai, Witiza seria um rei desonesto e de costumes escandalosos.208 A
Crônica de Afonso III afirma que o rei teria estimulado costumes depravados na Igreja
hispano-visigoda.209 E, aludindo às Escrituras, apontam para essa promiscuidade eclesiástica
como a causa da perda da Hispania.210
Não se sabe ao certo como foram as relações régio-eclesiásticas. Witiza fundamentou
seu governo muito mais na nobreza laica que na ideologia da Igreja. Embora haja relatos da
existência de concílios eclesiásticos, não se sabe se estes tiveram fins políticos ao soberano
visigodo, pois suas atas não se preservaram. Uma citação que nos parece significativa, porém,
se encontra na Crônica de 754. Ao relatar a ascensão de Witiza, o cronista fala que ele foi
clementíssimo “embora tenha sucedido ao seu pai de forma petulante”.211 Provavelmente se
trata de uma alusão à prática da adoptio, em detrimento da electio almejada pelo clero, e que
estava sendo utilizada recorrentemente entre os soberanos visigodos para resolver o problema
da sucessão.
Witiza sempre teve o rótulo de possuir costumes depravados, caráter pervertido e
libidinoso, e de possuir inúmeras esposas e concubinas. A Crônica Albeldense relata que
quando ainda governava em companhia de seu pai, Witiza teria matado a pauladas o duque
Fávila, para poder se apropriar de sua mulher.212 Certamente o cronista está tentando associar
a ruína visigoda com a queda do reino judaico-salomônico. O rei Salomão, por ceder à
influência de diversas mulheres de procedência estrangeira, voltou-se para o culto de idolatria
e segmentou o reino eleito, de acordo com a promessa divina.
2.4.2 – Opa, irmão de Witiza
Excluindo a tentativa deliberada de denegrir a imagem de Witiza, as Crônicas
Asturianas podem auxiliar em nosso objetivo de desvendar como esse monarca tratou o
processo de dependência pessoal. Ao que tudo indica, mesmo cedendo às forças centrípetas
nobiliárquicas, Witiza fazia parte de um clã forte, bem enraizado por Égica. Ao referir-se à
208 Chron. Adf. Tert. (Rot.). 5. “Iste quidem probrosus et moribus flagitiosus fuit”. 209 Chron. Adf. Tert. (Rot.). 5. “Concilia dissoluit, canones siggilauit, huxores et concubines plurimas accepit et,
ne aduersus eum concilium fieret, episcopis, presbiteris seu diaconibus huxores abere precepit”. 210 Chron. Adf. Tert. (Rot.). 5. “Spanie causa pereundi fuit”. Alude-se a Matheus 24:12, 5:23; Números 8: 19; Êxodo 19:22; Levítico 21:33. 211 Chron 754. 29 “His patris succedens in solio quanquam petulanter (...)”. 212 Chron. Alb. XIV, 33. “Uittiza rg. An. X. Iste in uita patris in Tudense hurbe Gallicie resedit. Ibique
Fafilanem ducem Pelagii patrem, quem Egica rex illue direxerat, quadam occasione uxoris fuste in capite
percussit, unde post ad mortem peruenit”.
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querela entre Witiza e Fávila, o cronista afirma que ambos foram enviados a Tuy por Égica.
No Concílio XIII de Toledo, o bispo de Tuy era Opa.213 Sua nomeação fora recente, haja vista
ser Genitivo o bispo de Tuy que assinou as atas do Concílio XII de Toledo.214 É possível que
Opa fosse filho de Égica, e sua nomeação fizesse parte dos tratados entre Ervígio e Égica para
a sucessão do trono.215
Nos dois concílios seguintes, o responsável pela sede tudense é Adelfo.216 Opa
desaparece no Concílio XV de Toledo, mas consta nas atas do Concílio XVI de Toledo como
bispo da sede ilicitana (Elche).217 É possível que Opa tivesse sido chamado a Toledo para
estar a par do processo sucessório que findaria com a coroação de seu pai.218
Dessa forma pode-se perceber que, muito antes da chegada de Witiza, o clã de Égica já
possuía fortes conexões com a região de Tuy. Depois, com a transferência de Opa para Elche,
vem à voga um fato interessante. A sede ilicitana fica dentro dos domínios de Teodomiro de
Orihuela, que a fortiori irá fazer um pacto com os mouros. Entre os conspiradores que
apoiavam Sisberto, estava um nobre de nome Teodomiro. É possível que estejamos diante da
mesma pessoa.219 Para que estivesse envolvido na conspiração Teodomiro deveria ser uma
pessoa próxima ao rei, talvez alguém de sua família. Isso explicaria a presença de Opa na
região de Elche, que deveria ser um importante reduto político de influência da família de
Égica. Com a grande anistia concedida por Witiza, Teodomiro também deve ter sido
beneficiado. Dessa forma ele poderia gozar de prestigiosa posição quando da invasão moura.
Assim, pode-se perceber que o clã de Égica possuía uma forte autoridade em regiões
bastante distantes. A dispersão da família era uma prática recorrente para fortalecer o poder
dos reis.220 Opa, destarte, teria a função de tutela e conselho entre os personagens mais jovens
da família.221 Tal como em outras partes do ocidente, membros do entorno familiar da
monarquia ocupavam posições de privilégio frente às unidades regionais.222 Égica, já
213 Conc. XIII. Tol. “Oppa Tudensis episcopus”. 214 Conc. XII. Tol. “Genetivus Tudensis ecclesiae episcopus”. 215 FREZ, A. I. Los dos Vitizas. p. 310. 216 Conc. XV et XVI Tol. “Adelfus Tudensis sedis episcopus”. 217 Conc. XVI Tol. “Oppa Ilicitanus episcopus”. 218 ISLA FREZ, Los dos Vitizas. p. 310. 219 GARCIA MORENO, L. A. Prosopografia Del reino visigodo de Toledo. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1974. Nº 152. 220 DUBY, G. Guerreiros e camponeses. Os primórdios do crescimento econômico europeu. Séc. VII-XII. Lisboa: Estampa, 1978.p. 49. 221 ISLA FREZ, Los dos Vitizas. p. 311. 222 Ibid. p. 311.
60
referimos, se empenhava bastante para fortalecer sua posição, e a nomeação de membros de
sua família para governos regionais fazia parte desse esforço.
Witiza, portanto, teria sido o herdeiro político de um vigoroso clã, e era quem estava à
frente desse influente grupo nobiliárquico. Todavia, foi incapaz de governar com o mesmo
autoritarismo de Égica. Dessa forma. Witiza, mesmo fazendo parte de um clã prestigioso,
teria sido obrigado a fazer diversas concessões à nobreza para poder governar. Tanto Égica
quanto Witiza sustentaram-se em laços de fidelidade para governar. Mas, enquanto o pai era
enérgico e centralizador, o filho era inativo e lasso. Assim, segunda as fontes, Witiza seria um
rei que governava com uma fraca instituição monárquica, e com um crescente poder das
nobrezas regionais. Nem mesmo seu clã, e Teodomiro é exemplo disso, estava coeso em torno
da instituição monárquica. O que pode ter sido ao mesmo tempo causa e conseqüência da
fragilidade institucional de Witiza seria sua personalidade, descrita como piedosa – ou, se
preferirmos, politicamante frágil.
* * *
Os anos de governo de Witiza são um período de extrema escassez de fontes. Somente
através de relatos posteriores é que se pode sugerir algumas hipóteses acerca da linha política
que adotou. Nos parece que Witiza, ao contrário de Égica., não conseguiu frear o processo de
protofeudalização que acometia o Reino Visigodo de Toledo. Assim, é provável que tenha
partilhado boa parte de seus poderes com a nobreza para garantir sua estabilidade política.
Não se sabe ao certo as circunstâncias da morte de Witiza. Teria morrido nos primeiros meses
de 710.223 Possuía menos de trinta anos, e deixou três filhos – Akhila, Olmundo e Ardabasto.
Estes, juntamente com seu irmão Opa, ainda desempenhariam importante papel no crepúsculo
político do Reino Visigodo.
2.5 – Rodrigo
Witiza morrera em situação obscura, e sem associar ninguém ao trono. Dessa forma, a
indicação do sucessor aconteceu por eleição, método que - mesmo sendo pouco aplicado - não
deixava de ser o procedimento legal de ascensão monárquica. Assim, um setor majoritário da
223 Chron. Alb. XIV, 33. “Toletoque Uittiza uitam finiuit sub imperatore Tiberio.”. Chron. Adf. Tert. (rot.). 5. “Interea Uitiza post regni annis X morte propra Toleto migrauit era DCCXLVIIII”.
