LANE_O que é psicologia social.pdf
-
Upload
luciazaneti -
Category
Documents
-
view
15 -
download
6
Transcript of LANE_O que é psicologia social.pdf
-
,
UE EPSICOLOGIA SOCIAL
editora bra iliense
LucioSello
-
coleco primeiros39 passos
-
Silvia T. Maurer Lane
O QUE PSICOLOGIA SOCIAL
-
Copyright by Silvia T. Maurer Lane Nenhuma parte desta publicao pode ser gravada, armazenada em sistemas eletrnicos, fotocopiada,
reproduzida por meios mecnicos ou outros quaisquer sem autorizao prvia da editora.
Primeira edio, 1981 22a edio, 1994 7a
reimpresso, 2009
Foto de capa: Carlos Amaro Caricaturas: Emlio Damiani
Reviso: Jos E. Andrade Capa: 123 (antigo 27) Artistas Grficos
Dados Internacionais de catalogao na Publicao (CIP) (Cmara
Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Lane, Silvia T. Maurer O que psicologia social / Silvia T. Maurer Lane. So
Paulo : Brasiliense, 2006. (Coleo primeiros passos ;
39)
6a reimpr. da 22a. ed. de 1994.
ISBN 85-11-01039-4
1. Psicologia Social I. Ttulo. II. Srie
06-0127 CDD-302
ndices para catlogo sistemtico : 1. Psicologia Social 302
editora e livraria brasiliense Rua Mourato Coelho, 111 - Pinheiros
CEP 05417-010 - So Paulo - SP www.editorabrasiliense.com.br
-
NDICE
Capa - Contracapa
Introduo: Psicologia e Psicologia Social . . 7 Como nos tornamos sociais ................................ 12
Os outros ........................................................ 12 A identidade social ........................................ 16 Conscincia de si ........................................... 22
Como apreendemos o mundo que nos cerca . 25 A linguagem .................................................. 25
A histria via famlia e escola ............................ 38 A famlia ...................................................... 38 A escola ......................................................... 46
Trabalho e classe social ...................................... 55 O indivduo na comunidade ............................... 67 A Psicologia Social no Brasil ............................. 75 Indicaes para leitura ....................................... 85
-
INTRODUO: PSICOLOGIA E
PSICOLOGIA SOCIAL
Sem entrarmos na anlise das diferentes teorias
psicolgicas, podemos dizer que a Psicologia a
cincia que estuda o comportamento, principalmente,
do ser humano. As divergncias tericas se refletem no
que consideram "comportamento", porm para ns
bastaria dizer que toda e qualquer ao, seja a reflexa
(no limiar entre a psicologia e a fisiologia), sejam os
comportamentos considerados conscientes que
envolvem experincias, conhecimentos, pensamentos e
aes intencionais, e, num plano no observvel
diretamente, o inconsciente.
Assim parece bvio que a Psicologia Social deve
estudar o comportamento social, porm surge uma
questo polmica: quando o comportamento se torna
social? Ou ento, so possveis
-
comportamentos no sociais nos seres humanos?
Cada organismo humano tem suas caractersticas
peculiares; assim como no existem duas rvores
iguais, tambm no existem dois organismos iguais.
Mesmo que geneticamente sejam idnticos, no caso de
gmeos, as primeiras interaes dos organismos com o
ambiente j provocam diferenas entre eles, assim
como: mais ou menos luz, som, enfim, diferentes
estmulos que levam a diferentes reaes j propiciam
uma diferenciao nos dois organismos.
A Psicologia se preocupa fundamentalmente com os
comportamentos que individualizam o ser humano,
porm, ao mesmo tempo, procura leis gerais que, a
partir das caractersticas da espcie, dentro de
determinadas condies ambientais, prevem os
comportamentos decorrentes. Como exemplo, sabemos
que a aprendizagem conseqncia de reforos e/ou
punies, ou seja, sempre que um comportamento for
reforado (isto , tenha como conseqncia algo bom
para o indivduo), em situaes semelhantes provvel
que ele ocorra novamente. Dizemos ento que o
indivduo aprendeu o comportamento adequado para
aquela situao.
O enfoque da Psicologia Social estudar o
comportamento de indivduos no que ele influenciado
socialmente. E isto acontece desde o momento em que
nascemos, ou mesmo antes do nascimento, enquanto
condies histricas que
-
deram origem a uma famlia, a qual convive com certas
pessoas, que sobrevivem trabalhando em determinadas
atividades, as quais j influenciam na maneira de
encarar e cuidar da gravidez e no que significa ter um
filho.
Esta influncia histrica-social se faz sentir,
primordialmente, pela aquisio da linguagem. As
palavras, atravs dos significados atribudos por um
grupo social, por uma cultura, determinam uma viso
de mundo, um sistema de valores e, conseqentemente,
aes, sentimentos e emoes decorrentes.
As leis gerais da Psicologia dizem que se apreende
quando reforado, mas a histria do grupo ao qual o
indivduo pertence que dir o que reforador ou o que
punitivo. O doce ou o dinheiro, o sorriso ou a
expresso de desagrado podem ou no contribuir para
um processo de aprendizagem, dependendo do que eles
significam em uma dada sociedade. Assim tambm
aquilo que "deve ser apreendido" determinado
socialmente.
Da mesma forma, as emoes que so respostas do
organismo e, como tais, universais, se submetem s
influncias sociais ao se relacionarem com o que nos
alegra, nos entristece, nos amedronta. O se sentir alegre
com a vitria do time, triste com o filme ou com uma
msica, o ter medo do trovo ou do avio, so
exemplos que mostram o quanto nossas emoes
decorrem desta viso de mundo que adquirimos atravs
dos significados das
-
palavras.
Assim podemos perceber que muito difcil
encontrarmos comportamentos humanos que no
envolvam componentes sociais, e so, justamente, estes
aspectos que se tornaram o enfoque da Psicologia
Social. Em outras palavras, a Psicologia Social estuda a
relao essencial entre o indivduo e a sociedade, esta
entendida historicamente, desde como seus membros se
organizam para garantir sua sobrevivncia at seus
costumes, valores e instituies necessrios para a
continuidade da sociedade.
Porm a histria no esttica nem imutvel, ao
contrrio, ela est sempre acontecendo, cada poca
gerando o seu contrrio, levando a sociedade a
transformaes fundamentalmente qualitativas. E a
grande preocupao atual da Psicologia Social
conhecer como o homem se insere neste processo
histrico, no apenas em como ele determinado, mas
principalmente, como ele se torna agente da histria, ou
seja, como ele pode transformar a sociedade em que
vive.
o que procuraremos analisar nos prximos
captulos. Inicialmente, veremos como somos
determinados a agir de acordo com o que as pessoas
que nos cercam julgam adequado, e para tanto iremos
examinar dois aspectos intimamente relacionados: os
outros, ou seja, o grupo ou grupos a que pertencemos, e
como ns, nesta convivncia, vamos definindo a nossa
identidade social.
