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59-84 - 2010 Latinismos sintácticos das Rimas de Camões Syntactic Latinisms of Camões’ Rimas Maria Isabel Rebelo Gonçalves RESUMO: Por influência dos escritores latinos, que Luís de Camões muito bem conhecia, a sintaxe das suas Rimas (como a d’Os Lusíadas) apresenta grande número de latinismos (acusativo cognato, genitivo objetivo, adjetivo usado como advérbio, etc.). Com o seu emprego, o poeta enriqueceu e deu variedade à nossa língua que, de outro modo, ficaria reduzida a estruturas antigas e populares. PALAVRAS-CHAVE: Camões; Rimas; poesia lírica; latinismos; sintaxe. estudo dos latinismos sintácticos das Rimas de Luís de Camões envolve o exame e explicação de múltiplas particularidades de linguagem, ou porque latinismos que parecem indiscutíveis, ou porque há hipóteses de latinismos que não devem passar de simples conjecturas. Assim como o latim, na sua aetas aurea, sofreu grande influência da sintaxe grega, assim a sofreu o português literário da sintaxe latina, na época áurea de Quinhentos. E, da mesma forma que no latim, também no português a linguagem poética foi aquela que recebeu maior influência sintática do outro idioma – o que não é de estranhar, visto que, no nosso O

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Latinismos sintácticos das Rimas de Camões

Syntactic Latinisms of Camões’ Rimas

Maria Isabel Rebelo Gonçalves

RESUMO: Por influência dos escritores latinos, que Luís de Camões muito bem conhecia, a sintaxe das suas Rimas (como a d’Os Lusíadas) apresenta grande número de latinismos (acusativo cognato, genitivo objetivo, adjetivo usado como advérbio, etc.). Com o seu emprego, o poeta enriqueceu e deu variedade à nossa língua que, de outro modo, ficaria reduzida a estruturas antigas e populares.

PALAVRAS-CHAVE: Camões; Rimas; poesia lírica; latinismos; sintaxe.

estudo dos latinismos sintácticos das Rimas de Luís de Camões envolve o exame e explicação de

múltiplas particularidades de linguagem, ou porque há latinismos que parecem indiscutíveis, ou porque há hipóteses de latinismos que não devem passar de simples conjecturas.

Assim como o latim, na sua aetas aurea, sofreu grande influência da sintaxe grega, assim a sofreu o português literário da sintaxe latina, na época áurea de Quinhentos. E, da mesma forma que no latim, também no português a linguagem poética foi aquela que recebeu maior influência sintática do outro idioma – o que não é de estranhar, visto que, no nosso

O

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Renascimento como no latim do século I a.C., a poesia era naturalmente mais dada do que a prosa a inovações de estrutu-ração frásica.

Nem sempre é fácil apurar se uma construção de poeta quinhentista, semelhante na aparência a outra latina, é ou não imitação. Para conhecermos se determinada construção é reprodução do latim ou herança popular recebida oralmente da língua originária, carecemos muitas vezes do necessário auxílio da sintaxe histórica, do conhecimento profundo da frase portuguesa arcaica. Mas temos hoje número apreciável de obras arcaicas criteriosamente editadas e reedições de obras por muito tempo inacessíveis que facilitam a tarefa do investigador e lhe permitem, com relativa segurança, chegar a conclusões aceitáveis.

Construções que não devem ser latinismos

sintáticos

Comecemos por referir construções que nos não parecem latinismos sintáticos. É o caso do emprego transitivo do verbo fugir.

O latim fugio, no sentido básico de “fugir de”, tinha mais do que uma construção: ou era transitivo e se construía com acusativo, ou era intransitivo e se construía com a(b) ou ex mais ablativo. Ao contrário do latim, o português fugir, do latim vulgar fugire (por fugere, habitual passagem do tipo capio para o tipo audio), não possui atualmente a construção correspondente à transitividade latina. Teve-a, no entanto, no português antigo, desde o período arcaico, a par com as construções acompanhadas das preposições a ou de, que perduraram.

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Um exemplo apenas, extraído de textos arcaicos, em que se utilizam estas duas construções: Fuge toda presumpçom assi como à morte1.

Mostrando este exemplo (do século XV ou de finais do século XIV) o emprego transitivo de fugir e o do verbo com a preposição a, é evidente que se não pode considerar latinismo sintático qualquer caso do mesmo tipo que ocorra na nossa literatura quinhentista. Para mais, o fato de encontrarmos duas construções do mesmo verbo num só período não pode deixar de indicar serem ambas naturais.

Não teremos, portanto, sintaxe imitada do latim quando Camões escreve nas Rimas: Tendo livre alvedrio / Não fujo o desvario, ode “Detém um pouco, Musa”, 81-82.

Outro caso é o do emprego do adjetivo só onde hoje se emprega o advérbio só. Comuns à prosa e à poesia latinas, são muitos os empregos do adjetivo solus que, tendo de ser traduzidos para o português actual, requerem o advérbio só, como se no latim estivesse solum. É o caso, por exemplo, deste passo virgiliano, “…nec soli poenas dant sanguine Teucri” (Eneida, II, 366), que teríamos de traduzir por “Os Teucros não pagam só com o seu sangue”.

Se o verso fosse vertido em português de Quinhentos, não teria sido necessário traduzir solus por um só adverbial, porque no século XVI se podia empregar só adjectivo onde hoje se emprega o advérbio afim. E já antes da época quinhentista encontramos inúmeros exemplos de só adjectivo, por exemplo no Cancioneiro Geral, como em o só remédio que tem (Diogo Brandão, III, p.43, ed. Gonçalves Guimarães2); Esta só cousa

1 Lisboa, Imprensa Nacional, 1932. NUNES, José Joaquim. Florilégio. Lisboa:

Imprensa Nacional, 1932, p.98. 2 Coimbra, Imprensa da Universidade, 1910-1917.

