LARA Eugenio - Os Sentidos Do Bom Senso

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Estudo sobre a importância do bom senso, em contraponto ao senso comum, como elemento constituidor do Espiritismo enquanto filosofia espiritualista, conforme a definição de Allan Kardec.

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  • OS SENTIDOS DO

    BOM SENSO

    NO ESPIRITISMO

    Eugenio Lara

    2015

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    OS SENTIDOS DO

    BOM SENSO

    NO ESPIRITISMO

    o bom senso, a razo que tudo faz:

    Virtude, gnio, esprito, talento e gosto.

    O que virtude? Razo posta em prtica;

    Talento? Razo produzida com brilho;

    Esprito? Razo que sutilmente se exprime.

    O gosto apenas bom senso delicado,

    E o gnio a razo sublime.

    Marie-Joseph Blaise de Chnier (1764-1811), poeta, dramaturgo e poltico francs.

    Eugenio Lara

    2015

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    1. PALAVRAS INICIAIS

    Allan Kardec era o que eu denominarei simplesmente o bom senso encarnado.

    Camille Flammarion (1842-1925), astrnomo e escritor.

    Quando Camille Flammarion declarou em seu discurso fnebre, no enterro do fun-

    dador do Espiritismo, Hippolyte Lon Denizard Rivail (Allan Kardec), que ele era o bom

    senso encarnado, enfatizou exemplarmente com esta clebre frase, relevante aspecto do

    pensamento do Mestre de Lyon. Longe de funcionar como muleta, vcio de linguagem ou

    mero jargo, a expresso Bom Senso (sens commun) usada por Rivail inmeras vezes,

    de modo preciso, ao longo de toda a Kardequiana.1

    Tanto que declarou certa vez que o Espiritismo apenas uma questo de Razo e

    Bom Senso, na produo do conhecimento esprita e na compreenso deste mesmo co-

    nhecimento.

    O Bom Senso no Espiritismo uma dessas questes primordiais para se entender o

    modo como Rivail construiu o pensamento esprita. O objetivo deste texto no entender

    esse mecanismo de construo de ideias, mas sim, compreender apenas o significado e a

    importncia do Bom Senso no contexto doutrinrio da filosofia kardecista.

    1 A fim de ressaltar visualmente a expresso Bom Senso, preferimos graf-la em caixa alta e baixa, como se diz na

    linguagem grfica, aparecendo em caixa baixa (minsculas), com destaque, somente quando h alguma citao ou

    transcrio de texto, conforme se encontra no original.

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    2. O SENSO COMUM E O BOM SENSO

    A cincia uma metamorfose do senso comum. Sem ele, ela no pode existir.

    Esta a razo por que no existe nela nada de misterioso ou extraordinrio.

    Rubem Alves (1933-2014), filsofo e escritor brasileiro.

    Em diversas oportunidades Allan Kardec declara que o Espiritismo uma questo

    de Bom Senso. Segundo ele, a, tambm, que reside a sua autoridade e robustez: sua

    fora est na sua filosofia, no apelo que dirige razo, ao bom senso. (O Livro dos Es-

    pritos, Concluso, item VI).

    O Bom Senso est sempre presente no pensamento de Allan Kardec. Isso pode ser

    detectado e observado na leitura de toda a Kardequiana. Mas, afinal, o que esse Bom

    Senso de que o fundador do Espiritismo e os espritos tanto falam?

    Em primeiro lugar, preciso considerar que o Bom Senso no contexto kardequiano

    no exclusivamente o senso comum, usado no cotidiano pelas pessoas, porque este

    no cientfico, no filosfico. emprico. O senso comum essencialmente cultural,

    baseado na tentativa e no erro, fruto de um conjunto de conhecimentos acumulados,

    construdos, plasmados ao longo da histria.

    O senso comum produz espontaneamente um critrio de verdade aceito por deter-

    minado grupo. Herana dos costumes, sem que haja a reflexo, apenas segue-se a tradi-

    o, variando de cultura para cultura porque possui enraizamento cultural, o que lhe con-

    fere um alto grau de conservadorismo no modo de pensar, nos hbitos e costumes.

    J o Bom Senso exige reflexo, racionalidade. No Espiritismo, o critrio de verdade

    obtido atravs do Bom Senso est associado reflexo filosfica, ao livre-pensar, ao uso

    da razo e da intuio, onde esta mesma intuio deve estar a servio da razo e no o

    inverso. por isso que o Espiritismo uma doutrina racional, onde o Bom Senso ocupa

    lugar de destaque.