-
Num segundo momento, analisaremos como se
forma a nossa concepo de mundo e das coisas que
nos cercam, atravs da linguagem, e como ela
determina valores e explicaes, de modo a manter
constantes as formas de relaes entre os homens (a
ideologia e representaes sociais); veremos ainda a
relao entre falar e fazer, a mediao do pensamento e
o desenvolvimento da conscincia social.
Em terceiro lugar, uma anlise de instituies como
famlia, escola, levando reproduo das condies
sociais, e em que circunstncias elas podem propiciar o
desenvolvimento da conscincia social.
Uma nfase especial ser dada para o trabalho
humano, na sua relao com as classes sociais, e em
que condies ele pode gerar conscincia de classe,
fazendo dos indivduos agentes da histria de sua
sociedade; em seguida, veremos como a Psicologia
Comunitria prope uma ao educativa e
conscientizadora pelo desenvolvimento de relaes
comunitrias.
Por ltimo, veremos como a Psicologia Social tem se
desenvolvido como cincia, em outras partes do mundo
e, principalmente, no Brasil de hoje.
-
COMO NOS TORNAMOS SOCIAIS
Os outros
O ser humano ao nascer necessita de outras pessoas
para a sua sobrevivncia, no mnimo de mais uma
pessoa, o que j faz dele membro de um grupo (no
caso, de uma dade grupo de dois1). E toda a sua vida ser caracterizada por participaes em grupos,
necessrios para a sua sobrevivncia, alm de outros,
circunstanciais ou espordicos, como os de lazer ou
aqueles que se formam em funo de um objetivo
imediato.
(1) Existem relatos de crianas que foram criadas por animais, como
lobos, macacos, etc, adquirindo comportamentos da espcie que as
criou, necessrios para a sua sobrevivncia. Quando trazidas para o
convvio humano, as suas adaptaes, quando ocorreram, foram
extremamente difceis e sofridas.
-
Assim, desde o primeiro momento de vida, o
indivduo est inserido num contexto histrico, pois as
relaes entre o adulto e a criana recm-nascida
seguem um modelo ou padro que cada sociedade veio
desenvolvendo e que considera correta. So prticas
consideradas essenciais, e, portanto, valorizadas; se no
forem seguidas do direito aos "outros" de intervirem
direta ou indiretamente. E, quando se fala em "dar o
direito", significa que a sociedade tem normas e/ou leis
que institucionalizam aqueles comportamentos que
historicamente vm garantindo a manuteno desse
grupo social.
Em cada grupo social encontramos normas que
regem as relaes entre os indivduos, algumas so
mais sutis, ou restritas a certos grupos, como as
consideradas de "bom-tom", outras so rgidas,
consideradas imperdoveis se desobedecidas, at
aquelas que se cristalizam em leis e so passveis de
punio por autoridades institucionalizadas. Estas
normas so o que, basicamente, caracteriza os papis
sociais, e que determina as relaes sociais: os papis
de pai e de me se caracterizam por normas que dizem
como um homem e uma mulher se relacionam quando
eles tm um filho, e como ambos se relacionam com o
filho e este, no desempenho de seu papel, com os pais.
Do mesmo modo, o chefe de uma empresa s o ser,
em termos de papel, se houver chefiados que,
exercendo seus respectivos papis, atribuam
-
um sentido ao do chefe. Ou seja, um complementa
o outro: para agir como chefe tem que ter outros que
ajam como chefiados. Esta anlise poderia ser feita em
todas as relaes sociais existentes em qualquer
sociedade amigos, namorados, estranhos na rua, que interagem circunstancialmente, balconista e fregus em relao a todos existem expectativas de
comportamentos mais ou menos definidos e quanto
mais a relao social for fundamental para a
manuteno do grupo e da sociedade, mais precisas e
rgidas so as normas que a definem.
E a pergunta que sempre ocorre : e a
individualidade? Aquelas caractersticas peculiares de
cada indivduo? Afinal, se ns apenas desempenhamos
papis, e tudo que se faz tem sua determinao social,
onde ficam as caractersticas que individualizam cada
um de ns?
A resposta , mais ou menos, como aquela estria do
pai dizendo filha: "Voc pode se casar com quem
quiser, desde que seja com o Joo . . .". Em outras
palavras, podemos fazer todas as variaes que
quisermos, desde que as relaes sejam mantidas, isto
, aquelas caractersticas do papel que so essenciais
para que a sociedade se mantenha tal e qual.
Existem teorias que definem os papis sociais em
termos de graus mximos e mnimos, de variaes
possveis, e exemplificam com fatos como: a rainha
Elizabeth (Inglaterra), na abertura do
-
Parlamento, desempenha um papel totalmente definido;
qualquer ao ou no ao que saia fora do protocolo
gera confuso. Por outro lado, quando Z da Silva est
em um pas estranho, se aventurando por conta prpria
(sem ser um "turista" -o que j um papel), se
passando por um cidado comum, sem ter as
determinaes daquela sociedade e, sabendo que a
qualquer momento ele poder se explicar como sendo
estrangeiro, ele se d o direito de fazer como sente,
como gosta, "ele pode ser ele mesmo", ou seja, fazer
coisas que no faria se as pessoas o conhecessem, o
identificassem como filho de "fulano", casado com
"sicrana", que trabalha na firma X . . .
Agora podemos pensar em toda a variedade de
situaes que ns vivemos cotidianamente e
reconhecermos situaes em que somos mais
determinados e outras em que somos menos
determinados, ou seja, "livres".
Esta liberdade de manifestarmos a nossa
personalidade2 tambm tem a sua determinao
histrica: naquelas atividades sociais que no so
importantes para a manuteno da sociedade, ou, s
vezes, at o contrrio, a contraveno necessria para
reforar o considerado "correto", "normal" os grupos considerados "marginais" reafirmam
(2) Personalidade entendida como o conjunto de caractersticas
bio-fisio-scio-psicolgicas peculiares ao indivduo.
-
os srios e trabalhadores, desde que no ponham em
risco a ordem da sociedade; ento a ordem : faam
como quiserem, sabendo que o "querer" limitado;
porm, naquelas situaes, as quais podem abalar todo
o sistema de produo da sobrevivncia social, a
liberdade se restringe a um "estilo" (ser mais ou menos
sorridente, mais ou menos srio, mais expansivo ou
mais tmido, entre outros). Assim como a rainha
Elizabeth na abertura do Parlamento, o trabalhador se
relaciona com suas ferramentas e mquinas, com seus
chefes e mesmo com seus colegas de trabalho segundo
um protocolo muito bem definido, pois, afinal, se ele
no o fizer, o outro se sair melhor, ou ele perder o
emprego.