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nam calo (Garcia de Resende, V, p. 314), etc. Versos de expressão tão simples não podem ser imitação intencional de uma construção latina, tanto mais que coincidem com textos de prosadores da mesma época, como ...respondeu que a só virtude filhava por sua (D. Duarte, Leal Conselheiro, cap. LXXIII).

À exemplificação anterior juntaremos usos de poetas contemporâneos de Camões, nomeadamente: E com tais armas sós (Sá de Miranda, “Dia gracioso e claro”, 38), ou Declaro em sós dous versos meu intento (Diogo Bernardes, O Lima, cta. XIV, ao Doutor António de Castilho,“Já com muita razão”, 22).

Não faltam igualmente exemplos d’ Os Lusíadas (II, 27, 8; III, 123, 3; VIII, 55, 8; IX 39, 3) e das Rimas:

...sós dous dias (el. “O Poeta Simónides”, 160); que estes sós tem poder (oit. “Como nos vossos ombros”, 136); Porque se esta só verdade (red. “Suspeitas que me quereis”, 26), etc.

Cremos que diante de todos estes textos se torna bem claro estarmos perante casos de velha sintaxe vernácula.

Também não será imitação da sintaxe latina o emprego de proposições adversativas com mas porém.

Em todos os gêneros de poesia cultivados por Camões se encontram exemplos desta construção. Há dois n’ Os Lusíadas: Mas porém quando as gentes Mauritanas (III, 99, 5); Mas porém de pequenos animais (VI, 18, 3).

Nos Autos há mais: Mas porém se chega cá (Enf., p. 59, ed. Hernâni Cidade3); Mas porém já que este monte (Fil., p. 184); ...mas porém / Se a tal é virtuosa (Sel., p. 94); Si, mas 3 Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1985.

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porém nunca vemos (ibid., p. 95) e Mas porém por que razão (ibid., p. 97).

Nas Rimas ainda há mais exemplos do que nos Autos, com a particularidade de, em dois deles, estarem separados os elementos da locução conjuncional adversativa:

Mas porém não se ganha (canç. “Fermosa e gentil

dama”, 75); Mas porém quem for discreto (red. “Este mundo es el

camino”, 48); Mas porém a que cuidados? /.../ Mas porém a quê,

cuidados? / Mas porém, ah! que cuidados! (red. “Mas porém a que cuidados”, 10-20-30);

Mas contente porém de minha sorte (son. “Dai-me ũa lei senhora”, 14);

Mas inda mal porém, porque é verdade (son. “Se algũa hora em vós”, 8);

Mas porém se vos tinha prometido (son. “Tomou-me vossa vista”, 9).

No seu Ensaio sobre os latinismos dos Lusíadas4, C. E. Corrêa da Silva considerou os dois exemplos da epopeia como latinismos sintáticos, admitindo que Epifânio Dias, ao lembrar Virgílio a propósito do primeiro exemplo, tinha visto em III, 99, 5 “a revivescência de sed tamen”. Não julgamos que assim seja, porque Epifânio se limita a pôr em paralelo as duas construções: “Mas porém ] = sed tamen”.

O latim possui, de fato, combinações de duas adversativas nas quais a primeira reforçava a segunda: não apenas sed tamen, mas ainda sed autem, attamen, at uero, uerum tamen, uerum autem. Os empregos camonianos, porém, a que poderíamos juntar os de Sá de Miranda (Mas porém deste

4.CORRÊA DA SILVA, C. E. Ensaio sobre os latinismos dos Lusíadas. Lisboa:

Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1972, p.57.

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desterro, écl. “Montano”, 86; mas porém / ninguém dá o que não tem, trova “Mandar por tais calmas luvas”, 6-7), têm de ser vistos noutra perspectiva, já que nada refletem de menos habitual, antes deixam transparecer perfeita espontaneidade. E ainda que os empregos d’Os Lusíadas e das Rimas, inseridos em contextos literários, pudessem parecer imitação de sed tamen ou sed autem, como pensar o mesmo dos Autos, tão próximos da coloquialidade?

A verdade é que a locução mas porém (como também mas com tudo = mas contudo e mas toda via = mas todavia5 – as duas últimas ainda vivas) tem formação inteiramente portuguesa, com antecedentes indiscutíveis logo na coletânea poética de Garcia de Resende: Mas porém nojo v’ dá, Álvaro de Brito, I, p.128; Mas ... eu queria porém, Diogo Brandão, III, p.171; Mas porém sempre me disse, Anrique da Mota, V, p.192; Mas com tudo é de saber, Coudel-Mor, I, p.198; Mas cõ tudo, Álvaro de Brito, I, p.274.

Acrescente-se ainda que mas porém sucedeu a outra locução conjuncional do português arcaico: mas pero ou mais pero, na qual pero era perfeito correspondente do porém que viria a ocupar o seu lugar. Não haverá melhor abonação do que um texto vindo do século XIII, embora conhecido por cópia do XV, a Demanda do Graal6: mas pero ainda nom decera, cap. XVIII, 45, ed. Augusto Magne; mais pero tanto te juro, cap. LIII, 126 b, ibid.7

Cremos que os elementos apresentados serão suficientes para concluirmos que mas porém, que sucedeu ao arcaico mas

5 Um exemplo no Filodemo: mas... toda via. Cf. ed. Hernâni Cidade, p. 185. 6 Na Demanda também encontramos mas porém (LXIX, 166 c), só que com o

segundo elemento a valer “por isso”, como era corrente no português arcaico. 7 A Demanda ainda dá exemplos de mas todavia (LXIV, 152 b), pero todavia

(XXVII, 71 d) e até mas pero todavia (XXIX, 75 b).