61
nobreza hispano-visigoda elegeu Rodrigo, provavelmente duque da Baetica até então. Essa
eleição parece ter sido bastante controversa, pois Rodrigo não contava com o apoio da
nobreza do nordeste peninsular. Como tivemos oportunidade de constatar, trata-se de uma
região onde se encontrava a base de apoio do clã de Égica e Witiza, e que queriam alçar ao
trono um monarca que lhes fosse favorável. Não era o caso de Rodrigo
2.5.1 – A ascendência de Rodrigo
Rodrigo seria neto de Chindasvinto e filho de Teodefredo.224 Este, segundo as fontes,
fora cegado por Égica. Essa punição é tradicional para os casos de traição. Nas atas dos
Concílios XII e XVI de Toledo aparece o nome de um conde Teodefredo.225 É possível que se
trate da mesma pessoa. Para tanto, Rodrigo deveria ter em torno de dezessete anos quando
assumiu o trono, pois tal castigo teria acontecido após a celebração do Concílio XVI (693).
Teodefredo, portanto, seria irmão de Recesvinto e primo de Ervígio. Isso explicaria a
presença de Teodefredo no Concílio XII, realizado sob a égide de Ervígio. Seria um homem
bastante influente. Égica, temendo que esse filho de Chindasvinto reunisse forças para
recuperar o trono que fora de seu pai, o teria cegado para afastá-lo do poder.226
No entanto, ao que tudo indica, Teodefredo, mesmo recebendo a punição continuava
sendo um homem poderoso. Cego, teria ido à Córdoba, na Baetica. Lá, Teodefredo teria
casado com uma mulher de nobre estirpe – Ricilo, que lhe daria um filho – Rodrigo.227
Possuindo um palácio em Córdoba,228 descendendo de famílias importantes, e com fama de
grande guerreiro,229 é provável que Rodrigo fosse duque da Baetica quando foi eleito rei dos
visigodos. É evidente que isso aconteceu a contragosto dos setores nobiliárquicos witizianos,
que fariam forte oposição a esse declínio de poder de seu clã.
224 Chron. Adf. Tert. (Rot.), 6 “Qui iam factus Rudericus ex patre Teodefredo est genitus. Teodefredus uero
fillius Cindasuindi Regis fuit, quem pater in etate parbuli reliquid”. 225 Conc. XII Tol. “Theudefredus similiter ss.”. e Conc. XVI Tol. “Teudefredus comes”. 226 Chron. Adf. Tert. (Rot.), 6 “Quumque tempus transisset et ad etatem perfectam uenisset, uidens eum Egica
rex eligantem, recogitans in corde ne cum Gotis coniurationem faceret et eum a paterno regno expuleret,
Teodefredo oculos euellere precepit”. 227 Chron. Adf. Tert. (Rot), 6. “Qui a regia urbe expulsus Corduba adiit habitandus, ibique sortitus est ex magno
genere huxorem nomine Ricilone, et ex eis natus est filius iam ditus Rudericus”. 228 Chron. Adf. Tert. (Rot.), 6. “Antequam regnum adipisceret, Corduba in ciutate palatium est fabricatus, qui
nunc a Caldeis Uallat Ruderici est uocitatus”. 229 Chron. Adf. Tert. (Rot.), 6. “Uir uellator fuit”.
62
2.5.2 – Disputas pelo poder
Rodrigo contava com o apoio de um setor majoritário da nobreza hispano-visigoda.230
Esse fato é interessante, pois demonstra que apesar das diversas concessões feitas por Witiza
aos nobres, o eleito provinha do clã rival. Talvez tenha pesado na decisão o fato de Rodrigo
ser um dux, e, um homem de armas, era o que o Reino Visigodo mais precisava nesse
conturbado momento. Outra hipótese possível é a de que, mesmo sendo legítima, a eleição de
Rodrigo se deu em condições que se assemelhavam muito a um complô faccional.231 Há ainda
a possibilidade de que estivesse deflagrada no Reino Visigodo de Toledo uma guerra civil
entre os dois grandes clãs rivais da nobreza visigoda,232 e Rodrigo tenha saído vencedor.
Independente da forma com que Rodrigo tenha sido eleito, o fato é que a nobreza
pertencente ao clã de Witiza, como era de se esperar, opôs grande resistência ao seu governo.
Ao que algumas fontes indicam, Rodrigo não conseguia estender seu poder a todo o Reino.
Com o nome de um dos filhos de Witiza, Akhila, acunharam-se moedas no nordeste
peninsular.233 É provável que nessa região tenha sido proclamado um outro rei na pessoa de
Ágila II.234 Esses setores nobiliárquicos, que pertenciam ao grupo de Witiza, possivelmente
exerciam um certo poder independente de Rodrigo nas regiões orientais - vale do Ebro,
Cartaginense e Septimania.
Todavia, Rodrigo era o legítimo rei visigodo. Assim como acontecera com Wamba,
não só ascendeu pela eleição,235 como recebeu a unção,236 procedimentos incontestes de
legitimidade monárquica. Assim, em tese, toda a nobreza lhe devia fidelidade – inclusive os
clientes do clã de Witiza. A realidade, porém, era a de uma velada guerra civil, em que os clãs
degladiavam-se entre si pela coroa, face a uma monarquia totalmente debilitada.
230 GARCIA MORENO, Historia de España Visigoda. p. 188. 231 Ibid., p. 189. 232 Chron. 754, 34 “(...) Rudericus tumultuose regnum, hortante senatu, invadit.” Embora a Crônica Moçárabe fale que Rodrigo se apoderou do reino através de uma suposta rebelião, não se pode afirmar que se trata de uma usurpação. O mais porvável e que se trate de uma guerra civil. Isso porque O termo “senado” provavelmente indica o Ofício Palatino. Se ele foi alçado ao trono por esses nobres, não temos razão para discordar de sua legitimidade. Cron. Adf. Tert. (Rot.), 6 “Quo Uitizane defuncto Rudericus a Gotis eligitur in regno”. 233 ORLANDIS, op. cit.,. p. 266. 234 GARCIA MORENO, Historia de España Visigoda. p. 189. Não se sabe ao certo se Akhila e Ágila II são a mesma pessoa. O mais provável, devido à idade com que morrera Witiza, é de que são pessoas diferentes. 235 Chron. Adf. Tert. (Rot.), 6 “Quo Uitizane defuncto Rudericus a Gotis eligitur in regno”. 236 Chron. Adf. Tert. (Rot.), 7 “Postquam Uitiza fuit defunctus, Rudericus in regno est perhunctus”.
63
2.5.3 – O auxílio estrangeiro
Em meio às turbulências da política interna, o Reino Visigodo de Toledo assistia
passivo à vigorosa expansão islâmica. Segundo as crônicas asturianas, já na época de Wamba
havia os primeiros indícios da presença desses novos vizinhos.237 Durante o reinado de Égica
também se comentara o perigo que se encontrava em África, mas na figura dos judeus.238
Fazia, portanto, já algum tempo que os generais da Ifriquya muçulmana tinham a intenção de
conquistar a Hispania. Só esperavam a conjuntura favorável que agora se lhes apresentava.
Em 709, Walid I recebia em Damasco o cetro de rei dos sarracenos.239 Walid nomeara
para governar a província africana Musa ibn Nusayr,240 que recentemente havia conquistado
Marrocos. Em 710, Musa autoriza uma incursão de reconhecimento comandada por seu
general Tariq ibn Ziyad, que foi até aos arredores de Tarifa.
A essa altura dos acontecimentos, o setor nobiliárquico que apoiava os descendentes
de Witiza provavelmente já estava em negociação com os muçulmanos. Esperava-se que com
o apoio bélico islâmico seria possível destronar Rodrigo,241 e alçar alguém que fizesse parte
de seu clã político. Não era uma idéia totalmente descabida, haja vista existirem precedentes
que lograram êxito. Atanagildo, com o auxílio dos bizantinos; e Sisenando, com a assistência
dos francos, haviam sido bem-sucedidos ao buscar apoio externo para conseguir a coroa
visigoda.
Não se sabe ao certo como se deu a negociação entre o clã witiziano e os muçulmanos.
É possível que Oppa, irmão de Witiza, fosse um dos responsáveis pela aliança. Há uma lenda
de que a praça bizantina de Ceuta, que resistiu aos islâmicos, era defendida por um
personagem misterioso chamado conde Juliano.242 Este seria um cliente de Witiza, e teria sido
o intermediário entre Oppa e os sarracenos. A negociação teria passado desapercebida por
Rodrigo, posto que o rei se encontrava no norte peninsular, numa das habituais campanhas
visigodas contra os vascos.
237 Chron. Adf. Tert. (Rot.), 2 “ Illius quoque tempore CCLXX nabes Sarracenorum Spanie litus sunt adgresse,
ibique omes pariter sunt delete et ignibus concremate”. 238 Conc. XVI Tol. Tomus. “(…) indubie invenimus hos in transmarinis partibus haebreos alios consuluisse, ut
unanimiter contra genus christianum agerent praestolantes perditionis suae tempus (…)”. 239 Chron. 754, 33. “Hujus temporibus, in aera 748, anno imperii Justinianii tertio, Arabum 91, Ulit sceptra
regni Saracenorum, secundum quod exposuerat pater ejus (...)”. 240 Chron. 754, 33. “(…) per ducem sui exercitus nomine Muza (…)”. 241 Fato que indica a legitimidade de Rodrigo. 242 ORLANDIS, op. cit. p. 267.
