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1 Memória indígena e indigenista: refletindo sobre o processo de organização, salvaguarda e disponibilização do acervo do Cimi/Nordeste 1 Lara Erendira Almeida de Andrade (UFPB / Paraíba) Manuela Schillaci (UFPE / Pernambuco) RESUMO Este trabalho reflete sobre o conjunto de ações que estão sendo desenvolvidas para a organização, salvaguarda e disponibilização de um dos mais importantes acervos sobre a questão indígena no Nordeste brasileiro: o acervo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) / Nordeste. Este acervo contém material único que retrata os últimos 40 anos de memória dos povos indígenas, a história do movimento indígena e do indigenismo na região. Ele reflete a intensa atuação da instituição junto aos povos de Pernambuco, Alagoas, Sergipe, norte da Bahia e Paraíba. O material foi produzido principalmente pelos missionários do Cimi que, durante a atuação junto aos povos indígenas, registraram e documentaram momentos importantes do movimento indígena, como assembleias, encontros e mobilizações, a vida nas aldeais, festividades e rituais, depoimentos dos índios, lideranças e anciões; como também a história do indigenismo com registro de assembleias, missas e encontros de formação, dentre outros. Aqui atemos nossa atenção às primeiras atividades desenvolvidas: a digitalização dos materiais audiovisuais e sonoros, e o início da organização do acervo fotográfico. Este conjunto de ações tem a finalidade de organização e salvaguarda, mas também traz como preocupação central a socialização do material para os povos que ele retrata. Palavras-chave: acervo; memória; Cimi/NE. 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

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Memória indígena e indigenista: refletindo sobre o processo de organização,

salvaguarda e disponibilização do acervo do Cimi/Nordeste1

Lara Erendira Almeida de Andrade (UFPB / Paraíba)

Manuela Schillaci (UFPE / Pernambuco)

RESUMO

Este trabalho reflete sobre o conjunto de ações que estão sendo desenvolvidas para a

organização, salvaguarda e disponibilização de um dos mais importantes acervos sobre

a questão indígena no Nordeste brasileiro: o acervo do Conselho Indigenista

Missionário (Cimi) / Nordeste. Este acervo contém material único que retrata os últimos

40 anos de memória dos povos indígenas, a história do movimento indígena e do

indigenismo na região. Ele reflete a intensa atuação da instituição junto aos povos de

Pernambuco, Alagoas, Sergipe, norte da Bahia e Paraíba. O material foi produzido

principalmente pelos missionários do Cimi que, durante a atuação junto aos povos

indígenas, registraram e documentaram momentos importantes do movimento indígena,

como assembleias, encontros e mobilizações, a vida nas aldeais, festividades e rituais,

depoimentos dos índios, lideranças e anciões; como também a história do indigenismo

com registro de assembleias, missas e encontros de formação, dentre outros. Aqui

atemos nossa atenção às primeiras atividades desenvolvidas: a digitalização dos

materiais audiovisuais e sonoros, e o início da organização do acervo fotográfico. Este

conjunto de ações tem a finalidade de organização e salvaguarda, mas também traz

como preocupação central a socialização do material para os povos que ele retrata.

Palavras-chave: acervo; memória; Cimi/NE.

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN.

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INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta as reflexões iniciais sobre um conjunto de ações que estão

sendo desenvolvidas para a organização, salvaguarda e disponibilização do acervo do

Conselho Indigenista Missionário (Cimi), regional Nordeste. Nosso interesse em

sistematizar esta experiência é movido por considerarmos relevante refletir sobre esse

processo em curso, portanto neste artigo observamos à importância de travar um diálogo

no âmbito acadêmico acerca do caminho percorrido até então. Ao longo do texto

também buscamos refletir sobre o processo social de construção deste acervo, cruzando

o histórico da instituição com a produção destes materiais.

O acervo do regional Nordeste do Cimi evidencia a atuação desta instituição, nos

últimos quarenta anos, junto aos povos e organizações indígenas da região.

Principalmente junto aos povos de Pernambuco, Alagoas, Sergipe, norte da Bahia e

Paraíba. O material em sua grande maioria foi produzido pelos missionários do Cimi

que documentaram momentos importantes do movimento indígena, como assembleias,

encontros e mobilizações, a vida nas aldeais, festividades e rituais, registraram

depoimentos dos índios, lideranças e anciões; como também a história do indigenismo

com registro de assembleias, missas e encontros de formação, dentre outros.