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pero ou mais pero, não reproduz sed tamen nem sed autem, por imitação da sintaxe latina, antes é combinação normal em português de duas conjunções adversativas.

Passemos então à análise de evidentes latinismos sintáticos.

Construções que imitam outras da sintaxe latina

dos casos

a) Imitação do acusativo cognato

O estudo desta construção requer um pouco de história, por serem muito variados os seus antecedentes gregos e latinos.

O acusativo cognato apareceu em grego desde os mais antigos textos literários. Logo nas epopeias homéricas há inúmeros exemplos, ora dependentes de verbos ativos, ora de verbos médios. Seguem-se vários exemplos de Hesíodo e a estes se juntam muitos outros da poesia posterior e até de prosadores como Platão e Xenofonte.

Também o latim apresenta empregos do mesmo acusativo, desde os mais antigos autores, como Névio, auspicat auspicium (Punica, IV, 37, ed. Marmorale8) e Énio, faceret facinus (Anais, VII, 146, ed. Ernout9). O processo continua vivo em Plauto: cenam cenauit, pugnam pugnabo, somniaui somnium, etc. O mesmo diremos de Terêncio: cantilenam canis, facinus faxo, uitam ... quam uixi. E mantém-se durante o período clássico, nomeadamente em poetas tão representativos como Catulo, Virgílio e Horácio.

8 Firenze, La Nuova Itália, 1953. 9 Paris, L. Klincksieck, 1948.

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Diga-se ainda que, tal como na literatura grega, também a prosa nos dá vasta exemplificação do acusativo cognato. Em Catão, Cícero, Salústio, Tito Lívio, Séneca, Suetónio, não faltam exemplos de construções como carmina canere (das mais frequentes no latim literário), facinus facere, preces precor, seruitutem seruire, etc.

É precisamente na tradição do emprego latino do acusativo cognato que encontramos o emprego camoniano desta construção.

Os empregos d’Os Lusíadas são quase todos de fazer feitos, como já apontou Corrêa da Silva (com excepção de X, 71, 7), embora os tenha apresentado como “casos dubitativos” de latinismo sintático (op. cit., p. 62).

Os exemplos das Rimas são de mais de um tipo, embora com predomínio do verbo cantar:

Que mais sentirei vosso sentimento / Que o que

minh’alma sente (canç. “Vão as serenas águas”, 50-51); As doces cantilenas que cantavam (écl. VII, “Os

Faunos”, 1); Que cantasse em Babilónia / as cantigas de Sião (red.

“Sobre os rios que vão”, 154-155); A cantar ao som do dano / cantares de amor profano

(ibid., 233-234); Como hei-de cantar o canto (ibid., 239); Sinto vivo da morte o sentimento (son. “De vós me

aparto”, 2).

Percorrendo a literatura anterior a Camões, podemos ver que esta construção figura em vários textos, embora sem elevado número de empregos: fez façanha e fez feitos (Nobiliário, in P. M. H., “Scriptores”, p. 358); perda perco (Demanda do Graal, XL, 97 a); queda que o falcão cae (Pêro

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Menino, Livro de Falcoaria, XVII); sonho sonhasse (Cancioneiro Geral, Álvaro de Brito, I, p. 270); morte morreu (Garcia de Resende, Miscelânea, estr. 31), etc.

Apesar dos empregos anteriores, não podemos deixar de considerar latinismos sintáticos os d’Os Lusíadas e analogamente os das Rimas, precisamente pelo carácter literário da construção: quer num caso, quer noutro, não há exemplo que não tenha este caráter – e o mesmo aliás sucede, como será fácil verificar, nos usos mais antigos, inclusive nos de Pêro Menino: como ver feição popular em cair queda ou topar topadura (caps.17, 20).

E a atribuição de caráter culto a todos estes casos logo os aproxima do latim, do qual, direta ou indiretamente, terá vindo o modelo para vários escritores, incluindo Camões que tão bem conhecia a língua de Roma. Claro que não pensamos no Poeta a imitar artificialmente acusativos cognatos: pensamos, sim, que para ele seria natural reproduzir uma construção que a cada passo podia encontrar nos seus autores latinos.

A este principal motivo de admitirmos na linguagem camoniana uma imitação do acusativo cognato latino, outros poderemos acrescentar:

1. Empregar-se n’Os Lusíadas uma expressão, fazer feitos, que corresponde a um dos mais correntes empregos latinos do acusativo cognato, facere facinus.

2. Empregarem-se nas Rimas, com excepção de sentir sentimento (de que não conhecemos paralelo em latim) expressões que correspondem, mutatis mutandis, ao latim carmen canere ou canere carmen, que o Poeta encontrava em Cícero, Virgílio, Tito Lívio e outros autores, e ao latim carmen cantare, que encontrava em Horácio.

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3. Empregar-se, ainda nas Rimas, a expressão cantilenas cantar, que tendo uso exclusivo em Camões (se não erramos), corresponde a uma expressão, cantilenam cantare, que aparece em Terêncio, como assinalámos.