    O Bom Senso de Rivail similar ao cartesiano. No Discurso do Mtodo, o grande fi-

    lsofo francs Ren Descartes inicia suas reflexes justamente sobre essa questo. Se-

    gundo ele, o Bom Senso a coisa mais bem distribuda do mundo porque igual em

    todos os homens. Descartes define o Bom Senso como o poder de bem julgar e de dis-

    tinguir o verdadeiro do falso. Bom Senso sinnimo de razo.

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    Conceito semelhante desenvolve Rivail em suas reflexes, onde o Bom Senso e

    razo so inseparveis. No existe razo sem Bom Senso e nem Bom Senso sem ra-

    zo. Razo, lgica e Bom Senso so um trinmio inseparvel no pensamento esprita,

    porque para Rivail o Espiritismo representa um pensamento peculiar, com identidade

    prpria, que satisfaz, ao mesmo tempo, razo, lgica, ao bom senso e ao conceito

    em que temos a grandeza, a bondade e a justia de Deus (...) pela f inabalvel que

    proporciona. (O Cu e o Inferno, cap. I, item 14).

    Segundo Rivail, para se avaliar o valor, a qualidade dos Espritos, no h outro cri-

    trio seno o bom senso. Absurda ser qualquer frmula que eles prprios deem para

    esse efeito e no poder provir de Espritos superiores, conclui. (O Livro dos Mdiuns,

    cap. XXIV, item 267).

    Como resolver questes contraditrias no campo teolgico? pergunta Rivail em

    Caracteres da Revelao Esprita. Ele mesmo responde: O futuro, a lgica e o bom sen-

    so. (A Gnese, cap. I).

    Na primorosa introduo de O Evangelho Segundo o Espiritismo, acerca da anlise

    de informaes e conceitos oriundos dos Espritos, Rivail bem taxativo: devem ser rejei-

    tados quando entrem em contradio com o bom senso, com uma lgica rigorosa e com

    os dados positivos j adquiridos, (...) por mais respeitvel que seja o nome que traga como

    assinatura. (FEB - grifo meu).

    No foi -toa que o grande astrnomo Camille Flammarion, em discurso fnebre pro-

    ferido no enterro do mestre lions, chamou Rivail de O Bom Senso Encarnado:

    Razo reta e judiciosa, aplicava sem cessar sua obra as indicaes ntimas do

    senso comum. No era essa uma qualidade somenos, na ordem de coisas com que nos

    ocupamos. Era, ao contrrio pode-se afirm-lo a primeira de todas e a mais preciosa,

    sem a qual a obra no teria podido tornar-se popular, nem lanar pelo mundo suas razes

    imensas. (Obras Pstumas).

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    2. GRAMSCI E O SENSO COMUM

    A filosofia a crtica e a superao da religio e do

    senso comum e, nesse sentido, coincide com o

    bom senso, que se contrape ao senso comum.

    Antonio Gramsci (1891-1927), filsofo poltico italiano.

    Quando se pensa em Bom Senso, o primeiro pensador que nos ocorre o filsofo

    francs Ren Descartes, principalmente pelo fato de abrir sua obra mais clebre, Discurso

    do Mtodo, com esse tema. Em toda a histria da filosofia, o conceito de Bom Senso, do

    reto pensar, da prudncia e equilbrio nas aes vem sendo abordado, desde os pr-

    socrticos filosofia contempornea.

    Trata-se de uma questo que, apesar de estar sob o domnio da tica, da axiologia,

    transcende os limites da academia, no se limitando a ela. Antonio Gramsci (1891-1937)

    foi um dos que se debruou sobre o tema.

    De origem italiana, Gramsci foi um filsofo marxista, militante comunista, poltico,

    inimigo declarado do fascismo de Mussolini. De origem humilde, autodidata, foi eleito de-

    putado pelo Partido Comunista Italiano (PCI), do qual foi um dos fundadores e secretrio-

    geral. Pagou preo alto por sua grande liderana intelectual e poltica. Teve seu mandato

    de deputado cassado, foi preso pela polcia de Mussolini e condenado a 20 anos de pri-

    so por um tribunal especial, fascista e fajuto. Corcunda, fisicamente frgil, com graves

    problemas respiratrios e a sade extremamente debilitada pelos anos que viveu no siste-

    ma carcerrio, Gramsci morreu precocemente aos 46 anos. Grande parte de sua magistral

    obra filosfico-poltica foi escrita na priso, registrada nos clebres Cadernos do Crcere.