O viver em grupos permite o confronto entre as
pessoas e cada um vai construindo o seu "eu" neste
processo de interao, atravs de constataes de
diferenas e semelhanas entre ns e os outros. neste
processo que desenvolvemos a individualidade, a nossa
identidade social e a conscincia-de-si-mesmo.
A identidade social
o que nos caracteriza como pessoa, o que
respondemos quando algum nos pergunta "quem
voc?".
-
Procurem responder esta questo antes de continuar
a leitura, e verifiquem como se define a identidade
social de cada um na seqncia do texto.
Uma jovem adolescente respondeu:
"Quem sou eu
Bem, um pouco difcil dizer quem sou e como sou.
Mas posso tentar:
Fisicamente sou magra, estatura mdia, pele muito
clara, olhos esverdeados, cabelos castanhos e
compridos, rosto fino, nariz arrebitado, com cara de
moleca, mas corpo de mulher.
Psicologicamente sou tagarela, brincalhona,
expansiva, briguenta, triste, agressiva e estpida
(minha me que o diga).
Estou fazendo pela 4 vez o primeiro colegial, tenho
17 anos e completo 18, em outubro, dia 31, sou de
1963.
Meu signo Escorpio, geniozinho difcil. No sou
fantica por estudos, mas estou tentando.
Fao e adoro ballet assim como artes em geral, leio
bastante, vou ao cinema mas so poucos os filmes
intelectualmente bons, gosto muito de Wood Alen mas
ainda no vi seu ltimo filme Memrias. Em literatura,
gosto de romances antigos e de autores brasileiros
como Mario de Andrade, Ceclia Meirelles, Graciliano
Ramos e Fernando Pessoa entre outros.
Gosto de estar sempre a par de tudo, como artes,
poltica, atualidade, economia e tudo que
-
ocorre ao redor da gente.
Sou bem complicada, no?
Gosto tambm de msica popular e tenho afeio
especial por Chico Buarque, Milton Nascimento e Rita
Lee, gosto tambm de Mozart e Tchaikovsky (isto por
causa do ballet).
Tenho como dolo n 1 Mikhail Baryshnikov,
bailarino russo, atualmente residente nos EUA;
diretor do American Ballet Theatre de Nova Iorque,
mas tambm dana com o New York City Ballet; bem,
eu estou falando de mim e no do MISHA (seu
apelido), chega de ballet. O que mais posso dizer ...
Ah! No tenho namorado, nem sou apaixonada por
ningum, mas gosto de ter amigos e estar sempre
cercada de gente.
Bem, eu sou assim, uma pessoa que faz o que gosta e
luta pelo que quer, sonhadora, mas realista, acho que
sou algum indecifrvel, sou uma incgnita para mim
mesma".
O relato acima nos permite caracterizar, em primeiro
lugar: o sexo, a aparncia fsica e traos de
personalidade que demonstram como ela se relaciona
com os outros e d "dicas" sobre como deve ser o seu
grupo de amigos: se estes no forem descontrados,
dificilmente a aceitaro no grupo. A meno da idade e
do curso que faz a localizam numa faixa etria, com
determinado nvel educacional, que se complica com a
meno do signo e de "no ser fantica por estudo", ou
seja,
-
possivelmente seu grupo preferido de pares no est na
escola.
O fazer ballet e as coisas de que gosta dizem sobre
quais os grupos que so importantes para ela e, sem
dvida, indicam toda uma estimulao intelectual que,
no vindo da escola, deve estar presente no contexto
familiar, e no grupo de ballet. (Para constatar estas
inferncias precisaramos tambm da sua histria de
vida.)
interessante observar um certo tom de mistrio,
desde achar difcil dizer "quem " at se sentir
"indecifrvel, uma incgnita" uma forma de no se comprometer definitivamente com uma identidade ela nos d o seu potencial e guarda para si os aspectos
idealizados para o futuro. Este aspecto da representao
de si mesmo parece ser uma caracterstica de
adolescente do qual no exigida uma definio
precoce e cujo ambiente social deve enfatizar a
autodeterminao do jovem sem impor modelos "bons"
a serem seguidos.
Vejam este outro texto como ilustra bem esta
procura de preservao:
"Eu sou um cara simples
Eu sou feio
Eu sou simptico
Eu sou fcil de se encontrar
Eu sou difcil de se entender*
(*) Grifos nossos.
-
Eu sou meio cristo
Eu sou extrovertido (tmido em certas ocasies)
Eu sou implicante
Eu sou um cara que no sabe o que . . .*
Eu sou um cara que gosta de gostar
Eu sou um cara que detesta politicagem
Eu sou um cara que adora mexer com o
desconhecido
Eu sou um cara que odeia racismo
Eu sou um cara que no gosta de escrever o que *
Eu sou um cara que gosta de fazer xixi na rua"
E notem a ltima frase que parece dizer: "no me
amolem, afinal no gosto de escrever a meu respeito",
ou "me deixem ser criana".
Estes dois relatos enfatizam caractersticas
peculiares que dizem respeito maneira de cada um se
relacionar com os outros, sendo caractersticas que
foram sendo apreendidas nas relaes grupais; sejam
familiares e/ou de amigos, atravs do desempenho de
papis diversificados. E nessa diversidade que eles
vo se descobrindo um indivduo diferente, distinto dos
outros. Nossos amigos deixaram de ser um, entre
muitos da espcie humana e passaram a ser pessoas
com caractersticas prprias no confronto com outras
pessoas eles tm suas identidades sociais que os diferenciam
(*) Grifos nossos.
-
Eu no gosto de escrever o que sou e gosto de fazer xixi
na rua.
-
dos outros.
Conscincia de si
Para finalizar este captulo importante uma
reflexo sobre o que, de fato, representa a identidade
social, definida pelo conjunto de papis que
desempenhamos. Como vimos, estes papis atendem,
basicamente, manuteno das relaes sociais
representadas, no nvel psicolgico, pelas expectativas
e normas que os outros envolvidos esperam sejam
cumpridas ("sou expansiva, brincalhona" ou,
simplesmente, "simptico, extrovertido").
neste sentido que questionamos quanto a
"identidade social" e "papis" exercem uma mediao
ideolgica, ou seja, criam uma "iluso" de que os
papis so "naturais e necessrios", e que a identidade
conseqncia de "opes livres" que fazemos no nosso
conviver social, quando, de fato, so as condies
sociais decorrentes da produo da vida material que
determinam os papis e a nossa identidade social.
diante desta questo que julgamos necessrio
levantar o problema da conscincia em si.
Se assumirmos que somos essencialmente a nossa
identidade social, que ela conseqncia de opes que
fazemos devido a nossa constituio
-
biogentica, ou temperamento, ou mesmo atraes de
personalidade, como aspectos herdados geneticamente, sem
examinarmos as condies sociais que, atravs da nossa
histria pessoal, foram determinando a aquisio dessas
caractersticas que nos definem, s poderemos estar
reproduzindo o esperado pelos grupos que nos cercam e
julgados "bem ajustados".