Esclareçamos o último argumento: Terêncio, ao fazer Dorião dizer a Fédria cantilenam eamdem canis (Formião, 494) emprega uma expressão proverbial, em que o substantivo nada sugere de musical. Já Camões, ao escrever As doces cantilenas que cantavam, dá tom lírico a cantilenas, não apenas pelo qualificativo doces, mas pela cena bucólica descrita. Mas a coincidência nos dois poetas da desusada união de verbo e substantivo torna admissível no português a influência latina: único no latim o terenciano cantilenam cantare e único no português o camoniano cantilenas cantar, seria difícil não ver reminiscência latina na repetição.

b) Imitação do genitivo objetivo

No latim (caso que tem perfeita correspondência no grego), um dos muitos empregos deste genitivo em ligação com formas substantivas é, tanto em prosa como em verso, aquele em que depende do substantivo dolor. Entre outros possíveis exemplos, recordemos dois versos de Ovídio, um dos poetas mais imitados por Camões, em que é referida a dor de Céfalo, ao recordar Prócris, sua mulher, que por inadvertência matara10: Silet, tactusque dolore/coniugis amissae lacrimis ita fatur obortis (Metamorfoses, VII, 688-689).

Nas Rimas há dois exemplos, que nos parecem incontestáveis, de imitação do genitivo objetivo dependente de

10 O mito de Céfalo e Prócris foi cantado por Camões em dois sonetos que figuram na edição das Rimas de 1616: “Por sua ninfa, Céfalo” e “Sentindo-se tomada”.

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dolor: a dolor corresponde dor e ao genitivo um complemento com de, além de que a segunda parte da construção camoniana tem estrutura análoga a coniugis amissae:

Mas a dor do desprezo recebido (canç. “Vinde cá”, 92);

Chora Vénus a dor do moço extinto (écl. “As doces cantilenas”, 400).

c) Imitação de implacabilis+dativo

Normalmente, o adjetivo implacável não se constrói com a preposição a: a construção normal é com para, podendo também usar-se com, contra e para com.

Em implacável construído com a não poderemos deixar de ver latinismo sintático, imitação de implacabilis+dativo (construção coexistente com in+acusativo). Em Camões também encontramos implacável+a : As três Fúrias escuras, / Implacáveis à gente (ode “Se de meu pensamento”, 43-44). Claro que uma construção do tipo implacável para alguém pode igualmente ter como paralela em latim uma construção com dativo (implacabilis alicui), mas o insólito do implacável a alguém, tanto em relação ao português de Quinhentos, como em relação ao português em geral, permite admitir uma imitação. Como modelos que acudiriam espontaneamente à memória do nosso Poeta, não faltavam a Camões exemplos, sobretudo um de Ovídio: effice, sit nobis non implacabilis ira (Pontica, III, 3, 63).

d) Imitação de canere+de+ablativo

Nunca foi habitual em português construir cantar, no sentido de “celebrar em verso ou em canto” com a preposição

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de. O regime do verbo é normalmente um objeto direto, continuando, portanto, a transitividade dos verbos latinos canere e cantare. Assim sendo, o encontrarmos, em empregos poéticos, o verbo cantar construído com de só pode dever-se a imitação da também possível construção de canere+de+ablativo. Os mais conhecidos empregos desta construção latina não se encontram na poesia11 (ao contrário do que se verifica na grega paralela, que logo encontramos em Homero, por exemplo na Odisseia, VIII, 266-267). É na prosa – e na prosa ciceroniana – que encontramos abonação para canere de e também para cantitare de: canere ... de ... uirtutibus (Tusculanas, I, 2, 3); esse cantitata ... de ... laudibus (Brutus, 19, 75), etc.

No tempo de Camões já em Sá de Miranda encontramos exemplo da construção cantar de alguém, de alguma coisa, em vez de cantar alguém, alguma coisa: E ainda cantam daquele tempo antigo, ou, na variante da edição de Rodrigues Lapa, Ainda nos cantam do bom tempo antigo (soneto “Inda que em vossa alteza”, 12).

N’Os Lusíadas, Camões dá-nos quatro exemplos da mesma construção: Trabalhando, cantando estão de amores (IX, 30, 5), Cantava dum que tem nos Malabares (X,11, 1), A ninfa ... / De Soares cantava (X, 50, 1-2) e ... que em todo o mundo de vós cante (X, 156, 6).

Não se estranhará, portanto, que nas Rimas se encontrem exemplos semelhantes:

Cantarás [corr. de cantares] desse caso desastrado (écl. “Que grande variedade”, 107);

Para só cantar de ti (red. “Sobre os rios que vão”, 255);

11 Só Virgílio nos dá uma construção equivalente: Haec super aruorum cultu

pecorumque canebam / et super arboribus (Geórgicas, IV, 559-560).

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Eu cantarei de amor tão docemente (son. “Eu cantarei de amor”, 1);

... pera cantar de vosso gesto (ibid., 12).

e) Imitação de verbo expositivo+de+ablativo

Numa poesia das Rimas, o verbo proferir tem construção invulgar com a preposição de:

Demócrito dos deuses proferia [corr. de preferia] / que eram só dous (oit. “Quem pôde ser no mundo”, 25-26).

Dos deuses proferia = proferia a respeito dos deuses é caso único no Poeta. Se o latim profero tivesse tido construção com a preposição de, teríamos nele o modelo direto. Mas profero não a tem, o que nos obriga a pensar em verbo análogo, refero, outro composto de fero, que se construía frequentemente com de, quer como sinônimo de profero, quer com o sentido jurídico de “fazer relato oficial” ou “submeter a uma deliberação”. Encontramos refero+de em muitos autores, nomeadamente em Ovídio: quid de tetrico referam domitore Chimaerae (Tristia, II, 397), deque meis illo referebat uersibus ore (ibid., IV, 31).