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2.5.4 – A Batalha do Rio Guadalete
De qualquer forma, auxiliado pelo setor nobiliárquico de oposição a Rodrigo, Tariq
transporta seu exército à Hispania em pequenas embarcações.243 O desembarque ocorrera na
noite de 27 de abril de 711, e estima-se que os guerreiros de Tariq contabilizavam um
contingente de cerca de sete mil homens.244
Ao saber das más notícias, Rodrigo, que estava sitiando Pamplona, imediatamente
reuniu seu exército e marchou para o sul. Em meados de julho, os dois exércitos se
encontraram às margens do Rio Guadalete, perto de Medina Sidônia, para aquela que seria a
batalha decisiva. E assim seria, não devido a suas proporções, que não era das maiores. Mas a
conjuntura política em que ocorreu essa batalha faria com que o rio Guadalete fosse
testemunha de um dos mais importantes acontecimentos da História.
Rodrigo confiara os flancos do exército visigodo aos filhos de Witiza.245 Não por
opção, mas por necessidade. Isso porque é provável que, às pressas, Rodrigo tenha reunido
pouco mais que os nobres da casa régia e da Baetica. Assim, seu exército não seria dos
maiores, necessitando, portanto, engrossar suas tropas. Cabeças de uma facção sempre
poderosa, os filhos de Witiza estavam à frente de um grande séqüito armado. Outra razão para
aceitar apoio dos witizianos é que, como todos os outros nobres, eles também haviam
testemunhado uma adesão ao monarca. Não pelo fato de ser ingênuo, mas por confiar num
juramento, que na época era algo de significativo, Rodrigo conferiu suas alas aos filhos de
Witiza.
Deflagrada a batalha, os witizianos consumam sua traição.246 Ordenam o recuo dos
flancos e deixam o centro desprotegido, de modo que o exército visigodo sofra fulgurante
derrota. Nada mais impedia um domínio muçulmano sobre a Península Ibérica. Muitos
nobres, em especial os pertencentes à casa régia perderam a vida às margens de Guadalete. O
próprio Rodrigo morrera ali, e seu corpo provavelmente foi retirado do campo de batalha por
um gardingo. Com a maior parte da fina flor da nobreza visigoda eliminada em Guadalete, o
que sobrou do exército visigodo tentou desesperadamente frear o avanço inimigo nas
243 Chron. Adf. Tert. (Seb.), 6. “Filii uero Uuittizani inudia ducti eo quod Rudericus regnum patris eorum
acceperat, callide cogitantes missos ad Africaniam intromittunt”. 244 ORLANDIS, op. cit. p. 267. 245 Ibid.. p. 267. 246 Chron. Adf. Tert. (Rot.), 7. “Sed suorum peccatorum classe oppressi et filiorum Uitizani fraude detecti in
fuga sun uersi”. Cron. 754, 34. “(...) eo praelio, fugato omni Gothorum exercitu, qui cum eo aemulanter
fraudulenterque ob ambitionem regni advenerant, cecidit”.
65
proximidades de Écija. Novamente foram derrotados por Tariq, que agora não possuía mais
grandes óbices ao seu escopo.
Depois de consumada a fragorosa derrota visigoda, Musa cruza as colunas de Hércules
em 712 com um reforço de 5000 homens. Em 713, depois de dominar Sevilha e Mérida, que
ofereceu grande resistência, Musa e Tariq marcham rumo à capital. Toledo cai rapidamente, e
esse é um acontecimento capital. Não deve ter sido superficial o impacto psicológico da perda
da capital, há tanto tempo urbe regia visigoda. Quatro décadas depois, o autor da Crônica
Moçárabe de 754 ainda relata a queda de Toledo com uma tônica apocalíptica.247
Em diversas localidades existiram focos de resistência. Tratava-se, em geral, de
cidades amuralhadas defendidas por condes locais. Mas, rápida e gradualmente, os sarracenos
conseguiram dominar a maior parte da Península. E isso se deu em parte graças ao auxílio
dos judeus que, cansados das duras sanções que os visigodos lhes impunham, devem ter
facilitado, na medida do possível, a vitória dos islâmicos. Outro auxílio importante foi o dos
witizianos. Por instigação de Oppa, os invasores fizeram uma verdadeira devassa na nobreza
hispano-visigoda. É possível que todos os nobres que estivessem em Toledo, e não
pertencessem ao clã de Witiza, tenham sido decapitados. Os traidores witizianos, entretanto,
não puderam desfrutar da derrota de Rodrigo, pois os muçulmanos apossaram-se eles próprios
do trono visigodo. Aos filhos de Witiza coube contentarem-se com o que sobrara do erário
régio.
* * *
Pode-se dizer que após Witiza a força centrífuga nobiliárquica em torno da figura do
rei se encontra no ápice. Reflexo disso é a falta de consenso para a sucessão real. Numa
eleição que muito se assimilou a um complô faccional, Rodrigo ascendeu ao poder, embora
não fosse reconhecido como rex visigothorum em algumas localidades em que se encontrava
a base de apoio de Witiza. Por isso mesmo seu governo foi bastante efêmero. O fato de não
ter sido associado ao trono pelo predecessor, o que lhe garantiria uma maior estabilidade,
aliado à falta de um grande respaldo nobiliárquico fizeram com que seu governo fosse
insustentável. Embora seja provável, não se sabe se Rodrigo foi ungido. Entretanto, tal era o
grau de “protofeudalização” no Reino Hispano-Visigodo de Toledo que os ritos católicos
247 Chron. 754, 37.
66
pouco efeito fariam. O que realmente pesava eram as relações régio-nobiliárquicas,
responsáveis por manter um monarca no poder. A incapacidade política de Rodrigo em
costurar essas alianças foi o que determinou sua débil legitimidade, e conseqüentemente, sua
derrota militar.
67
3. TEORIAS DE LEGITIMAÇÃO MONÁRQUICA 3.1 – Formas de Ascensão ao Poder A sucessão monárquica foi, como tivemos oportunidade constatar, o maior problema
em âmbito político que se verificou no Reino Visigodo de Toledo. O fato de a monarquia não
ser hereditária engendrou, em grande parte, esse problema. Alguns eclesiásticos como Isidoro
de Sevilha e Juliano de Toledo procuraram elaborar algumas regras de sucessão monárquica.
Tentaram instaurar a eleição como forma legítima de se alçar ao poder. Entretanto, a eleição,
que tinha sua origem nas antigas tribos germânicas, se tornou, ao fim e ao cabo, um rito que
corroborava um poder previamente conquistado. Assim, havia vários caminhos para um nobre
se alçar ao trono visigodo. No período final, que compreende os reinados dos últimos cinco
soberanos, encontramos basicamente três formas não excludentes de ascensão ao poder.
FORMAS DE ASCENSÃO E GENEALOGIA DOS ÚLTIMOS
REIS HISPANO-VISIGODOS
CHINDASVINTO
(usurpatio 642-653)
RECESVINTO
(adoptio 642-672)
WAMBA
(electio 672-680)
ERVÍGIO
(usurpatio 680-687)
ÉGICA
(adoptio 687-702)
WITIZA
(adoptio 702-710)
RODRIGO
(electio 710-711)
Teodefredo Ricilo “Sobrinha de Chindasvinto”
Ardabastus
Cixilo
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3.1.1 – Electio Como tivemos oportunidade de mencionar mais de uma vez, foi no Concílio IV de
Toledo, celebrado sob a égide de Isidoro de Sevilha, que se lançaram as bases da eleição
como forma de sucessão monárquica. Porém, dos nove soberanos que reinaram após a
celebração desse concílio apenas três ascenderam realmente pela eleição – Chintila, Wamba e
Rodrigo.