    Apesar de no ter finalizado sua formao filosfica na universidade, Gramsci de-

    senvolveu interessantes reflexes que nos interessam sobremaneira, a fim de que suas

    ideias possam contribuir para entendermos com mais profundidade o que seja Bom Sen-

    so no contexto kardequiano.

    O Bom Senso, para Gramsci, representa o ncleo sadio do senso comum, uma es-

    pcie de tomada de conscincia, amparada pela razo, pelo senso crtico e a reflexo. O

    Bom Senso a bssola e o leme da direo consciente que merece ser desenvolvido e

    transformado em algo unitrio e coerente. 2

    2 Antonio Gramsci, Concepo Dialtica da Histria, p. 16.

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    A plena identificao entre senso comum e Bom Senso torna evidente, segundo

    Gramsci, a impossibilidade de se separar a filosofia cientfica da filosofia vulgar e popu-

    lar, que apenas um conjunto desagregado de ideias e de opinies. 3

    A tomada de conscincia rumo ao senso crtico sistematizado, enfim, ao Bom Senso, se

    d atravs da Educao, da prxis, da ao poltica. Em Gramsci, o Bom Senso possui uma

    dimenso sociolgica, componente fundamental no processo de transformao social.

    O hiato existente entre o senso comum e o Bom Senso dever ser preenchido atravs

    da Educao, da ao do intelectual orgnico, que no se limita a pensar a realidade indivi-

    dual e social fechado em seu gabinete, mas sim, na ao social, na interao e unidade

    entre teoria e prtica, enfim, na prxis. Porque, segundo Gramsci, o intelectual orgnico

    emerge das lutas sociais, valorizando o saber popular, compartilhando o conhecimento e se

    alinhando s lutas polticas dos oprimidos, no dizer do grande pedagogo Paulo Freire.

    Essa valorizao do saber popular se d em trs nveis, que caracterizariam o que

    Gramsci denominou de filosofia espontnea onde, sob tal denominao, todos os ho-

    mens so filsofos. Primeiramente na linguagem, no somente na gramtica, mas, so-

    bretudo, em seus significados e conceitos. Em seguida, o senso comum e o Bom Senso

    ocupariam um segundo nvel, completado pelo sistema de crenas de determinada soci-

    edade, pela religio popular. 4

    Todavia, o senso comum deve ser, segundo Gramsci, o ponto de partida, que es-

    pontaneamente a filosofia das multides, s quais trata-se de tornar ideologicamente ho-

    mogneas. 5

    Essa filosofia tosca, que Gramsci tambm denominou de filosofia do senso comum,

    a filosofia dos no-filsofos, a concepo do mundo absorvida acriticamente pelos

    vrios ambientes sociais eculturais nos quais se desenvolve a individualidade moral do

    homem mdio. O senso comum no uma concepo nica, idntica no tempo e no es-

    pao: o folclore da filosofia e, como folclore, apresenta-se em inumerveis formas; seu

    trao fundamental e mais caracterstico o de ser uma concepo (inclusive nos crebros

    individuais) desagregada, incoerente, inconsequente, adequada posio social e cultural

    das multides, das quais ele a filosofia. 6

    3 Idem.

    4 Ibidem, p. 11.

    5 Ibidem, p. 145.

    6 Ibidem, p. 143.

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    3. A DUPLA APLICAO

    "O bom senso esprita j demonstrou a muita gente a utilidade do estudo aprofundado e srio do Espiritismo."

    Herculano Pires (1914-1979), filsofo, poeta e escritor esprita brasileiro.

    Em grande parte das argumentaes nas polmicas que travou, Rivail quase sempre

    arrematava as concluses sob sua lgica implacvel, com o uso da expresso Bom Senso.

    No entanto, nem sempre Rivail aplica tal expresso em raciocnios mais complexos,

    que exigiriam um grau mais robusto de argumentao.

    Quando as crticas ao Espiritismo eram sem base, fundamentadas em preconceitos

    e argumentaes ridculas, Rivail simplesmente conclua sua rplica se utilizando da ex-

    presso simples bom senso. Ele a usa inmeras vezes, com adjetivos outros, mas se-

    melhantes: bom senso geral, vulgar bom senso etc.

    Em situaes outras, onde a temtica e a reflexo exigem uma abordagem mais sofis-

    ticada, Rivail se valia tambm do Bom Senso, tanto na linguagem como no pensamento:

    Mas, ser preciso a posse de um diploma oficial para se ter bom senso? Dar-se- que

    fora das ctedras acadmicas s se encontrem tolos e imbecis? Dignem-se de lanar os olhos

    para os adeptos da Doutrina Esprita e digam se s com ignorantes deparam e se a imensa le-

    gio de homens de mrito que a tm abraado autoriza seja ela atirada ao rol das crendices de

    simplrios. (O Livro dos Espritos, Introduo, item VII).