Porm, se questionarmos o quanto a nossa histria de vida
determinada pelas condies histricas do nosso grupo
social, ou seja, como estes papis que aprendemos a
desempenhar foram sendo definidos pela nossa sociedade,
poderemos constatar que, em maior ou menor grau, eles
foram sendo engendrados para garantir a manuteno das
relaes sociais necessrias para que as relaes de produo
da vida se reproduzam sem grandes alteraes na sociedade
em que vivemos. Ou seja, constataremos que nossos papis e
a nossa identidade reproduzem, no nvel ideolgico (do que
"idealizado", valorizado) e no da ao, as relaes de
dominao, como maneiras "naturais e universais" de ser
social, relaes de dominao necessrias para a reproduo
das condies materiais de vida e a manuteno da
sociedade de classes onde uns poucos dominam e muitos so
dominados atravs da explorao da fora de trabalho.
Apenas quando formos capazes de, partindo de um
questionamento deste tipo, encontrar as razes histricas da
nossa sociedade e do nosso grupo
-
social que explicam por que agimos hoje da forma
como o fazemos que estaremos desenvolvendo a
conscincia de ns mesmos.
Deste modo entendemos que a conscincia de si
poder alterar a identidade social, na medida em que,
dentro dos grupos que nos definem, questionamos os
papis quanto sua determinao e funes histricas
e, na medida em que os membros do grupo se identifiquem entre si quanto a esta determinao e
constatem as relaes de dominao que reproduzem
uns sobre os outros, que o grupo poder se tornar
agente de mudanas sociais. "A conscincia individual
do homem s pode existir nas condies em que existe
a conscincia social" (A. Leontiev, O Desenvolvimento
do Psiquismo, p. 88).
Porm este processo no simples, pois os grupos e
os papis que os definem so cristalizados e mantidos
por instituies que, pelo seu prprio carter, esto bem
aparelhadas para anular ou amenizar os
questionamentos e aes de grupos, em nome da
"preservao social".
Mas antes de analisar como as instituies
determinam nossas aes sociais, preciso entender
ainda alguns aspectos bsicos do nosso comportamento
social: a linguagem, o pensamento, a representao que
fazemos do mundo e a prpria conscincia, como
processos psicolgicos fundamentais para a nossa
relao com os outros.
BaraoNotizPROVA NP1CAI PARA DISCUTIR!!!!!!!!!!
-
COMO APREENDEMOS
O MUNDO QUE NOS CERCA
A linguagem
"A linguagem aquilo atravs do que se generaliza a
experincia da prtica scio-histrica da humanidade"
(Leontiev, op. cit., p. 172).
Pelo que tudo indica, a linguagem se desenvolveu
historicamente quando os seres humanos tiveram que
cooperar para a sua sobrevivncia. Da mesma forma
como criaram instrumentos necessrios para uma
prtica de sobrevivncia, desenvolveram a linguagem
como forma de generalizar e transmitir esta prtica. O
trabalho cooperativo, planejado, que submete a
natureza ao homem, s foi possvel atravs do
desenvolvimento da linguagem pelos grupos sociais
humanos.
-
Nos tempos primitivos, quando os grupos sociais
trabalhavam para a sua sobrevivncia com divises
simples de trabalho, a relao palavra-objeto
determinava significados facilmente objetivados para
aquele "som" ou conjunto de fonemas. Na medida em
que as relaes entre os homens vo se tornando mais
complexas, em decorrncia de uma complexidade
maior na diviso de trabalho, onde o produto pode ser
acumulado (pois a sobrevivncia est garantida),
surgindo a propriedade privada, a linguagem tambm se
torna mais complexa; ela deixa de atuar apenas num
nvel prtico-sensorial para ir se tornando tambm
genrica, abstrata, atendendo s novas atividades
engendradas social e historicamente: artes, religio,
modas, tecnologias, educao, formas de lazer, etc, e
assim a linguagem, instrumento e produto social e
histrico, se articula com significados objetivos,
abstratos, metafricos, alm dos neologismos e grias
de cada poca.
At o momento nos referimos apenas linguagem,
ao de falar, porm no podemos esquecer que ela no
o nico cdigo de comunicao, a ponto de Skinner
definir o comportamento verbal como sendo "todo
aquele comportamento reforado atravs da mediao
de outras pessoas", e assim incluindo, alm do falar, o
escrever, os sinais, gestos, cdigo Morse, e at os
rituais. Esta definio muito importante para ressalvar
o carter instrumental da linguagem, que
-
se, de incio, tinha que ser objetiva (coisa =
significado), hoje adquiriu uma autonomia tal que
permitiu mais uma diviso de trabalho: a manual
versus a intelectual.
Vocs diro que tanto o trabalhador manual como o
intelectual usam palavras, gestos, ritos. E, mais, o
intelectual no quem. fala quem pensa ! Ento eu pergunto: vocs j tentaram pensar sem
palavras? No parece o dilema de "quem nasceu
primeiro: o ovo ou a galinha? ".
A origem social da linguagem nos d pistas para
uma resposta: a linguagem surge para transmitir ao
outro o resultado, os detalhes de uma atividade ou da
relao entre uma ao e uma conseqncia. Hoje, na
sociedade, as crianas nascem em grupos "falantes" e
que s as vo considerar "gentes" quando elas falarem.
Mas se vocs observarem nens, antes deles
aprenderem a falar (no apenas emitir sons ou
vocalizaes), podero constatar que eles relacionam
as coisas: eles pensam sobre as coisas que esto aqui e
agora. Experimentem esconder o chocalho debaixo do
lenol. Ele vai direto buscar o seu brinquedo debaixo
do lenol isto j pensar. Sabemos que a complexidade da nossa sociedade
histrica e que se iniciou com o homem transformando
a natureza e se transformando. De alguma maneira, o
nosso nen vai ter que percorrer a histria rapidamente.
Ele nasceu em uma
-
socidade que separa o fazer do falar, logo ele tem que
ser capaz de usar o seu pensar de modo a ser capaz de
fazer o que os adultos fazem, e, para tanto, ele tem que
falar.
Hoje, os estudos sobre o desenvolvimento intelectual
mostram como a aquisio da linguagem (ou
comportamento verbal, conforme definido acima)
condio essencial para o chamado desenvolvimento
intelectual, isto , ser capaz de generalizaes,
abstraes, figurao, em outras palavras, superar o
aqui e agora: planejando, prevendo, lembrando,
simbolizando, idealizando . . .