Este conjunto de ações é apoiado pelo Cimi e está sendo desenvolvido por um

grupo de pesquisadores e indigenistas, formado por pessoas que foram das duas

principais instituições indigenistas em Pernambuco: o Centro de Cultura Luiz Freire

(CCLF) e o próprio Cimi2. As atividades estão sendo viabilizadas, principalmente, a

partir de projetos captados em editais do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura

(FUNCULTURA) da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco

(FUNDARPE).

O acervo do Cimi é constituído por vários tipos de materiais armazenados na

sede regional em Recife, entre os quais: audiovisual, sonoro, hemerográfico,

documental, fotográfico, de objetos, iconográfico e bibliográfico, conforme o

organograma a seguir:

2 Nós, autoras deste texto, compomos a referida equipe. Destacamos isso para situar os leitores que é a

partir deste local indigenistas/antropólogas/pesquisadoras que trazemos as reflexões deste trabalho.

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Neste texto iremos centrar nossa atenção nas primeiras ações que estão sendo

desenvolvidas: a digitalização do acervo audiovisual (iniciada em junho de 2013)3 e o

início da organização do acervo fotográfico (iniciada em janeiro de 2014). Estas

atividades se configuram como primeiras ações dentro de um plano maior que

chamamos de “política de gestão dos acervos documentais do Cimi/NE”. Quando

falamos de política de gestão de acervos documentais, nos referimos a definição de uma

política e de critérios para o armazenamento e descarte dos acervos documentais; esta

política visa à organização, salvaguarda e disponibilização tanto dos acervos existentes,

quanto do material que vai ser recolhido futuramente pela instituição. Logo, a definição

de política de gestão dos acervos, é uma definição de política de memória. Em relação

aos acervos existentes, o conjunto de ações realizadas e previstas são esforços para a

preservação e disponibilização de um acervo da memória dos povos indígena e do

3 A digitalização do acervo audiovisual foi uma ação desenvolvida em Pernambuco no contexto do

projeto financiado pelo Edital do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura), lançado pela

Fundação Património Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) no ano de 2012. Além da equipe

mencionada ao longo do texto, outras três pessoas participaram do processo como técnicos de catalogação e digitalização, citamos: Carmelo Fioraso, Larissa Serradela e Sérgio Romualdo dos Santos. Para a

realização desta, os membros da equipe do projeto passaram por um processo de formação específica nas

áreas de “Antropologia indígena no Nordeste” (formador: Prof. Estevão Palitot/UFPB), “Etnohistoria e

historia do indigenismo do Nordeste” (formadores: Prof. Edson Silva/UFPE e Saulo Feitosa/Cimi) e

“política de gestão de acervos documentais” (formador: Alexandre Gomes/PPGA UFPE); as diversas

fases do desenvolvimento do projeto foram acompanhadas e assessoradas pelos formadores da UFPE e

UFPB que proporcionaram um diálogo constante da nossa prática com a produção teórica da área e a

inserção deste processo de trabalho com o acervo do Cimi/NE no contexto mais amplo das discussões

sobre acervos, documentação indígena e memória.

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indigenismo no Nordeste.

Estas ações visam contribuir não apenas com a preservação mas também com a

disponibilização deste material, que é patrimônio dos povos indígenas de Pernambuco e

do Nordeste. Os acervos aqui trabalhados são particularmentes importantes uma vez que

contam com materiais imagéticos e sonoros de um período que conta com poucos

registros (nos referimos principalmente aos das décadas de 1970/80). Atualmente, o

material apresenta problemas de conservação e princípio de degradação, o que torna

urgente a necessidade de limpeza, digitalização, reorganização e catalogação desses

acervos.

Devido a atuação desta equipe na assessoria da Comissão de Professores/as

Indígenas em Pernambuco (COPIPE)4, temos como preocupação central a socialização

deste material nas áreas indígenas, de forma que ele possa ser utilizado como subsídio

de pesquisa para professores/as e estudantes indígenas, e para a construção de material

didático para as escolas indígenas dos povos.

