LE DEMI-MONDE (1855) DE ALEXANDRE DUMAS FILHO: CENOGRAFIA ... · Estudo da cenografia enunciativa...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO SILVIA PEREIRA SANTOS LE DEMI-MONDE (1855) DE ALEXANDRE DUMAS FILHO: CENOGRAFIA DE UM DRAMA BURGUÊS RIO DE JANEIRO 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

SILVIA PEREIRA SANTOS

LE DEMI-MONDE (1855) DE ALEXANDRE DUMAS FILHO: CENOGRAFIA DE UM

DRAMA BURGUÊS

RIO DE JANEIRO

2010

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Silvia Pereira Santos

LE DEMI-MONDE (1855) DE ALEXANDRE DUMAS FILHO: CENOGRAFIA DE UM

DRAMA BURGUÊS

1 volume

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa.

Orientadora: Profª Doutora Celina Maria Moreira de

Mello

Rio de Janeiro

2010

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Le demi-monde (1855) de Alexandre Dumas Filho: cenografia de um drama burguês

Silvia Pereira Santos

Orientadora: Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa.

Examinada por:

_______________________________________ Presidente, Profª Doutora Celina Maria Moreira de Mello – UFRJ ___________________________________________ Prof. Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina – UFRJ ___________________________________________ Prof. Doutor Roberto Ferreira da Rocha – UFRJ ___________________________________________ Profª Doutora Maria Aurora Consuelo Alfaro Lagorio – UFRJ, Suplente ___________________________________________ Prof. Doutor Henrique Fortuna Cairus – UFRJ, Suplente

Rio de Janeiro

Julho de 2010

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Ao meu querido companheiro Carlos Eduardo, que sempre esteve ao meu lado e foi

um dos meus maiores incentivadores.

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AGRADECIMENTOS

À minha orientadora Celina Maria Moreira de Mello, por ter me acolhido em seu grupo

de pesquisa e por ter confiado no meu trabalho. Obrigada, Celina, pelo incentivo, pela

paciência, pelo pronto atendimento sempre que precisei de orientação, pelo carinho e por suas

ricas observações e sugestões. Aprendi muito com você!

A todos que me apoiaram e incentivaram, especialmente aos amigos Felipe Monteiro,

João Negreiros, Jorge Vieira e Juliano Ribeiro, que tanto me ajudaram.

Também agradeço imensamente à amiga Fernanda Lima, que gentilmente me

apresentou à professora Celina Maria Moreira de Mello, que me encorajou e me deu força

desde o início. Obrigada, Fernanda, por sua amizade!

Agradeço ainda aos professores Pedro Paulo Catharina, Roberto Rocha, Consuelo

Alfaro e Henrique Cairus, por aceitarem fazer parte da banca e por todas as sugestões que me

deram ao longo do curso.

Finalmente, agradeço aos meus pais, irmãos, tios, primos e avós, que me

proporcionaram uma sólida estrutura familiar à qual devo minha formação.

A todos vocês: muito obrigada!

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RESUMO

SANTOS, Silvia Pereira. Le demi-monde (1855) de Alexandre Dumas Filho: cenografia de um drama burguês. Rio de Janeiro, 2010. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa)-Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

Estudo da cenografia enunciativa da peça Le demi-monde, escrita por Alexandre Dumas

Filho em 1855 e montada pela primeira vez no Théâtre du Gymnase no mesmo ano,

relacionando-a ao posicionamento enunciativo do autor, sua identidade enunciativa, e sua

posição no campo literário. A fim de caracterizar a cena genérica da peça, apresentamos os

rumos do drama burguês, desde sua criação por Diderot no século XVIII até sua retomada e

atualização por Alexandre Dumas Filho no século XIX, destacando o drama romântico

moderno de Alexandre Dumas. Discutimos o contexto de enunciação da peça e as condições

sociopolíticas de sua encenação a partir do prefácio, no qual o autor explica a escolha do

Théâtre du Gymnase para a estreia. Apresentamos ainda as estratégias de legitimação da

enunciação utilizadas pelo autor, como a descrição de personagens e do espaço social do

demi-monde, o realismo e o cenário. A opção pelo drama burguês realista, a cuidadosa seleção

do teatro em que a peça deveria ser encenada e a linguagem utilizada configuram o

posicionamento enunciativo do autor. Associadas às personagens, que atuam como porta-

vozes do autor e são um dos principais elementos que compõem a cenografia enunciativa da

peça, funcionam como artifícios para propagação da arte útil por ele defendida.

Palavras-chave: campo literário; cenografia enunciativa; drama burguês; posicionamento.

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RÉSUMÉ

SANTOS, Silvia Pereira. Le demi-monde (1855) de Alexandre Dumas Filho: cenografia de um drama burguês. Rio de Janeiro, 2010. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa)-Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

Étude de la scénographie énonciative de la pièce Le demi-monde, écrite par Alexandre

Dumas fils en 1855 et mise en scène pour la première fois au Théâtre du Gymnase dans la

même année, qui établit des rapports avec le positionnement énonciatif de l’auteur, son

identité énonciative, et sa position dans le champ littéraire. Afin de caractériser la scène

générique de la pièce, nous présentons les chemins du drame bourgeois, depuis sa création par

Diderot au XVIIIe siècle jusqu’à la reprise et à l’actualisation du genre par Alexandre Dumas

fils au XIXe siècle, en soulignant le drame romantique moderne de Alexandre Dumas. Nous

discutons le contexte d’énonciation de la pièce et les conditions sociopolitiques de la mise en

scène de celle-ci, en nous fondant sur quelques éléments de la préface, dans laquelle l’auteur

explique le choix du Théâtre du Gymnase pour la première. Nous présentons aussi les

stratégies de légitimation de l’énonciation utilisées par l’auteur, telles que la description des

personnages et de l’espace social du demi-monde, le réalisme et le décor. Le choix du drame

bourgeois réaliste, la rigoureuse sélection du théâtre pour la création de la pièce et le registre

de langue utilisé sont autant de composantes du positionnement énonciatif de l’auteur. Celles-

ci, associées aux personnages, qui agissent comme des porte-paroles de l’auteur et sont l’un

des éléments principaux qui composent la scénographie énonciative de la pièce, sont autant d'

artifices pour la propagation de l’art utile de Dumas fils.

Mots-clés: champ littéraire; scénographie énonciative; drame bourgeois; positionnement.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. Lit en bois noir incrusté de bouquets (1840). Coll. Comoglio. In: FANIEL (1957). P. 85.

Figura 2. Chaise en bois laqué noir et or (1850-1860). Anc. Coll. Fabius frères. In: FANIEL (1957). P. 86.

Figura 3. Chambre à coucher en acajou de Mrs. Biddle. In: FANIEL (1957). P. 86.

Figura 4. Chambre à coucher Napoléon III, chez la comtesse de P..., à Paris. In: FANIEL (1957). P. 87.

Figura 5. Chambre d’amis Napoléon III chez M. H. Samuel à Montfort-l’Amaury. In: FANIEL (1957). P. 87.

Figura 6. Indiscret, siège capitonné (1860-1870). Coll. part. In: FANIEL (1957). P. 88.

Figura 7. Salon Napoléon III chez la comtesse de P..., à Paris. In: FANIEL (1957). P. 89.

Figura 8. Café La Manille, 1899. Paris: Biblioteca Nacional. In : PERROT (2006). P. 90.

Figura 9. Amédée Julien Marcel-Clément, Le Billard, 1900. In : PERROT, 2006. P. 90.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................................10

2 CAMINHOS DO DRAMA BURGUÊS ...............................................................................16

2.1 Diderot e o drama burguês .............................................................................................17

2.2 Teatro e Revolução Francesa..........................................................................................20

2.3 O drama romântico moderno de Alexandre Dumas .......................................................21

2.4 O drama burguês de Alexandre Dumas Filho ................................................................25

3 LE DEMI-MONDE: ENUNCIAÇÃO E CONTEXTO .........................................................29

3.1 Posicionamento enunciativo de Alexandre Dumas Filho...............................................30

3.2 Théâtre du Gymnase.......................................................................................................31

3.3 Théâtre-Français (Comédie-Française) ........................................................................33

3.4 Prefácio da peça Le demi-monde – A opção pelo Théâtre du Gymnase........................34

4 ETHOS E HABITUS: ART DE VIVRE BURGUÊS............................................................39

5 ESTRATÉGIAS DE LEGITIMAÇÃO DA ENUNCIAÇÃO...............................................55

5.1 Descrição do demi-monde como espaço social ..............................................................59

5.2 O Realismo .....................................................................................................................69

5.3 Cenário da peça Le demi-monde.....................................................................................80

6 CONCLUSÃO.......................................................................................................................92

7 REFERÊNCIAS ....................................................................................................................97

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1 INTRODUÇÃO

Um dos autores dramáticos mais lidos do Segundo Império francês, Alexandre Dumas

Filho nasceu em Paris, em 1824. Filho do celebrado romancista Alexandre Dumas com a

costureira Catherine Laure Labay, foi legalmente reconhecido pelo pai somente aos sete anos

de idade. Sua situação familiar tornou-se tema de grande parte de suas obras, mostrando um

tom moralista que será uma de suas características mais marcantes: “Penso que um homem

que põe uma criança no mundo [...] sem lhe assegurar os meios materiais e sociais de vida [...]

é um malfeitor que deve ser classificado entre ladrões e assassinos” (DUMAS FILS, 1899, p.

6). 1 Tal citação, do prefácio da peça Le fils naturel (O filho natural), ilustra o rancor que

Dumas Filho guarda de seu pai e dá a perfeita noção de como usará sua obra para levar ao seu

público sua visão moralista de mundo.

Aliada às condições de seu nascimento e de sua história de vida, há que se considerar

ainda, como fator importante para a leitura da obra de Dumas Filho, a situação do teatro e das

artes como um todo, no contexto histórico correspondente, o qual representa um momento

crucial do desenvolvimento do campo literário. Na primeira metade do século XIX, havia

uma subordinação estrutural da maioria dos escritores e artistas às instâncias políticas, não só

devida às sanções que se impunham às publicações como também aos benefícios materiais e

simbólicos oferecidos (tais como pensões, acesso à possibilidade de se apresentar nos teatros,

eleição para a Academia de Letras, entre outros) (Cf. BOURDIEU, 1992, p. 78-79). O campo

literário se constitui como tal por oposição a um mundo burguês, representado por emergentes

sem cultura que fizeram triunfar na sociedade o poder do dinheiro (Cf. BOURDIEU, 1992, p.

90).

1 “Moi, je trouve que l’homme qui met un enfant au monde […] sans lui assurer les moyens matériels et sociaux de vivre [...] est un malfeiteur qu’il faut classer entre les voleurs et les assassins.” Tradução nossa, exceto quando explicitamente referido.

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Este campo literário em vias de desenvolver sua autonomia teve êxito em pressionar

os escritores a seguirem suas normas específicas, como se afastar-se dos valores dominantes e

dos poderes externos, políticos e econômicos, fosse uma condição sine qua non para

honrarem seu estatuto de escritor (Cf. BOURDIEU, 1992, p. 105). No entanto, a partir dos

anos 1840, e principalmente após a revolução de 1848, o entusiasmo pelos prazeres e

divertimentos fáceis, encorajados pelo regime imperial – destacando-se o teatro -, favorece a

expansão de uma arte comercial, submetida aos interesses do público (Cf. BOURDIEU, 1992,

p. 107). Trata-se de uma “arte burguesa”, da qual Alexandre Dumas Filho será um dos

maiores ícones e cujos representantes são em sua maioria escritores de teatro, ligados por

origem, estilo de vida e sistema de valores aos grupos dominantes na sociedade. Esta ligação

esclarece o sucesso destes dramaturgos, dada a cumplicidade ética e política entre o autor e

seu público, e lhes garante não só importantes benefícios materiais (o teatro é a mais rentável

das atividades literárias) como também benefícios simbólicos, como a Academia, tida como

um emblema da consagração burguesa (Cf. BOURDIEU, 1992, p. 108) – Alexandre Dumas

Filho foi eleito membro da Academia em 1874.

Finalmente, cabe salientar o realismo presente nas peças de Dumas Filho. Mais do que

simplesmente pertencer a um movimento literário, o autor discorre sobre a necessidade de

fazer uma arte “útil”, que mostre a realidade dos fatos para nela identificar o certo e o errado –

de acordo com sua visão de mundo. O teatro realista de Dumas Filho é um retrato da

sociedade parisiense de sua época, e, segundo os críticos, uma de suas receitas de sucesso é

saber observar, e saber o que é relevante observar e descrever. A definição de Martino para o

realismo vai ao encontro daquilo em que Dumas Filho é especialista: “O realismo, no

momento em que se começa a empregar esta palavra, tem apenas um sentido: a aparição de

personagens até então desprezados [...]. O realismo, afirma a Revue des Deux Mondes, é a

‘pintura dos mundos especiais e dos demi-mondes’” (MARTINO, 1972, p. 25). A peça Le

demi-monde, não só levou aos palcos este “mundo intermediário”, situado entre o mundo

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respeitável e o mundo da prostituição, como pretendeu redefini-lo, enriquecendo o verbete

para compor os dicionários futuros, conforme veremos nos capítulos que seguem.

Por se tratar de uma realidade muito específica da cidade de Paris do século XIX,

optamos por não traduzir o termo demi-monde. 2

O tema desta dissertação é a caracterização da cena de enunciação da peça Le demi-

monde (1855), de Alexandre Dumas Filho, mais especificamente de sua cenografia

enunciativa, relacionando-as com o posicionamento enunciativo do autor (sua identidade

enunciativa) e sua posição no campo literário. Os conceitos de cena de enunciação e

cenografia enunciativa fazem parte das teorias de análise do discurso propostas por

Dominique Maingueneau (2006), e podem ser entendidas a partir de uma metáfora teatral, em

que a cena de enunciação representa o processo de comunicação como um todo, e a

cenografia a encenação de uma situação que legitima a enunciação. O conceito de campo

literário, por sua vez, foi proposto e desenvolvido pelo sociólogo Pierre Bourdieu (1992) para

definir um espaço social que vive das tensões entre as diferentes “tribos” literárias, tribos

estas que se definem por suas reivindicações estéticas distintas (círculo, escola, bando,

academia) e que disputam uma posição hegemônica. Para os propósitos desta pesquisa, o

conceito de campo literário será pertinente porque é através do modo como se inserem neste

campo que os escritores indicam a posição que nele ocupam ou desejam ocupar (Cf.

MAINGUENEAU, 2001, p. 31).

Sabendo-se que a peça alcançou grande sucesso de público e crítica, pretende-se

analisar as estratégias enunciativas utilizadas pelo autor francês para alcançar este público e

para legitimar sua enunciação, estratégias estas que estão diretamente relacionadas ao seu

2 O histórico relacionado ao sentido da palavra encontra-se no capítulo 3, seção 3.4.

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posicionamento enunciativo e à sua posição no campo literário. A primeira hipótese

levantada considera que um dos elementos que compõem a cenografia enunciativa da peça

são suas personagens, que demonstrariam a posição do autor no campo literário: ou seja, a de

típico representante da arte burguesa. Mulheres "desonradas" sem marido que escondem seu

passado, damas falidas que tentam conseguir casamento para as sobrinhas, ex- combatentes

inocentes, homens vividos e experientes, jogos, intrigas, duelos – como é usual nas obras de

Alexandre Dumas Filho, as personagens retratam o estilo de vida burguês, e algumas são

utilizadas como porta-vozes do autor.

Referimo-nos a burgueses, aqui, como uma classe social estabelecida como tal, ou seja,

como um grupo que se diferencia de outro por seu lugar no sistema historicamente

determinado da produção e por seu papel na organização social do trabalho (Cf. CARDOSO,

1992, p. 127). A burguesia, no período pós-revolucionário, destaca-se da grande “massa” do

Terceiro Estado, adquirindo ideologia própria e consciência de classe, diferenciando-se do

povo. Trata-se, portanto, de uma classe emergente cujo crescente poderio econômico e

político deve ser projetado nas artes.

Levando em consideração a realidade de cada teatro e sua historicidade, Dumas Filho

opta pelo Théâtre du Gymnase para estréia da peça, em 1855, pois este dava espaço à

literatura contemporânea que, segundo o autor, “mesmo que fosse inferior àquela do século

XVII, tinha o direito de viver e espalhava-se então nos teatros de gênero, à frente dos quais

estava o Gymnase [...]” 3 (DUMAS FILS, 1898, p. 15). Naquele momento, o Théâtre

Français (Comédie-Française) ainda estava preso às tradições da grande cena trágica, e por

isso sua comédia seria um choque para aquele público. Portanto, a segunda hipótese parte do

princípio de que a opção pelo Théâtre du Gymnase para estreia da peça também demonstraria

sua posição no campo literário como defensor da arte burguesa, ao dirigir-se diretamente a seu

3 « [...] si inférieure qu’elle fût à celle du XVIIe siècle, avait le droit de vivre cependant et se répandait alors dans les théâtres de genre, à la tête desquels le Gymnase s’était placé [...] ».

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público-alvo, que frequentava o teatro em questão.

Finalmente, cabe salientar a importância dos prefácios redigidos por Dumas Filho para

suas peças, que seriam mais um componente de sua cenografia enunciativa na busca de

legitimação de seu discurso.

O capítulo Caminhos do drama burguês tem como objetivo identificar, no drama

burguês proposto no século XVIII por Diderot, as características da tradição literária em que

se insere Alexandre Dumas Filho quando de sua retomada e atualização em suas comédias de

costumes no século XIX. Para tanto, são discutidas as seguintes questões: as características do

“gênero sério” de Diderot e o moralismo nele embutido; o drama romântico de Alexandre

Dumas pai, que, com a peça Antony, faz uma ponte entre o “gênero sério” e a comédia de

costumes; e o drama burguês de Dumas Filho.

No capítulo 3, Le demi-monde: enunciação e contexto, analisamos o prefácio da peça

em busca das condições sócio-políticas que levaram o autor a optar pelo Théâtre du Gymnase

para estréia de seu trabalho, em 1855. Utilizaremos como fonte o prefácio da peça na

coletânea Teatro Completo, publicada em 1898, no qual o autor explica suas razões para

escrever a peça pensando neste teatro e os motivos da recusa do convite para a representação

no Théatre-Français (Comédie Française). Neste capítulo também veremos a definição de

Dumas Filho para o demi-monde.

O capítulo 4, Ethos e habitus: art de vivre burguês, é dedicado à identificação e

descrição dos traços do ethos burguês presentes no texto da peça, relacionando-os ao conceito

de habitus.

É no capítulo 5 que identificamos as Estratégias de legitimação da enunciação, que

estão divididas em três seções. Na primeira delas trabalhamos o modo de organização

descritivo do discurso e a descrição na peça Le demi-monde, com o objetivo de localizar, na

peça, os componentes da construção descritiva propostas por Patrick Charaudeau (nomear,

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localizar-situar, qualificar. Cf. CHARAUDEAU, 1992) e verificar como Dumas Filho as

utiliza para legitimar sua enunciação. Embora o modo de organização descritivo não seja o

modo predominante na peça, há alguns fragmentos descritivos que parecem ser utilizados a

serviço das estratégias de legitimação da enunciação, estratégias estas que estão diretamente

ligadas ao posicionamento enunciativo do autor. Contrariamente a um grande número de

peças de teatro, nas quais o modo de organização descritivo aparece sobretudo nas

didascálias4, em Le demi-monde elas se apresentam em número bastante reduzido: tudo que o

autor quer mostrar ao espectador é dito pelas personagens. Na seção 5.2, ilustramos as fases

do movimento realista, de Courbet e Champfleury a Dumas Filho, pontuando suas principais

características em cada fase. Finalmente, na seção 5.3 buscamos identificar, no texto da peça,

referências ao espaço no qual a história se desenvolve, especialmente em relação à arquitetura

e ao mobiliário, visando à reconstituição do cenário da peça. O reduzido número de

didascálias nos faz levantar a hipótese de que ele reproduz uma casa burguesa típica, na qual o

público alvo se sente inserido, e por isso adotamos textos de arquitetura e decoração do século

XIX como ferramentas de apoio, especificamente aqueles relacionados à vida privada.

A edição da peça que será utilizada para análise e referência é a do teatro completo, de

1898, devido aos prefácios que a acompanham. A edição da Calmann Lévy, de 1879, foi, no

entanto, a primeira a ser consultada, com o exemplar disponível na Biblioteca da Faculdade

de Letras da UFRJ, seção de obras raras.

4 “indicações dadas ao ator pelo poeta dramático” (RULLIER-THEURET, 2003, p. 7).

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2 CAMINHOS DO DRAMA BURGUÊS

A separação rígida dos gêneros trágico e cômico segundo Aristóteles (384 a.C. - 322

a.C.) já era criticada no século XVII por Corneille (1606-1684). Para este, a definição de

comédia como “imitação de pessoas baixas, medíocres” não era mais satisfatória: um rei

poderia ser personagem cômica se suas ações não correspondessem àquelas exigidas pela

tragédia (Cf. CORNEILLE, 1950, p. 66). A invenção da “grande comédia”, por Molière, traz

um tratamento nobre, como o verso, para temas cômicos, denunciando os vícios e praticando

a crítica dos costumes (Cf. NAUGRETTE, 2001, p. 22). 5

Os sucessores de Molière intensificam as denúncias aos males de seu tempo, e passam

a descrever cada vez mais as condições sociais. Era a comédia de costumes (comédie des

moeurs), que se firmava como « estudo do comportamento humano em sociedade, das

diferenças de classe, do meio e dos caracteres » (PAVIS, 1996, p. 54).

Segundo Canova-Green, este estudo de uma sociedade considerada decadente passou

a chocar a opinião de um público cujo gosto evoluía a partir do emprego da emoção e da

sensibilidade pelos romances. Assim, a “imoralidade que podia corromper ainda mais os

costumes”, uma vez que não era abertamente condenada pelos autores, foi preterida em

função de um teatro útil, edificante (CANOVA-GREEN, 1997, p. 263).

Inicia-se, então, uma reação contra a comédia de costumes, pois mostrar os vícios da

sociedade não é mais suficiente: é preciso corrigir os costumes, e pôr em cena personagens

cujos exemplos devam ser seguidos, e que sejam admirados pelo público, por sua virtude e

grandeza. Esta comédia moralizante apresenta-se com uma forma didática, deixando pouco

espaço para o riso fácil e grosseiro – tal como veremos a seguir, com Diderot (1713-1784).

5 Convencionou-se chamar de pequena comédia aquelas curtas, com menos de três atos, que atingiam o público com facilidade a partir de um riso fácil, privilegiando as interpretações dos atores e as tiradas satíricas (Cf. CANOVA-GREEN, 1997, p. 261).