Será, pois, à sintaxe de refero+de que se prende a construção literária, excepcional, de proferir com a preposição de.

f) Imitação de remotus+ a(b)+ablativo

A construção camoniana do adjetivo remoto, no sentido de “afastado”, com a preposição de não é corrente. Encontramo-la em

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dois passos d’Os Lusíadas: Do Eoo Hemisperio está remota (VI, 38, 6) e Dos ódios concebidos não remoto (VIII, 47, 3).

Também nas Rimas há a mesma construção literária:

E posto que tão remota / Estejais de me escutar (red. “Querendo escrever um dia”, 36-37).

Porque não se conhecem outros exemplos de tal construção, remoto+de deve ser outro latinismo sintático, influenciado por remotus+a(b)+ablativo, que Camões facilmente teria encontrado em escritores que apreciava, como, por exemplo, Quid oportet / nos facere a uulgo longe longeque remotus? (Horácio, Sátiras, I, 6, 17-18); ... nobis habitabitur orbis / ultimus, a terra terra remota mea (Ovídio, Tristia, I, 1, 127-128).

Outras construções que podem ser latinismos sintáticos

a) Imitação do emprego adverbial de adjetivo

Nas Rimas e também n’Os Lusíadas, encontramos adjetivos empregados com o mesmo valor que no seu lugar teriam os advérbios correspondentes. Estão neste caso o adjetivo primeiro e vários outros, como triste, afábil, fero, cruel, ligeira, suave:

Mas a mor alegria / Que daqui levar posso, / Com a qual defender-me triste espero (canç. “Vão as serenas águas”, 40-42);

E se, agora que afábil me escutais (écl. “A rústica contenda”, 31);

Ali, fero e cruel, lhe destruiste / ... / Primeiro que o cuidado, a vida triste (écl. “Que grande variedade”, 226-228);

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Quando pelas montanhas / Mui remotas e estranhas, / Ligeira atravessavas (ode “Detém um pouco Musa”, 53-55);

Acude tu, suave, / Acude, poderosa e divina ave (ode “Fermosa fera humana”, 65-66).

Conhecidos como são idênticos empregos latinos, dos quais lembramos, entre tantos exemplos, o ovidiano “sine militis usu / mollia securae peragebant otia gentes” (Metamorfoses, I, 99-100), logo se levanta a hipótese de os empregos camonianos serem latinismos sintáticos.

Mais evidente nos parece a possibilidade de termos latinismo sintático no uso do adjetivo primeiro, cuja cor latina é muito evidente sempre que aparece com equivalência adverbial, como já reconheceu C. E. Corrêa da Silva (op. cit., p. 65) relativamente a Os Lusíadas, III, 97, 1-2: Fez primeiro em Coimbra exercitar-se / O valeroso ofício de Minerva.

Latinismo sintático será também este emprego das Rimas:

E o valor antigo que primeiro / Fez no mundo tão assinalados (écl. “Que grande variedade”, 59-60).

Resta dizer que o modelo latino da construção, estando fundamentalmente em primus, também está, por extensão, em princeps. Alguns exemplos:

Prima Ceres ferro mortalis uertere terram / instituit (Virgílio, Geórgicas, I, 147-14812); Prima Ceres ... / prima dedit fruges ... / prima dedit leges (Ovídio, Metamorfoses, V, 341-343); Quis fuit, horrendos primus qui protulit enses? (Tibulo, I, 10, 1); ... deus ille fuit ... / qui princeps uitae rationem inuenit (Lucrécio, V, 8-9) ; Quorum post abitum princeps e uertice Pelei / aduenit Chiron (Catulo, 64, 278-279); Dicar /…/ princeps

12 Dispensamo-nos de transcrever, por demasiado conhecido, o exemplo de primus no verso inicial da Eneida.

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Aeolium carmen ad Italos / deduxisse modos (Horácio, Odes, III, 30, 10, 13-14).

b) Imitação de preposição+adjetivo localizador+substantivo

Entre as construções sintáticas em que o português mais se diferenciou do latim, tomando caráter especificamente românico, figura aquela em que um substantivo (determinante) que exprime localização se combina com outro (determinado). Ao passo que no português se ligam dois substantivos mediante a preposição de (o meio da cidade, o alto do monte, o extremo da ilha), no latim liga-se um adjetivo a um substantivo, cabendo àquele a localização (media urbs, summus mons, extrema insula). Esta construção latina (paralela à que também encontramos no grego), como a portuguesa, tem grande exemplificação, e a variedade aumenta porque pode ser acompanhada de diversas preposições, indicativas de lugar onde, lugar por onde, etc.: Aquila in sublimi quercu13 nidum fecerat (Fedro, II, 4, 1); Caeruleo per summa leuis uolat aequora curru (Virgílio, Eneida, V, 819); ... e mediis rapit illa rogis (Lucano, VI, 534).

Tão característica como foi sempre esta construção, é, no português, a que lhe corresponde e dela diverge estruturalmente (desde longe presente nos mais variados textos e ainda patente na linguagem oral). Assim sendo, tem de ser entendida como latinismo qualquer construção em que, por exemplo, o tipo sintático o alto do monte esteja substituído, ao contrário do habitual, por o alto monte. Por muito inesperado que seja, ocorre

13 Recorde-se a vernaculidade da tradução de Epifânio Dias (Fedro, p. 46): “na

eminência de um carvalho”.

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um exemplo desta construção, acompanhada de preposição, numa écloga camoniana:

Mas pois, Belisa dura, / Que do mais alto céu a nós vieste (écl. “Cantando por um vale”, 176-177).

Não haverá dúvida de que do mais alto céu equivale neste passo a do mais alto (lugar) do céu, da maior altura do céu. Nunca poderia ser interpretado literalmente como equivalente a do céu mais alto, do mais alto de todos os céus. Se do mais alto céu, no sentido em que está, já é uma hipérbole poética exageradamente aplicada a Belisa, no sentido literal seria um absurdo, que a linguagem camoniana não admite.