Mas acontece que ns no somos apenas
pensadores-falantes; somos, antes de mais nada,
fazedores de coisas, de instrumentos que produzem
fogo, comida, guerra, beleza e. . . a ns mesmos
-fazedores de coisas. Porm, o objeto pensado,
idealizado, ainda no existe, preciso que se
desenvolva uma srie de aes fsicas sobre as coisas
que nos cercam para concretizar o objeto pensado; a
sua existncia produto da nossa atividade e, ao
faz-lo, nossa atividade se objetiva no produto final,
enquanto ns nos transformamos neste processo de
fazer.
De fato, impossvel separarmos agir pensar falar, e sempre que isto feito, seja teoricamente, seja
em termos de valores, ocorre uma alienao da
realidade; agir sem pensar ser um autmato; falar
sem pensar ser como um papagaio; falar sem
agir"de boas intenes o
-
inferno est cheio".
Retomando, vimos como a linguagem produzida
socialmente, pela atribuio de significados s palavras.
Assim, o grosso dicionrio objetiva as palavras com as
suas significaes, porm elas nada mais tm a ver com
os objetos materiais a que se referem. Leontiev d um
exemplo perfeito: "O alimento , sem dvida, um
objeto material; no entanto, o significado da palavra
alimento no contm um grama de substncia
alimentcia". nesta distino entre palavra e objeto, a
que se refere, que podemos detectar como a linguagem
muitas vezes se torna uma arma de dominao.
A palavra se torna poderosa quando alguma
"autoridade" social impe um significado nico e
inquestionvel, que determina uma ao automtica.
Terwilliger analisa este aspecto da linguagem em
situaes como a hipnose, a lavagem cerebral, o
comando militar.
No primeiro caso, o hipnotizador tem que obter uma
passividade total do hipnotizado ("relaxe, voc vai
dormir"), ou seja, uma total submisso sua voz, s
suas palavras, para em seguida sugerir situaes e as
reaes e/ou aes conseqentes ("hoje est muito frio,
est at caindo neve e voc sem agasalho", e o
hipnotizado reage tremendo de frio, esfregando as
mos, se agasalhando com os braos . . .). Por outro
lado, se o hipnotizador falar sobre situaes totalmente
desconhecidas ao hipnotizado, seja atravs de
descries ou
-
experincias, provavelmente nada ocorrer, seria como
algum falando num idioma totalmente desconhecido;
mas a referncia a situaes conhecidas as torna reais
para o sujeito, mesmo que, para algum observando de
fora, elas se apresentem como imaginrias.
Quanto ao comando militar, podemos observar que
toda a disciplina e hierarquia militar se baseiam no
princpio de que qualquer ordem lei, e, se
desobedecida, acarreta necessariamente um dano fsico
desde a punio at a morte. A insubordinao negao da prpria instituio: portanto nenhuma
ordem pode ser questionada e, neste sentido, as
palavras tm s um significado possvel, para que a
ao ocorra automaticamente ao som do comando, isto
, o soldado no pode, nem deve pensar, pois seus
superiores pensam por ele. Todo o seu treinamento foi
feito visando assegurar a obedincia cega de todos para
que os objetivos finais propostos pela ordem inicial e,
gradualmente, operacionalizada pela hierarquia de
comando se concretizem pela ao conjunta do "corpo"
militar.
N caso da lavagem cerebral, o processo que ocorre
o de eliminar significados existentes, atribuindo-se s
palavras novos significados, o que conseguido,
impedindo que o prisioneiro se comunique com pessoas
que poderiam estar reforando ou mantendo os seus
significados originais. Ele s pode se relacionar com
pessoas que no admitam qualquer questionamento e
que s
-
A hipnose em idioma desconhecido: um fracasso.
-
emitam os novos significados, como sendo os nicos
possveis, mas preciso que estas pessoas sejam
significativas para o prisioneiro e, para tanto, criam-se
condies fsicas e psicolgicas de total abandono,
atravs de isolamento, cansao, fome, etc, para que
algum se torne necessrio e a lavagem cerebral seja
eficaz.
E ainda Terwilliger que, jocosamente, comenta que
as autoridades militares no sabem como treinar seus
soldados para que eles no se submetam to facilmente
a lavagens cerebrais, quando aprisionados. A soluo
no entanto, seria bem simples: s ensinar o soldado a
pensar, a questionar as ordens dadas. . . Mas tudo
indica que esta seria uma soluo jamais endossada
pelos comandantes militares.
Podemos, ento, concluir que a contra-arma do poder
da palavra se encontra na prpria natureza do
significado: ampli-lo, question-lo, pensar sobre
ele e no, simplesmente, agir em resposta a uma
palavra. Entre a palavra e a ao dever sempre existir
o pensamento para no sermos dominados por aqueles
que detm o poder da palavra.
Cabe ainda uma anlise de como a linguagem exerce
a mediao entre ns e o mundo, na medida em que ela
permite a elaborao de representaes sociais. Ou
seja, atravs delas que descrevemos, explicamos e
acreditamos na nossa realidade e o fazemos de acordo
com o nosso grupo social.
BaraoNotizCONTRAPOSICAO AO PODER pensar a palavra antes de agir
-
s ensinar o soldado a pensar, a questionar as ordens
dadas. .. Mas...
-
So representaes sociais afirmaes como: "a Terra
tem a forma de uma laranja", "o dia e a noite so
decorrentes do movimento de rotao da Terra", ou
ainda, "a nossa vida j vem escrita pelo destino", ou,
como dizia uma empregada domstica, "rico aquela
pessoa que soube poupar".
Vocs podem notar que as representaes podem
estar baseadas em fatos cientficos, no observveis
diretamente, como em crenas, em sugestes
publicitrias, todas dependentes dos grupos sociais com
os quais a pessoa convive.
Como j vimos, a linguagem existe como produto
social, e atravs das relaes com os outros que
elaboramos nossas representaes do que o mundo.
Quando uma criana, que est comeando a usar a
linguagem, brinca com uma bola, esta s se constituir
em uma representao quando outras pessoas se
referirem a ela como "bola", "bola voc joga, que
chuta, que quebra a janela, que rola, que pula". Notem
que a representao implica na ao, na experincia
com um objeto ou situao e nos significados
atribudos a ela pelas pessoas com que nos
relacionamos, ou seja, a representao o sentido
pessoal que atribumos aos significados elaborados
socialmente.
Mas nem todas as nossas representaes se formam
to simplesmente. Pensem, por exemplo, em termos
como Deus, eternidade, morte, infinito e mesmo
sociedade, histria, classe social, etc.