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Ao longo do século XVIII, acentua-se o questionamento das regras do teatro

clássico e intensifica-se a busca pela estética da emoção e da sensibilidade. A « comédie

larmoyante » (“comédia que causa lágrimas”), criada por Nivelle de La Chaussée (1692-1754)

por volta de 1735, é uma comédia que deve provocar lágrimas, emocionar o público, e veio

preparar o terreno para a criação do drama burguês por Denis Diderot.

2.1 Diderot e o drama burguês

A presença da burguesia em cena indica seu estabelecimento como classe e sua

expansão econômica e social. Na segunda metade do século XVIII, a sociedade francesa se

caracterizava pelo enfraquecimento do regime feudal. O agricultor e o camponês já são

proprietários ou retêm livremente a terra, embora a nobreza e o clero ainda possuam uma

grande parte do solo. O artesanato e o comércio disseminaram-se entre a população, criando

um novo modo de riqueza. Graças ao comércio marítimo que se desenvolvera desde o século

XVI, e a conseqüente impulsão da indústria, a burguesia era muitas vezes mais rica que a

nobreza, e desejava, portanto, participar da vida política. A inutilidade da nobreza tornava-se

cada vez mais evidente.

O poder absoluto do rei, a improdutividade da nobreza e a tragédia que os representava

passaram a ser criticados por alguns filósofos, dentre os quais Denis Diderot. Ele vai propor

um teatro sério que retrate a burguesia, em oposição ao teatro clássico, no qual a burguesia era

mostrada em papéis ridículos.

A obra dramática de Diderot compõe-se basicamente de duas grandes peças, em cinco

atos e em prosa, e alguns ensaios críticos que são, na realidade, comentários e justificativas

das duas peças. Le fils naturel ou les Épreuves de la vertu (O filho natural ou as provas da

virtude) foi escrita e publicada em 1757, acompanhada de uma introdução e um ensaio

intitulado Entretiens sur le fils naturel (Conversas sobre O filho natural), e encenada somente

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em 1771. Le père de famille (O pai de família) foi composta em 1758, junto ao Discours

sur la poésie dramatique (Discurso sobre a poesia dramática), e foi aos palcos em 1760. 6

A idéia principal em que se baseia a teoria dramática de Diderot é a de que, entre a

tragédia e a comédia, há um hiato que poderia e deveria ser preenchido. Tal idéia, não tão

revolucionária quanto alardeia Diderot7, é, no entanto, por ele sistematizada, e evidencia que

“contrariamente a um imaginário quanto ao discurso literário, de que este produz obras que

obedecem a determinadas prescrições de gêneros, as obras é que 'fundam' gêneros” (MELLO,

2005a, p. 51). Em Discours sur la poésie dramatique, Diderot explica sua proposta:

Em Le fils naturel, tentei dar a idéia de um drama que estivesse entre a comédia e a tragédia. Le Père de famille, que proponho agora, e que as contínuas distrações atrasaram, situa-se entre o gênero sério de Le fils naturel e a comédia. E se um dia eu tiver tempo e coragem, não perco a esperança de compor um drama que fique entre o drama sério e a tragédia (DIDEROT, 1959, p. 190-191). 8

Diderot propõe um gênero intermediário, que emocionaria o público, ao mesmo tempo

em que o levaria a refletir sobre os problemas da sociedade contemporânea. A proposta de

redefinição dos gêneros implica uma inversão do processo moralizador da comédia clássica:

trata-se de edificar pelo exemplo da virtude, e não mais pela simples denúncia do ridículo e

do vício. Assim nasce o chamado gênero sério, gênero híbrido localizado entre a tragédia e a

comédia, que não é simplesmente uma justaposição de gêneros opostos, mas a tentativa de

mostrar ao espectador toda uma gama de emoções verdadeiras nas quais ele possa se

reconhecer, seja com uma “comédia séria” ou uma “tragédia doméstica”. Passa-se a

representar o homem moderno, o homem em sua sociedade, e a prosa substitui o verso, a fim

de que a linguagem utilizada na representação se aproxime ainda mais da realidade

6 Há ainda a peça Est-il bon? Est-il méchant?, que não foi encenada. 7 Cf. PETIT de JULLEVILLE, 1889, p. 312-314. 8 « J’ai essayé de donner, dans le Fils naturel, l’idée d’un drame qui fût entre la comédie et la tragédie. Le Père de famille, que je promis alors, et que des distractions continuelles ont retardé, est entre le genre sérieux du Fils naturel et la comédie. Et si jamais j’en ai le loisir et le courage, je ne désespère pas de composer un drame qui se place entre le genre sérieux et la tragédie ».

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representada.

Para que o público se envolva na trama, é necessário substituir os caracteres, tipos

universais e atemporais, por suas condições sociais: são personagens individualizadas,

diferenciadas pela profissão, estado civil, grau de parentesco... As personagens possuem uma

densidade psicológica, decorrente, segundo os filósofos das Luzes, de sua condição na

sociedade – é a instalação do determinismo social em cena: “O homem é, com efeito, aquilo

que a pressão longa e contínua do hábito, das funções exercidas, dos preconceitos de classe

recebidos e conservados, fez dele. (...) O caráter adquirido substitui o caráter inerente”. 9

São exaltados os valores da burguesia (uma burguesia ainda reformista, não

revolucionária), tais como família, trabalho, sucesso, e é explorada a pantomima - o

movimento dos corpos –, bem como o cenário e o figurino: o espectador assume uma posição

de voyeur, que observa a intimidade doméstica das personagens. Também são evocados temas

que preocupam o público burguês, tais como a falência e a questão dos filhos naturais,

questão esta que é tema da peça Le fils naturel, a qual resumimos abaixo. O assunto será

retomado quase um século mais tarde por Alexandre Dumas Filho, em peça homônima

(1858).

Clairville é apaixonado por Rosalie. Ele pede a seu amigo Dorval, jovem estimado e

virtuoso, mas que não conhece seu próprio pai, que interceda por ele junto à sua amada.

Quando ele o faz, Rosalie diz a Dorval que é ele quem ela ama. Embora dividido entre seus

sentimentos por Rosalie e seu respeito por Clairville, que o acolheu em sua casa e em sua

família, Dorval opta pela consideração ao amigo e deixa livre o caminho para Clairville e

Rosalie.

Quando o pai de Rosalie, Lysimond, chega para abençoar o casamento de sua filha com

9 “Un homme est, en effet, ce que la pression longue et continue de l'habitude, des fonctions exercées, des préjugés de classe reçus et conservés, a fait de lui. (...) Le caractère acquis remplace le caractère inné”. COLLIGNON, 1895, p. 168. Para um contraponto a esta teoria, ver COLLIGNON, 1895, p. 169.

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Clairville, ele reconhece que Dorval é seu filho ilegítimo. Os irmãos reconhecem, então,

que a renúncia ao amor foi benéfica e dá-se o desfecho feliz: Rosalie e Clairville se casam,

assim como Dorval e Constance, irmã de Clairville.

Conforme se nota, a peça é a própria colocação em prática das teorias propostas em

Entretiens sur le fils naturel, e a confirmação do subtítulo Épreuves de la vertu - Provas da

Virtude, virtude esta associada aos ideais iluministas de progresso e de perfectibilidade

humana.

O drama burguês não atingiu grande sucesso, e uma das razões, é a adoção de uma

simplificação e de uma generalização extremas, fator que o impediu de ser verdadeiramente

realista. Além disso, o característico tom sério passou a ser julgado como enfadonho (Cf.

CANOVA-GREEN, 1997, p. 286). Porém, o gênero dramático sério sobreviveu, adaptando-se

a um público mais popular; e o que é mais importante: seus princípios deixarão marcas na

estética teatral francesa por mais de dois séculos, inclusive na obra de Alexandre Dumas

Filho.

2.2 Teatro e Revolução Francesa

Alguns autores, seguindo o objetivo reformador de Diderot, perceberam as virtudes

pedagógicas do teatro, e passaram a exigir então uma maior liberdade na escolha dos temas,

com foco naqueles ligados às preocupações dos espectadores. Era o teatro como “escola de

bons costumes” (école des bonnes moeurs), cujas virtudes pedagógicas incluíam a missão de

atingir e instruir uma população em grande parte iletrada.

Com a Revolução Francesa, os novos valores de igualdade e liberdade passaram a ser

recorrentes em cena, além do patriotismo propagandista, demonstrando uma concepção

militante do papel do teatro.

O teatro era visto como um instrumento privilegiado de educação (Cf. GENGEMBRE,

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1997, p. 306), por sua dimensão exemplar e o sentimento de identificação que provoca. Por

isso, era necessário que os atos postos em cena inspirassem a adesão aos valores que o autor

defendia.

A lei de 13 de janeiro de 1791 abole a censura, mas a liberdade permanecerá

submetida à obrigação de não provocar a desordem pública. O Decreto da Convenção, de 2 de

agosto de 1793, obriga os teatros parisienses a representar, uma vez por semana,

gratuitamente, “por e para o povo”, as tragédias que retraçam os gloriosos eventos da

liberdade e as virtudes de seus defensores (Cf. GENGEMBRE, 1997, p. 307). Função

pedagógica paradoxal, em que as virtudes da liberdade são impostas em cena por um

repertório rigidamente estabelecido.

Um importante tema representado durante o período revolucionário é o feudalismo,

em que a aristocracia e o trabalho dos camponeses são postos em cena, com um sentimento de

rancor e de revanche por parte destes últimos. O trabalho, outrora símbolo da condição servil,

é visto neste momento como um valor fundamental da dignidade. O anticlericalismo também

é um assunto bastante presente, seguindo a política empreendida pelos governos

revolucionários contra a Igreja, reivindicando a laicização da sociedade.

Finalmente, cabe salientar a importância do patriotismo e, principalmente, da família,

que passa a ser vista como fonte de regeneração social. A Revolução Francesa faz triunfar a

concepção burguesa do casamento, com respeito às regras de autoridade, em contraponto às

frouxas regras da aristocracia neste sentido.

2.3 O drama romântico moderno de Alexandre Dumas

O povo, que teve importante atuação na Revolução Francesa, espera que o teatro, sua

distração principal, forneça-lhe os meios de conhecer sua história. A partir de 1830, o drama

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moderno se impõe como um espelho crítico da sociedade contemporânea, dando

continuidade à escola criada pelas Luzes.

O drama histórico aparece para romper com a tragédia clássica. Esta última, engessada

em suas regras de unidades (de tempo, de lugar e de ação), verossimilhança e utilização de

temas da Antiguidade, não permitia a representação da sociedade moderna e sua evolução. O

drama histórico pretende, então, dar ao povo a oportunidade de conhecer sua história, história

esta que não foi feita exclusivamente pelos “grandes homens”, mas também por aquelas

“pessoas comuns” da platéia. E o teatro é, enfim, o melhor meio para a difusão da história,

por ser capaz de atingir a grande massa de analfabetos existentes no período.

Em Henri III et sa cour (1829), Alexandre Dumas apresenta um drama histórico, em

prosa, em que a questão da contestação do poder monárquico é apenas um pano de fundo de

seu real objetivo, que é mostrar os bastidores da vida da corte, seus hábitos, as inquietações e

rivalidades pessoais. A presença de personagens históricas, de trajes de época e de cenários

picturais desenhados por Cicéri, renomado cenarista da Comédie, indica a época em que se

passa a ação da peça e integra os traços constitutivos do ethos da encenação teatral, ou seja,

sua máscara enunciativa (Cf. MELLO, 2005b, p. 2). O figurino passa a ser resultado de uma

pesquisa que buscava uma fidelidade histórica, por fim correspondendo aos retratos oficiais

de figuras da nobreza, fato que constitui uma inovação em relação à tragédia clássica, cujas

apresentações eram feitas em trajes contemporâneos (Cf. MELLO, 2005a, p. 54-55).

Segundo Naugrette (Cf. 2001, p. 220), após a instauração da Monarquia de Julho e o

afrouxamento da censura, os autores dramáticos não mais necessitavam utilizar a história

como subterfúgio para falar do presente. É neste momento que Alexandre Dumas, com a peça

Antony (1831), cria o drama “en habits noirs”, “drama de casaca”, em que são tratados temas

contemporâneos.

Antony é considerado o primeiro drama moderno. Nele são apresentados os valores da

sociedade burguesa, como casamento, fidelidade, dando ao público a oportunidade de se

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reconhecer no palco, de observar diretamente a sociedade contemporânea e suas próprias

situações cotidianas, em detrimento das questões relacionadas ao passado, até então

predominantes no drama histórico. É o movimento da opinião pública que cada vez mais

reivindica junto aos autores dramáticos a presença do mundo contemporâneo nos espetáculos.

Ao desvelar a sociedade contemporânea, Antony também mostra uma sociedade

responsável pela criação do mal que ela reprime: “é ela que, marginalizando o bastardo, lhe dá

o gosto desenfreado da revanche; é ela enfim, por suas maledicências e sua rejeição dos

amantes adúlteros, que precipita seu fim” (NAUGRETTE, 2001, p. 154).

Se o drama histórico se servia da história com interpretações contemporâneas para fins

eminentemente políticos, a proposta do drama moderno está mais relacionada à questão

social, tal como seu ancestral “drama burguês”. Substituindo o antigo determinismo da

fatalidade trágica está o já citado determinismo social, e com ele há uma mudança de

perspectiva: se, por um lado, as leis naturais são imutáveis, por outro lado temos as leis

sociais que, embora com dificuldade, podem ser mudadas.

Além da classificação de drama moderno, Antony também é considerado um

melodrama. O melodrama surge no século XVIII como um gênero em que, conforme indica a

leitura literal do termo, “drama cantado”, a música intervém nos momentos mais dramáticos

para exprimir a emoção de uma personagem que está em silêncio, geralmente envolta em suas

reflexões. No fim do século XVIII o melodrama dá uma guinada em direção a uma nova

definição, passando a ser um novo gênero popular. Sua estrutura dramática assemelha-se ao

drama burguês de Diderot, com a presença de castigos e recompensas e o triunfo da virtude, e

os temas giram em torno do amor, da (in) felicidade e da traição (Cf. PAVIS, 1999, p. 238).

No melodrama, “as personagens, claramente separadas em boas e más, não têm opção

trágica possível; elas são poços de bons ou maus sentimentos, de certezas e evidências que

não sofrem contradição” (PAVIS, 1999, p. 238). Por universalizar os conflitos e valores e por

produzir no espectador uma identificação com sentimentos e discursos, sem reflexão ou

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contestação, Pavis considera que o melodrama chancela a ordem burguesa recém-

estabelecida.

A questão principal da peça Antony é a bastardia, imbricada em outra questão mais

ampla que é o lugar do homem do povo na sociedade burguesa. Antony pede a mão de sua

amada Adèle em casamento, mas não alcança seu intuito por não ter um nome de família a

oferecer. A jovem se torna esposa do Coronel d'Hervey e mãe de família, mas eis que o

destino os reúne novamente. Para salvar sua reputação e de sua filha, ela pede que Antony a

mate antes que seu marido os veja juntos, e ele obedece, por amá-la: ao marido que chega em

seguida e vê a esposa morta, Antony diz: “Ela resistia a mim, eu a assassinei” (ato V, cena 4).

10

O grande mérito de Dumas é expor uma personagem que força a sociedade a

reconhecer-se hipócrita e contraditória: Antony, agressivo e provocador, faz grande sucesso

entre o público, refletindo as contradições de uma sociedade que produz uma imagem

negativa do filho ilegítimo ao mesmo tempo em que o aplaude em cena. O drama moderno

inscreve as paixões românticas (exaltação dos valores do amor, da liberdade, da contestação

político-social) em uma intriga contemporânea, situando-se deste ponto de vista na filiação do

drama burguês imaginado por Diderot (Cf. NAUGRETTE, 2001, p. 223). O elogio de Antony

e a hipocrisia da sociedade ficam evidentes na passagem transcrita a seguir:

Ah! Ser amada assim e poder confessar a Deus e ao mundo; ser a religião, o ídolo, a vida de um homem como ele... tão superior aos outros homens; ...dar-lhe toda felicidade, e depois numerosos dias passariam como horas... Ah! no entanto, veja de que um preconceito me privou!...é esta a sociedade justa que nos pune por uma falta que nem um nem outro cometeu (ato III, cena 6). 11

Sem nome e sem meios materiais para oferecer, o filho ilegítimo é condenado ao

10 “Elle me résistait, je l’ai assassinée!...” 11 “Ah, être aimée ainsi et pouvoir l'avouer à Dieu et au monde; ... être la religion, l'idole, la vie d'un homme comme lui.... si supérieur aux autres hommes; ... lui rendre tout le bonheur que je lui devrais, et puis des jours nombreux qui passeraient comme des heures... Ah, voilà pourtant ce qu'un préjugé m'a enlevé!... voilà cette société juste qui punit en nous une faute que ni l'un ni l'autre de nous n'a commise...”.

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círculo vicioso das relações adúlteras. A hipocrisia puritana leva os amantes à morte, em

nome de uma honra ilusória; embora a moral burguesa seja satisfeita com a punição dos

amantes, a compaixão do espectador pela mal casada Adèle reflete o sucesso da denúncia

social pretendida pelo autor (Cf. NAUGRETTE, 2001, p. 225).

2.4 O drama burguês de Alexandre Dumas Filho

Após a Revolução Francesa, as formas de comédia herdadas do século XVIII

continuam a se desenvolver, mas é a comédia de costumes que vai encontrar grande

crescimento. A partir de 1850, assiste-se a um aumento do número de peças cujo objetivo é

tornar a arte “útil”. Alexandre Dumas Filho, grande expoente do período, define as intenções

de seu teatro moralista, que vai absorver e atualizar os gêneros sérios; no prefácio da peça Le

fils naturel, ele afirma: “Toda literatura que não visa a perfeição, a moralização, o ideal, o útil

enfim, é uma literatura raquítica e doentia, natimorta” 12 (DUMAS FILS, 1899, p. 31).

O maior sucesso de Dumas Filho, La dame aux camélias (A dama das camélias) (1852),

consagra o gênero do drama moral. Nesta peça, a heroína, Marguerite Gauthier, é uma

prostituta que renuncia ao jovem burguês que ama, Armand Duval, para salvar-lhe a honra.

Ela morre, mas seus méritos são reconhecidos, demonstrando o triunfo da dignidade burguesa

(Cf. GENGEMBRE, 1997, p. 355).

Dumas Filho oscila entre o drama moral e a comédia moralizante, cujo exemplo de

maior sucesso é Le demi-Monde. A peça foi um sucesso porque teve êxito em mostrar os

costumes deste mundo artificial que vive de mentiras e falsas aparências, e ao fazê-lo Dumas

Filho aguçou a curiosidade do público, e nada melhor do que a realidade tal como ela é (ou

como ele a vê) para satisfazer tal curiosidade.

12 “Toute la littérature qui n'a pas en vue la perfectibilité, la moralisation, l'idéal, l'utile, en un mot, est une littérature rachitique et malsaine, née morte”.

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Para sustentar suas “comédias-tese” (Comédie-thèse) e passar sua lição moral, Dumas

Filho utiliza alguns artifícios. A presença de prefácio é uma característica marcante do autor:

é nele que o interlocutor é preparado, as teses são expostas e tem início sua argumentação,

que dá o tom daquilo que está por vir no decorrer da trama. Trata-se, de certa maneira, do

mesmo recurso utilizado por Diderot, com os ensaios Entretiens sur le fils naturel e Discours

sur la poésie dramatique, os quais acompanharam as publicações de suas peças, conforme

supracitado.

Outro elemento sempre presente é a personagem do raisonneur, moralista e dotada de

preconceitos, que é uma porta-voz do autor para dar a palavra final e reforçar a lição. De

acordo com o dicionário Trésor de la langue française (on line), o raisonneur (aquele que

raciocina, que argumenta) é a “personagem de comédia do qual o autor se serve como um

porta-voz para exprimir a ideia que quer pôr em cena e precisar o sentido e o alcance de sua

peça” 13. Para Pavis, trata-se de um tipo de personagem que aparece sobretudo na época

clássica, no teatro de tese e nas peças didáticas (Cf. PAVIS, 1999, p. 323). Dumas Filho vai

lançar mão deste tipo de personagem como uma manobra discursiva em suas comédias-tese,

que é uma forma que utiliza para convencer o público da legitimidade de seu discurso.

Embora toda peça apresente, necessariamente, uma tese, este tipo de teatro organiza os

comentários de forma bastante didática, e é o raisonneur um dos grandes responsáveis pela

defesa de tal tese.

Por fim os temas contemporâneos e as personagens “reais” são também recursos

utilizados para alcançar e convencer o público.

Em Le fils naturel, Dumas Filho pretende mostrar ao público as conseqüências do não

reconhecimento dos filhos ilegítimos por parte dos pais, um egoísmo que afetará a vida da

13 “Personnage de comédie dont l'auteur se sert comme d'un porte-parole pour exprimer l'idée qu'il a voulu mettre à la scène et préciser le sens et la portée de sa pièce”.

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criança, a qual encontrará obstáculos devidos à ausência de um nome de família. A

infelicidade dos filhos ilegítimos reflete-se não só nas relações com o pai, mas também nas

relações sociais: a sociedade também é responsabilizada por adotar tal procedimento como

normal, negligenciando o debate sobre o assunto.

Porém, o que se observa no texto da peça é uma personagem que não poderia se

queixar, nem dos homens, nem da sociedade, pois é rico, inteligente, sedutor, e encontra todas

as portas abertas, características e oportunidades que muitos filhos legítimos não possuem.

Após ser reconhecido como um homem de sucesso, seu pai, que antes o desprezara, passa a

procurá-lo a fim de oferecer um nome que não é mais desejado. Tal enredo permite-nos supor

que o objetivo de Dumas Filho tenha sido, mais uma vez com propósitos moralistas, mostrar

um pouco de sua biografia, por ser ele próprio um filho bastardo que alcançou sucesso e

reconhecimento público.

O espetáculo começa com a jovem Clara Vignot aguardando seu amante, Charles

Sternay, cujas visitas foram se tornando cada vez mais raras. Ele prometeu dar seu nome ao

filho, fruto desta paixão; mas, apesar da confiança que Clara deposita em suas palavras,

Charles mente ao dizer que precisa viajar para refazer sua fortuna perdida. Na verdade, ele

quer se desvencilhar de Clara, pois está prestes a se casar.

Vinte e três anos se passam desde a separação, e Jacques de Boisceny, filho de Clara

Vignot, apaixona-se por Hermine, que é a própria sobrinha de Sternay. Conheceram-se em um

encontro fortuito, casual, e casar-se-iam não fosse o impedimento da mãe da noiva.

É o amigo de infância de Clara Vignot, Aristide Fressard, que se encarrega de revelar a

Jacques o segredo de seu nascimento. A partir daí, o herói da peça vai em busca do pai para

obter seu nome, sem sucesso. As recriminações de Jacques contra Sternay e as reprovações

que dirige à mãe dão o tom moralista pretendido pelo autor.