    Em suma, Rivail se utilizava tanto do sentido mais modesto de Bom Senso, o qual

    acrescentava adjetivos qualificando-o e nivelando-o ao senso comum, como o sentido

    filosfico, racional, mais sofisticado e concernente com a mentalidade francesa. Porque

    Bom Senso para um francs era algo bem diferente, por exemplo, para um cidado in-

    gls. E ainda hoje assim.

  • 9

    4. O DUPLO SIGNIFICADO

    Falsssima ideia formaria do Espiritismo quem julgasse

    que a sua fora lhe vem da prtica das manifestaes

    materiais e que, portanto, obstando-se a tais manifestaes,

    se lhe ter minado a base. Sua fora est na sua filosofia,

    no apelo que dirige razo, ao bom-senso.

    Allan Kardec (1804-1869), pedagogo francs e fundador do Espiritismo.

    Lembro-me como se fosse hoje de minha primeira aula de urbanismo na faculdade

    de arquitetura. Os professores arquitetos Paulo Srgio Souza e Silva e Clio Calestine

    propuseram um exerccio de organizao espacial a partir do uso que cada um, de modo

    privado, em casa, fazia do seu espao. Era apenas a simples ideia de se registrar grafi-

    camente, atravs do desenho arquitetnico, como cada um ocupava o espao privado de

    sua residncia, como o seu quarto, a sala, como organiza o quintal ou a rea de servio,

    se mora em sobrado, apartamento etc.

    Depois de interessantes e longos debates o professor Paulo Srgio proferiu a impla-

    cvel mxima, repetida por diversos professores de reas outras da arquitetura: Arquite-

    tura uma questo de bom senso.

    Logo pensei no Bom Senso de Allan Kardec e vi certa semelhana quando afirmara

    que o Espiritismo era uma questo de razo e Bom Senso. No entanto, temos de consi-

    derar o que significa esse Bom Senso, pois so conceitos similares s que em contextos

    diferentes.

    O significado de Bom Senso foi se alterando ao longo do tempo, podendo hoje ser

    visto e compreendido em duplo sentido, inclusive no contexto da filosofia. Ingleses e fran-

    ceses, por exemplo, adotam significados diferentes para esta expresso, o que demonstra

    a variao semntica em funo do contexto cultural.

    Para um britnico, como o grande escritor e espiritualista Arthur Conan Doyle, Bom

    Senso Common Sense, algo nobre, algo que se valoriza, uma coisa boa, elementar.

    No ingls, esse significado no est longe do que nas lnguas latinas denominamos de

    Bom Senso.

    Bom Senso indica equilbrio. Ele sinaliza que determinada sociedade pensa do

    mesmo modo havendo, portanto, a comunho no pensar e no agir, estabelecendo inclusi-

    ve regras a serem seguidas, segundo uma certa ordem social.

  • 10

    Ou seja, para um ingls, para as culturas de origem anglo-saxnica, como a norte-

    americana, por exemplo, Bom Senso tem sentido pragmtico, a prtica inteligente. H,

    inclusive, expresses tpicas no linguajar norte-americano, observveis nos filmes e enla-

    tados blockbusters que infestam nossa televiso aberta e a cabo: Faa a coisa certa (Do

    the right thing); Eu e voc sabemos que o certo (Both of us know whats right); Voc fez

    o que devia ser feito (You did what you should); H algo que eu tenho que fazer (Theres

    something I must do); Eu tenho uma guerra para vencer (Ive got a war to win); H o modo

    certo, o modo errado, e o modo do exrcito (Theres the right way, the wrong way, and the

    army way) etc.

    Por sua vez, no francs, Bom Senso tem sentido inverso, contrrio a esse pensa-

    mento pragmtico. O Bom Senso francs, o Sens Commun terico, racional, reflexivo,

    segundo a prpria tradio filosfica francesa, tendo Descartes como o grande influencia-

    dor dessa forma de pensar, bem como o fundador do Positivismo, Auguste Comte, para

    quem o Bom Senso est intimamente relacionado ao esprito filosfico:

    Importa muito perceber que, sob todos esses aspectos essenciais, o verdadeiro espri-

    to filosfico consiste sobretudo na extenso sistemtica do simples bom senso a todas

    as especulaes verdadeiramente acessveis. (Auguste Comte, Discurso Sobre o Esprito

    Positivo, item 8, pg. 62 - Grifo meu).