O cânone 75 do Concílio IV de Toledo havía sido redigido com nítida intenção de que
se “fortaleça a situação de nossos reis e que dê estabilidade ao povo dos Godos”.248 Isidoro
de Sevilha era um defensor da sucessão hereditária, ao passo que a nobreza laica preferia a via
eletiva.249 A solução encontrada pelo Hispalense foi a inclusão do episcopado no processo
eletivo. Naquele concílio exortava-se que, morto pacificamente um rei, a nobreza de todo o
povo juntamente com o episcopado elegeriam de comum acordo o novo soberano.250 Três
anos depois Chintila, um dos monarcas que ascendeu pela eleição, convoca um novo concílio
geral. Reitera-se, obviamente, a eleição como forma de ascensão, e se aponta para a
exclusividade de apenas os nobres de gótica estirpe serem elegíveis.251 Note-se que a sanção
não deve ser interpretada ao pé da letra. O que se deseja não é a exclusão da nobreza hispano-
romana, mas vedar o acesso de estrangeiros, mormente de bizantinos e francos, ao trono dos
visigodos.252 Essa medida é corroborada no Concílio VI de Toledo, convocado pelo mesmo
monarca em 638. Nessa ocasião afirma-se que não se apoderará do trono “aquele que tenha
sido tonsurado sob o hábito religioso ou vergonhosamente decalvado, que proceda de família
servil, bem como estrangeiros; mas sim um godo de sangue e de costumes dignos”.253
Entretanto, Chintila associa seu filho ao poder, de modo que o sucessor não foi escolhido por
uma eleição propriamente. Finalmente, no Concílio VIII de Toledo os bispos, após a
usurpação de Chindasvinto e da associação de Recesvinto ao trono, mencionam que
“doravante, o rei será eleito com os votos dos bispos e dos nobres do palácio”.254
248 Conc. IV Tol. c. 75 “(...) postrema nobis cunctis sacerdotibus sententia est pro robore nostrorum regum et
stabilitate gentis Gothorum pontificaale ultimum sub Deo iudice ferre decretum (...)”. 249 FRIGHETTO, R. Aspectos da Teoria Política Isidoriana: o cânone 75 do IV Concílio de Toledo e a constituição monárquica do Reino Visigodo de Toledo. In: Revista de Ciências Históricas XII, Porto, 1997, p.75. 250 Conc. IV Tol. c. 75. 251 Conc. V Tol. c. 3. “(...) Ut quisquis talia meditatus fuerit, quem nec electio omnium provehit nec Gothicae
gentis nobilitas ad hunc honoris apicem trahit (...)”. 252 GARCIA MORENO, Historia de España Visigoda. p. 319. 253 Conc. VI Tol. c. 17. 254 Conc. VIII. Tol. c. 10. “Adhinc ergo deinceps ita erunt in regni gloriam perficendi rectores, ut aut in urbe
regia aut in loco ubi princeps decessrit cum pontifium maoriumque palatii omnimodo eligantur adsendu (...)”.
69
Assim, desde a reunião do Concílio IV de Toledo de 633 até o Concílio VIII de
Toledo, a Igreja formaliza o processo eletivo. Depois desse concílio rareiam as referências
sobre a electio nessas reuniões. O próximo monarca, Wamba, será eleito. Mas esse não é o
principal motivo para que os concílios não comentem mais acerca da eleição como a legítima
forma de sucessão. Na verdade, a ascensão ao trono por outros meios não exclui a
possibilidade de uma eleição formal ou de uma aclamação por parte de nobres e bispos.255 De
fato, no âmbito do cerimonial de legitimação monárquica o novo soberano, além der ser
ungido, de receber o juramento de fidelidade da nobreza, e de jurar que governaria de acordo
com os preceitos católicos, provavelmente era eleito ou aclamado pelos partícipes da
cerimônia. No caso da rebelião do duque Paulo contra Wamba, por exemplo, sugere-se uma
eleição para que escolhessem quem seria o novo soberano da Gália Narbonense. O resultado,
tão certo quanto o crepúsculo solar, recai sobre o próprio duque.256 Esse evento exemplifica
bem como funcionavam esses atos formais de eleição, que legitimavam alguém que já era de
fato considerado rei.
É significativo o fato de que, dentre os cinco reis cujas trajetórias analisamos, dois
tenham ascendido pela eleição. Isso porque tal procedimento pode indicar a falta de consenso
em torno de uma pessoa. Tanto a força centrífuga da nobreza quanto as disputas
internobiliárquicas pela coroa favoreceram o acionamento do mecanismo eletivo para tentar
solucionar o problema da sucessão num momento político assaz conturbado. Durante reinados
em que a maior parte da aristocracia se encontrava unida, a favor ou contra um monarca, a
eleição foi preterida pela associação ao trono de algum nobre que representasse os seus
interesses. Assim aconteceu com Recesvinto, quando a nobreza laico-eclesiástica solicitou a
Chindasvinto que associasse seu filho ao trono, na esperança de que este mitigasse as medidas
de seu pai. Assim aconteceu com Ervígio, que ascendeu com a hipoteca nobiliárquica de
revogar as leis militares de Wamba.
3.1.2 – Usurpatio
Tanto Ervígio quanto Chindasvinto usurparam o poder, e conseguiram que seus
poderes fossem legitimados. Posto que há a possibilidade de um rei usurpar o poder e se
tornar legítimo, é necessário distinguir entre o tyrannus e o usurpator. Ao passo que o
255 ORLANDIS, op. cit., p. 198. 256 Iul. Tol. His. Wamb. 8. “Quin potius ait: ‘Caput regiminis ex uobis ipsis eligite, cui conuentus omnis
multitude cedat, et quem in nobis principari appareat’.”
70
primeiro termo é apanágio do mau soberano, o segundo é característico ao nobre que se lança
contra um rei que detinha um poder legítimo. A usurpação era o modo pela qual não se
deveria ascender ao trono, a tirania era o modo pelo qual não se deveria governar. Embora
respaldadas pela ideologia católica, essas sanções políticas não tinham muita validade na
práxis. O que contava era a base de apoio nobiliárquica, e as habilidades políticas pessoais do
monarca. Assim, pode-se afirmar que no Reino Visigodo de Toledo a prática política precedia
a teoria política.
No caso de Chindasvinto, é provável que contasse com o apoio de um segmento social
marginalizado, que lhe conferiu um certo suporte armado quando deflagrou sua rebelião. Essa
hipótese ganha respaldo ao analisarmos as atas do Concílio VIII de Toledo, convocado por
Recesvinto em 653. No cânone décimo os bispos exortavam que doravante “não serão
designados os reis pela conspiração de poucos ou pelo tumulto sedicioso dos povos
rústicos”.257 Provavelmente é uma menção à usurpação lograda por seu pai, uma vez que o
mesmo cânone reitera a eleição como forma legítima de sucessão monárquica. Entretanto, em
nenhum momento as fontes hispano-visigodas associam o termo tyrannus a Chindasvinto.
Após ter eliminado metade da nobreza hispano visigoda, os bispos do Concílio VII de Toledo
afirmam que a reunião foi convocada por indicação do “sereníssimo e amante de Cristo, nosso
rei Chindasvinto”.258 Não resta dúvida que, os argumentos que o amante de Cristo expôs aos
bispos, eram bastante persuasivos para que fosse considerado um cristianíssimo soberano.
Quando Chindasvinto morre, em 653, Eugênio de Toledo promove uma damnatio memoriae
de Chindasvinto, definindo-o como culpado e pecador, criador de crimes, de natureza
depravada, e que chegou ao poder fazendo cadáveres. Porém, não o chama de tyrannus,
embora o defina como tal. Talvez seja por causa da associação de seu filho ao poder, e de uma
tentativa de apaziguamento da nobreza levada a cabo por esse. De toda forma, Chindasvinto
foi não apenas um tyrannus, mas também um usurpator que teve seus poderes plenamente
legitimados por meio da violência contra os seus rivais e oponentes.259
No caso de Ervígio a usurpação foi legitimada de outra forma. Ele não detinha o
mesmo apoio nobiliárquico que Chindasvinto. Ademais, Wamba havia sido alçado ao poder
pela eleição e recebera a unção. Portanto, a legitimação da usurpação de Ervígio constituía-se
um grande desafio. Dessa forma, precisou-se recorrer ao artifício da tonsura, respaldado pela
257 Conc. VIII Tol. c. 10. “(...) non forinsecus aut conspiratione paucorum aut rusticarum plebium seditioso
tumultu (...)”. 258 Conc. VII Tol. c. 1 “(...) serenissimi et amatoris Christi Chindasvindi Regis noster (...)” 259 FRIGHETTO, Os Usurpadores e “maus” soberanos e o conceito de tyrannia..., p. 137.
71
legislação eclesiástica, para que Wamba fosse deposto de forma legítima. Não houve, dessa
forma, uma usurpação, caracterizada pela quebra de fidelidade ao soberano reinante.260 Após
Wamba ter sido tonsurado, Ervígio passara por todos os rituais católicos de legitimação
monárquica, o que era algo importante. Porém, ainda mais significativo era o fato de o
Concílio XII de Toledo afirmar que Wamba associara Ervígio ao trono. Este seria o elemento
responsável por legitimar a ascensão do novo monarca.
3.1.3 – Adoptio
Os documentos eram, sem dúvida, forjados, mas denotam bem como a adoptio era, na
prática, a via natural da sucessão. Essa prática, que possuía um precedente no modelo dos
césares protobizantinos261, consiste na associação ao trono como consortes regni de algum
nobre vinculado ao monarca reinante, geralmente por laços de parentesco, que representasse
os interesses de seu grupo. A facção nobiliárquica articulada com o poder régio possuía
alguns interesses na prática da adoptio, pois, sendo o sucessor alguém ligado ao mesmo clã,
era provável que os privilégios e patrimônios conquistados fossem mantidos com o próximo
monarca. A aristocracia, como instituição política, porém, jamais consentiu com o
procedimento da associação, pois isso poderia tornar-se uma importante prerrogativa régia
que a afastaria do poder.262 Nesse sentido, concordamos apenas em parte com Valverde
Castro quando a autora afirma que foram reis enérgicos os que conseguiram associar seus
herdeiros ao trono – Chindasvinto e Égica. 263 Essa afirmação é verdadeira, pois, tendo
desarticulado as forças de oposição, ambos os soberanos ficaram em condição de garantir uma
sucessão pacífica aos herdeiros que queriam associar ao trono. Porém, é incompleta. Égica foi
associado ao trono por um rei considerado fraco perante a nobreza. Ademais, o próprio
Ervígio legitimava sua ascensão pela adoptio.