Se o drama burguês do século XVIII pecava pelo excesso de indulgência em seu

moralismo, Dumas Filho, por outro lado, levou-o à extrema severidade. Analisando as duas

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peças homônimas, percebe-se a utilização pelos dois autores de recursos opostos para

pregar a moralidade.

Na peça Le fils naturel de Diderot, quando Dorval e Rosalie renunciam ao amor,

descobre-se que são irmãos. A virtude, até então infeliz, revela-se vitoriosa e recompensada.

Ademais, Lysimond, pai de Dorval, é um homem honesto, que as circunstâncias impediram

de reconhecer o filho – o oposto do pai de Jacques, o “filho natural” da peça de Dumas. Este

último representa um caso mais comum na vida real, que é a busca do prazer pelo homem e o

posterior abandono do filho ilegítimo e sua mãe. Percebe-se no drama sério de Diderot um

otimismo que não é evidente na peça de Dumas Filho, na qual a busca pela “realidade” traz

aos palcos caracteres exacerbadamente marcados, quase maniqueístas: Sternay é uma

personagem que não tem nenhuma qualidade, criada sob medida para causar repugnância.

Para o filósofo do Iluminismo, melhora-se o homem mostrando-lhe atitudes honestas e

argumentos justos que o influenciem: assim é sua busca de uma atmosfera moral para o

público (ARRÉAT, 1906, p. 105). No teatro de Alexandre Dumas Filho, a lição é muito mais

dura: em suas peças, ela é ensinada a partir dos maus exemplos, que são duramente

condenados. De uma forma ou de outra, a máxima de que a virtude sempre é recompensada e

o crime sempre punido prevalece.

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3 LE DEMI-MONDE : ENUNCIAÇÃO E CONTEXTO

Segundo Dominique Maingueneau (2006), todo enunciado é o produto de um evento

único, sua enunciação, que requer um enunciador, um destinatário, um momento e um lugar

específicos. Este conjunto de elementos define a situação de enunciação. Para o autor, os

textos literários apresentam o paradoxo de alcançar públicos indeterminados no tempo e no

espaço (descontextualização), embora sejam produzidos para um tipo específico de público.

No texto literário e nas demais comunicações escritas, o enunciador só sustenta o ato de

dizer se um leitor (destinatário) o coloca em movimento. Por isso o destinatário ou receptor

do texto literário também é chamado de co-enunciador, pois é ele que enuncia a partir das

indicações do autor no texto da obra.

A enunciação no teatro caracteriza-se por ser dupla: não só a representação é um ato de

enunciação, em que o autor se dirige a um público, como também, na própria situação

representada, as personagens trocam frases em uma situação de representação de um dizer

supostamente autônomo. Além disso, a leitura do destinatário é dupla: além das

representações ele tem acesso também aos textos da peça, caso tenham sido publicados.

Há na enunciação teatral uma fonte enunciativa invisível, à qual Maingueneau denomina

arquienunciador, que só entra em contato com seu público através da interpretação do diretor,

que faz a mediação entre o texto e seus diversos receptores (Cf. MAINGUENEAU, 1996, p.

160). Em um mesmo enunciado, o espectador tem acesso, portanto, a três atos de enunciação

distintos, que envolvem as seguintes instâncias: autor-público virtual, diretor-público

específico, personagem-personagem.

Observa-se, então, que o estudo dos diálogos teatrais deve contemplar os enunciados em

suas duas vertentes: como conversa entre personagens e como enunciado dirigido ao público.

Na peça Le demi-monde, percebem-se a inscrição do público alvo (burgueses) na própria obra

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e a utilização das personagens como porta-vozes do autor Dumas Filho.

3.1 Posicionamento enunciativo de Alexandre Dumas Filho

Posicionamento, termo chave da análise do discurso, relaciona-se, conforme explica

Patrick Charaudeau (2006), à manutenção de uma identidade enunciativa: a escolha do gênero

de discurso com o qual se vai trabalhar e, neste caso, a própria escolha do teatro em que a

peça será encenada, o vocabulário, a linguagem, os valores definidos, as normas de

comportamento social adotadas, entre outros recursos, indicam como o autor se situa neste

espaço de conflito que é o campo literário. Embora os diferentes posicionamentos tendam a

criar grupos, movimentos ou tribos, a identidade enunciativa não é fechada em si mesma: ela

se mantém e se renova através do interdiscurso.

Todo discurso tem como propriedade estar em relação com outros discursos. O

interdiscurso é um conjunto de gêneros discursivos que interagem em uma dada conjuntura, e

está para o discurso assim como o intertexto está para o texto. O intertexto, por sua vez, é um

conjunto de textos ligados por relações intertextuais, ou seja, relações entre textos em que um

ecoa no outro.

A partir destes conceitos podem ser observadas as relações que as peças de Dumas

Filho mantêm entre si, que produzem/projetam sua identidade discursiva, e aquelas entre sua

obra e outras obras contemporâneas, cujas diferenças e/ou semelhanças definem seu

posicionamento. Além disso, permitem o entendimento da estratégia do autor de adaptação de

diálogos cotidianos da sociedade de sua época para a literatura e o teatro.

Na seção a seguir apresentaremos o Théâtre du Gymnase, teatro escolhido por

Alexandre Dumas Filho para a estreia da peça Le demi-monde, em 1855.

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3.2 Théâtre du Gymnase

O Théâtre du Gymnase foi construído em 1820. Na ocasião, servia à prática dos alunos

do Conservatório, representando peças de um ato. Charles-Gaspard Delestre-Poirson (1790-

1859), primeiro diretor do teatro, logo pôde pôr em cena peças que não ultrapassassem três

atos, e se associou a Augustin Eugène Scribe14 (1791-1861) por contrato exclusivo.

Os parisienses rapidamente adquiriram o hábito de freqüentar este teatro agradável e

moderno (Poirson foi, desde 1823, um dos primeiros a instalar iluminação a gás), e lá aplaudir

peças alegres e morais, mas por vezes também de tendências liberais como a peça de Scribe,

intitulada Avant, pendant et après (antes, durante e depois), que lhe atrairá em 1829 o

descontentamento da Corte.

Com Scribe, e durante 25 anos, instalou-se a prática de preconizar as virtudes burguesas

e cívicas, na qual se destacam a importância do pai de família, a vitória da sabedoria e da

razão, etc. Quando Poirson cedeu, em 1844, a direção do teatro a Montigny, este último se

deu conta de que o público começava a perder o interesse pelas obras edificantes e

personagens puras, pobres e virtuosas. Assim, o Gymnase transforma seu repertório e inicia

uma nova fase.

« Ele (Théâtre du Gymnase) está daqui em diante inteiramente ligado a este gênero cuja

importância desenvolveu singularmente » 15 , constatava Monselet, em 1864. E ele define o

gênero a que se refere:

Seu repertório é como um audacioso parêntese aberto na sociedade atual. Ele se compraz no ilícito, é direto ou escabroso... A ele as situações comprometedoras, [...] os descaramentos calculados. Há uma lupa para todos os escândalos. Suas peças

14 Prolífico autor dramático francês cujas obras dominaram os palcos franceses por mais de 30 anos e foram consideradas as precursoras do conceito de pièce bien faite, peça bem feita, gênero caracterizado pelas construções cuidadosas e precisas em suas estruturas. 15 « Il est désormais tout acquis à ce genre dont il a singulièrement développé l’importance ». Disponível em http://www.theatredugymnase.com/theatre.html. Acesso em 09/07/2008.

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duram uma noite inteira, suas comédias não recuam nem diante de pistolas, nem diante de soluços, nem diante das agonias. 16

Este período foi marcado principalmente pelas peças-tese de Alexandre Dumas Filho,

que o Théâtre du Gymnase revelou ao público e à crítica. Assim como Scribe deixou sua

marca na primeira fase do teatro, Alexandre Dumas Filho foi o autor ideal do Théâtre du

Gymnase em sua nova fase.

Adolphe Lemoine Montigny foi um dos grandes diretores de teatro de seu tempo em

Paris. Assumiu o Gymnase em junho de 1844, e enfrentou a tempestade da revolução de

1848. Sua esposa, Rose Chéri (1824-1861), foi sua companheira em tal empreitada. Passada a

tormenta, o casal, coroado com o sucesso, desfrutou de um período mais calmo.

Antes de ser diretor de teatro, Montigny fora ator de comédia, atuando inclusive no

Théâtre-Français. O ex-aluno da Universidade de Paris fez do Teatro Gymnase uma das

primeiras cenas literárias de Paris, transformando-o no terceiro teatro francês. Lá, foram

aplaudidas as melhores obras de grandes autores dramáticos, entre eles Alexandre Dumas

Filho.

Não se pode falar da História do Gymnase sem mencionar Rose Chéri, que interpretou

obras primas de Dumas Filho, entre elas Diane de Lys, Le fils naturel e, conforme depoimento

de Dumas Filho citado abaixo na análise do prefácio, a baronesa Suzanne d’Ange em Le

demi-monde. Um ar distinto e reservado tornou-se um marco de seu talento, e com ele

conquistou seu lugar em meio a inúmeras e belas atrizes. Segundo Heylli (Cf. 1875, p. 104),

poucas carreiras foram tão gloriosamente preenchidas como a sua. Seu nome está ligado a

peças e papéis bem diferentes entre si: foi filha, esposa, mãe, e à medida em que avançava,

16 “Son répertoire est comme une audacieuse parenthèse ouverte dans la société actuelle. Il se plaît dans l’illicite, il va droit au scabreux... A lui les situations compromettantes, [...] les effronteries calculées. Il a une loupe pour tous les scandales. Ses pièces durent toute une soirée, ses comédies ne reculent ni devant les coups de pistolet, ni devant les sanglots, ni devant les agonies”. Disponível em http://www.theatredugymnase.com/theatre.html. Acesso em 09/07/2008.

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fazia novas conquistas na arte.

Na próxima seção, algumas informações sobre o Théâtre-Français.

3.3 Théâtre-Français (Comédie-Française)

O Théâtre-Français foi criado em 1680 por um decreto real de Luís XIV, cujo objetivo

era a unificação das companhias de teatro rivais: a do Hotel Guénégaud, herdeira de Molière,

e a do Hotel da Borgonha, especializada em tragédia. Criou-se uma companhia única dos

atores do rei, subvencionada por ele e detentora do monopólio da criação dramática em Paris.

A denominação Comédie-française espalha-se para designar a privilegiada companhia de

atores do rei, por oposição à escola italiana.

Com a revolução de 1789, a Comédie-Française perde seus privilégios: as subvenções

são cortadas e o monopólio da criação dramática em Paris é quebrado. A liberdade dos

teatros, proclamada em 1791, proporciona a concorrência e dissidências internas. Em 1804, os

atores da Comédie assinam um novo contrato de sociedade, e, em 1806, Napoleão restabelece

parcialmente o monopólio da criação dramática e reorganiza os teatros de Paris.

A partir de 1831, a Comédie-Française passa à tutela do Ministério do Interior, e neste

momento há um aumento na subvenção. Em 1833, os atores da Comédie deixam a gestão de

seus negócios a cargo de um “diretor-gerente”, e sofrem com a concorrência dos teatros de

Boulevard. 17

Se, no final do século XVIII, a cena foi tomada por Talma18, Rachel (1820-1858)

17 Denominação dada ao gênero popular desenvolvido nos teatros localizados no Boulevard du Temple, apelidado de Boulevard du Crime devido ao grande número de incidentes criminosos nas peças representadas, entre as quais o tipo de espetáculo predominante é o melodrama. 18 François-Joseph Talma (1763-1826) foi o mais celebrado ator francês de sua época, tendo sido amigo pessoal de Napoleão Bonaparte e admirado por muitas personalidades da arte, inclusive Alexandre Dumas, que foi responsável pela compilação de suas memórias, publicadas em 1849.

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domina o século XIX. Sua atuação ressuscita o interesse do público pela tragédia clássica, e

seu sucesso garantir-lhe-á uma posição privilegiada dentro da companhia. É este interesse

predominante pela tragédia e o “reinado despótico” de Rachel que caracterizam a Comédie-

française e seu público, e a eles Alexandre Dumas Filho atribui sua recusa ao convite para a

estréia da peça Le demi-monde neste teatro.

A segunda metade do século XIX assiste à implantação da figura do administrador do

Théâtre-français, fato que vai modificar sensivelmente seu funcionamento. O administrador é

nomeado pelo governo, e a ele cabe a escolha da programação. E é assim que o teatro

naturalista e a comédia burguesa se impõem ao repertório da Comédie-française.

3.4 Prefácio da peça Le demi-monde – A opção pelo Théâtre du Gymnase

Alexandre Dumas Filho inicia o prefácio da peça Le demi-monde contando como teve a

idéia de escrevê-la. Narra como conheceu o demi-monde, e então se entende por que seu

teatro é tido como realista: nas situações por ele narradas e nas pessoas por ele descritas e

ditas freqüentadoras deste nicho social, reconhece-se imediatamente cada uma das

personagens que “criou” (ou copiou) para a peça.

Realidade muito peculiar da cidade de Paris do século XIX e por isso de difícil tradução

atualmente, o demi-monde, para Dumas Filho, se refere, conforme definição dada no prefácio

da obra, a uma “classe de [mulheres] desclassificadas”, definição esta que o autor distingue da

“multidão das cortesãs” (DUMAS FILS, 1898, p. 11). 19 Trata-se de uma redefinição do demi-

monde, com a qual Dumas Filho pretende estabelecer o verbete para os dicionários futuros.

Segundo ele, “Não pertence ao demi-monde quem quer. É preciso mostrar seu valor para ser

19 « Le demi-monde ne représente pas comme on l'imprime, la cohue des courtisanes, mais la classe des déclassées ».

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admitida” (DUMAS FILS, 1898, p. 11). 20 Ou seja: é um mundo composto por mulheres

cujas raízes estão na “sociedade regular”, mas que resolveram desertar, sobretudo em nome de

um amor questionável. Mas é um mundo que também acolhe jovens que começaram a vida

por uma falta (como uma gravidez indesejada, por exemplo). Dumas Filho admite que os

“diferentes mundos se mesclaram nas últimas oscilações do planeta social”, e teme que as

“inoculações perniciosas” resultantes deste contato se generalizem, que sua definição seja

para as gerações futuras descendentes nada mais do que um “detalhe puramente

arqueológico”, e que eles confundam “o alto, o meio e o baixo” (DUMAS FILS, 1898, p. 12).

21 Seu temor se tornou realidade...

Após este panorama sobre o significado do demi-monde, o autor envereda pelas

questões políticas e administrativas que envolvem a peça. Comenta que tão logo terminou de

escrever um ato da peça, foi procurado pelo ministro da Casa do imperador e das belas-artes,

o Senhor Fould (1800-1867), que o questionou sobre seu trabalho. Face à resposta de que

escrevia uma comédia em cinco atos para o Gymnase, o ministro perguntou se seria possível

reduzi-la a três atos, e como obteve não como resposta, anunciou que a peça certamente seria

encenada no Théâtre-français, uma vez que a administração havia decidido, na véspera, que o

Gymnase e outros teatros de gênero não poderiam representar obras com mais de três atos.

Fould acrescentou que esta decisão fora tomada, sobretudo, para forçá-lo a ir ao teatro para o

qual o chamava seu talento (Cf. DUMAS FILS, 1898, p. 13).

Segundo Dumas Filho, por mais lisonjeado que tenha ficado com a proposta, achou por

bem não aceitar, pelas seguintes razões: já tinha firmado compromisso com o diretor do

Gymnase, Montigny; já havia prometido um papel à atriz Rose Chéri; enfim, desejava ter o

20 « N’est pas du demi-monde qui veut. Il faut avoir fait ses preuves pour y être admise ». 21 « Malgré tout, il ne faut pas nier que les différents mondes se sont mêlés si souvent dans les dernières oscillations de la planète sociale, qu’il est résulté du contact quelques inoculations pernicieuses. Hélas ! j’ai grand peur, au train dont la terre tourne maintenant, que la bousculade ne devienne générale, que ma définition ne soit pour nos neveux un détail purement archéologique, et que, de bonne foi, ils n’en arrivent à confondre bientôt le haut, le milieu et le bas ».

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direito de escrever para o teatro que lhe convinha (Cf. DUMAS FILS, 1898, p. 13). E são

as razões que ele vai enumerar que nos importam do ponto de vista histórico, caracterizando o

contexto de enunciação da peça e o posicionamento do autor no campo literário.

Fould ofereceu a Dumas Filho as mesmas vantagens que teria no Gymnase: sua peça

seria recebida sem leitura prévia e sem passar pelo comitê de análise, teria compensações

financeiras equivalentes às que teria no Gymnase, teria os melhores atores e os ensaios não

durariam mais de seis semanas, começando oito dias após a entrega dos cinco atos. Quanto ao

tema da peça, assunto que mais preocupava Dumas Filho no que se referia à troca de teatros,

uma vez que chocaria as tradições da grande cena trágica do Théâtre-français, revelou-se a

razão principal para o convite ao autor: a intenção era violar as tradições e sacudir o público,

que começava a se entediar.

Ainda utilizando as palavras de Dumas Filho, naquele momento:

A senhorita Rachel, cujo talento ninguém admira mais do que eu, reinava despoticamente, como reinam todos os artistas de valor excepcional”, e “excluía assim a literatura contemporânea, que, mesmo que fosse inferior àquela do século XVII, tinha o direito de viver e espalhava-se então nos teatros de gênero, à frente dos quais estava o Gymnase [...] (DUMAS FILS, 1898, p. 15). 22

Dumas Filho pontua, aqui, a diferença de repertório dos teatros Gymnase e Comédie, e

implicitamente faz a distinção do público de cada um deles. Segundo Mello, no espaço-

histórico romântico francês – leia-se romântico como moderno, englobando os séculos XIX e

XX 23 -

o clássico se oferece como um amplo espectro de memória cultural comum a certos grupos sociais detentores de traços de distinção (capital cultural), para operar como

22 « Mademoiselle Rachel, dont personne plus que moi n’a admiré le talent, régnait alors despotiquement, comme règnent tous les artistes d’une valeur exceptionnelle. [...] Elle excluait ainsi la littérature contemporaine, qui, si inférieure qu’elle fût à celle du XVIIe siècle, avait le droit de vivre cependant et se répandait alors dans les théâtres de genre, à la tête desquels le Gymnase s’était placé [...] ». 23 “Periodização de história geral proposta por Foucault, em As palavras e as coisas (1966), que definia uma episteme neoclássica, nos séculos XVII-XVIII, e uma episteme moderna, ou seja romântica, nos séculos XIX-XX” (MELLO, 2006, p. 40).

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um contraponto a um novo universo de temas, gêneros, suportes de publicação e modos de circulação e avaliação. (MELLO, 2006, p. 42).

O clássico, então, está ligado à detenção de capital cultural específico, ou seja, de

qualificações intelectuais específicas, associadas a uma formação na cultura das humanidades,

e, no âmbito teatral, está associado à tragédia. É este o público que vai assistir as tragédias

encenadas por Rachel no Théâtre-Français, ao passo que o Théâtre du Gymnase está

associado a este “novo universo de temas e gêneros” supracitados, envolvendo o drama

burguês, o melodrama e a comédia de costumes.

Segundo Dumas Filho, Rachel era ao mesmo tempo o sucesso e a ruína, a vida e a morte

do teatro, pois quando ela não estava em cena o público se dirigia a outros teatros. Este foi o

motivo pelo qual o administrador do Théâtre-français, segundo Dumas um “homem de gosto

e de iniciativa”, para encontrar equilíbrio e fazer um contraponto à individualidade de Rachel,

procurou obter talentos jovens, e, dentro deste programa, Dumas Filho e seus “quadros

indecentes” tornaram-se “objetos de primeira necessidade” (Cf. DUMAS FILS, 1898, p. 13).

Daí a resistência de Dumas: por considerar a peça Le demi-monde um trabalho que

determinaria sua posição na carreira, desejava então travar sua batalha em terreno conhecido e

favorável: o Théâtre du Gymnase...

Finalmente, Dumas Filho explica como conseguiu o que queria. Experiente em matéria

de censura (suas duas peças anteriores haviam sido condenadas, mas foram representadas),

entregou ao ministro um manuscrito cujo formato, sabia ele, não o agradaria, uma vez que

apresentava seu procedimento padrão, que não era bem visto: a peça foi escrita como se as

personagens fossem pessoas reais, a linguagem que utilizavam era a linguagem do dia-a-dia.

Além disso, o autor esperou para entregar a peça no momento em que Scribe anunciava sua

grande peça La Czarine, cujo papel principal fora escrito para Rachel – obra muito mais

adequada ao cenário do Théâtre-français. O desfecho se deu conforme o esperado e desejado:

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Le demi-monde foi tida como “impossível, mais perigosa e ainda mais brutal que as duas

anteriores, repleta de monstruosidades” e, segundo o autor, após várias leituras secretas, sendo

uma diante de Suas Majestades, foi considerado que o tema da peça, “o meio no qual se

desenvolvia, a forma como foi escrita, eram incompatíveis com o palco mais importante do

mundo” (DUMAS FILS, 1898, p. 19). 24 Como recompensa, foi autorizado a voltar ao

Gymnase, onde fora restabelecido o direito de representar obras de cinco atos.

Observa-se que as características e as políticas do Théâtre du Gymnase e do Théâtre-

français anteriormente expostas, com base em documentos das próprias instituições 25, são

citadas neste depoimento de Dumas Filho. A organização em uma companhia única de teatro

na Comédie-Française, a hegemonia de Rachel neste teatro, a liberação do Théâtre du

Gymnase para peças de mais de três atos, a figura do administrador do teatro e seu poder de

decisão sobre a programação, o repertório do Gymnase e a guinada em direção ao drama

burguês – para o qual Dumas Filho foi considerado ideal... Todas estas questões estão

presentes no prefácio da peça, prefácio este que é utilizado pelo autor para legitimar sua

enunciação.

24 “[...] ma pièce était impossible, plus dangereuse, plus brutale encore que les deux autres, toute pleine de monstruosités. On me laissa entendre, après plusieurs lectures secrètes, dont une même eut lieu à Saint-Cloud, devant Leurs Majestés, que le sujet de ma comédie nouvelle, le millieu où elle se développait, la forme dans laquelle elle était écrite, étaient incompatibles avec la première scène du monde » 25 O portal oficial do Théâtre du Gymnase na internet (http://www.theatredugymnase.com), e a edição comemorativa da criação do Studio-Théâtre, terceira construção componente da Comédie-Française, da revista Connaissance des arts, cujo prefácio foi escrito por Jean-Pierre Miquel, administrador geral do teatro.