    Para o pedagogo tambm francs, Denizard Rivail, Bom Senso uma forma superior

    de apreenso e interveno na realidade, forma simples, mas no simplria de se filosofar.

    O uso do Bom Senso um ato reflexivo. Segundo Rivail, no dia-a-dia da prtica medinica

    ele imprescindvel:

    Se no quisermos ser vtimas de Espritos levianos preciso saber julg-los; para isso dis-

    pomos de um critrio infalvel: o bom senso e a razo. (Revista Esprita, fevereiro de 1859).

    O pensador Henri Bergson, tambm francs, entende que o esprito filosfico, em

    sua forma mais simples, a expresso de um articulado e dinmico Bom Senso Superi-

    or de que alguns homens e mulheres de ao possuem:

    H, no entanto, uma sade intelectual solidamente assente, excepcional, que se re-

    conhece sem dificuldade. Ela se manifesta pelo gosto da ao, a faculdade de adaptar-se e

    de se readaptar as circunstncias, a firmeza junto maleabilidade, o discernimento proft i-

    co do possvel e do impossvel, um esprito de simplicidade que triunfa sobre as complica-

    es, enfim, um bom senso superior. (Henri Bergson, As Duas Fontes da Moral e da Re-

    ligio, p. 188 - Grifo meu).

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    5. A FUNO EVOLUTIVA

    A faculdade de julgar um talento especial, que no pode

    de maneira nenhuma ser ensinado, apenas exercido.

    Eis porque ela o cunho especfico do chamado bom senso,

    cuja falta nenhuma escola pode suprir.

    Immanuel Kant (1724-1804), filsofo metafsico alemo.

    H outro aspecto que foge um pouco do mbito deste tema, mas que merece ser

    mencionado. Trata-se da essencial importncia do desenvolvimento do Bom Senso no

    processo evolutivo. No fosse o Bom Senso, provavelmente nossa civilizao teria su-

    cumbido e no conseguiria se adaptar s intensas mudanas do meio ambiente em

    que vive.

    Porque o Bom Senso conduz prudncia, quela desconfiana necessria a fim

    de se autopreservar, no pleno uso do instinto de conservao. O uso do Bom Senso

    mais um recurso imprescindvel que nos proporcionou, em seus primrdios, uma certa

    vantagem evolutiva nas relaes interpessoais, em intergrupos. Os mais adaptveis so-

    breviveram e garantiram seu legado, inclusive sua herana gentica, orientados pelo

    inato Bom Senso. 7

    Por conta deste e outros atributos, o Homo Sapiens se imps no cenrio evolutivo,

    concorrendo com outras espcies, deixando para trs aquelas que no conseguiam, co-

    mo ele, se adaptar.

    Esse outro fator que caracteriza o Bom Senso bem descrito pelo filsofo Henri

    Bergson:

    O bom senso consiste em saber lembrar-se, concordo, mas ainda e sobretudo em saber

    esquecer. O bom senso o esforo de um esprito que se ajusta e se reajusta sem cessar,

    mudando de ideia quando muda de objeto. uma mobilidade da inteligncia que se molda exa-

    tamente pela mobilidade das coisas. a continuidade mvel de nossa ateno vida. (Henri

    Bergson O Riso, cap. IV).

    7 Em um artigo-resposta indagao de um padre: Por quais milagres o senhor prova a verdade de seu ensino?,

    Denizard Rivail se vale, dentre outros argumentos, do que denominou de Bom Senso Inato: O nico e verdadeiro juzo

    o pblico, porque a no h interesse de camarilha, e porque nas massas h um bom senso inato, que se no

    equivoca. Diz a lgica sadia que a adoo de uma ideia ou um princpio pela opinio geral prova de que repousa

    sobre um fundo de verdade. (Revista Esprita, O Espiritismo provado por milagres? - fevereiro de 1862).

  • 12

    Portanto, no dizer de Bergson, o Bom Senso tambm resultado da mobilidade da in-

    teligncia, do dinamismo da razo, aplicvel fundamentalmente na formulao, na apreen-

    so de ideias e conceitos.

    O Bom Senso tambm evolui. Segundo Denizard Rivail, nele que temos o esteio, a

    referncia fundamental a nos oferecer a retaguarda intelecto-moral necessria ao debate

    das ideias, inclusive, das ideias espritas:

    Se as ideias espritas fossem falsas no criariam razes, pois toda ideia falsa s tem

    existncia passageira; mas, se so verdadeiras, prevalecero a despeito de tudo, pela convic-

    o; imp-las seria o pior meio de propag-las, porque toda ideia imposta suspeita e trai a

    sua fraqueza. As ideias verdadeiras devem ser aceitas pela razo e pelo bom senso; onde

    elas no germinam porque a estao ainda no propcia; preciso esperar e limitar-se a

    lanar a semente ao vento, pois, mais cedo ou mais tarde, algumas cairo em terreno menos

    rido. (Allan Kardec, Revista Esprita, junho de 1862).