Égica e Ervígio não se enquadram, assim, na tendência proposta por Valverde Castro.
O caso de Ervígio é ainda mais significaitvo. Mesmo que representasse uma solução de
compromisso da maior parte da nobreza hispano-visigoda, insatisfeita com a publicação das
leis militares de Wamba, o natural seria que Ervígio fosse eleito. Assumiria, assim, de forma
legítima o trono. Entretanto, a teoria de legitimação que se desenvolveu para a sua ascensão
260 FRIGHETTO, Usurpação, Tyrania e a dominação na Hispania Visigoda de finais do século VII..., p. 56. 261 GARCIA MORENO, Historia de España Visigoda. p. 323. 262 VALVERDE CASTRO, op. cit. p. 279. 263 VALVERDE CASTRO, op. cit. p. 278.
72
foi a adoptio. Juliano de Toledo assim escrevia no cânone primeiro do Concílio XII de
Toledo; “Wamba, vendo-se acometido de uma gravíssima enfermidade, e tendo recebido o
hábito religioso, e o venerável sinal da tonsura sagrada, por meio de uma decisão sua escrita,
elegeu o nosso ínclito senhor Ervígio para que reinasse depois dele”. Em seguida, afirma-se a
veracidade do documento, após uma olhada perspicaz no “decreto procedente do mesmo rei,
onde mostra seu desejo de que se nomeie rei depois dele o nosso senhor Ervígio.”264
Assim, nossa conclusão é a de que a adoptio, não apenas hereditária, converteu-se no
mecanismo sucessório tacitamente reconhecido, embora não houvesse nenhuma formulação
teórica a respeito. No período final da monarquia visigoda, Recesvinto, Égica e Witiza
ascenderam dessa forma. Égica foi associado visando um apaziguamento de ânimos do clã de
Wamba, mediante uma série de juramentos. Witiza assumiu como co-regente na tentativa de
manter o poder nas mãos do mesmo clã. Ademais, no referido cânone primeiro do Concílio
XII de Toledo, Ervígio alegava ter sido associado por Wamba ao poder. Fica evidente, de tal
modo, que a adoptio foi o instrumento mais recorrente de sucessão monárquica.
* * *
Note-se, destarte, como as três formas de ascensão não são excludentes. Ervígio
usurpou o poder, mas disse que fora associado e, provavelmente, deve ter passado por algum
processo formal de eleição ou aclamação. Égica e Witiza, além de serem associados, também
devem ter sido eleitos ou aclamados pelos seus pares. Apenas Wamba e Rodrigo parecem ter
ascendido verdadeiramente através de uma eleição. Entretanto, tão importante quanto
ascender ao poder era mantê-lo, tarefa que não era das mais fáceis.
3.2 – Formas de Manutenção do Poder
Ao afirmarmos que a prática política anteveio à teoria, queremos dizer que a forma de
ascensão e de sucessão monárquica não tinham, na práxis, tanto peso quanto as formas de
legitimação do poder monárquico. Se, legalmente, apenas Wamba e Rodrigo poderiam ser
considerados reis, na prática, todos os monarcas conseguiram exercer a potestade régia. A
264 Conc. XII Tol. c. 1 “ (...) mox per scribturarum definitionis suas hunc inclytum dominum nostrum Ervigium
post se praeelefit regnaturum (...) scribturam quoque definitionis ab eodem editam ubi gloriosum dominum
nostrum Ervigium post se fieri regem exobtat (...)”.
73
eleição formal transformara-se num ato de legitimação de um poder que se conquistava de
várias formas, via eleição propriamente, usurpação ou associação ao trono. Porém, além desse
ato formal de eleição, havia mais dois importantíssimos mecanismos de se legitimar um
poder, independentemente de como ele fora apropriado – os ritos católicos e as relações régio-
nobiliárquicas.
3.2.1 – Princeps Christianus Sacratissimus
A relação entre cristianismo e poder tem suas origens na época baixo-imperial. Desde
Constantino, muitos imperadores associaram suas potestades à defesa do cristianismo. Como
tivemos oportunidade de mencionar no primeiro capítulo, na Hispania Visigoda a relação
entre Estado e Igreja se estabelece em 589, quando Recaredo converte o reino ao catolicismo
niceíta. Se a Igreja católica ganha algumas prerrogativas e direitos, a monarquia se beneficia
de um poderosíssimo aparato ideológico. Doravante o poder monárquico é investido de um
caráter sagrado. A figura do rei torna-se divina, ele é o representante de Deus na Terra. Sua
potestade é exercida para conduzir seus súditos conforme os preceitos católicos. A monarquia
passa a ter, em tese, uma função teleológica, consoante à mensagem igualmente teleológica
do cristianismo. E isso justifica, agora, todas as prerrogativas régias.
O grande teórico da monarquia hispano-visigoda foi, sem dúvida Isidoro de Sevilha. O
célebre cânone 75 do Concílio IV de Toledo traz algumas considerações importantes a
respeito do papel que um monarca deveria assumir, o de príncipe cristão. Seguia-se,
basicamente, o modelo de legitimação cristã adotado no Império Bizantino à época.
Associava-se a figura do soberano visigodo à de David, monarca perfeito e virtuoso sob a
ótica do Hispalense, aludindo-se à prática da unção. “Não toqueis em meus ungidos”, dizia o
Senhor em referência a David. Nessa direção, o juramento de fidelidade que a nobreza
hispano-visigoda prestava ao monarca no cerimonial de sua ascensão era investido de um
caráter sagrado. Como o rei era o ungido do Senhor, a quebra do juramento de fidelidade ao
monarca representava uma afronta perante Deus. A primeira menção que se faz da unção no
Ocidente Tardo-Antigo, porém, é com Wamba, em 672. Entretanto, não há motivos para
duvidarmos de que se trata de uma prática já recorrente em coroações anteriores, e que se
encontra plenamente institucionalizada nos últimos decênios da sétima centúria. A partir de
Wamba as fontes vão relatar os dias exatos da unção, dada a importância conferida ao ritual.
74
Por se tratar de um procedimento legitimador e com certo peso político é que Ervígio, e o
próprio duque Paulo, tendo ascendido irregularmente ao poder, são ungidos com brevidade.
Entretanto, o cargo de ungido do senhor tem lá suas responsabilidades. Um princeps
christianus sacratissimus deve ser dotado das mais eminentes virtudes cristãs. Para Isidoro de
Sevilha, a justiça e a piedade eram as que distinguiam o bom do mau soberano.265 No esteio
do Hispalense é que Juliano de Toledo confere a Wamba o protótipo do soberano ideal em sua
obra. Quando relata que Wamba promoveu um julgamento para verificar a culpa dos
sediciosos, está enaltecendo a virtude e a potestade de iudex do monarca. Quando afirma que
Wamba, a despeito da possibilidade legal de executar os pérfidos lhes poupou a vida, exalta
sua piedade. Outras virtudes cristãs, como a humildade, também aparecem no relato de
Juliano, quando Wamba titubeava em aceitar a coroa dizendo-se não ser capaz de governar o
reino. Porém, tal como em Isidoro, a justiça e a piedade se constituem para Juliano nas
principais virtudes do soberano ideal. Valério do Bierzo, outro importante autor da Hispania
Visigoda, também caracteriza o soberano ideal nos mesmos moldes que Isisdoro e Juliano.
Porém, contrariando o relato deste, o Berciano apresenta Wamba como um paradigma de mau
soberano.266 Assim ele afirma que “a repentina cólera régia lança uma cruel sentença” sobre
os herdeiros do nobre Ricimer, em uma provável alusão ao episódio das leis militares de
Wamba. Entretanto, percebe-se que as virtudes cristãs que são valorizadas são as mesmas que
para Isidoro e Juliano - a iustitia, pietas, clementia. A diferença está na perspectiva dos
autores que conferem a imagem de princeps sacratissimus christianus – e sua antítese, o
tirano – para um ou outro monarca. Ao passo que Juliano de Toledo, metropolitano do Reino
engajado com o compromisso de formar uma ideologia de poder monárquico, enaltecia a
figura do monarca reinante, Wamba; Valério, levando uma vida ascética e defendendo a
sanctitas como predicado basilar do mártir cristão, qualificava Hermenegildo como o
soberano ideal. Já,os bispos reunido do Concílio XVI de Toledo, convocado por Égica, não
hesitavam em qualificar esse monarca como misericordioso, piedoso, clemente, justo e
prudente.267 Trata-se de uma postura que tinha o objetivo de alocar o soberano como máxima
265 FRIGHETTO, Aspectos da teoria política isidoriana..., p. 82. 266 Hipótese proposta por FRIGHETTO, O soberano ideal na obra de Valério do Bierzo. 267 Conc. XVI Tol. Tomus. “ (...) ita serenissimum ac religiosissimum praedictum Egicanem principem cuius
iussu fraternitatis nostrae coetus est adunatus, fidei suae conversatione stabilitat, prorogatione iustitiae muniat,
pace locupletem reddat, impensione misericordiae fulciat, virium fortitudine roboret, quo longevitatis muniis
cluens commissa sibi regnigubernacula discreto moderamine teneat et commissos sibi populos benigne regeat,
aeque disponat et iussu pietatis modificet.”.