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4 ETHOS E HABITUS: ART DE VIVRE BURGUÊS

Se definirmos o ethos como uma imagem de si projetada pelo enunciador, veremos que

Dumas Filho lança mão deste recurso da retórica aplicada à análise do discurso a fim de

demonstrar quem é e a quem seu teatro se destina. Servindo-se de suas personagens como

porta-vozes de seu próprio discurso, o autor se aproxima de seu público alvo ao representar

em cena problemas, costumes e estilo de vida que concernem a burguesia parisiense do

Segundo Império.

Com pobres didascálias iniciais, que não fornecem indicações de cenário – figurino,

iluminação -, são as didascálias expressivas, ou seja, aquelas que guiam a interpretação

precisando tom, sentimento e pantomima, e principalmente os diálogos pseudo-descritivos26

as ferramentas utilizadas por Dumas Filho para atingir o público. Tudo isto faz de suas

personagens o centro da mise en scène e, consequentemente, de sua cenografia enunciativa: é

por meio das personagens, com seus diálogos, que o texto chega até o leitor/espectador, ou

seja, ao co-enunciador, em primeiro lugar; são eles os responsáveis pela definição de espaço

(topografia) e tempo (cronografia) a partir dos quais se desenvolve a enunciação. 27

Esta imagem de si, construída para garantir o sucesso do empreendimento oratório, é o

que os filósofos antigos chamavam de ethos. Conforme mostra Amossy, na introdução do

livro Imagens de si no discurso: a construção do ethos, do qual é organizadora (Cf.

AMOSSY, 2008, p. 10), o ethos é a peça principal da máquina retórica e está fortemente

ligado à enunciação, sendo resgatado pela Análise do Discurso e pela Pragmática Moderna,

interessados na compreensão dos artifícios empregados pelos locutores para tornar o discurso

26 Segundo Rullier-Theuret, por vezes fala-se em “didascálias internas”, termo que amplia sobremaneira a noção de didascália (tudo poderia ser considerado didascália) e afasta-se da definição inicial: “O termo didascálias (do grego didascalia, “indicações dadas ao ator pelo poeta dramático”), é mais englobante que a expressão “indicações cênicas”, pois designa a parte do texto escrito que não é pronunciado pelos personagens: indicações de nomes, de estruturação (ato, cena), de cenário ou de gestos”. RULLIER-THEURET, 2003, p. 7 -16. 27 Trata-se da própria definição de cenografia enunciativa. Cf. MAINGENEAU, 2001, p. 123.

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eficaz.

A interação entre enunciador e co-enunciador se dá por meio da imagem que fazem um

do outro, como em um jogo de espelhos. É a imagem que o enunciador faz de seu público,

com as ideias e reações que dele espera, que irá guiar seu discurso. Na outra ponta da cadeia

de comunicação, o co-enunciador ou interlocutor também faz uma imagem do enunciador, a

partir do ethos projetado por este.

Ambas as imagens construídas (a imagem que o enunciador faz de seu co-enunciador e

vice-versa) são guiadas por um saber prévio, chamado de ethos prévio ou pré-discursivo. Esta

ideia prévia que se faz do enunciador está relacionada à estereotipagem, ou seja, ao pensar o

real por meio de uma representação social preexistente, um esquema coletivo cristalizado (Cf.

AMOSSY, 2008, p. 125). Desta forma, o enunciador frequentemente adapta sua apresentação

de si às representações sociais que ele crê interiorizadas e valorizadas por seu público alvo. Se

tomarmos como premissa a seguinte afirmativa de Maingueneau, “mesmo que o destinatário

nada saiba antes do ethos do locutor, o simples fato de um texto estar ligado a um dado

gênero do discurso ou a um certo posicionamento ideológico induz expectativas no tocante ao

ethos” (MAINGUENEAU, 2006, p. 269), e adaptarmo-la ao teatro de Alexandre Dumas

Filho, faremos uma associação com o Théâtre du Gymnase e seu público: ao escolher este

teatro para a encenação da peça, palco por excelência do drama moral burguês, Dumas Filho

se posiciona no campo literário e explicita sua relação com seu público alvo. Da mesma

forma, ao eleger este teatro, o público já sabe o que esperar dele, já carrega suas expectativas

em relação ao ethos do locutor.

O ethos não é apenas um meio de persuasão: é parte constitutiva da cena de enunciação,

atuando como uma máscara enunciativa na qual o que é dito não é necessariamente o que se é,

mas uma maneira de se apresentar, de forma a obter legitimidade junto ao público. Se “o

texto não se destina a ser contemplado, é enunciação estendida a um co-enunciador que é

necessário mobilizar para fazê-lo aderir “fisicamente” a certo universo de sentido”, conforme

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explica Maingueneau (2001, p.137), é o ethos o responsável por esta tarefa. Para o co-

enunciador, o ethos permite que a obra tome corpo, fenômeno designado por Maingueneau

como incorporação.

Como a instância que assume o tom de uma enunciação não coincide necessariamente

com o autor da obra, ao ler ou ao assistir a peça, o co-enunciador produz uma imagem desta

origem enunciativa, que adquire uma corporalidade e um caráter a partir de indícios textuais

percebidos e de estereótipos culturais carregados por este co-enunciador. A esta “origem”

enunciativa o co-enunciador atribui uma forma encarnada, que será para ele o “fiador”, o

responsável pelo enunciado (Cf. MAINGUENEAU, 2001, p. 139).

Porém, cabe aqui considerar a duplicidade do diálogo teatral, em que não só o autor se

dirige ao público através da representação ou do próprio texto, como também, na situação

representada, os diálogos das personagens constituem um contexto enunciativo supostamente

autônomo, caracterizando duas situações de enunciação distintas. Diferente de um romance,

em que o autor sustenta o processo narrativo, no teatro a presença de interlocutores

aparentemente autônomos supõe uma fonte enunciativa invisível que integre o conjunto de

seus enunciados: o arquienunciador (MAINGUENEAU, 1996, p. 160).

De acordo com Maingueneau, “o arquienunciador é uma instância distinta do escritor,

encarrega-se de uma rede conflitual de posições enunciativas” (MAINGUENEAU, 1996, p.

160). Mesmo quando o autor utiliza personagens porta-vozes para expor sua opinião ao

público, em regras gerais a única enunciação que se pode atribuir verdadeiramente ao autor é

a interação das enunciações de todos os personagens, caracterizando uma multiplicidade de

vozes, uma polifonia. Contudo, observa-se que Dumas Filho se utiliza da personagem

raisonneur não só para expor sua opinião mas também para defendê-la, já que é este o

objetivo de suas comédias-tese. Desta forma, a análise da polifonia neste tipo de teatro fica

descaracterizada, passando a ocupar um segundo plano.

O ethos literário será construído a partir das marcas enunciativas presentes no

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enunciado, que se associam a determinados posicionamentos enunciativos e a determinadas

posições no campo literário. Um dos conceitos fundamentais da obra de Pierre Bourdieu,

campo é um espaço de luta entre os agentes sociais que aí ocupam diversas posições em

tensão, onde o que se está em jogo é a apropriação do capital específico deste campo – seja o

capital econômico, cultural, social ou simbólico, ou mais de um em alguns casos. Sendo o

capital simbólico a autoridade conferida a um agente pelo reconhecimento dos demais

membros do grupo pela detenção das três outras formas de capital, é ele a razão maior das

lutas internas no campo (BONNEWITZ, 2002, p. 57).

A distribuição desigual de capital entre os membros do campo determina sua estrutura.

Os membros dominantes, fortemente dotados do capital específico do campo, lançam mão de

estratégias de conservação de sua posição no campo – como exemplos, podemos citar as

estratégias de investimento biológico, como as estratégias de fecundidade, visando controlar o

número de descendentes a fim de assegurar a transmissão de capital, e as estratégias

profiláticas de manutenção da saúde; as estratégias educativas, cujo objetivo é produzir

agentes sociais dignos e capazes de receber a herança do grupo; as estratégias de investimento

econômico; e as estratégias matrimoniais (BONNEWITZ, 2002, p. 57). Todas são estratégias

de investimentos simbólicos, ou tomadas de posição (BOURDIEU, 1994, p.71), que visam

conservar o capital de referência e consequentemente conservar a posição hegemônica no

campo.

Mas a lógica de funcionamento de um campo é indissociável do habitus. A cada campo

corresponde um habitus próprio. Os agentes do campo constroem seus projetos em função das

possibilidades disponíveis que lhes asseguram as categorias de percepção inscritas em seu

habitus. Somente os indivíduos que incorporaram o habitus relativo àquele campo estarão em

condições de jogar o jogo. Cada agente do campo é caracterizado por sua trajetória, seu

habitus e sua posição neste campo.

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Na fronteira das disciplinas que envolvem a linguagem, o conceito de ethos apresenta

ainda uma dimensão sociológica, que remete, uma vez mais, aos trabalhos de Bourdieu. De

acordo com as teorias do sociólogo, o discurso por si só não tem autoridade se não for

pronunciado por uma pessoa legitimada a pronunciá-lo. Por isso, o ethos não é apenas uma

construção discursiva: ele se baseia na autoridade exterior do enunciador, que concentra o

capital simbólico acumulado pelo grupo que ele representa, ou seja, que é reconhecido como

uma autoridade pelos demais membros. Assim sendo, o discurso adquire, segundo Amossy

(2008, p. 121), uma dupla perspectiva: interacional, em que a eficácia discursiva não pode ser

compreendida fora da troca entre participantes, e institucional, visto que tal troca é

indissociável das posições ocupadas pelos participantes no campo no qual atuam.

Diferentemente do ethos dos pragmáticos, que é puramente interno ao discurso, o dos

sociólogos apóia-se em trocas simbólicas e posições institucionais exteriores ao discurso.

Buscamos, aqui, utilizar as duas abordagens de forma complementar, seguindo os passos de

Amossy, Maingueneau e Viala. “A construção discursiva, o imaginário social e a autoridade

institucional contribuem, portanto, para estabelecer o ethos e a troca verbal do qual ele é parte

integrante”, conclui Amossy (AMOSSY, 2008, p. 137). Em outras palavras, o estudo da

enunciação aqui proposto considera: 1) a imagem construída pelo enunciador no discurso, ou

o ethos propriamente dito; 2) a imagem preexistente do enunciador (ethos prévio ou pré-

discursivo); 3) conjunto de valores incorporados tanto no discurso quanto nos

posicionamentos do ser empírico, ou seja, aproximação do ethos com o habitus.

O habitus representa a marca da sociedade no indivíduo, que se expressa de forma

inconsciente. “Estrutura estruturante, que organiza as práticas e a percepção das práticas, o

habitus é também estrutura estruturada: o princípio de divisão em classes lógicas que organiza

a percepção do mundo social é ele mesmo o produto da incorporação da divisão em classes

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sociais” (BOURDIEU, 1979, p. 191). 28

O habitus pode ser considerado como um mecanismo de interiorização inconsciente do

exterior, e é um produto da posição e da trajetória social do indivíduo. O habitus primário é

construído durante a infância, no seio da família, e as disposições nele apreendidas são as

mais duráveis, pois são as mais precocemente adquiridas. Como toda família ocupa uma

posição no espaço social, a educação recebida é, em geral, ligada a uma posição de classe - a

divisão social leva à construção de diferentes habitus de classe. Os habitus secundários, tais

como o habitus escolar, integram-se ao primário, e embora as aquisições mais recentes sejam

condicionadas pelas mais antigas, o habitus não cessa de se ajustar em função da nova

realidade de vida, da trajetória de cada indivíduo.

É por esta razão que, segundo Bonnewitz, o habitus se apresenta como uma mediação

entre as estruturas objetivas e os comportamentos individuais, ultrapassando a questão da

oposição objetivismo/subjetivismo:

Nossas práticas não são simples execuções das normas explícitas, mas elas traduzem um senso do jogo que adquirimos por meio do habitus, o senso prático, definido como a aptidão para se mover, para agir e para se orientar segundo a posição ocupada no espaço social, segundo a lógica do campo e da situação nos quais se está implicado, e isso sem recurso à reflexão consciente, graças às disposições adquiridas funcionando como automatismos (BONNEWITZ, 2002, p. 62). 29

A prática coletiva deve sua coerência e sua unidade ao efeito do habitus; ele gera uma

ilusão de escolha nas práticas e representações, embora os indivíduos não façam mais do que

repetir o habitus que os modelou. “Todas as práticas e as obras de um mesmo agente são

objetivamente harmonizadas entre elas, sem qualquer busca intencional de coerência [...]”

28 “Structure structurante, qui organise les pratiques et la perception des pratiques, l’habitus est aussi structure structuré: le principe de division en classes logiques qui organise la perception du monde social est lui-même le produit de l’incorporation de la division en classes sociales”. 29 “Nos pratiques ne sont pas de simples exécutions des normes explicites, mais elles traduisent un sens du jeu que nous avons acquis par le biais de l’habitus, le sens pratique, définit comme l’aptitude à se mouvoir, à agir et à s’orienter selon la position occupée dans l’espace social, selon la logique du champ et de la situation dans lesquels on est implique, et cela sans recours à la réflexion consciente, grâce aux dispositions acquises fonctionnant comme des automatismes”.

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(BOURDIEU, 1979, p. 192). 30 É esta harmonia que fundamenta as diferenças nos estilos

de vida na sociedade: os membros da classe dominante apresentam um habitus associado à

noção de distinção; a pequena burguesia destaca-se pelo desejo de ascensão social, as classes

populares têm um habitus marcado pelo senso de adaptação às privações materiais e pela

valorização da força física, e assim por diante.

Os estilos de vida são um produto do habitus e tornam-se sistemas de signos

socialmente qualificados, adjetivados. A relação dialética que se estabelece entre as condições

e os habitus está na raiz do processo que transforma a distribuição do capital, produto de uma

relação de forças, em distribuição de capital simbólico, ou seja, em sistemas de diferenças

sociais e comportamentais perceptíveis.

Tais comportamentos e práticas são analisados por Bourdieu em La distinction (1979), e

demonstram como até mesmo o consumo, seja de bens materiais ou culturais, é um traço

característico destes estilos de vida. No que se refere ao consumo cultural, o autor distingue o

consumo considerado socialmente vulgar, assim chamado por ser fácil e comum, exercido

pelos indivíduos mais desprovidos de capital econômico e cultural, do consumo tido como

distinto, por ser raro e exercido pelas classes superiores da sociedade. Quanto ao consumo de

bens materiais, Bourdieu opõe os gostos de luxo ou de liberdade aos gostos de necessidade: os

primeiros são próprios dos indivíduos que são produto das condições de existência definidas

pelas liberdades e/ou facilidades que a posse do capital assegura; as últimas exprimem as

necessidades dos menos favorecidos pelo capital econômico. Para Bourdieu, o termo “gosto

de necessidade” chega a ser um paradoxo, visto que a idéia de gosto está intimamente ligada à

idéia de liberdade – por isso é uma noção tipicamente burguesa, pois supõe uma liberdade de

escolha.

30 “(...) toutes les pratiques et les oeuvres d’un même agent sont objectivement harmonisées entre elles, en dehors de toute recherche intentionnelle de la coherence (…)”.

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Destacamos aqui os traços do ethos burguês e seus valores predominantemente

projetados pelas personagens, que estão relacionados à cenografia enunciativa da peça, ao

posicionamento de Alexandre Dumas Filho no discurso literário e à sua posição no campo

literário. Nota-se uma predominância deste recurso no primeiro ato, como uma forma de

montar as bases para que o leitor se situe geográfica e socialmente, suprindo assim a ausência

de didascálias. Porém, cabe, inicialmente, definir a burguesia francesa do período em questão.

Referimo-nos a burgueses, aqui, como uma classe social estabelecida como tal, ou seja,

como um grupo que se diferencia de outro por seu lugar no sistema historicamente

determinado da produção e por seu papel na organização social do trabalho (CARDOSO,

1992, p. 127). A burguesia francesa, no período pós-revolucionário, destaca-se da grande

“massa” do Terceiro Estado, adquirindo ideologia própria e consciência de classe,

diferenciando-se do povo. Trata-se, portanto, de uma classe emergente cujo crescente poderio

econômico e político deve ser projetado nas artes.

Adeline Daumard (1970) vai esmiuçar as características deste grupo de acordo com as

condições de vida material, as origens sociais e a formação intelectual e moral, as reações e o

comportamento individual e coletivo. Segundo a autora, no topo da pirâmide social estava a

aristocracia financeira que chegou a esta posição depois da Revolução de 1830. O banqueiro,

o grande industrial, o grande negociante são por excelência os representantes desta categoria.

Por outro lado, há ainda a classificação de alta burguesia, cujos representantes estavam em

contato muito estreito com a aristocracia financeira, tornando difícil a distinção. No entanto,

estes não tinham, em geral, voz de comando, nem poder de decisão em termos econômicos e

financeiros. O que caracteriza esta alta burguesia é inicialmente a solidez das suas fortunas.

Em um nível inferior, entre as classes superiores e as intermediárias, situa-se a “boa

burguesia”. As ocupações e fortuna desta classe fazem com que ela esteja mais ligada a Paris

do que a alta burguesia e a aristocracia financeira. A boa burguesia agrupa duas categorias

muito diferentes. Por um lado, compreende os parisienses ricos que por vezes possuem

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fortunas tão elevadas quanto os representantes da alta burguesia, mas não possuem as

responsabilidades ou a influência necessária para se situar na categoria superior. Ademais, é

preciso que os proprietários dessas fortunas não exerçam uma profissão que se assemelhe a

uma atividade manual. Ao lado dos diretores de empresa, uma parte importante da boa

burguesia se recruta no seio das profissões que assumem as responsabilidades necessárias ao

avanço da sociedade burguesa: oficiais públicos e outros representantes de profissões liberais,

como médicos e advogados, com a condição de que tenham uma clientela suficientemente

numerosa e abastada, enfim, os funcionários públicos, os magistrados e oficiais superiores

sem grande fortuna – por vezes até mesmo excluídos do corpo eleitoral, devido à

mediocridade do seu patrimônio -, mas que o prestígio de suas funções separa da média

burguesia.

A média burguesia (termo preferível ao de classe média, normalmente empregado pelos

contemporâneos para designar o conjunto das classes burguesas) é a ligação mais importante

entre o povo e as classes superiores. É a este grupo que pertence grande parte dos empregados

do Estado, os representantes das profissões liberais e dos quadros a serviço de empresas

privadas. Embora as ambições individuais possam modificar este esquema, grande parte dos

representantes desta classe tem preocupações mais parisienses e mais locais do que aquelas

dos meios superiores. Nela está a burguesia parisiense por excelência.

A burguesia popular, enfim, é uma pequena burguesia sem dinheiro e que beira a

fronteira com o proletariado. Ela se distingue do povo por suas funções: pequenos

comerciantes ou artesãos, por exemplo, que vivem de seu próprio lucro, o que os separa de

sua clientela, em grande parte operária.

Podemos classificar as personagens da peça Le demi-monde da seguinte maneira:

Raymond de Nanjac, militar condecorado, morador do faubourg Saint-Germain, vinte mil

libras de renda, que pelo sobrenome (de Nanjac) e pelo fato de sua irmã residir no Faubourg

Saint-Germain deve pertencer à nobreza. Hippolyte Richond, filho de um rico comerciante de

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Marselha, poder ser considerado pertencente à “boa burguesia” descrita por Daumard.

Olivier de Jalin, trinta mil francos em terras, tem sua renda invejada pela viscondessa de

Vernières, e deve pertencer à pequena nobreza (uma vez que não há na peça alusão à sua

profissão, apenas indicação de que vive da renda de suas terras). A viscondessa, por sua vez, é

descrita como uma aristocrata arruinada. Quanto à Suzanne e Valentine, as demi-mondaines

por excelência, tudo indica que têm origem humilde, e que alcançaram status social a partir de

seus relacionamentos: a primeira com seu amante de Thonnerins, sobre o qual não se tem

muitas informações na peça, mas ao qual Suzanne diz dever tudo o que tem e o que é; a

segunda com seu ex-marido Hippolyte Richond, que se apaixonou pela jovem quando ela não

tinha nenhuma fortuna, mas que a proibiu de usar seu nome após ser traído e que deixou para

ela um dote de 200 mil francos.

Observa-se logo na primeira cena a busca pela manutenção das aparências de um falso

status, mostrando uma preocupação com a respeitabilidade. No diálogo inicial da peça, entre

Olivier de Jalin e a Viscondessa de Vernières, é apresentado ao co-enunciador

(leitor/espectador) um desentendimento entre dois participantes de um jogo ocorrido em uma

das recepções (soirées) oferecidas pela Viscondessa em sua casa. Ela então solicita a Olivier

que ajude na resolução da questão sem que seu nome esteja envolvido, pois “se o caso não se

resolver bem, haverá um processo, e uma mulher de respeito (femme comme il faut) não deve

aparecer, como testemunha, diante de um tribunal, e ter seu nome nos noticiários” (ato I, cena

1). 31

As questões familiares e os assuntos relacionados, tais como casamento e renda, são

uma constante na peça. Ainda na primeira cena, de Vernières conversa com Olivier como se

interrogasse um candidato a marido para sua sobrinha Marcelle:

31 « Si l’affaire tourne mal, il y aura procès, et une femme comme il faut ne tient pas à paraître, même comme témoin, devant un tribunal, et à voir son nom dans les gazettes ».

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VISCONDESSA

Você é de pequena nobreza; e não é rico?

OLIVIER

Trinta mil francos de renda. (...) Em terras.

VISCONDESSA

Ah! Não está mal! Mas você tem uma família? (ato I, cena 1) 32

A relação de Olivier com sua família é então descrita por ele de forma moralista. Em sua fala,

Olivier diz que sua família se resume à sua mãe, que se casou novamente após tornar-se viúva

e com cujo marido teve que disputar a fortuna do pai. Para ele, “uma mãe viúva não deveria

jamais se casar novamente”, pois “retirando de sua vida o nome do pai de seus filhos, ela se

torna quase uma estranha para eles” (ato I, cena 1). 33 Esta passagem leva, mais uma vez, a

identificar Olivier como o porta-voz mais autorizado do autor – ele é o raisonneur, aquele que

tem a visão do todo.

Intimamente ligada a estes tópicos está a questão da situação da mulher na sociedade.

Ao enumerar as razões pelas quais não se casaria com Marcelle, Olivier menciona que é

desejável que a mulher que se toma para esposa não conheça nada da vida, pois “as senhoritas

que têm, antes do casamento, uma reputação cheia de espírito e independência, se tornam

esposas deploráveis” (ato I, cena 1). 34 Estas são características de Valentine de Santis, que,

segundo, ele, não é uma companhia adequada para uma moça de vinte anos como Marcelle.

Isto é dito por Olivier porque, de fato, embora o casamento desse à mulher uma posição

32 “LA VICOMTESSE Vous êtes de petite noblesse; et vous n’êtes pas riche? OLIVIER Trente mille francs de rente. LA VICOMTESSE Em rentes? OLIVIER Em terres. LA VICOMTESSE Ah! Ce n’est pas mal, cela; mais vous avez une famille?” 33 “Une mère veuve ne devrait jamais se remarier! En rayant de sa vie le nom du père de ses enfants, elle devient presque une étrangère pour eux”. 34 “Ces petites demoiselles qui ont, avant leur mariage, une réputation toute faite d’esprit et d’indépendance, donnent des femmes déplorables”.