A propósito do tipo o alto monte, recordemos que n’Os Lusíadas, há outro exemplo deste latinismo sintáctico, igualmente acompanhado de preposição: no profundo peito = no fundo do peito: Encobrem no profundo peito a dor (IV, 43, 5). Este latinismo, note-se ainda, contrasta com uma construção de molde bem português, quase no final do poema: No profundo das águas, soberana (X, 136,6).

c) Imitação do tipo de construção urbs capta

Como é bem sabido, esta construção de nome+particípio demonstra claramente o tão conhecido concretismo da língua latina e a sua inaptidão (que tanto a diferencia do grego) para aquilo que J. Marouzeau chamou “la conquête de l’ abstrait”. Tal não significa que o grego não possua construção deste tipo, mas eram mais usuais as construções de substantivo+genitivo de outro, as quais chegam até ao grego cristão.

No latim clássico, as construções do tipo urbs capta fixaram-se de tal modo que seria impossível encontrarmos qualquer coisa como urbis captio, tanto mais que captio

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adquiriu sentidos que preteriram o de tomada (“engano”, “argumento falacioso”). É, pois, constante, tanto em prosa como em verso, a construção de substantivo+particípio passivo, da qual ficaram muitos exemplos, desde o ab urbe condita liviano ao horaciano capta Troia (Arte Poética, 141).

Em perfeita simetria com o tipo urbs capta, encontramos n’ Os Lusíadas algumas combinações de substantivo e particípio passivo, já citadas por Corrêa da Silva (op. cit., p. 108-109), ainda que entre os seus “casos dubitativos”: Vingança de Trancoso destruída (III, 64, 2), O sentimento / Do morto conde (IV, 6, 5-6), A dor /... da fazenda despendida (IV, 43, 6).

Nas Rimas há exemplos congêneres:

Mas a dor do desprezo recebido (canç. “Vinde cá”, 72);

Chora Vénus a dor do moço extinto (écl. “As doces cantilenas”, 400).

O fato, já registado por Epifânio Dias, de existir a construção corrente de sol nado a sol posto = “do nascer ao pôr do sol”, não pode pôr em causa a latinidade de Trancoso destruída, morto conde ou fazenda despendida. São casos diferentes : nas construções camonianas há uma particularidade que não existe em sol nado e sol posto, pois dependem todas de um substantivo regente, dependência correspondente à do genitivo objetivo do latim.

Na verdade, vingança de Trancoso destruída, sentimento do morto conde, dor da fazenda despendida, dor do desprezo recebido, dor do moço extinto – a que corresponderiam em latim ultio Trancosi euersi14, luctus occisi comitis15, dolor opum

14 Fr. Francisco de Santo Agostinho Macedo traduz por poenas / Trancosi euersi. 15 Dolorem / Occisi comitis, também n’ A Lusíada de Macedo e Impatiens ... comitis

... perempti em Fr. André Baião (IV, v.29).

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consumptarum16, dolor contemptus accepti, dolor pueri exstincti – são combinações vocabulares que indiciam latinismo. Tal não aconteceria, evidentemente, se estivesse escrito vingança da destruição de Trancoso, sentimento da morte do conde, dor do dispêndio da fazenda, etc.

E também não devemos duvidar da latinidade de outras construções portuguesas paralelas. Já em João Roiz de Lucena encontramos despois de Tróia estruída (Cancioneiro Geral, IV, p.25), que poderíamos traduzir por post Troiam deletam, post Troiam euersam, etc., perfeitamente em paralelo com, por exemplo, post Hyadas ... remotas (Ovídio, Fastos, IV, 679), post ... tot amissos (Ovídio, Metamorfoses, XIII, 514), etc.

De igual modo, lembremos que não deve ser posto em dúvida o latinismo sintático de certos títulos antigos que nos lembram o De causis corruptae eloquentiae da perdida obra de Quintiliano: Lusitânia Transformada (Fernão Álvares do Oriente), Malaca Conquistada (Francisco de Sá de Meneses), Ulisseia ou Lisboa Edificada (Gabriel Pereira de Castro), História de Portugal Restaurado (D. Luís de Meneses), História de Santarém Edificada (Padre Inácio da Piedade e Vasconcelos). Sem a influência do latim, outros poderiam ter sido estes títulos: A Transformação da Lusitânia, A Conquista de Malaca, Ulisseia ou a Edificação de Lisboa, etc.

Como é que a ligação de substantivo+particípio passivo não haveria de reproduzir a sintaxe latina, se até encontramos a construção vernácula mais corrente noutros títulos antigos como o da famosa História dos Descobrimentos e Conquista da Índia pelos Portugueses (Fernão Lopes de Castanheda)?

16 Neste caso, tanto Fr. Francisco de Santo Agostinho Macedo como Fr. André Baião

e Fr. Tomé de Faria fizeram tradução livre.

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d) Imitação de nunc ... nunc

Em latim não é menor do que em grego a variedade de construções equivalentes à portuguesa ora ... ora. Entre todas, uma das mais usadas é nunc ... nunc. Comum à prosa e à poesia, encontram-se na Eneida de Virgílio muitos dos seus empregos, podendo nunc aparecer duplicado ou triplicado17: nunc ... / nunc (I, 220-221), nunc ... / nunc ... nunc (IV, 376-377), nunc ... nunc (V, 701), nunc ... nunc (VI, 315).