75
autoridade religiosa hispano-visigoda no âmbito de uma tentativa de unificação religiosa do
Reino Visigodo.268
Qualquer que fossem as perspectivas e os objetivos, era o cristianismo doravante que
respaldava o poder monárquico, avalizava ser um determinado soberano digno da confiança e
da fidelidade de seus súditos, e diferenciava por suas virtudes um príncipe cristão de um
tirano. A tirania, sob a concepção aristotélica, era a deturpação da monarquia. Esta era melhor
das formas boas de governo. Aquela, a pior das formas deturpadas de governo. Embasado
nesse pensamento peculiar a todo o mundo clássico tem-se a célebre assertiva: “Rex eris si
recte facies” – dizia Horácio “si non facies non eris” – completa Isidoro.269 Daí o caráter
político da excomunhão, no âmbito da cooperação entre Monarquia e a Igreja, a despeito de
freqüentes indisposições entre monarcas e bispos. Os soberanos aproveitaram o anátema
divino a seu favor contra aqueles que violavam a ordem estabelecida – fossem nobres,
clérigos ou mesmo futuros monarcas. A própria reiteração do anátema como sanção política,
porém, revela a inoperância desse artifício como meio de coerção e controle da aristocracia
visigoda.270 É verdade que Suintila foi destronado alegando-se que fora um mau governante.
Entretanto, é mais provável que essa alegação tenha sido a conseqüência, a justificativa para
legitimar o poder de seu sucessor, e não a causa de sua exoneração do poder.
Fruto da observação empírica, o pensamento isidoriano de legitimação monárquica
fundamentava-se na noção de fidelidade dos súditos para com o monarca sacralizado e
legitimado desde que esse não fosse um tirano.271 Eram os laços de fidelidade que, ao fim e ao
cabo, sustentavam um monarca no poder. A quebra desses laços significava não apenas uma
afronta ao soberano, mas um elemento desestabilizador de toda a ordem interna do Reino. Daí
a associação entre infidelidade e barbárie, proposta pelos autores eclesiásticos da Hispania
Visigoda. O bárbaro, passa a ser definido não como um outsider, como no mundo clássico,
mas como um elemento dotado de ferocitas, em antítese a humanitas. O paralelo então se
torna evidente. Aqueles que eram considerados traidores agiam de maneira similar aos
bárbaros, pois promoviam a instabilidade interna do reino ao mesmo tempo que insurgiam-se
268 Idéia apresentada por FRIGHETTO, Uma tentativa de unidade político-religiosa na Hipania Visigoda de finais do século VII... 269 Isid. Hisp. Etym. IX, 3, 4. 270 SANZ SERRANO, R. La excomunion como sancion política em el reino visigodo de Toledo. In: Antigüedad y Cristianismo III: Los Visigodos. Historia e Civilización. Murcia: 1986. p. 284. 271 FRIGHETTO, Aspectos da teoria política. P. 82.
76
como autêntica ameaça à integridade territorial do reino e ao poder do soberano legítimo e
sacralizado.272
Caminhando pari passu Monarquia e Igreja não mediram esforços no sentido de
formar uma teoria política que fortalecesse a figura do soberano. O resultado foi uma
concepção de poder que investia nos reis visigodos a imagem de princeps christianus
sacratissimus. Essa ideologia legitimou boa parte das prerrogativas monárquicas, mesmo que
as atitudes dos soberanos visigodos não correspondessem ao ideal de príncipe cristão. De fato,
o exercício em maior ou menor grau da potestade régia dependia também das habilidades
pessoais do monarca em angariar uma ampla base de apoio nobiliárqico.
3.2.2 – Relações régio-nobiliárquicas
Como tivemos oportunidade de mencionar anteriormente, as relações régio-
nobiliárquicas passavam, necessariamente, pelo processo de concessão e confiscação de
patrimônios. Nessa relação está enquadrada tanto a nobreza laica como a eclesiástica que
possuíam, ao fim e ao cabo, os mesmos interesses e as mesmas fontes de riqueza. O problema
é que nobreza, episcopado e também a monarquia baseavam seu poder nas mesmas fontes de
riqueza – terras com camponeses nelas produzindo. Nesse sentido, monarquia e nobreza laico-
eclesiástica seriam rivais pois, o enriquecimento de uma acarretaria no empobrecimento de
outra.
Mas essas relações eram mais profundas de modo que, se existia uma certa
indisposição entre monarquia e nobreza, o fato é que uma instituição não poderia existir sem a
outra. Quando Recaredo converteu o Reino ao catolicismo niceísta, em 589, o episcopado
ganhou uma série de vantagens e prerrogativas de caráter econômico, social e político. Assim,
mesmo fazendo parte de um grupo nobiliárquico mais amplo, o episcopado convertia-se em
um segmento específico, com certos interesses próprios. Porém, para manterem esses
privilégios, a aristocracia eclesiástica necessitava apoiar-se numa organização estatal que
garantisse o exercício de seus privilégios.273 É nesse sentido que se deve entender a tentativa
de se elaborar uma ideologia de poder teocrático por parte de alguns expoentes do episcopado
hispano-visigodo, como Isidoro de Sevilha e Juliano de Toledo. Note-se, porém, que na
verdade se tentava inverter a relação de dependência e colocar o poder monárquico sob a
272 FRIGHETTO, R. Infidelidade e barbárie na Hispania Visigoda. In: Gerión. Vol. 20. n. 1. 2002. p. 509. 273 VALVERDE CASTRO. op. cit., p. 257.
77
tutela do eclesiástico. O artifício utilizado para tanto seria a unção, prerrogativa do
metropolitano. Tal ideologia, porém, não vingou, e temos indícios de que também o
episcopado sofreu com eventuais confiscações de patrimônios.
Favoreceu para o fracasso dessa ideologia teocrática na Hispania Visigoda a forte
participação política de uma nobreza laica. Amparada em juramentos de fidelidade entre si e
na posse de um grande patrimônio, essa aristocracia pôde atuar como um poder moderador à
monarquia, impondo, na maioria das vezes, sua vontade. Esta nobreza, porém, também
precisava de um monarca para que suas bases sócio-econômicas não se deteriorassem e para
que sua destacada posição social no seio da sociedade hispano-visigoda se consolidasse. Só o
soberano podia nomear nobres para ocupar cargos públicos, nos quais a oportunidade de se
auferir emolumentos era desmesurada. Só ele poderia confiscar terras, e doá-las para outrem,
favorecendo determinado grupo nobiliárquico em detrimento de outro. Ao fim e ao cabo, o
que desejavam os nobres era um monarca com poderes limitados, que não representasse uma
ameaça aos seus poderes cada vez maiores. Um primus inter pares.
A monarquia dependia de uma e outra força. Necessitava de um respaldo ideológico
da Igreja para se legitimar num contexto de carência de mecanismos sucessórios claros.
Dependia, porém, muito mais da nobreza laica. Era esta que lhe auxiliava a exercer as funções
administrativas, fiscais e judiciárias, essenciais para o governo do Reino.Era esta que lhe dava
apoio bélico para que suas ordenações fossem respeitadas e seus inimigos castigados. Era
esta, por fim, que destronava um monarca e minava o erário régio.
Deve-se entender essa ambigüidade de interesses tendo em vista que as atitudes de
reis, bispos e nobres diferenciavam-se do comportamento institucional da monarquia, Igreja e
aristocracia. Embora as instituições se complementassem e supusessem uma a existência da
outra no caso do Reino Visigodo de Toledo, as pessoas pertencentes a elas agiam cada uma
conforme seus próprios interesses. Só secundariamente se pensava na instituição. Por fim,
vinham os interesses do reino. Ninguém prevaleceu nessa disputa. Em alguns casos monarcas
enérgicos fizeram valer seus interesses face aos da aristocraica. Noutros, os nobres impuseram
sua vontade face a um monarca débil, muitas vezes por ela colocado no trono.
Wamba ascendeu pela eleição. Contava, portanto, com grande apoio nobiliárquico. Foi
ungido, tendo seus poderes respaldados então pelo episcopado. Atuando de forma enérgica,
fez valer suas prerrogativas frente à nobreza que, por causa disso, na primeira oportunidade
que teve o destronou. Ervígio já ascendeu com uma hipoteca política, de modo que os poderes
nobiliárquicos se sobrepuseram aos monárquicos em seu reinado. A situação se inverte com
78
Égica. Promovendo uma grande devassa nobiliárquica, esse monarca debela todas as
tentativas de usurpação contra sua pessoa e afirma seus poderes face à aristocracia. Witiza e
Rodrigo sucumbem diante dos poderes aristocráticos, fato que ocasionou a perda da Hispania.