-
So representaes onde a experincia, a vivncia so
impossveis, ou so apenas fragmentos, fazendo com
que a mediao social de pessoas, consideradas
autoridades, desempenhem uma funo essencial na
formao da representao e aqui, como vimos em
relao aos significados da palavra, que surge o poder
impondo representaes consideradas necessrias para
a reproduo das relaes sociais. nesse momento
que se d a transmisso ou imposio da ideologia
dominante. Na anlise da linguagem, mencionamos o
fato observado na nossa sociedade, da distino entre
aquele que "fala" e aquele que "faz", entre o intelectual
e o braal. O primeiro, prximo da classe dominante, e
identificado com ela, quem se apresenta aos outros
como autoridade para explicar, justificar, como
"conhecedor do mundo", que se caracteriza,
basicamente, por falar bem, falar corretamente,
caracterstica esta que se generaliza, tornando
"autoridades respeitveis" aqueles que dominam a
linguagem bem articulada, correta, etc. So estas
pessoas, que na sua identificao com a classe
dominante elaboram explicaes sobre a realidade
social que sejam coerentes, consistentes entre si, e que
justificam a sociedade tal como ela ; e, na medida em
que estas explicaes encobrem as relaes de poder e
as contradies decorrentes, valorizando as relaes
existentes, elas exercem uma funo ideolgica
falseadora, elas idealizam uma realidade, diferente do
que ela realmente .
-
Obviamente esta produo da ideologia no se d
conscientemente, mas sim em decorrncia de uma viso
da sociedade da posio de quem a domina e que
precisa justificar e valorizar sua dominao.
Podemos compreender agora por que to difcil
chegarmos a ter conscincia de ns mesmos, como
vimos no captulo anterior, e, mais ainda, como difcil
chegarmos a ter uma conscincia de classe. Quando o
nosso pensamento no confronta as nossas aes e
experincias com o nosso falar, quando apenas
reproduzimos as representaes sociais que nos foram
transmitidas, e toda e qualquer inconsistncia ou
incoerncia atribuda a "excees", a "aspectos
circunstanciais", quando no a particularidades
individuais, estaremos apenas reproduzindo as relaes
sociais necessrias para a manuteno das relaes de
produo da vida material em nossa sociedade.
Porm, apenas quando confrontamos as nossas
representaes sociais com as nossas experincias e
aes, e com as de outros do nosso grupo social, que
seremos capazes de perceber o que ideolgico em
nossas representaes e aes conseqentes. Ou seja,
pensar a realidade e os significados atribudos a ela,
questionando-os de forma a desenvolver aes
diferenciadas, isto , novas formas de agir, que por sua
vez sero objeto de nosso pensar, que nos permitir
desenvolver a conscincia de ns mesmos, de nosso
grupo social
BaraoNotizPERCEPCAO DO IDEOLOGICO
-
e de nossa classe como produtos histricos de nossa
sociedade, e tambm cabendo a ns agentes de nossa histria pessoal e social decidir se mantemos ou transformamos a nossa sociedade.
Concluindo, importante ressaltar a diferena
fundamental que existe entre fazer e falar. S o
primeiro produz objetos e a nossa prpria vida; o falar
instrumento que pode no produzir nada, dando a
impresso de que algo est sendo produzido.
Tomemos, como exemplo, este livro que voc est
lendo; mesmo sendo um objeto, um produto, as
palavras aqui contidas s tero um significado social se
elas forem capazes de alterar comportamentos
cotidianos de algumas pessoas. Se, atravs da
compreenso de alguns processos, a qual s se dar se
vocs se voltarem para a sua prpria realidade e
confrontarem (pensarem) aquilo que est escrito com o
que vocs observam em volta; se, em conseqncia,
vocs passarem a agir, a se relacionar com os outros de
formas novas, diferentes, poderemos dizer que o falar
se tornou fazer.
-
A HISTRIA
VIA FAMLIA E ESCOLA
Agora estamos aptos para analisar a insero do
indivduo na sociedade, atravs da sua vinculao a
grupos institucionalizados e que determinam,
necessariamente, a vida social das pessoas em nossa
sociedade, caracterizando o conjunto de relaes
sociais que as definem. Inicialmente analisaremos a
famlia e em seguida a escola, ambas fundamentais no
processo de socializao e determinantes das
especificidades prprias das classes sociais, apesar
destas instituies proporem normas comuns para todos
os membros da sociedade.
A famlia
o grupo necessrio para garantir a
-
A famlia e o controle social.
-
sobrevivncia do indivduo e por isto mesmo tende a
ser vista como "natural" e "universal" na sua funo de
reproduo dos homens. Porm, a ela cabe tambm
tanto a reproduo da fora de trabalho como a
perpetuao da propriedade, tornando-a assim
fundamental para a sociedade e, conseqentemente,
objeto de um controle social bastante rigoroso por
aqueles que detm o poder.
A instituio familiar , em qualquer sociedade
moderna, regida por leis, normas e costumes que
definem direitos e deveres dos seus membros e,
portanto, os papis de marido e mulher, de pai, me e
filhos devero reproduzir as relaes de poder da
sociedade em que vivem.
Podemos observar na sociedade brasileira que, na
famlia nuclear, cabe ao marido e pai o mximo de
autoridade; nos casos em que ainda se mantm a
famlia extensa (onde h convivncia com tios, avs,
etc), em geral, o mximo de autoridade se concentra
nos avs. Da mulher sempre se espera submisso,
cabendo a ela apenas um poder relativo sobre os filhos
em suas relaes cotidianas, ficando a responsabilidade
das decises fundamentais sobre a vida dos filhos, em
geral, para p pai.
Tambm na relao entre os filhos podemos
observar toda uma hierarquia de poder: o mais velho
pode mais que o segundo; o filho homem, mais que a
filha mulher.
Esta estrutura familiar decorre da necessidade
histrica da preservao de propriedades e bens
BaraoNotizPAPEIS E RELACAO PODER NA FAMILIA
-
pela famlia extensa, levando instituio da
monogamia e valorizao da virgindade da mulher,
como condies essenciais para garantir a legitimidade
dos filhos, a ponto de, em algumas sociedades, ser
considerado herdeiro apenas o filho mais velho o nico que o marido pode ter certeza da sua paternidade,
pela constatao da virgindade da mulher.
Este aspecto foi to marcante no desenvolvimento do
capitalismo brasileiro que at hoje encontramos
algumas famlias tradicionais os chamados "quatrocentes" nas quais, durante vrias geraes, s eram admitidos casamentos entre membros da
prpria famlia (entre primos de vrios graus e mesmo
entre tios e sobrinhos), e assim garantiam a manuteno
e controle dos bens por um mesmo grupo familiar.
Com o fluxo imigratrio e o desenvolvimento
industrial, os donos de propriedades produtivas (dos
meios de produo), que eram essencialmente
agrcolas, se vem obrigados a acordos e concesses
diante do crescente capital industrial, a fim de manter a
sua hegemonia de poder, passando ento a consolidar
estes acordos atravs de casamentos fora do crculo
familiar. Porm, o poder ainda tem que ser mantido, e
atravs da estrutura familiar que ir inculcar na criana
a figura de "autoridade", de "chefe" no dizemos o "chefe da famlia"? como necessria para a manuteno e reproduo das relaes sociais.