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na sociedade burguesa, sendo a mulher solteira com mais idade desprezada e condenada a

viver à margem da sociedade, a mulher casada também era considerada em uma posição de

inferioridade. Excluída das responsabilidades cívicas e da maior parte das manifestações

legais da vida coletiva, na vida privada ela era submetida à autoridade do marido. O regime da

comunhão legal ou contratual que regia a união conjugal dos franceses reforçava a autoridade

marital. A comunhão consagrava a incapacidade da mulher casada: o marido é o senhor dos

bens comuns, ele tem direito à administração e ao gozo dos bens da esposa (Cf. DAUMARD,

1970, p. 185).

O casamento é, nesta sociedade do demi-monde, mais uma necessidade e um arranjo

conveniente do que a vontade de duas pessoas que se amam de constituírem uma família. De

fato, conforme explica Daumard, antes de ser um indivíduo, o burguês parisiense é homem de

família ou chefe de uma associação conjugal; o que também pode ser observado na pequena

aristocracia da província. A maioria dos casamentos da “boa sociedade” se dava entre duas

famílias e não entre dois indivíduos. Geralmente, era feito para adquirir certa posição social

ou para consolidá-la: era praticamente uma associação de interesses, e a quase totalidade das

uniões era precedida de um contrato de casamento.

A peça também mostra a rotina de vida de uma demi-mondaine, a partir da descrição

que Valentine de Santis faz de seu dia, na cena dois do primeiro ato. Ela fala sobre a

costureira que foi à sua casa apresentar provas de vestidos, dos quais um seria para que ela

vestisse no dia seguinte para ir às compras; fala das características de sua carruagem e de sua

mudança de casa e de mobília. Tais atividades, algumas das quais poderiam ser vistas

simplesmente como fúteis, outras extremamente dispendiosas, levantam a questão da fonte de

renda responsável pelo pagamento destes altos gastos. Esta desconfiança é apresentada, mais

uma vez, pelo raisonneur Olivier, que pergunta “com o que você pagará tudo isto?”, ao que

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recebe como resposta o dote (ato I, cena 2) 35, administrado pela figura do “homem de

negócios”, espécie de administrador mas também de agiota, que lhe adiantou o dinheiro da

venda de um imóvel que ela possui.

Neste momento, as questões financeiras se misturam às questões conjugais. Segundo

Valentine, quando do esgotamento de suas fontes de renda, o marido deverá servir-lhe uma

pensão “ou, se não houver outra alternativa, eu voltarei para ele”. Após provocação de Olivier

– “Aí está um marido de sorte! (...) Mas se ele se recusar?” (ato I, cena 2) 36-, Valentine de

Santis afirma que ele não pode se recusar a recebê-la de volta, pois não são separados

judicialmente, portanto ela tem o direito de voltar ao domicílio conjugal quando bem

entender.

Valentine continua a narrar seu dia e cada fala é bastante representativa em relação aos

costumes daquela sociedade, reforçando a cada momento o moralismo do autor. A demi-

mondaine encontra várias pessoas na Avenida Champs-Élysées, todos homens, e os convida

para um chá em sua casa. Comenta ainda o convite que recebeu do Senhor de Calvillot para

jantar, e que ficou responsável por convidar as mulheres. Em outra passagem, Valentine

depara-se com um comentário típico de um raisonneur moralista, quando Olivier diz que

“está tudo preto em volta dos olhos”, denunciando o uso de maquiagem. Ela diz que usa “pó

de arroz, como todas as mulheres”, inicialmente nega que utiliza o rouge, mas acaba

confessando que usa “um pouco à noite, e ainda assim é muito raro”. Finalmente, admite que

pinta os olhos “porque é a moda”, mas, segundo Olivier, “não para uma mulher de respeito”

35 “OLIVIER Avec quoi payerez-vous tout ça? VALENTINE Comment, avec quoi? Est-ce que je n’ai pas ma dot?” 36 VALENTINE “Est-ce que je n’ai pas mon mari? Il faudra bien qu’il me serve une pension, ou, s’il ne me reste que ce moyen, je retournerai avec lui”. OLIVIER Voilà um mari qui aura de la chance! (...) Mais, s’il allait se refuser à cette combinaison?”

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(ato I, cena 2). 37

Ora, a mulher bem criada não deveria ser notada nem estar maquiada. Na sociedade

pudica do século XIX, o bom tom exigia da mulher uma extrema reserva e, na rua, uma

aparência simples, sem vaidade, casta. Conforme afirma Daumard, o andar compassado das

mulheres da boa sociedade representado nos croquis de cenas da vida cotidiana na capital, sua

fisionomia quase sempre insignificante e apagada contrastam com os desenhos do século

XVIII, que pintam uma sociedade onde a graça não era timidez e onde a distinção feminina se

alia à abastança e à segurança (Cf. DAUMARD, 1970, p. 186). Os usos e as crenças apóiam-

se no pensamento de que o papel da mulher é essencialmente familiar e que a lei divina impôs

às mulheres a aceitação de sua posição de dependência, para viver uma vida de devoção, sem

outra ambição que a de serem esposas e mães. Em um salão, a mulher que não se preocupava

em esconder seus talentos arriscava-se a ser considerada ridícula e a se expor a comentários

desagradáveis – este era o perfil de uma demi-mondaine como Valentine, que traiu e

abandonou o marido e que vive, sem maiores preocupações, do dote oferecido por ele desde

que não mais utilizasse seu sobrenome, voltando a adotar o de solteira.

Ao final da cena dois, a doméstica anuncia a chegada de Hippolyte Richond, amigo de

Olivier e marido abandonado de Valentine. Ela sai de cena escondendo-se atrás do véu para

não ser reconhecida pelo marido, e na cena três ele vai contar a história do casal a Olivier,

37 “OLIVIER Autour des yeux, c’est tout noir. (…) VALENTINE Je mets de la poudre de riz, comme toutes les femmes... OLIVIER Et du rouge... (...) VALENTINE Un peu le soir, et encore c’est bien rare. OLIVIER Et vous ne vous peignez pas les yeux? VALENTINE Puisque c’est la mode. OLIVIER Pas pour les femmes comme il faut, en tout cas.”

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sem identificar-se como parte integrante. Richond diz que conheceu muito bem o marido de

Valentine, e diz que ele errou ao casar-se com ela. Conta que ele era um rapaz rico,

apaixonado, jovem e tímido quando a conheceu, e que o amigo responsável pelo casamento

tornou-se amante dela. O marido descobriu, desafiou o amante para um duelo, matou-o e

partiu deixando um dote de duzentos mil francos, proibindo-a de usar seu sobrenome, o que a

levou a adotar o sobrenome da mãe.

Na cena três, Olivier faz uma descrição da Viscondessa que é bastante significativa. Ele

diz que ela é “um resto de mulher de qualidade que a necessidade do luxo e do prazer arrastou

pouco a pouco para uma sociedade fácil. Ela arruinou seu marido, que morreu há dez ou doze

anos. (...) Ela tem uma sobrinha muito bonita, com cujo casamento ela conta para redourar seu

brasão” (ato I, cena 3). 38 Observa-se nesta passagem não só a presença de uma aristocracia

arruinada como, mais uma vez, uma busca pela manutenção das aparências. Trata-se do gosto

do luxo e da ostentação, temas recorrentes nas descrições da sociedade parisiense.

Olivier conta como cortejou uma mulher casada, Charlotte de Lornan, e depois de

conhecer o marido e tornar-se íntimo dele, desinteressou-se por ela e lhe escreveu dizendo que

queria ser apenas um amigo e que não queria vê-la em um caminho errado. Conforme

comenta com Richond, tinha esperança de “salvar sua honra”. Cabe notar aqui não só o

moralismo presente na fala, como também salientar que tais cortejos ocorreram quando a

senhora de Lornan visitava a mãe de um amigo de Olivier, no campo. É mais um traço

comum entre o estilo de vida burguês e o da nobreza: se esta tinha terras e castelos no interior

(province), possuir uma casa de campo nos arredores da capital tornou-se, para muitos

parisienses, o complemento obrigatório do domicílio urbano e praticamente um atributo da

vida burguesa.

Finalmente, Olivier menciona que seu romance com Suzanne dura seis meses e que

38 “C’est une reste de femme de qualité que le besoin du luxe et du plaisir a entrainée peu à peu dans une société facile. Elle a ruiné son mari, qui a pris le parti de mourir, il y a dix ou douze ans. (...) Elle a une nièce très-jolie, sur le mariage de laquelle elle compte pour redorer son blason”.

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continuará pelo tempo que ela quiser. Richond corrige: “até que você se case”, e Olivier

retruca: “não me casarei jamais”. Ao que Richond responde: “Dizemos isso, e, um belo dia...”

(ato I, cena 3) 39, mostrando como o celibato tem pouco espaço nesta sociedade. O celibato

era uma condição excepcional e temporária que recaía sobre uma parte relativamente curta da

vida ativa. O casamento, condição normal do burguês parisiense, era um estabelecimento.

39 “HIPPOLYTE Jusqu’à ce que tu te maries. OLIVIER Je ne marierai jamais. HIPPOLYTE On dit cela, et, um beau jour...”

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5 ESTRATÉGIAS DE LEGITIMAÇÃO DA ENUNCIAÇÃO

Patrick Charaudeau, em sua Grammaire du sens et de l’expression (1992), consagra um

capítulo ao modo de organização descritivo do discurso. Segundo ele, embora a tradição da

crítica literária considere os termos descrição e descritivo como sinônimos, ambos servindo

para caracterizar as passagens de um texto literário e sendo definidos por oposição à narrativa,

o Descritivo é um processo discursivo ou um Modo de organização do discurso, e a descrição

é apenas um texto ou fragmento de texto que se apresenta como tal. Apesar de o Descritivo

ser historicamente considerado estático, fora do tempo e da sucessão dos eventos, sem

estatuto autônomo, enquanto o Narrativo é dinâmico, inscrito no tempo, mostrando a sucessão

das ações (Cf. CHARAUDEAU, 1992, p. 657), a Semiótica moderna considera ambos como

processos discursivos que contribuem igualmente para a construção da narrativa.

Ainda segundo Charaudeau, descrever consiste em: a) “lançar sobre o mundo um ‘olhar

fixo’ que faz existir os seres nomeando-os, localizando-os e atribuindo-lhes qualidades que

os singularizam” 40 (CHARAUDEAU, 1992, p. 658); b) “identificar os seres do mundo

classificando-os” 41 (CHARAUDEAU, 1992, p. 659). Estes são os pressupostos, isto é, os

componentes da construção descritiva (nomear, localizar-situar e qualificar) que nos levam a

identificar as passagens descritivas na peça Le demi-monde, de Alexandre Dumas Filho, e a

reconhecer sua função de legitimação do discurso, que demonstra sua identidade enunciativa.

Nomear consiste em “dar existência a um ser, em uma dupla operação: perceber uma

diferença dentro do contínuo do universo e simultaneamente relacionar esta diferença a uma

semelhança, o que constitui o princípio da classificação” (CHARAUDEAU, 1992, p. 659-

40 “[...] porter sur le monde un ‘regard arrêté’ qui fait exister les êtres en les nommant, en les localisant et en leur attribuant des qualités qui les singularisent” (grifos do autor). 41 “[...] identifier les êtres du monde en les classant [...]”.

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660). 42 Em relação a este componente da construção descritiva, é importante notar que a

classificação é geralmente subjetiva quando se trata de um texto literário, e é isso que deve ser

observado na peça de Dumas Filho, na qual o autor tem uma tese a sustentar e se serve das

classificações para definir claramente os grupos aos quais se refere, seja para condená-los

(como faz com as “demi-mondaines”), seja para defendê-los (os ingênuos, aqueles que são

facilmente manipulados).

Quanto a Localizar-situar, nada mais é do que a determinação do lugar que um ser ocupa

no espaço e no tempo. Embora pareça uma divisão objetiva do mundo, é necessário levar em

conta a visão que o grupo cultural projeta sobre este mundo, ou seja, o habitus no qual o autor

se insere, para perceber como ele localiza suas personagens no demi-monde, segundo sua

opinião sobre elas.

Qualificar, enfim, completa o nomear, pois a atribuição de uma qualidade a um ser

classifica-o novamente, mas desta vez em um subconjunto, fornecendo-lhe um sentido

particular. Isto nos interessa particularmente na medida em que a qualificação demonstra um

cruzamento entre o imaginário que é coletivo (as visões de mundo impostas pelo consenso

social) e individual (as visões que seriam próprias do indivíduo) daquele que descreve.

Charaudeau propõe alguns procedimentos discursivos pelos quais os componentes da

construção descritiva são postos em questão. São eles: os procedimentos de identificação,

suscitados pelo componente nomear; os procedimentos de construção objetiva do mundo,

concernente ao componente localizar; e os procedimentos de construção subjetiva do mundo,

no que concerne ao componente qualificar. Tais procedimentos são encontrados em tipos

específicos de textos e em situações de comunicação que possuem finalidades igualmente

específicas. Charaudeau (1992, p. 686) utiliza o quadro que segue para resumir estas relações.

Faremos um panorama destes procedimentos discursivos e da finalidade de cada um, com

42 “Nommer c’est donner existence à un être, au terme d’une double opération: percevoir une différence dans le continuum de l’univers et simultanément rapporter cette différence à une ressemblance, ce qui constitue le principe même du classement” (grifos do autor).

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ênfase naqueles presentes na peça Le demi-monde.

COMPONENTES PROCEDIMENTOS

DISCURSIVOS

FINALIDADE

(da Situação de

Comunicação)

TIPOS DE TEXTOS

Inventário Listas recapitulativas

Recensear

Listas identificatórias Nomear Identificação

Informar Nomenclaturas

Textos de lei Definir Textos didáticos Textos científicos Explicar

Crônicas Bulas/ Manuais Incitar

Anúncios Narrativas literárias

Localizar-

situar

Construção objetiva do

mundo

Contar Resumos

Publicidades Declarações

Incitar

Anúncios Mensagens Catálogos

Narrativas jornalísticas Canções

Quadrinhos

Qualificar Construção subjetiva

do mundo Contar

Textos literários

A identificação pode ser genérica, se os indivíduos recebem nomes comuns e são

classificados segundo suas características gerais; específica, se forem nomeados a partir de

suas características específicas; e há ainda a caracterização identificatória, na qual as

identificações são acompanhadas de certas qualidades, elas mesmas identificatórias. Segundo

Charaudeau, tais procedimentos se encontram em textos que têm por finalidade recensear os

seres ou informar sobre sua identidade (CHARAUDEAU, 1992, p. 666). Isto nos interessa na

medida em que se observa nos discursos das personagens de nossa peça de referência a

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preocupação com a utilização dos adjetivos que servirão para informar ao leitor ou público

sobre a identidade das demais personagens às quais se referem. Assim, quando Olivier,

raisonneur na trama, nomeia e qualifica a senhora de Santis como « uma criatura sem coração

e sem espírito, que desonra o nome de seu marido» (ato II, cena 9), ou a senhorita de

Sancenaux como « uma jovem pronta para se casar, produto ingênuo do mundo no qual

estamos» (ato II, cena 9), ele lança mão da caracterização identificatória para apresentar ao

leitor/espectador as personagens cujas identidades são indispensáveis à compreensão da

enunciação, ou seja, para identificar nelas as características do demi-monde.

Com o raisonneur, Dumas Filho assume a posição estereotipada do descripteur-savant,

« descritor-sábio », do qual fala Hamon, postura que leva o leitor a crer na fidelidade da

descrição da realidade dada, por um “fazer-crer” persuasivo (Cf. HAMON, 1993, p. 38-39). O

descritor-sábio apresenta-se como uma autoridade no assunto; neste caso, Olivier é aquele

que, por ser freqüentador assíduo do demi-monde, tem conhecimento de causa para dissertar e

julgar. O leitor/espectador assume, assim, uma posição particular de « menos-sábio », em uma

comunicação de tipo pedagógico e didático em que recebe lições daquele que descreve (Cf.

HAMON, 1993, p. 41).

No que se refere à construção objetiva do mundo, Charaudeau explica que « estes

procedimentos consistem em construir uma visão da verdade sobre o mundo, qualificando os

seres com auxílio de traços que devem poder ser verificados por qualquer outro sujeito além

do sujeito falante» (CHARAUDEAU, 1992, p. 673). 43

Por sua vez, a construção subjetiva do mundo compreende os procedimentos que

permitem ao sujeito falante descrever os seres e seus comportamentos através de sua própria

visão, isto é, segundo o imaginário pessoal daquele que descreve. Charaudeau pontua duas

formas de construção deste imaginário: uma descrição subjetiva, em que há uma intervenção

43 “ces procédés consistent à construire une vision de vérité sur le monde, en qualifiant les êtres à l’aide de traits qui sont censés pouvoir être vérifiés par tout autre sujet que le sujet parlant”(grifos do autor).

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pontual daquele que descreve, intervenção que deixa transparecer seus sentimentos e

opiniões; e uma descrição ficcional, que é a construção de um mundo mitificado.

Conforme vimos no capítulo 3, Dumas Filho (re)define o demi-monde no prefácio da

peça, tratando-o como um neologismo que ele mesmo introduz na língua francesa, a fim de

compor os dicionários vindouros. Inicialmente, identificamos este trecho como uma

construção objetiva do mundo; porém, corroborando a dificuldade mencionada por

Charaudeau em classificar as descrições como subjetivas e objetivas, reconhecemos, no

mesmo trecho, procedimentos de construção subjetiva do mundo, uma vez que a nova

definição surge a partir do imaginário pessoal do autor.

A seguir, faremos uma análise das passagens descritivas presentes na peça Le demi-

monde, nas quais identificamos os procedimentos de identificação, os procedimentos de

construção objetiva do mundo e os procedimentos de construção subjetiva utilizados por

Alexandre Dumas Filho.

5.1 Descrição do demi-monde como espaço social

Ao ser questionado por Raymond de Nanjac sobre o tipo de lugar que estão

frequentando, Olivier responde: “Ah, meu caro, é preciso ter vivido como eu há muito tempo

na intimidade de todos os mundos parisienses para compreender as nuances deste aqui, e

ainda assim não é fácil explicar” (ato II, cena 9). 44

Esta frase que antecede a descrição que será feita por Olivier do demi-monde produz

um « efeito de saber », ou seja, dá à personagem o posto de descripteur-savant, “descritor-

sábio”, aquele que conhece o lugar que está descrevendo. Trata-se tanto de uma justificativa

da descrição (Cf. ADAM; PETIT JEAN, 1989, p. 55) quanto de uma prova da veracidade do

44 “Ah, mon cher, il faut avoir vécu comme moi depuis longtemps dans l’intimité de tous les mondes parisiens pour comprendre les nuances de celui-ci, et encore, ce n’est pas facile facile à expliquer”.

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discurso (Cf. CHARAUDEAU, 1992, p. 694). Enfim, o recurso a este tipo de descrição não

é um procedimento inocente, mas uma estratégia de legitimação de sua enunciação: se a

personagem é um descripteur-savant, como poderia o público não acreditar nele?

Munido desta prerrogativa de descritor-sábio, Olivier ganha autoridade para descrever,

com conhecimento de causa, o espaço social ao qual se refere. Para tentar explicar a Raymond

de Nanjac o que é o demi-monde, Olivier utiliza a seguinte metáfora:

Entre um dia em um mercador de comestíveis (...) e peça a ele seus melhores pêssegos. Ele mostrará uma cesta contendo frutas magníficas dispostas a alguma distância umas das outras e separadas por folhas, a fim de que não se toquem nem se corrompam pelo contato ; pergunte o preço e ele responderá : « trinta tostões a peça », suponho. Olhe em volta e certamente verá próxima a esta caixa uma outra caixa repleta de pêssegos muito semelhantes aos primeiros em aparência, apenas mais pressionados uns contra os outros (...) os quais o mercador não lhe ofereceu... Pergunte a ele : « E quanto custam estes ». Ele responderá : « Quinze tostões ». Naturalmente você perguntará a ele por que esses pêssegos, tão volumosos, tão bonitos, tão maduros e tão apetitosos quanto os outros custam menos. Então, ele pegará um ao acaso (...) e mostrar-lhe-á, embaixo, um pequeno ponto preto que será a causa de seu preço inferior. Bem, meu caro, aqui você está na caixa de pêssegos de quinze tostões. As mulheres que à sua volta têm, todas, uma falta em seu passado, uma marca em seu nome ; elas pressionam-se umas contra as outras para que as vejamos o menos possível ; e, com a mesma origem, o mesmo exterior e os mesmos preconceitos que as mulheres da sociedade (...) elas compõem o demi-monde, que vaga como uma ilha flutuante sobre o oceano parisiense, e que chama, que recolhe, que admite todas aquelas que caem, que emigram, que se salvam da terra firme, sem contar as náufragas de ocasião, e que vêm não se sabe de onde (ato II, cena 9). 45

Quando, nesta descrição do demi-monde, Dumas Filho compara as demi-mondaines a

pêssegos podres, ele utiliza um tipo de metáfora conhecida como metáfora descendente ou

45 “Eh bien, entrez un jour chez un marchand de comestibles, chez Chevet ou chez Potel, et demandez-lui ses meilleures pêches. Il vous montrera une corbeille contenant des fruits magnifiques posés à quelque distance les uns des autres et séparés par des feuilles, afin qu’ils ne puissent se toucher ni se corrompre par le contact ; demandez-lui le prix, il vous répondra : « Trente sous la pièce », je suppose. Regardez autour de vous, vous verrez bien certainement dans le voisinage de ce panier un autre panier rempli de pêches toutes pareilles en apparence aux premières, seulement plus serrées les unes contre les autres, ne se laissant pas voir sur tous leurs côtés et que le marchand ne vous aura pas offertes... Dites-lui : « Et combien celles-ci ? » Il vous répondra : « Quinze sous ». Vous lui demanderez tout naturellement pourquoi ces pêches, aussi grosses, aussi belles, aussi mûres, aussi appétissantes que les autres, coûtent moins cher ? Alors, il en prendra une au hasard, le plus délicatement possible, entre ses deux doigts, il la retournera, et vous montrera, dessous, un tout petit point noir qui sera la cause de ce prix inférieur. Eh bien, mon cher, vous êtes ici dans le panier des pêches à quinze sous. Les femmes qui vous entourent ont toutes une faute dans leur passé, une tache sur leur nom ; elles se pressent les unes contre les autres pour qu’on le voie le moins possible ; et, avec la même origine, le même extérieur et les mêmes préjugés que les femmes de la société, elles se trouvent ne plus en être, et composent ce que nous appelons le « Demi-monde », qui vogue comme une île flottante sur l’ócean parisien, et qui appelle, qui recueille, qui admet tout ce qui tombe, tout ce qui émigre, tout ce qui se sauve de la terre ferme, sans compter les naufragés de rencontre, et qui viennent on ne sait d’où".