Assim, a instituição monárquica jamais conseguiu prevalecer frente à instituição
nobiliárquica. Alguns reis, contudo, conseguiram por meio de suas habilidades pessoais como
governantes, assegurar o direito de exercer em maior escala suas prerrogativas. No âmbito das
relações pessoais régio-nobiliárquicas, podemos dizer que a Igreja foi o fiel da balança.
Quando o episcopado apoiava um monarca como Wamba ou Égica, esses conseguiram
fortalecer sua posição face aos nobres. Bastou que Wamba, porém, agisse contra os interesses
eclesiásticos para que a Igreja retirasse seu apoio a ele e favorecesse sua derrocada. Ervígio
contava com o apoio da Igreja, mas sua dívida política era tão grande que teve de favorecer
não apenas ao episcopado, mas à toda a nobreza para que pudesse governar. Nem Witiza nem
Rodrigo aparentam ter atraído para si a simpatia da Igreja, de modo que nesse período a
nobreza, e suas disputas internas, avançaram de forma inexorável sobre a monarquia.
A observação das estratégias de legitimação monárquica nos permitem afirmar que foi
o apoio nobiliárquico o elemento decisivo para que os soberanos legitimassem seus poderes.
Deveriam contar, para tanto, com um grande patrimônio para que pudesse garantir a
fidelidade de seus nobres, recompensando as obrigações e serviços, principalmente militares,
que estes prestavam. Faziam isso, em parte, à custa do erário régio, composto pela aquisição
do patrimônio baixo-imperial e pelos tributos cobrados. Esse patrimônio foi se debilitando
com o tempo pois, além de os nobres desviarem boas quantias do fisco régio, os monarcas
transferiam grande parte do patrimônio régio para si, para sua família, e para os nobres que o
sustentavam no poder. Esse processo obrigou os reis visigodos recorrerem cada vez mais a
seus próprios recursos para satisfazer os gastos estatais, bem como à confiscação, mais que à
tributação para engrossar o erário régio.274 A primeira conseqüência desse processo favorecia
o nobre mais rico para se alçar ao trono. A segunda influiu decisivamente no âmbito das
relações régio-nobiliárquicas, cabedais para a manutenção do poder conquistado. O resultado
foi um gradual fortalecimento econômico da aristocracia, que se sobrepôs ao fortalecimento
ideológico da monarquia. Assim, o apoio da Igreja não era o suficiente para garantir a
sustentabilidade da monarquia. Dependia também da fortuna pessoal do monarca. Sob o
prisma econômico tendemos a concordar com Valverde Castro quando afirma que “se a
274 Ibid., p. 241.
79
monarquia tivesse conseguido, como fizeram os nobres com seus cargos e propriedades,
converter-se em hereditária, talvez o rei pudesse exercer os amplos poderes que a teoria
política lhe concedia”.275 A falta de um critério sucessório eficaz debilitou de maneira
decisiva a monarquia toledana. Dessa forma, foram as relações régio-nobiliárquicas que
legitimaram e destronaram os monarcas visigodos. O trono estava à disposição de qualquer
um que contasse com grande patrimônio nobiliárquico e um bom número de nobres fiéis. Isso
explica as causas de tantas revoltas e usurpações na Hispania Visigoda. Pode-se afirmar,
portanto, que no caso da monarquia hispano-visigoda, a prática política geralmente precede a
teoria política.
* * *
Visando fortalecer um poder estatal que garantisse a manutenção dos privilégios
conquistados, o episcopado católico tentou elaborar uma ideologia teocrática de poder. Esta
ideologia pregava que a forma de sucessão real deveria ser a eleição e que o monarca era o
ungido do senhor, devendo obrar com retidão para conduzir seu povo à glória de Deus.
Investia-se no soberano visigodo a imagem de princeps chrisitanus sacratissimus, definida
pelo exercício das virtudes cristãs. Essa ideologia, porém, não era tão essencial quanto a
sustentação econômica, que permitia ao monarca assegurar seus laços de fidelidade. De fato, a
transmissão de poder não obedeceu a formulações teóricas, mas a relação de forças
estabelecidas entre os reis e as distintas facções nobiliárquicas.276 Assim, apesar da tentativa
do episcopado hispano-visigodo em transformar o monarca em um primus super pares, este
jamais foi mais que um primus inter pares de uma nobreza que, junto com ele, exercia
poderes militares, administrativos, fiscais e judiciários. Assim, a única possibilidade com que
contava o monarca para legitimar seu poder era converter-se no maior proprietário do Reino
de terras, bens e homens dependentes, e cercar-se de um grupo nobiliárquico fiel para se
apoiar para enfrentar seus rivais.277 A ideologia do princeps christianus sacratissimus serviu
mais para legitimar um poder já conquistado que para regular os processos sucessórios. É
nesse sentido que asseveramos ter a prática precedido à teoria política no Reino Hispano-
Visigodo de Toledo.
275 Ibid., . p. 274. 276 Ibid., . p. 281. 277 Ibid., . p. 271.
80
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Favorecido pela ausência de um bem definido processo sucessório e de mal sucedidos
projetos políticos de converter a monarquia em hereditária ou eletiva, o poder do soberano
visigodo sempre teve uma legitimidade muito frágil em terras ibéricas. A situação tende a se
agravar com o decorrer do tempo, à medida que avança o processo de “protofeudalização”. A
nobreza age como uma força centrífuga cada vez mais pujante, que finda por minar qualquer
tentativa de fortalecimento da instituição monárquica. Desse modo, mesmo tendo o monarca
sido atribuído de diversos afazeres, resultado da constituição de uma entidade política estável
e da conversão ao credo niceísta, ele não possuía condições de exercer plenamente suas
prerrogativas. Precisava partilhar o poder para que conseguisse governar. É verdade que parte
do episcopado tentou elaborar uma teoria política que fortalecesse a monarquia e, no limite,
subjugasse-a ao poder clerical. Porém, dada a estreita relação que mantinha com a nobreza
laica, a atitude da maior parte do episcopado não foi a de se alinhar à monarquia. Ao fim e ao
cabo, o episcopado agiu como uma espécie de “fiel da balança”, ora se aliando à monarquia,
ora se aproximando da aristocracia.
Em verdade, a Igreja, que surgia no horizonte Tardo-Antigo como a possível grande
potência institucional não conseguirá vir a dominar o Estado. A principal razão para isso
reside no fato de a Igreja Cristã não estar estruturada para a vida deste mundo. Não oferecia à
sociedade qualquer novo conceito jurídico ou social.278 Veio, pois, a aceitar sem resistência as
instituições do estado romano. Irrefutável que a Igreja exerceria uma influência avassaladora
na Idade Média, haja vista que já gozava de considerável prestígio na Antigüidade Tardia.
Todavia, apesar de andarem muito próximos, não houve no Ocidente Tardo-Antigo uma fusão
entre Estado e Igreja tal como ocorrera com o Islã. É verdade que o cristianismo será, como
assevera Le Goff, o principal agente de transmissão da cultura clássica ao Ocidente
Medieval.279 Frighetto, porém, nos sugere que ao invés de supor uma vitória do cristianismo
sobre a cultura clássica, seria mais correto uma interpretação a partir da perspectiva do
sincretismo paganismo/cristianismo.280 De fato, a arqueologia revela que os símbolos cristãos
só muito progressivamente se insinuaram entre as sepulturas dos cemitérios germânicos, e as
278 LOT, F. O Fim do mundo Antigo e o Início da Idade Média. Lisboa: Edições 70. p. 66. 279 LE GOFF, J. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Estampa, 1984. p. 29. 280 FRIGHETTO, Cultura e Poder na Antigüidade Tardia Ocidental. p.32.
81
crenças pagãs, sob a veste superficial de ritos, gestos e de fórmulas impostos à força ao
conjunto da tribo pelos chefes convertidos, sobreviveram muito tempo.281
Pode ser essa uma das causas para que a Igreja Hispano-Visigoda não tenha logrado
êxito em relação à sacralização da monarquia. Talvez se trate de uma incapacidade da
ideologia eclesiástica em penetrar no âmbito da mentalidade nobiliárquica, acostumada a ter o
rex como um primus inter pares. Embora os ritos católicos conferissem uma maior
legitimidade a um monarca, não se constituíam em um elemento poderoso o suficiente para
bastarem em si mesmos como a fonte da legitimidade monárquica. Wamba e Ervígio
exemplificam as duas faces dessa moeda. Wamba, mesmo tendo sido eleito e ungido, foi
destituído do poder por uma ala da nobreza que não concordava com os rumos de sua política.
Ervígio usuou da ideologia do princeps christianus sacratissimus para tentar abafar as
contestações que ocorreram por conta de seu golpe. Em outras palavras, o caráter sagrado que
investia o monarca não era mais que uma justificativa, que um arcabouço teórico que servia
para corroborar seu poder, mitigando possíveis contestações a sua pessoa devido a forma de
sua ascensão.