A atuação indigenista no Nordeste: refletindo sobre o processo social de produção

do acervo

Para compreender a formação deste acervo e refletir sobre a história por ele

contada, é preciso indagar o processo social que proporcionou sua criação ao longo das

décadas de atuação do Cimi Nordeste. Deste modo, a tarefa de historiar o acervo é

considerada como um percurso de pesquisa apenas iniciado que, reconstruindo a história

do próprio acervo, traça a história da atuação indigenista no Nordeste e reflete aspectos

da história do movimento indígena na região. Assim, situar o Cimi Nordeste no

panorama da ação indigenista na região, bem como a caracterização desta ação e de seus

agentes é de suma importância para esta tarefa, esse percurso é narrado em documento

produzido pela instituição por ocasião dos seus vinte anos:

O CIMI iniciou suas ações no Nordeste em 1977 ainda como Regional

Leste/Nordeste através de Fábio Alves (Fabião), agente pastoral da Diocese de

4 A COPIPE, Comissão de Professores/as Indígenas em Pernambuco, é a organização política do

movimento de educação indígena em Pernambuco que existe desde 1999 e atua nos espaços de debate

sobre as políticas públicas de educação escolar indígena. Hoje, há mais de 1000 professores indígenas no

estado de Pernambuco e a coordenação da COPIPE é composta por dois professores e uma liderança de

cada povo indígena no estado.

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Propriá/SE, recebendo, nesse período importante apoio de José Brandão, bispo

da referida Diocese. Há que se destacar ainda, no processo de surgimento do

CIMI na região o importante apoio de Dom Tiago Postma, então bispo

diocesano de Garanhuns/PE, que acolhe as assembléias e encontros indígenas

(…). Há também o apoio de outras dioceses como a de João Pessoa/PB, na

pessoa de D. José Maria Pires. (…). A partir de 1983, com a chegada de novos

missionários, o CIMI inicia um processo de expansão e consolidação

institucional, criando condições para a admissão de novos quadros e ampliação

das áreas atendidas, estabelecendo equipes em Alagoas, Bahia e Pernambuco com apoios em Recife e Maceió. (…) Esta base de atuação do CIMI permanece

até hoje, ampliando-se com articulações e contatos com as pastorais

indigenistas da Paraíba e do Ceará, principalmente neste último, onde é grande

o número de povos indígenas (CIMI, 1997, p. 6).

É importante frisar que a atuação política da entidade, ligada a Teologia da

Libertação, se desenvolvia principalmente em áreas de conflitos fundiários, isso foi

motivo de perseguição por parte da elite econômica da região de forma que e a presença

de seus agentes nem sempre era bem vista pelo clero. Por tal razão, como mostra o

trecho acima citado, o Cimi veio construindo relações e alianças com os bispos e

representantes da igreja local que apoioavam a causa indígena e que permitiam a

atuação da entidade junto aos povos da abrângencia da Diocese.

Deste modo, no final da década de 1970, a atuação indigenista na região começa

de forma sistemática com o trabalho de Fabião, ainda como agente pastoral da diocese

de Propriá, no contexto da luta pela reconquista da Ilha de São Pedro do povo Xocó/SE,

fato amplamente documentado no registro fotográfico da entidade a partir de 1978. Em

entrevista que realizamos com ele em 2013, Fabião rememora esse contexto inicial da

atuação no Cimi:

Em [19]78 [o Cimi entrou em contato] para eu visitar os Kariri-Xokó [AL], que

embalados pelos Xokó da Ilha de São Pedro [SE] ocuparam umas fazendas da

Codevasf que estavam lá abandonadas, com uns galpões enormes. Em [19]79

eu fiz um curso de indigenista em Alcobaça [...] Em março de [19]79 eles

pediram para eu assumir a coordenação do Cimi Nordeste ai eu deixei de dar

aulas5 e fui trabalhar na coordenação do Cimi. [...] Aí depois chegaram umas

irmãs aqui de Minas [Gerais], uma Dorotéia e uma Leila que foram trabalhar

com os Fulni-ô [PE], aí elas foram morar em Águas Belas. Depois tinha um

grupo com um trabalho bom de luta pela terra e de apoio lá entre os Potiguara

[...] Então tinha os Xokó da Ilha de São Pedro com a diocese de Propriá, os Pankararu e os Truká [PE] com a irmã Alzira, os Fulni-ô, e o Angelino visitava

essas comunidades assim dando apoio [...] Em Pesqueira eu lembro que

apareceu alguém também, mas eu nunca consegui entrar nos Xukuru [PE]. Aí

veio os Kapinawá [PE], eu comecei a frequentar os Kapinawá também [...] Os

Truká eu me lembro quando eu cheguei. Era do zero, a chegada era do zero,

ninguém tinha referências de nada, nem eles tinham referência de mim, nem eu

deles. Era tudo tateando, conversava com um, dormia na casa de um, na casa

de outro. E alí, aí criando os laços né?! (Entrevista com Fabião, 31 de agosto de

5 Nessa época Fábio dava aula como professor da rede de ensino público em Propriá.

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2013, Belo Horizonte).