-
dentro desta lgica que se atribuem tambm
caractersticas peculiares ao homem e mulher,
consideradas necessrias para a reproduo da famlia e
da sociedade. So atributos que vo desde os fsicos at
os de interesses, e que podemos constatar atravs de
expresses que freqentemente escutamos em volta de
ns, tais como:
"Menino no chora."
"Ela to sensvel."
"Homem tem que ser forte."
"Menino no brinca com boneca." Mas, para a
menina, se comenta: "Veja s, o instinto maternal . . ."
"Menino, v brincar l fora, o que voc est fazendo
aqui dentro?" Mas, "menina no brinca na rua".
"Menina, voc no tem parada, parece um moleque."
O rapaz sai e volta de madrugada: "Se divertiu, meu
filho?".
A mocinha sai e volta de madrugada: "O que os
vizinhos vo dizer de voc, voltando a esta hora?".
E, em relao autoridade:
"Respeite o seu pai, menino."
"No discuta com os mais velhos!"
"Quando voc crescer, voc vai entender. . ."
"Seus pais s querem o seu bem." (Em geral para
justificar uma ordem incompreensvel.)
Vocs j pensaram por que a Mnica (do Maurcio
de Souza) to engraada, enquanto a
-
Magali to "sem graa"? O cmico sempre o
inusitado, o inesperado, e, no caso, a Mnica sendo
dominadora, briguenta, est fora dos padres, "caso
nico". Ela um bom exemplo do "errado" que
enfatiza o "certo"; se no, experimentem chamar uma
garotinha de oito anos de idade de Mnica e vejam a
sua reao . . .
Voltando ao nosso indivduo, que afinal o enfoque
da psicologia social, vamos analisar como o grupo
familiar atua sobre ele durante o processo denominado,
geralmente, de socializao primria.
Uma criana recm-nascida depende, para a sua
sobrevivncia, de outras pessoas e atravs desta
relao que ela vai apreendendo o mundo que a cerca; a
relao de dependncia que existe entre ela e aqueles
que a cuidam faz com que estes sejam extremamente
importantes para a criana durante o seu processo de
desenvolvimento, pois, no momento em que consegue
se perceber distinta do seu meio e dos outros, estas
pessoas se tornam os "outros significativos", ou seja,
outros com os quais ela se identifica emocionalmente e
atravs dos quais vai criando uma representao do
mundo em que vive, e que para ela o mundo, sem
alternativas possveis. Pela identificao emocional
com os outros significativos, o mundo deles o da
criana, existindo, portanto, apenas um mundo
possvel.
O processo aqui semelhante ao da anlise que
fizemos da linguagem como arma de poder,
-
acrecentando-se, nesta situao, um forte componente emocional-afetivo, alm de um processo de generalizao
que ocorre em funo da coerncia existente entre as vises
de mundo e de valores das pessoas que constituem o grupo
familiar.
Vejamos um exemplo. Desde cedo a me ensina a criana
a no mexer nos enfeites da sala; o "no mexa a!" da me
repetido, em outras ocasies, pelo pai, pelas tias, pela av e,
assim, a criana vai generalizando que "todo mundo no a
deixa mexer naqueles objetos", que "criana no pode mexer
neles", at concluir que "no se deve mexer nos objetos que
enfeitam uma sala".
assim que se formam aqueles valores que sentimos to
arraigados em ns, que at parece termos nascido com eles.
Esta viso nica do mundo e de um sistema de valores s ir
ser confrontada no processo de socializao secundria, isto
, atravs da escolarizao e profissionalizao,
principalmente na adolescncia, poca em que o jovem
questiona os "outros significativos", no por ser uma fase
natural, como muitos pretendem, mas porque atravs de
outros laos afetivos e atravs do seu pensamento e
experincias sociais e/ou intelectuais o jovem se depara com
outras alternativas, com outras vises de mundo, que o
levam a questionar aquela que ele construiu como sendo a
nica possvel.
Retornando anlise que fizemos do processo grupai e
da conscincia de si, poderemos entender
BaraoHervorheben
-
por que a famlia tende a ser sempre to preservadora,
ou, melhor dizendo, to conservadora; pois as relaes
de poder que caracterizam os papis familiares so
sempre apresentadas como condies naturais e
necessrias para a sobrevivncia dos filhos, como
condies biolgicas, no se distinguindo o que
determinado histrica e socialmente do que
fisicamente necessrio para a preservao da espcie.
este aspecto que, via de regra, impede, nos momentos
crticos do grupo familiar, o tomar conscincia dos
papis e das relaes de poder historicamente
determinadas, pois estas so vistas como naturais, "o
poder um dever, uma questo de sobrevivncia".
Tanto assim que as "crises" de um casal so
justificadas por diferenas de temperamento e por
"incompatibilidade de gnios", quando no por
"crueldade mental" de um dos parceiros, sem se
questionar como eles vm desempenhando seus papis,
de como se d a relao de poder entre eles e o quanto
esto vivendo e reproduzindo, no mbito das relaes
afetivas, as determinaes institucionais.
A mesma anlise pode ser feita para as "crises" entre
pais e filhos: "a rebeldia do jovem e a quadratura dos
velhos", so expresses que retratam bem a existncia
de uma luta pelo poder, que, apesar das analogias feitas
com diferentes espcies de animais (ideologia da
sobrevivncia do melhor), mantm uma diferena
fundamental os animais
BaraoNotizEXEMPLOSDA NATURALIZACAO DA SOCIALIZACAO PRIMARIA E PROBLEMAS DISSO RESULTANTES
-
lutam instintivamente para garantir a sobrevivncia da
espcie, os homens, para a manuteno do poder de
alguns, na sociedade em que vivem, o que
interpretado por algumas teorias sociolgicas como
"preservao da sociedade"; eles assim agem no
instintivamente, mas inconscientemente3.
A escola
Da mesma forma que a famlia, a educao tambm
institucionalizada, ou seja, princpios, objetivos,
contedos, direitos e deveres so definidos pelo
governo a fim de garantir que, em todos os seus nveis,
ela reproduza conhecimentos e valores, necessrios
para a "transmisso harmoniosa da cultura, produzida
por geraes anteriores, para as novas, garantindo o
desenvolvimento de novos conhecimentos, necessrios
para o progresso do pas". Estamos reproduzindo
livremente textos oficiais que definem o nosso sistema
educacional, para entendermos como a escola,
diferentemente da famlia, atua no processo de
reproduo das relaes sociais; pois agora no tanto
a autoridade
(3) No sentido de no ocorrer o pensar confrontando o significado atribudo
socialmente, e a prpria realidade vivida, ou seja, o significado assumido e
reproduzido nas aes.
-
que tem de ser valorizada, pois esta j foi garantida
atravs da famlia, mas sim o individualismo e a
competio, mesmo quando se fala em educao
obrigatria para todos at a oitava srie.