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burlesca. Segundo Henri Morier, “[…] a metáfora pode abaixar o comparado ao nível de

um comparante que põe em evidência um denominador comum inferior e que, desta forma, o

ridiculariza: é a metáfora descendente ou burlesca” 46 (MORIER, 1989, p. 716). Trata-se de

uma forma de julgamento moral utilizado para legitimar seu discurso e fazer a demonstração

de sua tese.

De acordo com Adam e Petit Jean, a utilização de enunciados metafóricos em um

discurso realista pode ser analisada como a expressão de uma « pré-construção ideológica » 47

(ADAM; PETIT JEAN, 1989, p. 55), na qual reconhecemos um procedimento discursivo de

construção subjetiva do mundo. De fato, observa-se a uma concretização de uma pré-

construção ideológica do autor, que observou este nicho social ao qual chamou de demi-

monde e o transpôs para a peça – a definição dada por ele, no prefácio (conforme

supradescrita no capítulo 3), é a mesma apresentada por Olivier no diálogo da peça.

Outra estratégia que Dumas Filho utiliza para legitimar sua enunciação e que é

indissociável do saber é a taxonomia. A taxonomia « rege e é regida por um saber», e « o

saber, para ser comunicável, exige ser regido por uma ordem suplementar, por classificações»

(HAMON, 1993, p. 52). 48 Embora implícita na peça, esta taxonomia serve para classificar o

espaço denominado demi-monde e suas personagens e para situá-las socialmente: acima do

mundo da prostituição, abaixo do « verdadeiro mundo », ou seja, da sociedade parisiense

respeitável: “Atualmente, este mundo irregular funciona regularmente, e esta sociedade

bastarda é charmosa para os jovens. Lá o amor é mais fácil que em cima e mais barato que

embaixo” (ato II, cena 9). 49 Detecta-se, assim, a combinação do « efeito de lista », próprio de

46 « [...] la métaphore peut abaisser le comparé au moyen d’un comparant qui met en évidence un commun dénominateur inférieur et qui, par là, le ridiculise: c’est la métaphore descendante ou burlesque » (grifos do autor) 47 « préconstruit idéologique ». Os autores referem-se à descrição de paisagens, mas segundo eles o funcionamento para o retrato é o mesmo. 48 “[...] un savoir, pour être communicable, demande à être régi par un ordre supplémentaire, par des classifications [...]. Toute taxinomie régit et est régie par um savoir.” 49 “A l’heure qu’il est, ce monde irrégulier fonctionne régulièrement, et cette société bâtarde est charmante pour les jeunes gens. L’amour y est plus facile qu’en haut et moins cher qu’en bas”.

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toda descrição, com um « efeito de esquema», um « efeito de modelo » ao qual se refere

Hamon, « dando ao leitor a impressão de que o texto se esforça para saturar um quadro, um

modelo preexistente mais ou menos constrangedor (de-scribere, lembremos, significa :

escrever de acordo com um modelo [...]) » 50 (HAMON, 1993, p. 53).

Podemos identificar no texto da peça, além da descrição do demi-monde como espaço

social, uma localização geográfica deste nicho. Vejamos o trecho a seguir, retirado da cena 2,

ato I, no qual a demi-mondaine Valentine de Santis dá a Olivier informações sobre seu novo

apartamento: “Eu encontrei, na rua da Paz, um lindo apartamento no segundo andar, sete mil e

quinhentos francos [...]”. 51

Como são poucas as referências na peça a ruas e logradouros, nada mais justificável do

que considerar que tal menção não seja inocente. De fato, a citação da rua da Paz (rue de la

paix) traz implícita uma alusão a um local onde, supostamente, as demi-mondaines se

concentrariam. Segundo Édouard Fournier (1894, p. 123), que escreveu em 1894, a rua, que

foi sede do Convento dos Capuchinhos, é a mais luxuosa de Paris. As casas apresentam a

mais bela arquitetura e são as mais bem habitadas. Os ricos estrangeiros lá vivem, em seus

hotéis mobiliados. Numerosos fornecedores posicionam-se estrategicamente para servir a esta

rica clientela que vem de todos os países.

Relacionamos esta menção da rua da paz à citação que Maugny (1892) faz da mesma

região. Tendo como objeto de estudo o mesmo espaço social do demi-monde, no mesmo

período do qual tratamos aqui, Maugny dirá:

Na esquina do boulevard dos Capuchinhos – onde todas as grandes lojas, inteiramente iluminadas, estão abertas até meia noite – e da rua Caumartin, no

50 “donnant l’impression au lecteur que le texte s’efforce de saturer um cadre, un modèle préexistant plus ou moins contraignant (de-scribere, rappelons-le, signifie: écrire d’après un modele [...].” 51 “Moi, j’ai trouvé, rue de la Paix, un amour d’appartement au second, sur la rue, sept mille cinq cents francs [...]”.

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primeiro andar de uma bela casa em rotunda, brilham, todas as noites, as vastas janelas de um apartamento do qual adivinhamos, de fora, o magnífico requinte e o arranjo de bom gosto [...]

É lá que se fazem encontros e onde se reúnem, cercadas por seus acompanhantes de sempre, vale dizer, toda a jeunesse dorée, as dez ou doze grandes cortesãs de marca que viram Paris de cabeça para baixo [...] (MAUGNY, 1892, p. 4). 52

Esta citação não só localiza geograficamente as cortesãs na mesma região que aquela

habitada pela demi-mondaine da peça como apresenta algumas das características dadas por

Dumas Filho para o demi-monde, tais como a busca pelo luxo e a reunião das cortesãs. Mas,

se Dumas Filho distingue em seu prefácio o demi-monde e a multidão das cortesãs, Maugny

não só irá associá-las diretamente ao demi-monde como incluirá as denominadas cocottes e

demi-castors.

Cocottes, de acordo com o dicionário on line Trésor de la Langue Française, refere-se

pejorativamente às mulheres de costumes levianos que são ricamente sustentadas. 53 Demi-

castors, por sua vez, são definidas por Maugny como “anfíbios, metade mulher do mundo,

metade cocottes; tendo das primeiras a etiqueta e as pretensões; das outras, os costumes

fáceis, a natureza, os procedimentos e... a ausência de preconceitos” (MAUGNY, 1892, p.

71). 54 Neste grupo ele inclui as mulheres que “trocavam de amantes como de roupa”, tendo

conservado, no entanto, “algumas ligações com a sociedade à qual pertenciam pelo

nascimento e pela situação”, mantendo as aparências e vivendo em um interior respeitável na

maior parte do tempo (MAUGNY, 1892, p. 72). 55 Mas inclui também aquelas que

52 Au coin du boulevard des Capucines – où tous les grands magasins, étincelants de lumières, sont ouverts jusqu’à minuit – et de la rue Caumartin, au premier étage d’une belle maison bâtie en rotonde, brillent, tous les soirs, les vastes fenêtres d’un appartement dont on devine, du dehors, la somptueuse recherche et l’arrangement de bon goût. C’est là que se donnent rendez-vous et que se réunissent, entourées de leurs cavaliers ordinaires, autant dire de toute la jeunesse dorée, les dix ou douze courtisanes de marque qui mettent Paris sens dessus dessous [...] 53 Vieilli, péj. Femme de mœurs légères richement entretenue (cf. poule). 54 “On sait ce que c’est que les demi-castors: des amphibies, moitié femmes du monde, moitié cocottes; ayant des premières l’etiquette et les prétentions; des autres, les moeurs légères, la nature, les procédés et... l’absence de préjugés.” 55 “[...] changeaient d’amant comme de toilette [...]”; “[...] ayant conservé, malgré cela, quelques liens avec la société à laquelle elles appartenaient par leur naissance et leur situation.”

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[...] tendo compartilhado os triunfos escandalosos, a existência nitidamente marcada das grandes cocottes, com as quais são comumente confundidas e que, seja por um casamento confessado ou anunciado, presente ou passado, seja pela superioridade de sua origem, de sua educação e de seu nível, formam uma casta à parte e devem ser classificadas na categoria das demi-castors (MAUGNY, 1892, p. 73). 56

Estas são, para ele, as demi-mondaines propriamente ditas... Observa-se aqui o mesmo

recurso de Suzanne d’Ange da peça Le demi-monde: o anúncio de um suposto casamento

passado, para que a morte deste marido inventado justifique a ausência de um marido atual e a

fonte de renda e imponha respeitabilidade.

Todas estas definições indicam a complexidade do espaço social denominado demi-

monde, e justificam uma vez mais nossa opção pela não tradução do termo, que se refere a

uma realidade muito peculiar da cidade de Paris no século XIX. Assim como Alexandre

Dumas Filho, Maugny, que assina o livro como Zed, descreve com detalhes este mundo que

ele viu, as mulheres que admirou e as lembranças que guardou, conforme escreve em seu

prefácio57, o que torna seu texto uma importante referência sobre o assunto para os propósitos

desta dissertação.

Na descrição das personagens, Dumas Filho é menos generoso nos detalhes e recursos,

mas há uma razão clara: os atos das personagens complementam as descrições para dar ao

leitor/espectador uma idéia do que eles são realmente. Pela mesma razão, a peça carece de

didascálias, visto que as personagens falam por si sós.

A primeira descrição feita é a de Raymond de Nanjac. Conforme já transcrito no

capítulo 4, item 4.3, a Viscondessa de Vernières dirá a Olivier, para explicar por que ele seria

um bom pretendente para sua sobrinha Marcelle: “ele é jovem, tem uma figura distinta, trinta

56 “[...] ayant partagé les triomphes bruyantes, l’existence nettement trauchée des grandes cocottes, avec lesquels on les a souvent confondues et qui, soit par un mariage avoué et affiché, présent ou passé, soit par la supériorité de leur origine, de leur éducation et de leur niveau, forment une caste à part et doivent être rangées dans la catégorie des demi-castors.” 57 “Ce monde, je l’ai vu; j’ai vécu de sa vie étourdissante. Ces femmes, je les ai admirées dans toute leur splendeur et toute leur gloire. J’en ai gardé le souvenir et j’ai essayé d’en fixer les traits avec autant de simplicité et de fidélité que possible; rien de plus.” (MAUGNY, 1892, p. V).

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e dois anos no máximo, militar, condecorado, sem família, exceto uma irmã já viúva e que

vive isolada nos fundos de seu faubourg Saint-Germain, vinte mil libras de renda, livre como

o ar, podendo casar-se amanhã se quiser” (ato I, cena 1). 58

Na cena 3 do primeiro ato, a Viscondessa de Vernières é descrita por Olivier como

(...) um resto de mulher distinta que a necessidade de luxo e de prazer arrastou para uma sociedade fácil. Ela arruinou seu marido, que morreu há dez ou doze anos. Alguns antigos amigos, as ações que lhe são doadas e que ela revende, os destroços de sua fortuna naufragada que o vento recusa de tempos em tempos aos rios do presente, estes são seus recursos. Ela tem uma sobrinha muito graciosa, com cujo casamento conta para dourar novamente seu brasão (Ato I, cena III). 59

Na cena 3, é a vez de Olivier descrever Suzanne d’Ange para seu amigo Hippolyte

Richond:

[...] ela é livre, ela se diz viúva, ela não tem mais vinte anos, ela se veste muito bem, é espirituosa, sabe manter as aparências; sem perigo no presente, sem sofrimentos no futuro, pois ela é destas que preveem todas as eventualidades de uma relação e que levam sorrindo, com frases feitas, seus amores de convenção até a parada onde trocarão de cavalo. Entrei nesta relação como um passageiro que não tem pressa e toma uma carruagem em vez de tomar o trem; é mais divertido e pode-se sair quando quiser (ato I, cena 3). 60

Observa-se, nestas passagens, um recurso, mesmo que discreto, ao procedimento

linguístico da qualificação, que se exerce quando da descrição física, gestual, de posturas e

comportamentos. Todas retiradas do primeiro ato, estas descrições apresentam ao

leitor/espectador as personagens Raymond de Nanjac, Viscondessa de Vernières e Suzanne

58 “Il est jeune, il a une figure distinguée, trente-deux ans au plus, militaire, décoré, pas de famille, excepté une jeune soeur déjà veuve et qui vit fort retirée dans le fond de son faubourg Saint-Germain, une vingtaine de mille livres de rente, libre comme l’air, pouvant se marier demain si bon lui semble’’. 59 “C’est un reste de femme de qualité que le besoin du luxe et du plaisir a entraînée peu à peu dans une société facile. Elle a ruiné son mari, qui a pris le parti de mourir, il y a dix ou douze ans. Quelques anciens amis, des actions qu’on lui donne au pair et qu’elle revend à prime, les épaves de sa fortune naufragée que le vent rejette de temps à autre aux rives du présent, voilà ses ressources. Elle a une nièce très jolie, sur le mariage de laquelle elle compte pour redorer son blason ». 60 “[...] elle est libre, elle se prétend veuve, elle n’a plus vingt ans, elle se met à merveille, elle a de l’esprit, elle sait conserver les apparences ; pas de danger dans le présent, pas de chagrins dans l’avenir, car elle est de celles qui prévoient toutes les éventualités d’une liaison et qui mènent en souriant, avec des phrases toutes faites, leur amour de convention jusqu’au relais où il changera de chevaux. J’ai pris cette liaison-là comme un voyageur qui n’est pas pressé prend la poste, au lieu de prendre le chemin de fer, c’est plus gai et l’on s’arrête quand on veut’’.

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d’Ange a partir da visão das outras personagens.

No segundo ato, por outro lado, é apresentada ao leitor/espectador uma auto-descrição

de Suzanne d’Ange, em que ela corrobora, de certa forma, aquilo que foi dito por Olivier,

acrescentando, porém, suas justificativas pessoais, suas motivações e ambições. Na cena 2,

ela desabafa com o marquês de Thonnerins:

[...] Eu não era nada, você fez de mim alguém ; é graças a você que tenho meu lugar em um mundo que é uma decadência para as mulheres que vieram de cima, que é o máximo para mim, que parti de baixo. Mas, você compreenderá facilmente, a posição que tenho graças a você, embora eu não ousasse jamais atingi-la, no momento em que ela passou a existir deve ter feito nascer em mim certas ambições que são uma consequência inevitável. No ponto em que estou, é preciso que eu caia mais do que onde estava ou que suba até o cume. Somente o casamento pode me dar o que me falta (ato II, cena 2). 61

Curiosamente, Maugny menciona em seu livro a baronesa d’Ange, que ele diz ter

conhecido. Ele afirma que a bela e elegante cortesã era ricamente sustentada por um sério

amante que acreditava piamente em sua fidelidade e com quem ela vivia de sete horas da

noite até o meio-dia do dia seguinte. Naquele momento, ela se deslocava para um apartamento

que havia alugado para receber seus amantes, dos quais aceitava as mais modestas ofertas,

retomando no horário regulamentar a vida de família (Cf. MAUGNY, 1892, p. 124). Não

temos informações sobre a real existência da baronesa d’Ange, mas sua presença nas duas

obras, alternando características das demi-mondaines, cortesãs e até mesmo de prostituição,

pode ser tanto um sinal do realismo nas duas obras como apenas uma marca de

intertextualidade. Em ambos os casos, a complexidade que denotam as suas múltiplas facetas

e classificações aponta para grandes possibilidades de estudos sócio-históricos sobre o demi-

61 “[...]Je n’étais rien, vous m’avez faite quelque chose ; c’est par vous que j’ai ma place dans un monde qui est une déchéance pour les femmes parties d’en haut, qui est un sommet pour moi qui suis partie d’en bas. Mais, vous le comprendrez facilement, la position que je tiens de vous, bien que je n’eusse jamais osé y prétendre, du moment qu’elle existe, a dû faire naìtre en moi certaines ambitions qui en étaient la conséquence inévitable. Au point où je suis, il faut ou que je retombe plus bas que je n’étais ou que je monte jusqu’en haut. – Le mariage seul peut me donner ce qui me manque’’.

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monde.

Analisando as descrições como um todo, percebe-se que todas lançam mão das

qualidades morais dos personagens, recorrendo ao que chamamos de etopéia. A etopéia é uma

« descrição que tem por objeto os costumes, o caráter, os vícios, as virtudes, os talentos, os

defeitos, enfim, as boas ou más qualidades morais de uma personagem real ou fictícia »

(FONTANIER, 1977, p. 427), 62 ao passo que a prosopografia relaciona-se ao aspecto físico.

Segundo Morier (1989), a palavra etopéia vem do grego e se refere à pintura dos costumes, ao

caráter.

A etopéia é uma figura comum quando se trata de descrição moralizante, e esta é a

razão pela qual a obra de um dos principais moralistas franceses chama-se Les caractères (Os

caracteres). Nesta obra, La Bruyère descreve mulheres e homens como se fossem modelos,

mas adverte o leitor: « são os caracteres ou os costumes deste século que descrevo» 63 (LA

BRUYERE, 2002, p 293). Dumas Filho utiliza a mesma estratégia, a etopéia, para descrever

suas personagens e assim fazer crer e legitimar seu discurso. Trata-se aqui de um quadro da

sociedade parisiense de seu século, realidade bastante específica de costumes que passaram

por grandes mudanças e cuja mise en scène não mais se justifica. Sarcey (1896) reconhece em

Dumas Filho um mestre por ter estudado profundamente os costumes de seu tempo, e

considera a peça Le demi-monde não só uma obra de ponderação e maturidade como uma

recriação da chamada Comédie-Thèse. Para ele, Dumas tem uma tese e a atesta ao longo da

peça, de forma viva e apaixonada, e cada uma das peças seguintes será uma tese em ação,

pois, mais do que um homem de teatro, Dumas quis ser um moralista.

Segundo Sarcey, a Comédie-Thèse tem a dualidade de ser uma força e uma fraqueza.

Uma força porque apaixona os contemporâneos falando dos problemas que o preocupam; uma

62 « description qui a pour objet les moeurs, le caractère, les vices, les vertus, les talens, les défauts, enfin les bonnes ou les mauvaises qualités morales d’un personnage réel ou fictif.» 63 « [...] ce sont les caractères ou les moeurs de ce siècle que je décris [...]. »

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fraqueza porque os problemas, uma vez resolvidos, não mais interessam às gerações

seguintes, tornando-se meras “especulações arqueológicas”. A Comédie-Thèse “caduca”

quando a sociedade muda, tornando-se, com o passar do tempo, objeto de curiosidade e de

estudo para os letrados.

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5.2 O Realismo

Champfleury (1821-1889), no manifesto Le réalisme (1857), discute em seu prefácio

sobre as causas e os meios que dão aparência de realidade às obras de arte, o que, segundo ele,

era uma questão sem resposta, produzida de forma instintiva até o movimento de 1848. Com

as Revoluções de 1848, que instauraram a Segunda República na França e nos quais estavam

em jogo ideais republicanos e socialistas, o realismo veio se juntar às “numerosas religiões

em ismo que víamos aparecer todos os dias, expostas nas paredes, aclamadas nos clubes,

adoradas nos templos e servidas por alguns fiéis” (CHAMPFLEURY, 1857, p.2). 64 Embora

não aprecie as palavras em ismo, que ele considera como palavras de transição, diz que deu

este nome ao seu trabalho porque é a palavra adotada pelos filósofos, críticos e magistrados, e

portanto se arriscaria a não ser compreendido falando em realidade. Reconhece apenas a

sinceridade na arte, mas se recusa a ser o “deus da igreja do realismo” (Cf. CHAMPFLEURY,

1857, p.3).

Champfleury considera o realismo como uma insurreição. A palavra realismo,

inventada pelos críticos como uma máquina de guerra, é uma palavra de transição que na

opinião de Champfleury não duraria mais de trinta anos; é um destes termos ambíguos que se

prestam a todo tipo de emprego. Champfleury sempre protestou contra esta palavra por não

gostar de classificações.

O conjunto de mentes cansadas das mentiras versadas, das teimosias das fileiras

românticas, que se libertam da linguagem bela, que não estaria em harmonia com os temas de

que tratam, não constitui, para Champfleury, base para uma escola: para ele, produzir e criar

sem se preocupar com dogmas ou classificações é o mais importante (Cf. CHAMPFLEURY,

1857, p. 6).

64 “... le réalisme vint se joindre aux nombreuses religions em isme qu’on pouvait voir apparaître tous les jours, affichées sur les murs, acclamées dans les clubs, adorées dans de petits temples et servies par quelques fidèles”.

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A arte é, segundo Champfleury, a comunicação à multidão de sensações pessoais; é

agitar, aquecer corações, fazer sorrir ou chorar indivíduos que não se conhece. Estudando as

aspirações, os desejos, as alegrias e tristezas das classes que lhe são simpáticas, Champfleury

se diz intérprete destes grupos, escrevendo o que não saberiam escrever. Ao contrário dos

autores que “marcaram os últimos tempos”, definição que podemos entender como aquela que

foi dada ao grupo dos românticos - dentre os quais cita Théophile Gautier -, que têm

representado “os burgueses e os camponeses, pelo fato de terem estudado mais especialmente

estas duas classes”, embora “as altas classes, a elegância e os encantos sutis da civilização não

sejam negligenciados”, Champfleury considera mais válido pintar as classes baixas, nas quais

“a sinceridade dos sentimentos, das ações e das palavras está mais em evidência do que na

alta sociedade” (CHAMPFLEURY, 1857, p. 10). 65

Percebe-se, aqui, que a posição de Champfleury no campo literário aproxima-se daquela

que Bourdieu (1992, p. 107) chama de arte social, sempre distante e em contraposição à arte

burguesa, que engloba a arte mercenária menor, representada pelo cabaré ou o folhetim, e a

arte mercenária maior, representada pelo teatro burguês. Segundo Bourdieu, a arte social é

defendida, nos anos 1850, por “intelectuais proletaróides”, entre eles Champfleury, que

manifestam uma solidariedade em relação aos grupos dominados, especialmente por serem

eles mesmos ligados às classes populares (o pai de Champfleury era secretário municipal) (Cf.

BOURDIEU, 1992, p. 110). O realismo como um movimento político-estético, com

Champfleury como líder, juntamente com Courbet, como veremos a seguir, é a antítese da

corrente realista contemporânea representada por Dumas Filho, fator que mostra a dificuldade

em definir o realismo como um movimento único.

65 “La vérité est que quelques-uns de ceux qui ont marqué dans ces derniers temps, ont représenté des bourgeois et des paysans par la raison qu’ils avaient étudié plus spécialement ces deux classes; mais les hautes classes, l’élégance, les charmes subtils de la civilisation ne sont pas repoussés. (...) il valait mieux peindre d’abord les basses classes, où la sincerité des sentiments, des actions et des paroles est plus en évidence que dans la haute société”.