O missionário assume a coordenação do Cimi em 1979 e permanece até 1984/85,

deste período encontramos significativos registros fotográficos e sonoros coletados por

ele; além da atuação junto aos povos citados no trecho acima, na mesma entrevista ele

menciona o trabalho junto aos Kiriri/BA e Pankararé/BA, amplamente documentado no

acervo sonoro.

Nesse contexto a ação missionária priorizava a atuação de forma que os agentes

do Cimi moravam ou nas aldeias, ou nas cidades de suas respectivas Dioceses. Essa

concepção mudou ao final da década de 1980, quando começam a serem estruturadas

sedes centralizadas que levou a uma maior institucionalização entidade. Assim, nos

primeiros anos não havia uma sede do regional e das equipes organizada no formato de

“escritório”, mas existiam locais de apoio, uma base, no mesmo lugar de moradia dos

missionários, aonde provavelmente os acervos eram armazenados.

Neste percurso o regional Nordeste começou tendo como referencia Propriá/SE

e depois, ao longo da década de 1980 teve equipes com sede em Paulo Afonso/BA,

Garanhuns/PE e João Pessoa/PB. Nos anos de 1990 ainda havia equipes em Paulo

Afonso/BA, Garanhuns/PE, Bahia da Traição/PB e Pesqueria/PE, bem como uma sede

em Maceió/AL cuja equipe atuava também no estado de Sergipe e, mesma época em

que começou a atuação no Ceará junto com a pastoral indigenista.

Entre 1984 e 1985 é instituída uma representação do regional Nordeste no

Recife, no prédio da Conferencia Nacional dos Bispos Brasileiro (CNBB NE II) aonde

dividia a sala com a Pastoral Rural, que mais tarde se chamaria de Comissão Pastoral da

Terra. Esta escolha foi estratégica pela consideração que muitas instituições tinham sede

na capital, principalmente, a administração da Funai que abrangia vários estados do

Nordeste. A representação do Cimi/NE no Recife destinava-se a apoiar os povos

indígenas que vinham a capital para fazer denúncias e reivindicar seus direitos frente

aos órgãos (SILVA, no prelo). Neste período o Cimi se dedicou a um trabalho capilar,

dando visibilidade a causa indígena dentro da igreja, dos movimentos sociais, nas CEBs:

era de fundamental importância uma articulação dessas mobilizações com os

movimentos sociais, parlamentares, a sociedade civil, as pastorais, a imprensa

etc. E ainda, conquistar espaços para divulgar a chamada causa indígena junto

às universidades, escolas, igrejas, comunidades populares etc., com palestras, eventos por ocasião da Semana do Índio e iniciativas outras (SILVA, no prelo).

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Um exemplo disso é a criação do GRACI – Grupo Recifense de Apoio à Causa

Indígena, grupo de discussão e mobilização em apoio à causa indígena ativo de 1984 a

1986.

Esse resumido panorama da atuação do regional Nordeste do Cimi nos ajuda a

situar o conteúdo deste acervo e compreender o contexto de sua produção. Por se tratar

do acervo do regional, composto pelas várias equipes, os povos retratados no acervo são

os povos do Nordeste nos quais tiveram atuação indigenista desta instituição,

especificamente, os povos de Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e Paraíba. A

atuação prioritária da instituição sempre foi a de apoio à demarcação dos territórios

indígenas, configurada no contexto das lutas indígenas na região:

Final dos anos setenta. Os povos indígenas da região estão na luta pelo

reconhecimento étnico e buscam, através de ações junto ao Estado brasileiro, a

demarcação de seus territórios. Cansados de esperar pela resolução, resolvem

fazer retomadas em parcelas de suas terras tradicionais. Isso acontece com os

povos Xocó (Ilha de São Pedro-SE), Kariri-Xocó (Fazenda da Codevasf/Sementeira-AL) e Xukuru-Kariri (área do ritual na Mata da Cafurna-

AL) entre outros. Década de oitenta. Durante a nova República, essa forma de

luta tem continuidade, ampliando-se para outros povos da região, devido ao

processo de articulação feito através de visitas e assembléias indígenas, que são

espaços de troca de experiência e discussão dos problemas comuns. Nesse

período, destacam-se as retomadas feitas pelos povos do Norte da Bahia,

Kaimbé e Kiriri (Serra Boa Vista e Serra da Cafurna). (…). Com a nova

Constituição Federal, na década de noventa os povos indigenas do Nordeste

fazem novas ocupações, como forma de exigir do governo federal o

cumprimento dos dispositivos conquistados, especialmente a demarcação de

suas terras, através das “disposições transitórias”, que sugerem ações urgentes, em tempo definido. Nessa fase ocorrem retomadas realizadas pelos povos:

Xucuru de Ororubá (Pedra D'Agua e Caipe), Karapoto (Fazendas Coqueiro e

Taboado), Kariri-Xocó (Cercado Grande), Truká (Ilha da Assunção), Kiriri

(Mirandela) e Xukuru -Kariri (Fazenda Jiboia, Aparecida e Bubu). Além disso,

o povo Pankararu faz a autodemarcação de seu território (CIMI, 1997, p. 15-

16).