Isso significa que a coroa visigoda estava disponível a qualquer nobre de estirpe goda
que detivesse amplo patrimônio e, conseqüentemente, pujante clientela armada. É o caso de
Chindasvinto que, contrariando todos os princípios de princeps christianus sacratissimus,
governou por mais de uma década, até sua morte. A ascensão e o governo de Chinasvinto são,
aliás, importantes contributivos para que se instaure um forte clima de disputas intra-
nobiliárquicas que tendem a enfraquecer ainda mais a monarquia. Sua usurpação e as
perseguições que promoveu engedraram um ambiente de instabilidade interna que seu filho
não foi capaz de solucionar por completo.
Wamba, tendo ascendido pela eleição e tendo sido ungido em Toledo, teve a
oportunidade de freiar o processo de “protofeudalização”. Também foi durante seu reinado
que a ideologia do princeps christianus sacratissimus esteve mais perto de lograr êxito. Além
de ter atendido aos rituais católicos da coroação, Wamba também foi descrito por Juliano de
Toledo como um monarca dotado de muitas virtudes cristãs. Mesmo tendo Juliano de Toledo
afirmado que era o metropolitano que coroava o rei, tentando colocar o poder clerical acima
do temporal, Monarquia e Igreja pareciam se alinhar durante o reinado de Wamba. Após a
campanha da Gália e da outorgação das leis militares, porém, a relação se deteriora, e a
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DUBY, G. Idade Média. Idade dos Homens. São Paulo: Cia das Letras, 1989. p. 132.
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nobreza eclesiástica retira seu apoio ao monarca. Porém, como prova de que durante esse
reinado a ideologia cristã esteve perto de atingir seu objetivo, foi necessário encontrar uma
opção de deposição legítima, de acordo com os preceitos eclesiásticos, para que se
destronasse um monarca que ascendera ao trono seguindo à risca esses preceitos. A solução
foi a tonsura, complô de espetacular argúcia em que nem mesmo Wamba foi ferido.
Ervígio, porém, apoiando-se no clã de Chindasvinto e Recesvinto não conseguiu se
livrar da hipoteca nobiliárquica responsável por alçá-lo ao poder. Foi eleito, ungido e,
alegava, associado ao trono. Tudo isso, porém, não bastou para que as contestações ao seu
poder fossem plenamente aplacadas. Fica nítido, assim, que de seu reinado em diante os ritos
católicos não terão mais a importância que tiveram com Wamba. Não possuindo uma base de
apoio própria, sendo contestado pela facção nobiliárquica de Wamba, e não conseguindo fazer
com que a ideologia cristã lhe conferisse legitimidade, Ervígio se vê instigado a associar
Égica ao poder.
Égica, por sua vez, contava com uma ampla base nobiliárquica de sustentação. Passou
também pelo processo formal de electio/aclamatio e foi ungido. Após promover uma devassa
nobiliárquica afastando do poder e confiscando o patrimônio dos nobres fiéis a Ervígio e
privilegiando os de sua base de apoio, Égica consegue se impor de forma bastante
contundente como soberano visigodo. Com a indicação de Félix para a sede toledana, o
monarca tenta se colocar acima do poder clerical, apresentando-se como protetor da fé
católica. Note-se que esse fotalecimento ideológico da figura do monarca é levado a cabo,
principalmente, pelo próprio Égica. Trata-se do monarca que melhor conseguiu legitimar seus
poderes, articulando uma ampla base de apoio nobiliárquica, e investindo-se da imagem de
princeps christianus sacratissimus.
Witiza, mesmo tendo sido associado pelo pai, de quem herdara uma boa base de
sustentação, não conseguiu governar da mesma maneira autocrática que Égica. Isso atesta a
hipótese de que as habilidades políticas de cada monarca eram extremamente importantes no
âmbito do processo de legitimação do poder. Mesmo sendo ungido, Witiza não conseguiu
auferir da ideologia cristã as mesmas benesses que seu pai. Ademais, não mais dispondo dos
patrimônios que Égica confiscara de parte da nobreza para beneficiar os nobres que lhes eram
fiéis, Witiza teve menos meios para conseguir angariar uma obediência mais rígida da
nobreza. O resultado foi uma maior compartilhação dos poderes, que enfraqueceu os poderes
do soberano. Assim, percebe-se que mesmo Égica tendo sido um governante centralizador, a
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instituição monárquica continuava a não dispor de meios para que um rei impusesse sua
vontade sem que tivesse que encetar custosas negociações com a nobreza.
Após a obscura morte de Witiza, Rodrigo ascende ao poder por uma eleição que muito
se assemelha a um complô faccional, não sendo reconhecida pelos partidários de Witiza.
Torna-se claro e cristalino que o processo de “protofeudalização” se encontrava em seu ápice,
pois boa parte da nobreza hispano-visigoda não apoiou Rodrigo, fazendo com que sua
legitimidade ficasse restringida ao seu grupo de apoio que, embora fosse grande e poderoso,
não cobria toda a extensão peninsular. Ademais, não se sabe ao certo se Rodrigo foi ungido, e
não se tem notícias de que tenha se amparado no episcopado para fortalecer seu poder. Foi de
todos os monarcas analisados aquele que deteve a menor legitimidade em torno de sua pessoa.
Note-se que mesmo tendo Ervígio usurpado o trono, conseguiu a aceitabilidade de sua pessoa
no poder, ainda que forçosa, por todo o reino. Não foi o caso de Rodrigo. O resultado dessa
falta de legitimidade foi a traição de parte da nobreza, que se aliou aos muçulmanos para
tentar destronar o rei. Desse modo, o monarca e seu debilitado exército sucumbem face aos
invasores, denodado feito que legou a posteriori a Rodrigo uma certa legitimidade que não
possuíra em vida.
Em pleno século IX, quando foi repovoada a cidade de Viseu, encontrou-se um
sepulcro com os dizeres: “Aqui jaz Rodrigo, o último rei dos visigodos”. Em verdade, o alto
grau de centralização, e as cerimônias litúrgicas muito precisas impediram a eleição legítima
de um novo monarca. A rivalidades políticas impediriam a formação de um exército forte para
tentar expulsar os invasores. Com a queda da Península Ibérica, os maometanos ocupariam
ambos os lados das Colunas de Hércules pelas próximas sete centúrias. A Batalha do Rio
Guadalete dava termo ao Reino Hispano-Visigodo de Toledo.
Uma alternativa para aqueles que buscavam evadir-se do jugo opressor dos invasores
era se refugiar nas montanhas do norte, onde os cristãos nunca foram subjugados. A Crônica
de Afonso III relata a fuga do primeiro rei das Astúrias para essa região. Outra alternativa
bastante tentadora era a conversão. Isso porque o islã medieval é, em grande parte, uma
criação dos muçulmanos não árabes.282 Destarte, o maometismo considerava iguais todos os
conversos, ignorando a origem racial. Assim, a vitória muçulmana não foi algo uniforme, sob
a perspectiva dos métodos de conquista. Houve momentos em que os invasores usaram da
belicosidade e, muitos outros, em que usaram da diplomacia para a conquista da Península. É
282 BROWN, P. O Fim do Mundo Clássico. De Marco Aurélio a Maomé. Lisboa: Verbo, 1972. p. 213.
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o exemplo de Teodomiro de Orihuela, duque de Murcia. Existem indícios de que em 713, dois
anos depois dos primeiros confrontos entre cristãos e muçulmanos, Teodomiro teria feito um
trato com os invasores. O duque e seus homens deveriam pagar uma taxa anual em bens e
espécie, além de não incitar revoltas contra os invasores. Em troca, o muladis não seria
desalojado de seu poder local e sua clientela tinha a garantia de que não seriam abespinhados
com infortúnios de qualquer natureza.283 Era o início de uma estreita relação entre essas duas
culturas, fato que se constituiria em um dos estigmas da Idade Média na Península Ibérica.
Parteira das transfomações políticas sociais e culturais que configurariam a Idade
Média, a Antigüidade Tardia é uma época em que se encontram muito vivazes os elementos
herdados das culturas romana e germânica, bem como elementos próprios enegendrados da
união dessas culturas. Portanto é necessário aceitar, como ponto de partida para um melhor
conhecimento da Antigüidade Tardia, que nos encontramos diante de um processo, do qual se
deve destacar as permanências, heranças e sobrevivências de germanos e romanos.284 Pari
passu, é impossível negar que a Antigüidade Tardia é uma época repleta de características
próprias, resultado da experiência histórica em comum que tiveram romanos e germanos,
como no caso do Reino Hispano-Visigodo de Toledo.
283 Chron. 754, 38. “(…) Theudimer, qui in Hispaniae partibus non modicas Arabum intulerat neces, et diu
exagitatis pacem cum eis foederat habendam”. 284 SONSOLES GUERRAS, M. Os Povos Bárbaros. São Paulo: Ática, 1987. p. 80.
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