    O Bom Senso Esprita o senso comum que virou senso crtico. No lugar da certeza

    tradicional, absoluta do senso comum, h a dvida permanente, sistematizada, que tende

    uma ruptura constante com a tradio, na medida em que os hbitos e costumes se re-

    formulem, se reciclem, seguindo a tendncia natural da evoluo social, da busca do

    bem-estar, do progresso, do equilbrio em todos os sentidos.

    Porque tem, tambm, uma vocao social, transformadora, por no se apoiar exclu-

    sivamente na tradio, mas, sobretudo, na razo crtica, na lgica, forjando uma forma

    peculiar de temperana nos hbitos e costumes, pelo fato de se configurar a partir de ca-

    tegorias espritas.

    Por um efeito da imaginao, se no lugar do senso comum houvesse o Bom Senso,

    num passe de mgica a estrutura social seria completamente outra, entraria em outro pa-

    tamar de desenvolvimento. O aprimoramento do senso crtico em contraposio ao senso

    comum, no individual e no coletivo, fator fundamental para a transformao social. Do

    senso comum das massas ao Bom Senso Coletivo, h uma distncia enorme a ser per-

    corrida porque a evoluo, segundo o Espiritismo, lenta e gradual.

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    6. BOM SENSO E INTELIGNCIA EMOCIONAL

    Senso comum, o estpido senso comum, prega usualmente

    que melhor um ovo hoje do que uma galinha amanh.

    E o senso comum um terrvel negreiro dos espritos.

    Antonio Gramsci (1891-1927), filsofo poltico italiano.

    No tempo de Denizard Rivail, Bom Senso era sinnimo de razo, do reto pensar,

    componente indispensvel em qualquer investigao filosfica, racional e cientfica. Des-

    de Descartes at o Positivismo, Bom Senso equivalente razo, lgica. Era assim

    que Kardec compreendia o Bom Senso.

    Hoje, Bom Senso no somente uma questo de QI (quociente de inteligncia), de

    uso exclusivo do pensamento racional. Bom Senso tambm significa prudncia, bom ju-

    zo, senso de orientao correto se oriente, rapaz, pela Constelao do Cruzeiro do

    Sul, diz a bela cano de Gilberto Gil uma questo de inteligncia emocional bem de-

    senvolvida, ideia esta que no existia no sculo 19.

    Inteligncia Emocional conceito recente no campo da Psicologia, aplicado a partir

    da dcada de 1990 para designar e classificar atividades no-cognitivas. O termo foi po-

    pularizado pelo psiclogo e jornalista norte-americano Daniel Goleman, da Universidade

    de Harvard, autor de livro homnimo.

    A capacidade e habilidade de se perceber no outro as emoes e em si mesmo, a

    fim de se lidar com os sentimentos alheios e os prprios sentimentos, caracteriza o que

    atualmente denominado de Inteligncia Emocional. J o nvel de Inteligncia Emocional

    quase impossvel de se medir, porque o QE (quociente emocional) extremamente sub-

    jetivo, possui mltiplas variveis comportamentais.

    Um sujeito extremamente inteligente, com QI acima da mdia, pode ser um desas-

    tre do ponto de vista emocional. Apesar de extremamente inteligente emocionalmente

    burro. No consegue lidar com seus prprios sentimentos, menos ainda com os senti-

    mentos alheios. O indivduo com essas caractersticas pode se tornar um flagelo social,

    um sociopata, sem nenhum tipo de empatia para com as emoes alheias. frio, calcu-

    lista, sem sentimento. capaz de demonstrar amor por um objeto pessoal, alguma ideo-

    logia ou animal de estimao, mas insensvel e incapaz de expressar suas emoes nas

    relaes interpessoais. A distncia entre o sociopata e o psicopata muito tnue.