O Movimento Indígena brasileiro começa se organizar na década de 1970 e é

resultado de uma mobilização que envolveu os povos indígenas com apoio de ONGs, da

Igreja Católica, do Conselho Indigenista Missionário e de universidades (LACERDA,

2008). É a partir desse processo de organização que surgem as primeiras organizações

indígenas de abrângencia nacional e os processos de organização regional. No Nordeste

particularmente, é neste período que são construídas e tornadas públicas uma série de

reivindicações de povos indígenas que até então não eram reconhecidos nem pelo órgão

indigenista oficial, nem constavam nas literaturas etnológicas conhecidas (OLIVEIRA,

1999). Nesse contexto o Cimi tem papel central na denúncia das violências contra os

índios e no trabalho de base para o apoio à reivindicação da demarcação dos territórios.

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A instituição empenhou-se de forma significativa e continuada na formação política de

lideranças indígenas e na promoção das assembléias indígenas, momentos de encontro e

fortalecimento das relações interétnicas, de troca de experiência entre os demais povos,

de articulação e mobilização. Estes encontros estimulavam a discussão sobre os direitos

indígenas, a troca de informações entre os grupos e podem ser considerados uma das

bases de fundação do movimento indígena (LACERDA, 2008; K. OLIVEIRA, 2013).

Na definição de Kelly Oliveira a proposta do movimento indígena é,

uma proposta de mobilização voltada para a arena política. Uma proposta de

mobilização em que as distinções entre os diversos povos são abrandadas

frente a criação de uma identidade étnica particularizada, baseada no

reconhecimento de necessidades semelhantes entre os povos e de um posicionamento político que marque uma 'união' dos povos para o dialogo

frente à sociedade não indígena (K. OLIVEIRA, 2013, p. 78).

O acervo: contando historias de resistência indígena no Nordeste.

Como descrevemos na sessão anterior, o acervo indigenista é fruto do trabalho

do Cimi junto aos povos indígenas e se caracteriza por sua grande diversidade e pela

abrangência temporal de quase quatro décadas, retratando de forma bastante sistemática

a atuação da agência indigenista e do movimento indígena na região. Os registros são

geralmente realizados pelos missionários do Cimi que, durante sua atuação,

documentaram os fatos por meio de fotografias, registros sonoros e audiovisuais;

paralelamente a isso, na sede da instituição foi feito um trabalho sistemático de seleção

e organização de material sobre a temática indígena no acervo hemerográfico e

bibliográfico, bem como, foram coletados e organizados os documentos produzidos

pelos povos indígenas, pelos orgãos governamentais e instituições não governamentais,

entre outros.

Aqui enfocaremos os acervos que estão em fase de reorganização/salvaguarda:

fotográfico, audiovisual e sonoro (os últimos dois já em fase de digitalização). Estes

contam com três tipologias de registros, a partir de seus conteúdos: (1) registro da vida

quotidiana nas aldeias (imagens de lideranças tradicionais, festividades, rituais, dos

territórios e das atividades produtivas etc.); (2) registro das mobilizações e encontros do

movimento indígena (participação no processo da Constituinte, assembléias, encontros

estaduais, regionais e nacionais dos povos indígenas, manifestações etc.); (3) registro do

indigenismo no nordeste (encontros, missas, formações etc.).

O trabalho com o acervo fotográfico ainda está em fase inicial, até o momento

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foi feito um “diagnóstico panorâmico” do acervo que conta com uma listagem dos

álbuns, informação sobre os povos retratados e sua localização, data do registro e estado

de conservação em que se encontram as fotografias. Este acervo conta com cerca de

7.500 peças fotográficas, 380 slides e cerca de 25.000 negativos que contém

significativos registros no período de 1978 aos anos de 1990, referentes aos povos

indígenas de Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e Paraíba. As peças do acervo

fotográfico, por sua abrangência temporal de quase quatro décadas, retratam de forma

bastante completa a sistemática de atuação do Cimi e ilustram densamente essas três

tipologias de materiais apontadas no parágrafo anterior, a exemplo disso, as fotos

abaixo mostram a participação dos índios do Nordeste na Assembléia Constituinte de

1987/1988.