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Para Champfleury, um grande exemplo de operário habilidoso que une, com

maestria, a realidade inventada à realidade da natureza é Diderot. Segundo Champfleury,

quando se tenta diminuir o mérito do escritor, acusando-o de falta de imaginação, esquece-se

que poucos são capazes de tornar a história dramática, como fez Diderot. Todos os dias

acontecem em nossas vidas eventos singulares que nos tocam, mas não somos capazes de

transformá-los em romances ou comédias. O soldado que assiste à batalha é incapaz de contá-

la no papel. Diderot é um inventor ao deixar esta obra de arte, pois cem escritores no seu lugar

não seriam tocados pelo tema. E a forma que utiliza para tornar o drama possível lhe é própria

(Cf. CHAMPFLEURY, 1857, p. 93).

A vida é composta por numerosos fatos insignificantes; as conversas são cheias de

detalhes que não devem ser reproduzidos sob pena de fatigar o leitor. Um drama real não

começa com uma ação interessante. O romancista é o responsável pela escolha dos fatos

interessantes, pelo seu agrupamento, distribuição e encadeamento. Os partidários da realidade

na arte sustentam que há uma escolha a fazer na natureza. Curioso, ativo, frequentador

assíduo do mundo, o autor deve ser capaz de descrever, em um ser, vários seres que encontra.

(Cf. CHAMPFLEURY, 1857, p. 96).

Reconhecemos em Alexandre Dumas Filho estas principais características dos grandes

realistas nos moldes propostos por Champfleury: curioso, ativo e frequentador assíduo do

mundo, ou melhor, da sociedade parisiense de seu tempo. Tais características podem ser

notadas no prefácio da peça Le demi-monde, em que Dumas Filho narra com detalhes suas

incursões pelo submundo que dará nome à peça, demonstrando seu caráter investigativo.

Dumas conta que em uma noite de sábado de janeiro de 1853, no teatro Opéra, foi

abordado por uma dominó “muito elegante e saltitante”, que se apresentou como senhora M...

e perguntou se ele a conhecia. A seguir o diálogo que se travou:

- De reputação, apenas. - E o que dizem de mim?

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- Que você é muito graciosa, muito espirituosa e... muito alegre. - Você quer ter certeza disto? - Adoraria. -Venha, terça-feira, para uma recepção em minha casa. - A que horas começa a recepção? - como em qualquer lugar; quando as pessoas chegam. - E termina? - Quando se vão 66 (DUMAS FILS, 1898, p. 5).

Trata-se de um diálogo bastante emblemático para se iniciar um prefácio. Com ele,

notamos não só o nível de detalhamento que caracteriza seu trabalho como também o tipo de

realismo ao qual se propõe, em que suas experiências pessoais são o próprio objeto de suas

comédias-tese. Ele próprio dirá que, ao penetrar na história, “o leitor reconhecerá no drama

alguns dos tipos que me marcaram na realidade” (DUMAS FILS, 1898, p. 10). 67

De fato, os tipos descritos encontram-se todos nas personagens, com mudanças em

alguns detalhes e com algumas características “diluídas” em mais de uma personagem. A

descrição acima é a mesma dada à Suzanne d’Ange na peça: bonita, espirituosa, alegre. Mais

adiante, no prefácio, o autor dirá que a senhora M... tem trinta anos, o que também a aproxima

da senhora d’Ange. Por outro lado, Suzanne aparece na peça como uma falsa viúva, a fim de

manter uma reputação ilibada para partir em busca de um marido; enquanto não o encontra, é

sustentada por seu amante, de Thonnerins. Não se conhece sua história, mas sabe-se que veio

“de baixo”, não teve uma família abastada. A senhora M..., por outro lado, é descrita pelo

autor no prefácio como “uma das celebridades da galanteria parisiense, mas da galanteria

aristocrática. Filha de uma honorável personagem do Império, casou-se muito jovem, em

66 “- De réputation, seulement. - Et l’on vous a dit de moi? - Que vous êtes très jolie, três spirituelle et... très gaie. - Voulez-vous vous assurer du fait? - Je ne demande pas mieux. -Venez, mardi, passer la soirée chez moi. - A quelle heure commence la soirée chez vous? - Comme partout; quand on arrive. - Et elle finit? - Quand on s’en va”. 67 “ le lecteur reconnaîtra dans le drame quelques-uns des types qui me frappèrent dans la réalité”.

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1840, com um estrangeiro distinto” (DUMAS FILS, 1898, p. 6). 68 Surpreendida pelo

marido quando estava com seu amante, a senhora M... foi banida da convivência conjugal,

destino semelhante à personagem Valentine de Santis, que terá ainda características comuns à

senhora S..., também descrita por Dumas no prefácio.

Dando continuidade à narrativa de suas experiências pelo demi-monde, Dumas Filho

dirá que, ao chegar à casa da senhora M... no dia e horário indicados para a recepção,

encontrou o conde de R..., que ele considera “o mais parisiense dos parisienses” que já

conheceu, e que, “sem saber, já servira de tipo para Gaston Rieux em A Dama das camélias,

para Maximilien em Diane de Lys, e que seria Olivier de Jalin em Le demi-monde” 69

(DUMAS FILS, 1898, p. 6). Segundo Dumas Filho, foi o conde quem o advertiu a abrir os

olhos ao entrar naquela sociedade: “você vai ver um mundo bizarro”70 (DUMAS FILS, 1898,

p. 7). Tal como Olivier vai advertir o ingênuo Raymond de Nanjac...

Neste trecho, Dumas Filho reforça mais uma vez a metodologia de seu realismo, que

busca na sociedade de seu tempo a matéria-prima para sua obra. Mas, além disso, confirma

literalmente nossa hipótese de que lança mão de personagens conhecedoras do tema central da

peça, neste caso do demi-monde, para que atuem como guias autorizados a convencer o leitor

ou o espectador de sua tese. É esta a função-padrão do raisonneur em suas comédias-tese.

O autor apresentará ainda as pessoas que encontrará no salão: três mulheres, duas jovens

moças, um agente de câmbio de sessenta anos e o marquês de E..., apelidado de fiel-ao-rei

devido às suas opiniões legitimistas.

A mais velha das senhoras, que ele chamou de baronesa V..., tinha cerca de cinqüenta

anos e era mãe das duas jovens. Viúva, ela contava com a ajuda dos antigos amigos e

68 “Cette dame était une des célébrités de la galanterie parisienne, mais de la galanterie aristocratique. Fille d’un très grave e très honorable personnage de l’Empire, elle avait été mariée toute jeune, em 1840, à un étranger de distinction”. 69 “A la porte de la rue, je me rencontrai avec le comte de R..., le Parisien le plus parisien que j’aie connu, qui m’avait déjà, sans le savoir, servi de type pour Gaston Rieux dans la Dame aux Camélias, pour Maximilien dans Diane de Lys, et qui allait être Olivier de Jalin dans le Demi-Monde”. 70 “Eh bien, ouvrez les yeux, vous allez voir un drôle de monde”.

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depositava suas esperanças no casamento das filhas para desfrutar de uma velhice tranqüila.

Uma das filhas, porém, já tinha dado à luz um menino, que era criado às escondidas “como se

fosse o Homem da máscara de ferro” 71 (DUMAS FILS, 1898, p. 8). Ninguém à volta da

jovem mãe parecia suspeitar deste detalhe, que, na verdade, era conhecido por todos. Esta

mulher, a baronesa V..., é representada na peça pela viscondessa de Vernières. As filhas da

baronesa V... são substituídas na peça pela simpática sobrinha Marcelle, que mantém intacta

sua honra e é salva do demi-monde por Olivier, que ao final está disposto a desposá-la.

Observa-se aqui um contraponto à verdade nua e crua, que é atenuada para dar um ar de final

feliz à trama, típico da comédia.

Por outro lado, se Marcelle aparece como a “mocinha”, Valentine de Santis herda as

mesmas características da senhora S..., a terceira e última mulher descrita por Dumas Filho no

prefácio. Assim como a senhora S..., Valentine se separa do marido por causa de uma traição

e volta a utilizar o nome de solteira; mas a senhora S... tem ainda um agravante que não

aparece na peça: um filho, que cresce acreditando que sua mãe está morta, enquanto ela

recebe uma pensão para não revelar a verdade. Enfim, o autor dirá: “tudo que acabei de contar

sendo absolutamente verdadeiro, o leitor reconhecerá que apesar de nossa ousadia, ficaremos

sempre abaixo daquilo que a realidade nos oferece” (DUMAS FILS, 1898, p. 9). 72

René Doumic, em Portraits d'écrivains (Retratos de escritores) (1892), ilustra de forma

adequada o tipo de descrição da realidade que Dumas utiliza e que destacamos aqui. Segundo

Doumic, embora todas as resoluções de Dumas Filho sigam uma lógica, elas apresentam-se

em contradição com o desfecho provável que a situação teria na vida real, ou seja, existe um

desacordo entre a lógica do teatro de Dumas Filho e a lógica da vida. Não há intenção de

mostrar como as coisas se passam ordinariamente, mas como deveriam acontecer (Cf.

DOUMIC, 1892, p. 48). Tais observações apresentam uma característica interessante e única

71 “tout comme s’il eût été l’Homme au masque de fer”. 72 “Tout ce que je viens de raconter étant absolument vrai, le lecteur reconnaîtra que malgré nos hardiesses, nous restons toujours au-dessous de ce que la réalité nous donne”.

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no realismo de Dumas Filho, que está perfeitamente de acordo, mais uma vez, com seus

objetivos moralistas. Trata-se da apresentação de experiências destinadas a fazer com que os

exemplos mostrem o triunfo do bem e do ideal.

Assim, Doumic conclui, de forma coerente, que Dumas Filho não é propriamente o que

se chama comumente de realista, pois, enquanto o realista atém-se à reprodução do que a vida

apresenta de ordinário e comum, Dumas Filho estudou os casos de exceção; enquanto o

realista tem por constante preocupação não intervir no jogo natural dos acontecimentos,

Dumas Filho arranja os fatos. Como bem observa o autor:

O realista fica chocado ao ver que na maior parte do tempo nossas intenções ficam sem efeito, nossos projetos não alcançam sucesso, nossas investidas não terminam, que tudo fica incompleto, inacabado, que tudo aborta. Dumas nos apresenta ações completas; ela vai até o topo de suas ideias, e leva a paixão até suas últimas consequências. (DOUMIC, 1892, p. 49-50). 73

Esta citação é a definição mesma da arte de Dumas Filho, que, segundo Doumic, parte

do realismo, mas para ultrapassá-lo, e tem como base o real, mas como fim um ideal

(DOUMIC, 1892, p. 50).

As habilidades investigativas de Alexandre Dumas Filho também não passaram

despercebidas por seus críticos. Na crítica da peça O Filho Natural (Le fils naturel, 1858)

Montégut (1858) comenta que a maior qualidade de Dumas Filho é saber observar e ouvir o

mundo parisiense ; ver, ouvir e escrever : isto é, para ele, ser um realista. E, de acordo com

sua opinião, o realismo é detestável no teatro, que vive de ação e paixão, uma vez que, na

ausência de um narrador, como no romance, a personagem precisa transmitir seus sentimentos

com uma simplicidade que a complexa realidade não pode fornecer. Porém, admite que certos

sentimentos e condições da vida são mais aplicáveis ao realismo do que outras – para ele, o

73 “Le réaliste est frappé de voir que la plupart du temps nos intentions restent sans effet, nos projets n’aboutissent pas, nos entreprises ne se terminent pas, que tout avorte. M. Dumas nous présente des actions complètes; il va jusqu’au bout de ses idées, et pousse la passion jusqu’à ses dernières conséquences”.

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mal e a vulgaridade são condições humanas normais e, por isso, devem ser transcritas

exatamente como são, pois serão compreendidas.

O crítico considera que a peça Le demi-monde foi um sucesso porque teve o objetivo de

mostrar os costumes deste mundo artificial que vive de mentiras e falsas aparências, e o

atingiu graças a mais uma qualidade de Dumas Filho ressaltada pelo crítico : « ele sabe

discernir o que é digno de atenção e o que é digno de desprezo » (MONTÉGUT, 1858, p.

710). 74

Montégut vai sublinhar ainda outra característica marcante de Dumas Filho, ao alcunha-

lo de “jacobino dramaturgo”: « É um jacobino dramaturgo que não hesita diante de meio

algum para atingir seu objetivo, e que pensa que o fim justifica todos os meios »

(MONTÉGUT, 1858, p. 702). 75

Utilizando a nomenclatura dos grupos proeminentes de Revolução Francesa, emprega-

se o termo girondinos para aqueles grupos que, embora proponham mudanças, aplicam as

teorias políticas de forma mais tímida, e apesar de serem tidos como de direita, aceitam fazer

concessões e conjunções de interesses, posicionando-se mais ao centro e adquirindo mais

funções reformistas do que revolucionárias. Possuem um estilo sóbrio, falam lentamente, sem

paixão.

Os jacobinos, por sua vez, são os verdadeiros revolucionários no sentido puro da

palavra: são aqueles tidos como radicais, aqueles que buscam o reverso da ordem estabelecida

– são os “demolidores”.

Se considerarmos a utilização que Alexandre Dumas Filho faz de seu teatro como uma

tribuna, em que defende os valores morais de uma burguesia não reformista, há aí um

hibridismo entre a forma radical de propaganda política, típica de um jacobino, e a defesa de

valores e instituições tais como família e fidelidade. Da mesma forma, a análise do prefácio

74 “Lui, il sait discerner ce qui est digne d’attention et ce qui est digne de mépris”. 75 “C’est un jacobin dramaturge qui ne recule devant aucun moyen pour atteindre son but, et qui pense que la fin légitime tous les expédiens”.

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feita no capítulo 3 também apresenta um componente híbrido de um vocabulário que

denota uma luta em busca de um lugar de destaque no campo literário, enquanto a escolha

pela dramaturgia já consagra tal lugar, visto ser o teatro um gênero literário de grande

prestígio.

O realismo, como precursor do naturalismo, movimento este associado a um

cientificismo positivista que busca “relatar” a “realidade” tal como ela é, aplicando à literatura

métodos das ciências matemáticas e naturais, tenderia à busca da verdade acima de tudo, o

que traria embutida uma impessoalidade, um afastamento do escritor-cientista de seu mundo-

objeto de estudo. Nas peças de Dumas Filho, ao contrário, observa-se a presença constante do

autor em suas personagens e em seus textos.

No romance A dama das Camélias (1848), seu trabalho mais famoso que foi por ele

mesmo adaptado ao teatro, inspirou-se em suas próprias relações com a cortesã Marie

Duplessis. Conforme vimos anteriormente na análise do prefácio, Dumas Filho participou

ativamente em uma recepção no demi-monde, nos mesmos moldes daquelas que apresentará

na peça homônima. Finalmente, no prefácio à peça O Filho Natural (Le fils naturel, 1858)

Alexandre Dumas Filho confessa que se trata de sua peça preferida, visto tratar-se do

desenvolvimento de uma tese social e de uma “pintura dos costumes, dos caracteres, dos

ridículos e das paixões”, de forma a fazer o espectador refletir, e para tanto escolheu a

questão que considera “mais interessante e mais dramática” neste sentido, que é a questão dos

filhos naturais. “É uma idéia fixa”, escreve ele (DUMAS FILS, 1899, p. 5). 76 Ao eleger a

peça O Filho Natural como favorita, por seu tema e pela forma como foi escrita, Dumas Filho

mais uma vez se faz presente em seu trabalho, tendo sua situação familiar particular de filho

76 “Voici une comédie pour laquelle j’avoue ma prédilection. (...) Pour la première fois, il est vrai, je tentais de développer une thèse sociale et de rendre, par le théâtre, plus que la peinture des moeurs, des caracteres, des ridicules et des passions. J’espérais que le spectateur emporterait de ce spectacle de quoi réfléchir un peu, et je ne voyais rien de plus intéressant et de plus dramatique à lui soumettre que cette question des enfants naturels qui n’a cessé de me préoccuper depuis lors (...). J’y suis revenu dans l’Affaire Clémenceau, dans les Idées de madame Aubray, dans la préface de la Dame aux Camélias. J’y reviendrai encore, au théâtre et dans le livre. C’est une idée fixe.”

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ilegítimo representada em cena.

A arte de Courbet apresenta-se em um momento decisivo durante o período da

Revolução de 1848. Naquele momento, ele produz uma série de telas tidas como realistas, tais

como Après-dîner à Ornans (1848-49), Les Casseurs de pierre (1849) e Un enterrement à

Ornans (1849-50), que vão consagrá-lo não só como um grande pintor mas também como um

revolucionário da vida cultural parisiense. Sua figura era incômoda, tanto pelo desprezo que

tinha pelas autoridades oficiais e por sua simpatia pela vida republicana como,

principalmente, pelo escândalo que provocava seu realismo, o qual afrontava os cânones

dominantes e os dogmas clássicos segundo os quais a arte digna deste nome implicaria mais

do que a exata reprodução das aparências naturais (Cf. FRIED, 1993, p. 14).

Fried chama a atenção para a distinção que faz Diderot entre teatro, que seria uma

construção artificial, e o drama, que supõe uma descontinuidade entre representação e

público, um isolamento entre o mundo da representação e o mundo do espectador (Cf.

FRIED, 1993, p. 22). Diderot leva esta concepção dramática para a pintura: ela deve

“esquecer” o espectador. A arte de Courbet, segundo Fried, apresenta características desta

tradição antiteatral da pintura francesa, como ao representar figuras vistas de costas -

sugerindo que não tem consciência ou não se importa com a presença do espectador (Cf.

FRIED, 1993, p. 246).

Pode-se trazer esta visão antiteatral de recusa de artificialidade, esta descontinuidade

entre representação e público, para a leitura peça Le demi-monde. Conforme visto

anteriormente, no capítulo sobre os caminhos do drama burguês, uma das características do

drama sério sistematizado por Diderot e retomado por Alexandre Dumas Filho é a presença de

pantomima, ou seja, do movimento dos corpos, que, aliada ao cenário e ao figurino da peça,

colocam o espectador em uma posição de voyeur, que observa a intimidade doméstica dos

personagens. Ora, trata-se de uma estratégia do teatro de Dumas Filho de tornar seu teatro

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realista no que se refere à representação, em que as cenas se passariam independentemente

da presença do espectador.

A presença recorrente de imagens de si nas pinturas de Courbet, seja explicitamente,

seja metaforicamente, leva frequentemente à caracterização de sua arte como narcisista, tese

refutada por Fried por centrar-se excessivamente no ato da visão em detrimento do ato da

pintura (Cf. FRIED, 1993, p. 286), simplificando grosseiramente a dinâmica de sua obra. A

representação de si implica mais do que um simples reflexo: mais do que admirar

passivamente seu reflexo, está em jogo o ato de pintar, a primazia da ação sobre o olhar

passivo. A representação de si em Courbet é essencialmente uma função do engajamento do

pintor-espectador no ato de pintar, fator que chama atenção para a continuidade entre a arte de

Courbet e a tradição dramática de Diderot, na qual a representação da ação humana tem papel

fundamental. Da mesma forma, em Alexandre Dumas Filho temos a representação de si na

obra, com a projeção de suas experiências nas personagens, mas com objetivos distintos. Em

Courbet, há um esforço de fusão quase física do pintor-espectador na pintura, enquanto em

Dumas Filho o engajamento está ligado à sua busca pela utilidade da arte.

De fato, a função do teatro era, para Dumas Filho, a de servir como uma arte útil, que

pudesse ensinar, trazer alguma mensagem ao público. Assim sendo, seguindo as teorias

apresentadas por Touchard (1960, p. 224), para quem o realismo se mostraria mais como um

procedimento ou uma maneira do teatro de atingir sua função do que como uma forma

artística ou uma natureza do teatro, o realismo de Dumas Filho apresenta-se mais como uma

função do teatro do que como uma natureza, um pertencimento a um movimento estético.

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5.3 Cenário da peça Le demi-monde

Germain Bapst, en Essai sur l’histoire du théâtre (1893), traz importantes contribuições

para o trabalho aqui proposto, pois apresenta um amplo estudo sobre a encenação (mise en

scène), o cenário, o figurino e a arquitetura no teatro, desde a Idade Média até o final do

século XIX. Concentrar-nos-emos no histórico do cenário, bem como, e principalmente, no

panorama do cenário no teatro francês a partir do drama romântico.

Segundo o autor, o teatro do século XVI, ainda herdeiro do teatro clássico, não tinha

movimento cênico, consistindo apenas em uma exposição pedagógica de teses filosóficas,

religiosas e políticas. Assim, não havia necessidade de cenário, sendo suficientes pinturas e

tapeçarias que servissem como pano de fundo para o autor e sua declamação. No século XVII,

sob a influência de Shakespeare, aparecem as tragicomédias cujo objetivo não é mais

pedagógico, e neste momento a presença de letreiros ou de telas bastava para indicar os locais

onde as histórias se desenvolviam. Trata-se do cenário dito simultâneo.

Durante a Revolução Francesa, o teatro volta a assumir uma função pedagógica, desta

vez para ensinar ao público as virtudes cívicas. O cenário, até o Império e a Restauração,

ainda é praticamente nulo. Neste período, é o figurino, mais do que o cenário, que será

trabalhado e celebrado. Porém, até mesmo o figurino, alvo de minuciosa pesquisa histórica,

apresentava-se com êxito apenas parcial, uma vez que as personagens secundárias

permaneciam negligenciados, apresentando anacronismos.

Mas a verdadeira revolução na decoração foi feita, segundo Bapst, pelos românticos.

Para ele, o grande mérito de Victor Hugo, Alexandre Dumas e Alfred de Vigny foi o de

conceber dramas vivos, impregnados de realidade, para os quais são indispensáveis o bom

figurino e o cenário, e nos quais cada papel exige móveis e acessórios particulares. É a vida

real e suas convenções aparecendo no teatro (Cf. BAPST, 1893, p. 543).

Assim, a partir de 1830, torna-se prática comum no teatro dar a cada peça sua

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fisionomia própria, e preparar o cenário de acordo com o espaço e o tempo onde se passa a

ação.