Serão os empregos camonianos de agora ... agora literalmente equivalentes a nunc ... nunc, imitações desta construção? Imitados ou não, temo-los n’ Os Lusíadas, inclusive com a triplicação e quadruplicação de agora: Em práticas o mouro diferentes / Se deleitava, perguntando agora / Pelas guerras famosas e excelentes / Co povo havidas que a Mafoma adora; / Agora lhe pergunta pelas gentes / De toda a Hispéria última, onde mora; / Agora pelos povos seus vezinhos, / Agora pelos húmidos caminhos (II, 108)18.

Nas Rimas há outros empregos de agora...agora, se bem que em menor número:

Agora estando queda, agora andando (son. “Quando o sol encoberto”, 8);

Agora espero, agora desconfio, / Agora desvario, agora acerto (son. “Tanto de meu estado”, 7-8).

À primeira vista, a hipótese de latinismo sintático pode parecer prejudicada por ser possível que a construção tenha vivido e viva ainda na linguagem popular, em expressões como

17 Os dicionários citam um caso em que nunc está empregado cinco vezes: Séneca,

Diálogos, V, 3, 6. 18 E também: Agora ... agora (V, 24, 3; VI, 76, 1-3; VII, 79, 6; IX, 95, 2-3), e agora ...

agora ... agora (VII, 80, 1-5).

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“agora sim, agora não”, “agora vá, agora não vá” (ant.). Considerando, porém, a familiaridade de Camões com a linguagem da Eneida, podemos admitir que o uso de agora ... agora traduz clara reminiscência de Virgílio: não se tratará, talvez, de imitação propositada, mas de reprodução espontânea da construção tantas vezes lida. Note-se ainda que agora ... agora, menos trivial que ora ... ora19, teria mais probabilidade de ocorrer a um poeta latinizante como paralelo sintático de nunc ... nunc20.

e) Imitação de qualis ... talis (ou de qualis ... substituto de talis)

A construção talis ... qualis é muito típica em latim na expressão de símiles, em particular quando os seus dois componentes, ambos ligados a um predicado, ocupam o lugar que podiam ter, respectivamente, uma conjunção comparativa e um advérbio ou locução adverbial de modo, como ut ... ita, uelut ... sic, uelut ... haud aliter, etc. No entanto, usada quer em poesia quer em prosa, qualis ... talis tem evidente preferência dos poetas, especialmente de Virgílio: Qualis / ... / talis (Eneida, XII, 331-337), Qualis / ... / talis ... talem (ibid., I, 498-503)21.

Virgílio também usa a substituição de qualis por locução conjuncional comparativa ou de talis por advérbio ou locução adverbial de modo: Non secus ac / ... / talis (ibid., XII, 856-860),

19 Também há n’ Os Lusíadas exemplos de ora ... ora (III, 47, 5; VI, 80, 3-4; X, 90, 3-

4). E nas Rimas encontramos ora / ora ... ora (écl. “A rústica contenda”, 76-78); ora ... ora (écl. “Passado já algum tempo”, 265) e ora ... ora (oit. “Quem pôde ser no mundo”, 198).

20 Sobre agora ... agora, cf. Joaquim Lourenço de Carvalho, O Virgilianismo d’ Os Lusíadas (Lisboa, Faculdade de Letras), cap. IV.

21 Um dos exemplos mais expressivos em toda a poesia latina e, como tal, já citado por Corrêa da Silva, op. cit., p. 86.

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Qualis / ... / sic ... sic (ibid., V, 213-218), qualis / ... / haud secus (ibid., XII, 4-9). Muito curioso também este exemplo de Propércio: Qualis / ... / qualis / ... / qualis / ... / qualis / ... / talis (I, 3, 1-7).

A imitação de qualis ... talis pelos nossos poetas quinhentistas não pode deixar de dever-se principalmente à influência de Virgílio. Os empregos de qual ... tal são tão semelhantes à construção latina que não podemos duvidar de que se trata de latinismos sintáticos, sobretudo porque é a poesia do Renascimento a primeira a dar exemplos da referida construção e de algumas naturais variantes: Qual na montanha a fugitiva cerva / Dos cruéis caçadores temerosa / A cada sombra, a cada vento treme, / Tal a pastora o mundo foge, e treme (António Ferreira, “História de Santa Comba dos Vales”, 77-80); Qual a fermosa Lua antr’as estrelas, / Que vai a escura noite lumiando, / Tal os fados te estão pronosticando, / Tal serás, tu mais clara luz antr’elas (Diogo Bernardes, O Lima, écl. VII, “Nise”, 92-9522).

N’ Os Lusíadas, Camões, não apenas usa qual ... tal, como até substitui tal por expressão adverbial equivalente: Qual contra a linda moça Policena, / ... / Co ferro o duro Pirro se aparelha / ... / Tais contra Inês os brutos matadores, / ... / Se encarniçavam, férvidos e irosos (III, 131, 1-4; 132, 1-7); Qual se ajuntava em Ródope o arvoredo, / Só por ouvir o amante da donzela / Eurídice, tocando a lira de ouro, / Tal a gente se ajunta a ouvir o Mouro (VII, 29, 5-8); Mas, qual no mês de Maio o bravo touro / ... / Salteia o descuidado caminhante, / Destarte Afonso, súbito mostrado, / Na gente dá, que passa bem segura (III, 66, 5-8; 67, 1-2).

22 Recordemos também o soneto “Qual ave, que do laço”, em que Frei Agostinho da

Cruz repete qual oito vezes.

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Nas Rimas encontramos vários outros exemplos, como:

Qual a tenra novilha, que corrido / Tem montanhas fragosas e espessuras / ... / Tal Agrário chegado enfim se via (écl. “A rústica contenda”, 79-80, 88);

Qual o bando das pombas, quando sente / A fermosa águia / ... / Dest’arte vão as Ninfas ... (écl. “As doces cantilenas”, 151-152, 157);

... qual a eclipsada clara estrela / Que entre as outras o céu primeiro habita / Tal coberta de negro vejo aquela ... (écl. “Que grande variedade”, 375-377).