Figuras 1, 2 e 3: participação dos índios do Nordeste na Assembléia Constituinte de 1987/1988

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Outro exemplo são as fotografias que retratam a atuação do Cimi junto aos

Kapinawá no início dos anos de 19806 e contam com registros: do ritual; de uma missa

em defesa dos Kapinawá, que foi organizada pela instituição e aconteceu na sede do

município de Buíque em 1981; e uma fotografia que mostra o integrante do Cimi Fabião

com os Kapinawá. Esta imagem foi feita por uma equipe de filmagem alemã que esteve

na terra indígena em 1983 e produziu um vídeo sobre os conflitos fundiários entre

indígenas e fazendeiros que tentavam invadir a Mina Grande, uma das aldeias do

território Kapinawá.

Figura 4: Fábio Santos (Coordenador do Cimi/NE) e índios Kapinawá

Fonte: acervo do Cimi, fotografia tirada durante a gravação do filme KAPINAWÁ – wir dürfen wieder Indianer sein7 | Data: 08/10/1983

6 Parte das fotos foi digitalizada no ano de 2013 por Lara Erendira Andrade, autora deste artigo. São cerca

de 60 fotos que retratam os Kapinawá e foram digitalizadas com duas finalidades: para o uso na formação

com professores/as indígenas deste povo e para ilustrar a dissertação da pesquisadora que trata do povo

Kapinawá. 7KAPINAWÁ – wir dürfen wieder Indianer sein / Schroeter: Kapinawá – temos direito de ser indígenas

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Figura 5: Cruzeiro na Furna da Mina Grande

Fonte: Acervo do Cimi, terreiro da Furna da Mina Grande, 1983

Figuras 6 e 7: Missa em Frente a igreja de Buíque,

índios Kapinawá na praça à frente

Figura 8: Pajé Zé Índio

Fonte: acervo do Cimi, missa em defesa dos Kapinawá, Buíque/PE | Data:21/06/81

de novo.

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Em relação aos registros audiovisuais e sonoros, o processo de digitalização

destes está em fase de finalização. A diversidade de tipos de suporte destes registros,

demonstra o arco temporal documentado pelo material do acervo, conforme

demostramos no esquema a seguir:

O acervo sonoro conta com cerca de duzentas peças no formato de fita cassete e

minicassete, em sua grande maioria datadas entre a segunda metade dos anos de 1970 e

fins dos anos de 19908. Existem fitas com material editado, como gravações de

programas de rádio sobre a temática indígena e álbuns musicais. No entanto, a maior

parte do material é de áudios sem edição (material bruto), onde se encontram registros:

de missas em solidariedade, por exemplo, ao povo Xokó e Kapinawá (cf. fotos na

página anterior); registros das assembléias indígenas; gravação de cantos, rezas,

novenas e torés de diversos povos, entre os quais os Pankararé, Kariri-Xocó, Kiriri,

Kapinawá, Atikum, Potiguara e Truká; há ainda depoimentos de indígenas de grande

número de povos do Nordeste.

Muitas vezes os registros têm como objetivo documentar os conflitos, relatar

violações e situações de violência que afetam os povos indígenas, causadas pelos

conflitos fundiários no contexto da luta pela demarcação dos territórios tradicionais no

Nordeste. Um exemplo disso é a gravação da posse do cacique Lázaro nos Kiriri de

8 O material em formato de CD é quantitativamente menos relevante e trata-se de fontes secundárias, de

forma que não iremos ater-nos.

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Mirandela/BA e do processo de luta pela demarcação da Terra Indígena Kiriri. Sérgio

Romualdo dos Santos, técnico de digitalização e catalogação do projeto descreve o

conteúdo de um desses áudios:

A Fita k7 tombada como C293 foi gravada na aldeia Mirandela do povo

indígena Kiriri, Ribeira do Pombal/BA. Esta gravação contém o discurso de

posse do cacique Lázaro Kiriri, o qual também narra os problemas

enfrentados pelo povo para conseguir suas terras de volta, relata a lentidão da justiça e sua ida ao Rio de Janeiro para pedir a demarcação da Terra Indígena

Kiriri, e também a reprimenda que leva do Chefe do Posto indígena por ter

desobedecido-o e viajado sem autorização. O Cacique Lázaro responde às

varias perguntas do entrevistador e este faz a leitura da carta do Gabinete do

Ministério do Interior, Fundação Nacional do Indio, gabinete do presidente

em Brasília, datada 7 de novembro de 1978, em resposta à carta enviada pelo

cacique Lazaro pedindo a demarcação da terra. Conforme trecho da carta:

'Caro Lázaro recebi a sua carta pedindo a demarcação da Terra Indígena

Kiriri, mandei examinar a possibilidade de realizar o seu pedido. Infelizmente

a Funai recebe verbas somente do governo, e as mesmas são insuficiente para

atender a todas as necessidades, no corrente ano não temos dinheiro para realizar qualquer demarcação, a tua área só poderá ser demarcada em 1979

(…)'. Carta de Ismar de Araújo Oliveira, presidente da FUNAI. Após a leitura

da carta inicia o toré Kiriri (provavelmente trata-se de três gravações

realizadas em momentos diferentes).