  • 14

    Desde que surgiu, o conceito de Inteligncia Emocional vem sendo aplicado de di-

    versas formas, principalmente no campo da literatura de autoajuda. A enxurrada de l i-

    vros com essa temtica vem invadindo o mercado livreiro, com conceitos que podera-

    mos classificar de pseudocientficos, ainda que sejam explanados em nome da cincia e

    da razo.

    parte o uso comercial do conceito, ele vem sendo aplicado em diversas atividades

    humanas. No so poucas as empresas que se preocupam com o aspecto humano, com

    o equilbrio emocional de seus funcionrios. Em funo disso, o campo de atuao dos

    psiclogos se ampliou por conta da demanda em vrias reas. O ser humano no ape-

    nas uma pea no jogo das relaes de produo, ele no somente uma estatstica, mas

    um patrimnio intelecto-moral a ser preservado.

    Segundo o psiclogo Daniel Goleman:

    Homens com um alto grau de inteligncia emocional so socialmente equilibrados, comu-

    nicativos e animados, no inclinados a receios ou a ruminar preocupaes. Tm uma notvel ca-

    pacidade de engajamento com pessoas ou causas, de assumir responsabilidades e de ter uma

    viso tica; so solidrios e atenciosos em seus relacionamentos. Tm uma vida emocional rica,

    mas correta; sentem-se vontade consigo mesmos, com os outros e no universo social em que

    vivem. (Inteligncia Emocional - cap. 3).

    Descrio semelhante faz Allan Kardec acerca do homem de bem, sinnimo de ver-

    dadeiro esprita:

    Verdadeiramente, homem de bem o que pratica a lei de justia, amor e caridade, na sua

    maior pureza. Se interrogar a prpria conscincia sobre os atos que praticou, perguntar se no

    transgrediu essa lei, se no fez o mal, se fez todo bem que podia, se ningum tem motivos para de-

    le se queixar, enfim se fez aos outros o que desejara que lhe fizessem.

    Possudo do sentimento de caridade e de amor ao prximo, faz o bem pelo bem, sem contar

    com qualquer retribuio, e sacrifica seus interesses justia.

    bondoso, humanitrio e benevolente para com todos, porque v irmos em todos os ho-

    mens, sem distino de raas, nem de crenas.

    (...)

    Respeita, enfim, em seus semelhantes, todos os direitos que as leis da Natureza lhes con-

    cedem, como quer que os mesmos direitos lhe sejam respeitados. (Allan Kardec - O Livro dos

    Espritos - q. 918).

    Hoje, no se pode fazer uma anlise comportamental isenta sem considerar as

    emoes em jogo. Desde Freud que as emoes, as foras poderosas do inconsciente

  • 15

    muitas vezes so determinantes no mvel das aes humanas. De modo que a expres-

    so homo sapiens deixa de ser a definio correta e abrangente para definir o bitipo hu-

    mano. O ser humano no somente pensante, ele quase todo sensao, emoo. A

    razo limitada para se entender e definir o comportamento humano.

    Poderamos afirmar, parafraseando Rivail, que o Espiritismo uma questo de Ra-

    zo e Inteligncia Emocional. Ou seja, apesar de sua primazia, a Razo no suficiente

    para se entender e praticar o Espiritismo. necessrio tambm e, fundamentalmente, o

    equilbrio emocional, a justeza de carter, o autoconhecimento. Em suma, preciso ser

    Emocionalmente Inteligente para se compreender e praticar o Espiritismo em toda sua

    plenitude.

  • 16

    7. PALAVRAS FINAIS

    "O bom senso uma categoria lgica das mais importantes e atuantes no Espiritismo."

    Herculano Pires (1914-1979), filsofo, poeta e escritor esprita brasileiro.

    Este apenas um esboo, mero rascunho muito tnue diante da importncia e da

    complexidade do tema em pauta, cuja simplicidade aparente, como quase todas as

    ideias e categorias espritas. Quem est acostumado linguagem tcnica da academia,

    ao se deparar com o Espiritismo pensa que mais uma religio ou algum tipo de teologia,

    sem se dar conta da profundidade de suas ideias.

    Segundo o filsofo esprita Herculano Pires, Allan Kardec enfrentou a questo da

    validade da f, uma das grandes questes do sculo 19, munido de duas armas podero-

    sas: a pesquisa cientfica e o Bom Senso:

    O bom-senso lhe oferece o melhor da conquista kantiana: a liberdade de julgar, que

    prova a natureza transcendente do Homem. A pesquisa cientfica lhe assegura a prova

    positiva e at mesmo material dessa transcendncia. Fica, pois dispensado dos circunl-

    quios infindveis da argumentao filosfica. E com essas duas armas que ele responde

    ao desafio do sculo. E com elas realiza a crtica necessria, que completa a especulao

    kantiana, provando a validade universal da f. 8

    O Bom Senso um dos grandes temas e conceitos espritas, a ser entendido e

    aprimorado, ideia essencial para a compreenso da natureza do Espiritismo e do modo

    como ele se desenvolveu desde que surgiu.