Abaixo reproduzimos um trecho do capítulo sobre a mise en scène no teatro pós 1848,

em que Bapst reproduz um diálogo entre Victorien Sardou77 (1831-1908) e Adolphe Thiers

(1797-1877), então presidente da república, que exemplifica a mudança de postura dos atores

em cena e da mise en scène como um todo:

Hoje, a cena representa um verdadeiro salão, mobiliado, como são os salões elegantes de nosso tempo. Não é a mim que deve ser dado o mérito desta transformação, mas a Montigny, o hábil diretor do Gymnase há vinte anos. (...) Montigny operou uma verdadeira reforma ao colocar uma mesa no meio da cena; em seguida, colocou algumas cadeiras ao redor da mesa; e os atores passaram a sentar e a conversar naturalmente, olhando uns para os outros, como fazemos na realidade. [...] Se tenho algum mérito, é o de ter aplicado as teorias de Montigny ao teatro histórico: procurei introduzir a verdade no drama. (BAPST, 1893, p. 583) 78

E Bapst acrescenta ainda que

Montigny era o homem engenhoso que acaba de nos lembrar o senhor Sardou, e o senhor Alexandre Dumas Filho declarava-nos que se baseava inteiramente na habilidade e no gosto do diretor do Gymnase para a mise en scène de suas peças. (BAPST, 1893, p. 585) 79

Estas citações apresentam uma problemática semelhante àquela que levantamos aqui. O

teatro realista de Alexandre Dumas Filho supõe - conforme ilustram as observações de Sardou

e Bapst- um cenário que mostre uma casa “real”, dentro dos padrões da burguesia e da

77 Autor dramático eleito para a Academia Francesa em 1877.

78 «Aujourd'hui, la scène représente un véritable salon meublé comme l'est cette chambre, comme le sont les salons élégants de notre temps. Ce n'est pas moi d'ailleurs qui ai le mérite de cette transformation, mais bien Montigny, l'habile directeur du Gymnase depuis vingt ans. [...] Montigny opéra une première réforme en faisant mettre une table au milieu de la scène; ensuite, il fallut mettre des chaises autour de la table; et les acteurs, au lieu de se causer debout sans se regarder, s'assirent et parlèrent naturellement en se regardant comme on le fait dans la réalité. [...] Mon mérite, si j'en ai eu un, est d'avoir appliqué les théories de Montigny au théâtre historique: j’ai cherché a introduire la vérité dans le drame.» 79 «Montigny était bien l'homme ingénieux que vient de nous rappeler M. Sardou, et M. Alexandre Dumas fils nous déclarait qu'il se reposait entièrement sur l'habileté et le goût du directeur du Gymnase pour la mise en scène de ses pièces.»

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pequena nobreza parisiense. O nível de detalhamento dos móveis descritos e das indicações

das disposições nos cômodos dá a exata dimensão do quão realista se pretende este teatro

burguês do Segundo Império.

Embora seja mencionado o espaço interno do novo apartamento de Valentine, por ela

descrito em cores e tecidos utilizados nos cômodos, as referências ao espaço onde se

desenrola a história indicam tão-somente que o primeiro ato se passa em “um salão na casa de

Olivier de Jalin”, o segundo ato em “um salão na casa da senhora de Vernières”, o terceiro em

“um salão na casa de Suzanne” e o quarto ato “na casa de Olivier”. São estes espaços que

tentaremos reconstituir.

Para reproduzir hipoteticamente o cenário da peça contamos com auxílio de manuais e

tratados de arquitetura do século XIX, compêndios sobre móveis e decorações, e ainda com

preciosos dados sociológicos fornecidos por Adeline Daumard.

O interesse pela distribuição interior das moradias aumenta a partir da segunda metade

do século XIX. Os diversos tratados e cursos sobre habitação produzidos no período (como os

dos arquitetos Viollet-le-Duc, César Daly, entre outros) descrevem a distribuição interior de

acordo com as novas necessidades de conforto e bem estar, e o tipo de uso é apresentado

como um dos elementos principais nesta distribuição do espaço.

A separação da parte privada da habitação (lugar de intimidade, da vida de família) da

parte pública (reservada à recepção) e das áreas de serviço, tal como no século precedente, é

uma realidade. A banalização dos imóveis destinados à locação, os quais devem servir a

grupos sociais bem diferentes, supõe uma mistura de populações que não preserva o espírito

de família, e confirma, portanto, o princípio da separação público-privado-serviço. Mais do

que arquitetos, ao defenderem a vida de família os especialistas deste período apresentam-se

como moralistas (Cf. BLANCHARD, VIDAL, 1989, p.89).

César Daly, em L’architecture privée au XIXe siècle sous Napoleon III (1864),

caracteriza os imóveis para locação como espaços que não comportam as fantasias da

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imaginação e a originalidade marcadamente específica para o morador, visto que se destina

à multidão e precisa, portanto, atender ao gosto e às necessidades comuns à grande massa da

população. Deve adaptar-se a todos os gostos sem apegar-se a um em particular. Por isso, a

arte é relegada a um plano secundário.

O segundo tomo de L’architecture privée au XIXe siècle sous Napoleon III é dedicado

aos imóveis de aluguel, e apresenta imóveis construídos em Paris, sob Napoleão III, nos

« novos bairros », nouveaux quartiers, da capital. Daly distingue três classes de imóveis de

aluguel, cujos critérios de classificação incluem a presença/ausência de escada de serviço,

número de andares, qualidade da construção e do material utilizado e algumas características

da distribuição interior. Os de primeira classe, destinados aos burgueses com fortunas

estabelecidas, possuem uma vista para o pátio e outra para a rua. Têm até quatro pavimentos,

sendo os três primeiros dotados de uma escada em pedra, ligada em sua parte superior à

escada que leva ao quarto piso. Esta última escada, construída em madeira, reflete a

degradação do status social dos andares superiores, os quais abrigam famílias menos

favorecidas.

O imóvel de segunda classe comporta até cinco pavimentos, sendo os dois primeiros

utilizados por lojas, a escada principal é toda em madeira, mas ainda se verifica a presença de

uma escada de serviço. O imóvel de terceira classe, enfim, também possui cinco andares,

porém apenas uma escada, de madeira, e o pátio está ausente.

O interior dos apartamentos distribui-se de forma a oferecer um espaço público para a

vida social, um espaço privado para a intimidade familiar, e um espaço para o serviço

doméstico, de circulação discreta. A ante-sala funciona como um filtro, distribuindo os

passantes para os locais aos quais pertencem. É uma espécie de terreno neutro entre patrões e

empregados.

A sala de jantar tem uma dupla função: além de ser o local de encontro cotidiano dos

membros da família, funciona ainda como um espaço de sociabilidade, não só durante as

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refeições como também nos momentos de recepção dos convidados e exibição de

pertences.

O grande salão, ou sala de visitas, é um espaço social cobiçado pelos burgueses. É uma

marca de classe de grande importância simbólica: possuí-lo era sinal de sociabilidade. Nas

casas de pequenos burgueses, o salão é um lugar relativamente morto, visto que as relações

restringem-se quase exclusivamente à família (Cf. GUERRAND, 2006, p. 334).

O quarto conjugal, por sua vez, é um “templo da procriação e não da volúpia”

(GUERRAND, 2006, p. 334), espaço cercado por um tabu que afasta as visitas em nome das

boas maneiras.

Ao longo do século XIX, o apartamento burguês vai se tornando um espaço de

acumulação de antiguidades, em que se mesclam estilos, épocas e civilizações distintas, com a

presença marcante de tecidos, tapeçarias e tapetes recobrindo as superfícies. Tais informações

fornecidas por Daumard e Daly serão úteis na análise de passagens da peça de Dumas Filho,

conforme veremos a seguir.

O livro ilustrado Le XIXe siècle français (FANIEL, 1957) e suas indicações de

mobiliário, tapeçaria e peças decorativas em geral trazem imagens valiosas para a tarefa de

reconstrução do cenário da peça Le demi-monde, a partir das referências dadas pelas

personagens a cômodos e móveis.

Segundo Faniel, a evolução das artes ao longo do século XIX é decorrente da ação

conjunta de dois fatores, que lhe imprimem suas características: o desenvolvimento da fortuna

burguesa e a independência do gosto, esta última uma consequência da Revolução Francesa.

E, a partir da Revolução Francesa, são identificados quatro estilos, quatro fases de uma

complexa evolução que mescla antigas tradições artesanais à influência da industrialização,

além do classicismo ao romantismo. São eles: estilo Império, que tem suas raízes na época

revolucionária e se estende até cerca de 1820; estilo Carlos X, de 1818 a 1834; e os estilos

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Luís Filipe e Napoleão III, que pouco diferem e nos quais nos concentraremos.

Em relação ao mobiliário, partir de 1830-1835 a madeira clara, bastante utilizada

durante o período Carlos X, é substituída pelo acaju ou mogno, apresentando ainda pinturas

de flores que cobrem a superfície das peças, tal como a cama reproduzida abaixo:

Figura 1 Lit en bois noir incrusté de bouquets (1840). Coll. Comoglio. In: FANIEL, 1957, p. 63. Ainda mais cosmopolita, o estilo Napoleão III apresenta uma grande presença das artes

do Extremo-Oriente, exemplificada por esta cadeira em madeira escura com motivos

chineses:

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Figura 2 Chaise en bois laqué noir et or (1850-1860). Anc. Coll. Fabius frères. In: FANIEL, 1957, p. 69.

O estilo Napoleão III caracteriza-se, enfim, por um grande ecletismo, traduzido em uma

mistura de móveis de diversas épocas. A idéia de conjunto e a unidade de estilo desaparecem,

conforme se nota nos quartos mostrados a seguir:

Figura 3 Chambre à coucher en acajou de Mrs. Biddle. In : FANIEL, 1957, p. 37. A cama em acaju, com cabeças

de águias nas extremidades e pés com formato de garras inspirados na antiguidade contrastam com as mesinhas em faiança policromada do Segundo Império.

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Figura 4 Chambre à coucher Napoléon III, chez la comtesse de P..., à Paris. In : FANIEL, 1957, p. 209.

Figura 5 Chambre d’amis Napoléon III chez M. H. Samuel à Montfort-l’Amaury. In : FANIEL, 1957, p. 208.

Como exemplos de quartos do Segundo Império, pensamos que estes cômodos

poderiam representar modelos para parte do cenário do primeiro ato, cena III. Embora todo o

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primeiro ato se passe em “um salão da casa de Olivier de Jalin”, ao final da cena III - na

qual estão presentes o próprio Olivier e seu amigo Hippolyte Richond-, a doméstica anuncia a

chegada de Suzanne, e neste momento, “mostrando-lhe o quarto ao lado”, Olivier ordena:

“Faça-a entrar; recebê-la-ei imediatamente”. 80

As imagens apresentadas mostram as características decorativas principais de uma casa

durante o Segundo Império, com graus de suntuosidade e luxo variáveis de acordo com as

camadas da sociedade: a acumulação de objetos e a presença da tapeçaria são características

marcantes do período. Mas são os estofados que darão a unidade aos conjuntos. É a época por

excelência dos espaços feitos para a conversação: sofás, poltronas, e novos modelos de

acolchoados, tais como os “confidentes”, com dois lugares e em forma de S, e o “indiscreto”,

com três lugares e em hélice.

Figura 6 Indiscret, siège capitonné (1860-1870). Coll. part. In : FANIEL, 1957, p. 66.

Visto que a peça se passa praticamente em sua totalidade em salas/salões das casas das

personagens Olivier, Senhora de Vernières e Suzanne, cabe mostrar algumas imagens

relativas a este cômodo. A seguir, reproduzimos um salão estilo Napoleão III que ilustra como

80 « Olivier, lui montrant la chambre à coté : -Faites entrer là ; je suis à elle tout de suite ». Grifos nossos.

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poderia ser o cenário principal da peça, especialmente o segundo e o terceiro atos, que se

passam, respectivamente, em “um salão na casa da senhora de Vernières” e “um salão na casa

de Suzanne”.

Figura 7 Salon Napoléon III chez la comtesse de P..., à Paris. In : FANIEL, 1957, p. 216.

Descrever a casa de um homem solteiro, por outro lado, não é uma tarefa tão fácil

quanto apresentar uma casa de uma mulher solteira, viúva ou de um casal. No século XIX,

são poucos os solteiros definitivos. O modelo ideal da família exclui o celibatário,

considerado pela sociedade um “fruto seco”: acima de 50 anos, o índice de celibato não vai

além de 10% para os homens e 12% para as mulheres (Cf. PERROT, 2006, p. 134). Para o

primeiro e o quinto atos, que se passam na casa de Olivier de Jalin, poderíamos supor uma

decoração mais sóbria, tal como no último quarto apresentado. A mulher, excluída da vida

pública, ocupa um espaço de destaque na vida privada, e é dela a responsabilidade das

cerimônias e rituais domésticos. E, ainda que não tenham autonomia total sobre seus lares, na

pintura de interiores e nas cenas domésticas as mulheres sempre aparecem como figuras

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centrais:

Porém, segundo Perrot, “a escolha da decoração é muito mais masculina do que se

imagina. Por ocasião do casamento, a casa é mobiliada pelo futuro genro e sua sogra, segundo

os manuais do conforto doméstico” (PERROT, 2006, p. 126).

Ainda assim, a vida privada para os homens do século XIX confunde-se com a vida

pública; quando representados em seus lares, os homens geralmente aparecem em suas

bibliotecas, símbolo de status social e espaço essencialmente masculino. Para os solteiros, as

cenas mais comuns na historiografia iconográfica são os cabarés, clubes, cafés e todo tipo de

passatempo boêmio, tais como nas ilustrações abaixo reproduzidas:

Figura 8 Café La Manille, 1899. Paris: Biblioteca Nacional. In: PERROT, 2006, p. 127. Figura 9 Amédée Julien Marcel-Clément, Le Billard, 1900. In: PERROT, 2006, p. 127.

Tencionamos, ao longo desta seção, reconstituir o cenário da peça Le demi-monde, a

partir de referências ao espaço no qual a trama se desenvolve. Devido ao reduzido número de

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didascálias e da ausência de menções ao cenário nas críticas que apareceram na imprensa

no ano da estreia da peça no Théâtre du Gymnase (1855) e no da reapresentação na Comédie

Française (1874), formulamos a hipótese de que o cenário expunha cômodos e móveis de

uma casa burguesa típica, facilmente reconhecível pelo público burguês presente.

Consideramos confirmação desta hipótese o testemunho, reproduzido acima, de Victorien

Sardou citado por Bapst, ambos contemporâneos de Alexandre Dumas Filho. Embora a

citação de Bapst dê apenas indicações gerais sobre cenários, sem mencionar especificamente a

peça Le demi-monde, trata-se de palavras de um autor de sucesso, Victorien Sardou, cujo

estilo de teatro e público alvo têm as mesmas características do teatro de nosso autor de

referência.

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6 CONCLUSÃO

O presente trabalho propôs a caracterização da cena de enunciação da peça Le demi-

monde (1855), de Alexandre Dumas Filho, mais especificamente de sua cenografia

enunciativa, relacionando-as com o posicionamento enunciativo do autor e sua posição no

campo literário. A hipótese inicial apontava as personagens da peça como elementos

principais da cenografia enunciativa. Dotadas da prerrogativa de porta-vozes do autor, elas

seriam as principais responsáveis pela demonstração da posição do autor no campo literário

como típico representante da arte burguesa. Além disso, apontamos para a importância do

prefácio redigido por Dumas Filho para sua peça, que seria mais um componente da

cenografia enunciativa de Le demi-monde na busca de legitimação de seu texto. Retomamos

nesta conclusão os resultados parciais obtidos ao longo do desenvolvimento da pesquisa, à luz

das hipóteses iniciais.

No capítulo 3, Le demi-monde: enunciação e contexto, foi analisado o prefácio da peça,

em busca das condições sócio-políticas que levaram o autor a optar pelo Théâtre du Gymnase

para a estreia de sua peça, em 1855. De fato, conforme afirmamos na introdução, o prefácio é

um componente importante da cenografia enunciativa, diretamente relacionado à busca de

legitimação: nele o autor explica suas razões para escrever a peça pensando naquele teatro e

os motivos da recusa do convite para a representação na Comédie Française. Desenvolvendo

uma metáfora guerreira, Dumas Filho deixa clara sua consciência de estar lutando por um

lugar no campo literário. Para a estreia da peça, que determinaria uma confirmação de sua

posição na carreira, procurou começar humildemente “em terreno conhecido e favorável”, ou

seja, no Théâtre du Gymnase, no qual sabia que seria aceito e bem recebido, tanto pelo

público como pelos diretores do teatro. Seu objetivo foi alcançado, com o sucesso da peça em

sua estreia no Gymnase, em 1855.

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Ainda que identifiquemos na carreira de escritor de Dumas Filho a ambição de ocupar

um lugar entre os grandes dramaturgos de seu tempo, fator que o classificaria, nos termos de

Bourdieu, como um representante de uma arte burguesa tida como mercenária, a análise do

prefácio nos leva a questionar a hipótese inicial, que via em Dumas Filho um típico

representante da arte burguesa. Ao contrário, o que se percebe no texto da peça nada mais é

do que uma crítica à sociedade que está sendo retratada, a sociedade parisiense do Segundo

Império. E também, a escolha do Théâtre du Gymnase para a estreia da peça, em detrimento

do palco mais cobiçado de Paris, a Comédie Française, demonstra que a categorização do

autor como representante de uma arte burguesa definida como mercenária é um tanto

apressada. Nesta luta simbólica referida por Bourdieu, representada pela oposição entre a arte

pura, a arte social e a arte burguesa, Dumas Filho figura em uma batalha paralela, em que está

em jogo a difusão de sua arte útil, concepção na qual seu moralismo está embutido.

No capítulo 4, Ethos e habitus: art de vivre burguês, foi dada ênfase às personagens, nas

quais identificamos porta-vozes do autor e que vimos como elementos principais da

cenografia enunciativa da peça. Reconhecemos nas personagens da peça Le demi-monde a

autoridade de enunciadores, que constroem uma imagem de si no momento em que tomam a

palavra, por vezes apresentando-se explicitamente, por vezes levando o co-enunciador a

construir esta imagem a partir de suas crenças implícitas no discurso. Tais crenças estão

relacionadas à respeitabilidade, às questões familiares, à situação da mulher na sociedade e às

questões financeiras e conjugais, que são alguns traços do ethos burguês presentes no texto da

peça.

No capítulo 5, seção 5.1, trabalhamos com o modo de organização descritivo do

discurso, observando que os poucos fragmentos descritivos que aparecem no texto da peça

não estão nas didascálias, mas sim nos próprios diálogos. Tudo que o autor quer mostrar ao

espectador é dito pelas personagens. E é Olivier, o raisonneur da trama, que atua como

principal porta-voz e se posiciona de forma moralista frente às ações das demais personagens.

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Finalmente, no que se refere ao realismo presente na peça de Dumas, não se pode

negligenciar ingenuamente o olhar do enunciador na pintura da realidade que ele vê. Esta é a

razão pela qual encontramos, nas descrições dos personagens e do demi-monde, tanto

elementos que se relacionam à realidade propriamente dita das « mulheres desclassificadas »

de sua época, quanto metáforas e comparações que demonstram sua opinião sobre este nicho

social e seus « habitantes ». Trata-se da alternância do que Charaudeau chama de efeitos de

« realidade » e de « ficção ». Neste caso específico, apresenta-se um « efeito de subjetividade

objetivado », uma vez que seu objetivo é fazer compartilhar o leitor do ponto de vista

subjetivo de quem descreve, conforme foi discutido no capítulo 5.

A partir das análises apresentadas no capítulo 5, seção 5.2, conclui-se que a questão do

realismo, especialmente do realismo no teatro, é uma questão complexa, que pode ser vista

sob os mais diferentes ângulos: o realismo pode ser visto como um movimento estético, mas

também como a representação fiel da natureza e ainda como a finalidade de um certo tipo de

teatro. A classificação de uma peça de teatro como realista depende, ao considerar todos estes

elementos, mais de uma análise subjetiva e ideológica do que um simples rótulo pode prever.

Sendo assim, no que se refere ao realismo de Dumas Filho, observou-se, também na

seção 5.2, um grande distanciamento entre seu posicionamento estético frente à realidade e o

realismo de Champfleury e Courbet. Porém, tal como pregava Champfleury, o termo realismo

é uma palavra ambígua que se presta a todo tipo de uso, e, conforme vimos, não designa

apenas o movimento estético, mas também atende a outros critérios. Cada escritor fará uso da

representação da realidade em sua obra, de acordo com seus objetivos e interesses, de acordo

com sua posição no campo literário. Para Alexandre Dumas Filho, o realismo servirá como

uma estratégia de legitimação da enunciação: ao mostrar o que é “real”, assume o papel de

guia para seus leitores/espectadores, papel a que atribui importância porque lhe dá

credibilidade para difundir sua concepção de arte útil.

Além disso, vimos que a opinião dos contemporâneos é de grande valia para o estudo

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do realismo de Dumas Filho, pois, em se tratando de comédias de costumes, ninguém

melhor do que os contemporâneos para compreendê-las. Contudo, o distanciamento temporal

traz como vantagem a possibilidade de identificar os grupos que, por ocuparem posições

distintas no campo literário, podem se valer de sua posição de críticos formadores de opinião

para lançar mão de rótulos, com critérios subjetivos e, uma vez mais, ideológicos, tal como o

fez Montégut para a revista Revue des deux mondes. Parece-nos, enfim, mais acertada a tese

de René Doumic, conforme foi apresentado na seção 5.2, para quem Dumas Filho não é

propriamente um realista no sentido em que se utiliza o termo, embora faça da realidade que

observa à sua volta seu objeto de estudo, e faça uso de certos métodos, tais como gênero,

trama, meio social, para mostrar a realidade conforme seu desejo, que era difundir sua arte

útil.

Enfim, concluímos que Dumas Filho utiliza um método circular de convencimento, que

consiste nas seguintes etapas: 1) observação da sociedade e extração de temas que lhe são

caros; 2) elaboração do texto realista em forma de comédia-tese, em que há uma hipótese a ser

provada ao longo do trabalho; 3) presença do raisonneur, que será o responsável pela defesa

da tese e apresentação dos argumentos; 4) elaboração de um prefácio, no qual retorna à

observação da sociedade e à defesa da tese, desta vez não mais através das personagens, mas

tomando a palavra para si.

Estas são suas estratégias de legitimação da enunciação, sempre tendo em vista a busca

de Dumas Filho por uma arte útil, no sentido moralista do termo, uma arte que faz o co-

enunciador pensar e agir de acordo com o que é “certo”, conforme os valores defendidos pelo

autor, tais como família e fidelidade. E é um método que se baseia na observação da realidade

e sua transposição para o papel, constituindo um prenúncio do cientificismo naturalista.

A obtenção de informações de contemporâneos sobre a montagem da peça, incluindo

cenários, figurinos, personagens e atores, desponta como um direcionamento para pesquisas

complementares. Trata-se de material de grande utilidade para um estudo mais aprofundado

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da cenografia enunciativa, mas que, até o momento, não foi encontrado nas fontes de

pesquisa disponíveis no Brasil. Além disso, uma análise comparativa da peça Le demi-monde

com outras peças de Dumas Filho, à procura de indícios de caracterização de sua arte útil e

moralizante em um corpus mais amplo, constitui igualmente um tema de pesquisa a ser

explorado em pesquisas vindouras.

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