Por fim, cabe destacar que o material audiovisual tem a mesma expressão do

fotográfico e sonoro, com a diferença que no acervo audiovisual se encontram com mais

frequência materiais usados pelas equipes no trabalho de formação com os povos

indígenas9. As gravações estão em suporte VHS, VHS-C, mini-DV, mini-DVD e DVDs,

entre outros.

As fitas em VHS contam com material com abrangência temporal que vai da

década de 80 ao início dos anos de 2000; as VHS-C contém imagens entre 2000 e 2008;

os DVDs são o material mais recente. Ao reorganizar o acervo, catalogamos as peças a

partir do conteúdo nas categorias de materiais editados e materiais brutos. As gravações

em mini-DV e mini-DVD, por exemplo, quantitativamente menos relevantes no acervo

audiovisual, são registros dos últimos seis anos e contam com imagens que tratam da

Transposição do Rio São Francisco e as grandes obras10

de forma geral, material usado

para a produção do filme “O Elefante Branco. Resistência Indígena a Transposição do

Rio São Francisco”11

.

9 O acervo sonoro contém uma quantidade bem menor de peças destinadas ao trabalho de formação, a

exceção das gravações de alguns programas de rádio. 10 Nos referimos aqui aos grandes empreendimentos desenvolvimentistas promovidos pelos governos e

em parte contemplados no PAC – Programa de Aceleração do Crescimento. 11 Trata-se de um documentário produzido pelo Cimi/NE e realizado em 2012 por Manuela Schillaci,

autora do artigo, Martina Feliciotti e Lorenzo Grimaldi. O documentário está disponível em:

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Entre os materiais editados do acervo audiovisual encontramos desde materiais

de formação, passando por vídeos que tratam de forma genérica a questão indígena no

país, até chegar a filmes e documentários sobre povos específicos do Brasil produzidos

por universidades, pelos indígenas e pelo próprio Cimi. O material bruto do acervo

audiovisual se assemelha, por conteúdo temático, aos conteúdos do acervo sonoro,

porém com um recorte temporal que alcança os dias de hoje. Trata-se de gravações de

assembleias interétnicas, audiências públicas, depoimentos de indígenas, mobilizações,

a exemplo da manifestação dos 500 anos em Porto Seguro e das imagens do

Acampamento Terra Livre (ATL).

Algumas considerações sobre o trabalho desenvolvido e os caminhos possíveis

A sitematização desta experiência, a partir do trato do acervo como fruto do

processo social que levou a sua produção, visa esboçar uma idéia do contexto social em

que o acervo indigenista foi produzido. Este contexto é o da atuação indigenista no

nordeste e do surgimento e afirmação do movimento indígena na região e sua atuação

até os dias atuais12

. O trabalho de reconstrução da “história potencial” contida no acervo

é compreendido como um processo de pesquisa mais amplo e profundo, apenas iniciado.

Como mencionado na introdução deste texto, este conjunto de ações tem a

finalidade de organização e salvaguarda, mas também traz como preocupação central a

disponibilização do material para os povos que ele retrata. A finalidade é que, na

medida em que o processo de salvaguarda e organização do material for finalizado,

consigamos avançar para o processo de socialização destes materiais, isso é

vislumbrado a partir do que consideramos a seguir.

O acervo do Cimi/NE é uma fonte importante de registro da história dos povos

indígenas, como mencionado. Ele tem uma relevância particular para (1) os estudantes e

professores indígenas, constituindo suporte para pesquisas e produção de material

didático a ser utilizado nas escolas indígenas13

, como publicações e produções

<https://vimeo.com/92090061>. 12A partir dos anos de 2000 a prática de registro audiovisual e fotográfico tem aumentado e se pluralizado,

é preciso destacar que esta tem sido realizada principalmente pelos próprios povos indígenas, a exemplo,

em muitos povos há grupos de jovens que trabalham com registro e edição audiovisual. Portanto, a prática

de documentar e registrar do Cimi NE não tem sido tão sistemática como nas décadas precedentes. 13Hoje Pernambuco conta com aproximadamente 1000 professores/as indígenas; 227 escolas indígenas de

Ensino Fundamental I, 08 escolas indígenas de Ensino Fundamental II e 03 escolas indígenas de Ensino

Médio (MEC 2005), com um total de cerca de 10.088 alunos (Seduc 2009).