    Os fundamentos da Filosofia Esprita, corrente de pensamento plenamente inserta no

    seio do espiritualismo, no so somente experimentais, empricos, revelatrios. O Bom

    Senso um de seus esteios, que ao lado da lgica e da razo, constituem um trinmio,

    sem o qual no se pode conceber ou mesmo desenvolver o que possamos entender por

    filosofia esprita porque, como afirmou seu prprio fundador acerca do Espiritismo: sua for-

    a est na sua filosofia, no apelo que dirige razo, ao Bom Senso.

    8 Herculano Pires, Introduo Filosofia Esprita, cap. IV.

  • 17

    OBRAS CONSULTADAS

    ALVES, Rubem

    Filosofia da cincia - Introduo ao jogo e suas regras, 1 ed. Brasiliense - So Paulo-SP [1981].

    BERGSON, Henri

    O riso, 2 ed. trad. Nathanael Caixeiro, Zahar - Rio de Janeiro-RJ [1983].

    As duas fontes da moral e da religio, 1 ed. trad. Nathanael Caixeiro, Zahar - Rio de Janeiro-RJ [1978].

    COMTE, Auguste

    Discurso sobre o esprito positivo in Col. Os Pensadores, 1 ed. trad. Jos Arthur Giannotti e Miguel

    Lemos, Ed. Abril - So Paulo-SP [1978].

    DEBRUN, Michel

    Gramsci: filosofia, poltica e bom senso, Unicamp (tese de livre docncia) - Campinas-SP [1982].

    Link disponvel em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?down=000047154

    ltimo acesso em 21 de setembro de 2015.

    DESCARTES, Ren

    Discurso do mtodo, trad. Maria Ermantina Galvo, 3 ed. Martins Fontes - So Paulo-SP [1996].

    GOLEMAN, Daniel

    Inteligncia emocional, 1 ed. trad. Marcos Santarrita, Ed. Objetiva - Rio de Janeiro-RJ [2011].

    GRAMSCI, Antonio

    Concepo dialtica da histria, 8 ed. trad. Carlos Nelson Coutinho, Civilizao Brasileira - Rio de

    Janeiro-RJ [1989].

    Escritos Polticos - vol. I, 1 ed. trad. Manuel Simes, Ed. Seara Nova - Lisboa, Portugal [1976].

    KANT, Immanuel

    Crtica da razo pura, 5 ed. trad. Manuela P. dos Santos e Alexandre F. Morujo, Fundao Calouste

    Gulbenkian - Lisboa, Portugal [2001].

    KARDEC, Allan

    O livro dos espritos, 41 ed. trad. Herculano Pires, LAKE - So Paulo-SP [1982].

    O livro dos mdiuns, 8 ed. trad. Herculano Pires, LAKE - So Paulo-SP [1978].

    O evangelho segundo o espiritismo, 16 ed. trad. Herculano Pires, LAKE - So Paulo-SP [1978].

    Obras pstumas, 2 ed. trad. Sylvia Mele Pereira da Silva, LAKE - So Paulo-SP [1979].

    A gnese, trad. Guillon Ribeiro, 20 ed. FEB - Rio de Janeiro-RJ [1978].

    Viagem esprita em 1862, 2 ed. trad. Wallace L. Rodrigues, Casa Editora O Clarim - Mato-SP [1981].

    Revista esprita, 2 ed. trad. Jlio Abreu Filho, Edicel - So Paulo-SP [1985].

    O cu e o inferno, 10 ed. trad. Herculano Pires, LAKE - So Paulo-SP [2002]

    PIRES, Herculano

    Pedagogia Esprita, 1 ed. Edicel - So Paulo-SP [1985].

    Introduo Filosofia Esprita, 1 ed. Paideia - So Paulo-SP [1983].

    Eugenio Lara, arquiteto e designer grfico, membro-fundador do Centro de Pesquisa e Documentao Esprita

    (CPDoc), editor-fundador do site PENSE - Pensamento Social Esprita e autor de Breve Ensaio Sobre o Humanismo

    Esprita. Publicou tambm em edio digital os seguintes livros: Racismo e Espiritismo, Milenarismo e Espiritismo,

    Amlie Boudet, uma Mulher de Verdade - Ensaio Biogrfico, Conceito Esprita de Evoluo, Os Quatro Espritos de

    Kardec e Os Celtas e o Espiritismo.

    E-mail: [email protected]