Tendo em conta o uso virgiliano e o de outros poetas latinos, não será de estranhar que Camões e outros poetas quinhentistas tenham repetido a construção qualis ... talis. E não esqueçamos que, depois de Camões, a construção portuguesa qual ... tal reaparece frequentemente, inclusive, como seria de esperar, em muitas traduções poéticas de Virgílio, Horácio e Ovídio, desde João Franco Barreto a Castilho.

f) Imitação de qualis comparativo, mas não correlativo de talis

Outro emprego característico de qualis, apenas na linguagem poética, não está em correlação com talis. Ligado a um predicado, expresso ou subentendido, e sem perder a qualidade de adjetivo, tem função comparativa e equivale a uma conjunção como ut, uelut, qualiter. É, de novo, Virgílio quem lhe dá alguns dos mais conhecidos empregos, mas também aparece noutros poetas da época áurea e posteriores: quales cum uertice celso / aeriae quercus aut coniferae cyparissi / constiterunt... (Eneida, III, 679-481); qualis Berecyntia mater / inuehitur curru Phrygias turrita per urbes (ibid., VI, 784-785).

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Também neste caso nos parece que os nossos poetas do século XVI encontraram o modelo literário de uma construção paralela nos empregos virgilianos de qualis em função equivalente à conjuncional: escrevem qual onde poderiam escrever como, assim como ou outra qualquer locução conjuncional comparativa. É o que vemos, por exemplo, em António Ferreira e Diogo Bernardes: Quando ũa nova luz se pôs diante / Dos meus olhos, qual vem a menhã clara, / Rompendo as grossas nuvens de Levante (A. F., el. V, a Pêro de Andrade Caminha, 13-15); E aquela que do padre soberano / Da cabeça nasceu, e o nome deu / À pátria do valente herói tebano / Liberal vos será do fruito seu / Sempre, qual foi agora como soube / Do bom sobrinho vosso e senhor meu (D. B., O Lima, cta. XXVIII, ao Conde de Monsanto, 40-45).

Camões dá exemplos do processo n’Os Lusíadas (VII, 48, 2; IX, 53, 3; etc.) e nas Rimas:

No campo em vão te busco e busco o monte / Qual o ferido cervo busca a fonte (écl. “A quem darei queixumes”, 135-136);

Todas estas [corr. de astas] angélicas donzelas / Pelo viçoso monte alegres iam, / Quais no céu largo as nítidas estrelas (écl. “As doces cantilenas”, 109-111);

Quem não terá por santa e justa cura / Qual de vosso conceito se esperava, / A tão desenfreada infirmidade / Aplicar-lhe contrária qualidade (oit. “Como nos vossos ombros”, 77-80).

Corrêa da Silva (op. cit., p. 75 e 89-90), influenciado por um exemplo dado por Epifânio Dias (um texto de Mestre Giraldo, a que Epifânio atribui, embora com função comparativa, o valor de quanto), pôs em dúvida a natureza de latinismos sintáticos nos empregos de qual=como n’Os Lusíadas. Não vemos, contudo, razão para dúvidas quanto ao

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latinismo sintáctico no uso de qual, em Camões ou noutros poetas, nas construções que tenham qual em perfeita igualdade com uma conjunção ou locução conjuncional comparativa, à maneira de qualis com o valor de ut, uelut, qualiter em tantos versos latinos. Aliás, este latinismo sintático reaparece em posteriores traduções poéticas de Virgílio e Horácio: A quem Vénus, banhando de mimosa / Em lágrimas os olhos cristalinos / Qual fica por Abril a fresca rosa / Cos suaves orvalhos matutinos (João Franco Barreto, Eneida, I, 53, 1-4 = Virgílio, I, 227-229); [A lira] Nem palreira, nem grata, ora nas mesas / Dos ricos e nos templos festejada, / Entoa cantos, aos quais Lídia preste / Os ríspidos ouvidos / Qual de três anos égua em largos campos, / Pulando folga (Elpino Duriense, trad. de Horácio, Odes, III, 11, 5-10).

*

Como vimos, os latinismos sintáticos das Rimas, como os d’Os Lusíadas, quer imitem a sintaxe latina dos casos (acusativo cognato, genitivo objetivo, etc.), quer outras construções, dão ao vernáculo camoniano recursos de variedade frásica que muito o enriquecem. Algumas dessas construções podem não ter sobrevivido aos versos do Poeta ou de autores mais ou menos influenciados pela literatura latina. Seja como for, o certo é que permitiram variar a estrutura periódica que, sem elas, ficaria reduzida a um só tipo de construção, antiga e popular.

Acresce ainda que os latinismos sintáticos das Rimas, como os da epopeia nacional, ganharam, por vezes, tal carácter que, ainda que reapareçam noutros poetas, nos recordam sempre o verso camoniano. Melhor exemplo não haverá do que a construção tal ... qual dos símiles, que, mais que ninguém,

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Camões tornou clássica e, de tão expressiva, chega hoje a parecer atual.

ABSTRACT: By influence of Latin writers, whom Luís de Camões knew quite well, the syntax of his Rimas (as that of Os Lusíadas) shows a large number of Latinisms (cognate accusative, objective genitive, adjective used for adverb, and so on). Employing them, the Poet enriched and gave variety to our language, which would otherwise be confined to old and popular structures.

KEY WORDS: Camões; Rimas; lyric poetry; Latinisms; syntax.