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audiovisuais, cada vez mais utilizadas em sala de aula. Da mesma forma, o arquivo

poderá ser um recurso de pesquisa para os (2) 160 pesquisadores indígenas dos 12

povos de Pernambuco que frequentam a Licenciatura Intercultural do Centro

Acadêmico do Agreste da UFPE, em Caruaru, ingressos no ano de 2014. Este acervo já

foi recurso para a pesquisa da turma que se formou em 2013, em uma das atividades do

PET na qual alguns estudantes/professores de cada povo procuraram fotografias que

retratassem seus antepassados, tendo como finalidade a publicação da pesquisa dos

formandos indígenas.

A ideia é compartilhar este recurso também com (3) as iniciativas coletivas que

já existem nestes povos de organização da memória, catalogação de materiais e

produção de acervos, a exemplo dos diversos museus indígenas, casas de memória,

coleções ou ainda em pontos de cultura.

Também consideramos que a organização e digitalização deste acervo poderá

contribuir para pesquisas de acadêmicos e pesquisadores não-indígenas na área da

antropologia visual, etnologia indígena e história. E ainda com a implementação da Lei

11.645/2008, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história indígena na

educação básica, tornando o acervo uma importante fonte de documentação e produção

de materiais didáticos a serem utilizados nas escolas da rede pública do estado.

Por fim, queremos trazer como última reflexão a ideia de que o processo de

construção da memória sempre tem um sentido político. É fato que nos registros

coloniais e na historiografia oficial os povos indígenas foram representados a partir de

uma determinada visão, produzida pelo viés da subalternidade e da representação

preconceituosa e estereotipada. A salvaguarda e disponibilização deste acervo tem como

objetivo contribuir para pluralizar as visões sobre os povos indígenas, a partir de

registros feitos em outra perspectiva. É preciso partir para a análise sobre a função da

memória frente ao projeto político da invisibilização dos indígenas na região Nordeste.

Algumas questões elencadas por João Pacheco de Oliveira (2011) ajudam a refletir

sobre este processo:

1) Que processos de submissão foram concretamente usados contra os

indígenas e que graus de eficiência tiveram em torná-los dependentes

dos colonizadores e cada vez mais invisíveis no conjunto da

população? 2) Como se engendrou e se manteve a representação sobre

a inexistência e a invisibilidade dos indígenas no Nordeste? 3) Por

quais caminhos os indígenas saíram da condição de invisibilidade e de

caboclos e se transformaram em índios? (p.11)

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Partirmos daí para considerar que é preciso aprofundar a compreensão específica

da presença indígena para “estabelecer como funciona o regime da memória que associa

ações, narrativas e personagens, prescrevendo-lhes formas de construir significados”

(OLIVEIRA, 2011, p. 12) e destacar o papel da investigação de narrativas, imagens,

documentos histórico, objetos e tudo que é tido como memorável.

Acreditamos que a preservação desta memória e dos processos sociais que

levaram a formação deste acervo, tem um sentido político porque envolve o tema da

construção de sentido da História. A partir do trabalho em curso e da reflexão sobre o

papel da memória junto aos povos indígenas, pretende-se contar outra versão da

Historia do Brasil, a do nordeste indígena e sua resistência, principalmente quando

recontada pelos próprios sujeitos: os povos indígenas.

Referências Bibliográficas

CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. 20 anos de história junto aos povos

indígenas. Recife: CIMI/NE, 1997.

LACERDA, Rosane. Os Povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988. Brasília/DF:

Cimi, 2008.

OLIVEIRA, João Pacheco. (Org.). A presença indígena no Nordeste: processos de

territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro:

Contra Capa, 2011.

______________________. Uma etnologia dos "índios misturados"? Situação colonial,

territorialização e fluxos culturais. In__(org): A viagem da volta: etnicidade, política e

reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro, Contra Capa, 1999.

OLIVEIRA, Kelly de. Diga ao povo que avançe! Movimento Indigena no Nordeste.

Recife: Fundaj/Massangana, 2013.

SILVA, E. A importância do CIMI-NE no Recife: contribuindo para discussões. Recife:

no prelo, 2013.