Comeando pela estrutura de disciplinas
programadas para cada srie, notamos uma
fragmentao de conhecimentos que vai se tornando
crescente ao longo das sries. De incio existem
atividades que se intercalam, para, gradativamente,
assumirem a denominao de "matrias", at as
disciplinas dos cursos profissionalizantes e suas
respectivas especializaes. E tudo isto distribudo ao
longo dos anos escolares, sendo que no fim de cada
srie ocorre um veredicto: o aluno foi ou no aprovado.
Ainda dentro desta estrutura podemos observar que as
disciplinas mais abstratas, mais intelectualizantes, so
mais valorizadas e mais decisivas para a aprovao do
aluno, j se caracterizando uma oposio entre trabalho
intelectual e trabalho manual.
esta estrutura que ir determinar como se daro as
relaes sociais na escola, entre professores e alunos e
entre estes e seus colegas. O poder de aprovar ou
reprovar j coloca o professor numa posio de
dominao inquestionvel ele a autoridade absoluta, pelo menos na sala de aula e, investido deste
papel, ele extrapola a sua autoridade de "conhecedor do
assunto" para todo e qualquer aspecto que entre em
jogo na sua relao com os alunos, desde o que
explicitamente
-
ensinado at os insinuados valores estticos, morais,
religiosos, reproduzindo assim a ideologia dominante
como descrio "correta" do mundo.
Este padro dominante tem como conseqncia
direta o carter seletivo da escola, pois desde o uso da
linguagem at os exemplos do prprio cotidiano do
professor sero melhor apreendidos por aqueles alunos
que vivem em condies semelhantes, ou seja, tm uma
mesma concepo de mundo, isto sem considerar os
programas, propriamente ditos, que enfatizam padres
valorizados pela instituio educacional. desta forma
que aquelas crianas cujo ambiente familiar pouca
coisa tem em comum com aquele que trabalhado na
escola, se sentem estranhas e marginalizadas pois,
sempre que alguns forem capazes de atender s
expectativas do professor, isto o bastante para que se
estabelea um padro de "bom" e "mau" aluno, que vai
sendo reforado ao longo das sries e assim
selecionando, no os mais aptos, mas os que se
aproximam mais da viso de mundo inerente aos
padres dominantes.
Mas, vocs podero questionar como se explicam os
casos de filhos de lavadeiras, de pais analfabetos, que
conseguem "estudar e subir na vida", cursando at a
Universidade? Sem dvida as excees existem e at
so necessrias para se justificar a tese de que tudo
reside apenas no esforo individual, sem considerar as
caractersticas circunstanciais que tornaram essa
"exceo" to
BaraoNotizEXCECOES acabam por REFORCAR o padrao dominante
-
bem sucedida. E tambm esta tese do esforo
individual que estimula a competio: quem pode
mais, consegue o melhor.
Diante das excees realadas, nos esquecemos dos
inmeros e freqentes casos de crianas que
abandonam a escola e, simplesmente, so justificadas
pelos pais em termos de "ele no tem jeito para o
estudo", consagrando a separao ideolgica entre
trabalho manual e trabalho intelectual.
Se observarmos a relao que se estabelece entre
colegas, vamos notar que o mesmo ocorre entre eles.
H uma pesquisa realizada4 numa escola de 19 grau (5
a
srie), onde professores haviam institudo como tcnica
de ensino trabalhos em grupo para que "os mais fortes"
pudessem ajudar os "mais fracos" O que se observou
foi que os "mais fortes" reproduziam todos os valores e
comportamentos autoritrios do professor, a ponto de
afastarem "os mais fracos", atribuindo tarefas que no
pudessem comprometer a qualidade do trabalho do
grupo, como "passar a limpo" ou transcrever trechos de
livros caso tpico do "feitio virar contra o feiticeiro".
Tambm fora da situao de sala de aula, se observa
a tendncia dos "melhores" alunos irem se agrupando
de um lado e os "piores" de outro, consagrando assim
uma diferenciao tida como
(4) Por Lea C. Cruz, tese de Mestrado.
-
natural, quando, de fato, ela tem sua origem na prpria
organizao institucional da escola.
Tem-se, ento, a impresso de um "beco sem sada".
Se at o sistema educacional reproduz as relaes de
dominao social, parece ser impossvel qualquer
transformao da sociedade. Por outro lado, no
podemos nos esquecer que as relaes de dominao
implicam em contradies geradas pela contradio
fundamental do sistema capitalista (a luta de classes), e
portanto elas esto presentes tambm no processo
educacional e podem ser detectadas na medida em que
o ensino se d atravs de situaes em que os contedos
tericos impliquem numa prtica e numa reflexo sobre
ambos, ou seja, os significados e/ou representaes
(conceitos, teorias) so confrontados pela interao dos
sujeitos reais aprendizes com o mundo real que os cerca, permitindo assim a elaborao de novos
significados e novas prticas.
Em outras palavras, a escola crtica, a escola onde
nenhuma verdade seja absoluta, onde as relaes
sociais possam ser questionadas e reformuladas, o que
propiciar a formao de indivduos conscientes de
suas determinaes sociais e de sua insero histrica
na sociedade; conseqentemente, as suas prticas
sociais podero ser reformuladas.
Um bom exemplo desta escola foi parcialmente
vivido em 1968/9. Quando em vrios pases do mundo
o ensino universitrio era questionado, no
BaraoNotizEXEMPLO ESCOLA CRTICA
-
Brasil o governo preparava um anteprojeto de reforma
universitria, sem qualquer consulta s bases, o que
desencadeou uma srie de movimentos entre estudantes e
professores contra este anteprojeto. Em vrias universidades
foram criadas comisses paritrias para efetuarem uma
anlise crtica, no apenas do projeto mas das prprias
condies pedaggicas existentes: desde contedo, mtodos
de ensino, sistema de avaliao e aprovao, at as relaes
aluno-professor em sala de aula.
Deste questionamento surgiram vrias propostas, sendo
algumas realizadas, em carter experimental, procurando-se
transformar a situao de sala de aula numa nova relao
onde professor e aluno trabalhavam lado a lado, sem
imposies de poder, visando a criao de conhecimentos,
atravs de teoria e prtica intimamente ligadas (no havia
mais aulas expositivas); o sistema de avaliao proposto era
conjunto e contnuo, ou seja, a avaliao conjunta se referia
tanto ao aluno, ao professor, s atividades realizadas, como
ao prprio programa desenvolvido, enquanto que a avaliao
contnua se referia s tarefas, passos ou prticas
desenvolvidas, permitindo ao aluno enfrentar atividades
cada vez mais complexas, de tal forma que o prprio aluno
podia se auto-avaliar, tirando do professor o poder absoluto
da nota quem avaliava o aluno era o prprio produto realizado por ele.
-
Esta experincia durou um semestre. No ano
seguinte o poder institucional exigiu um retorno s
normas vigentes, sob pena do no reconhecimento de
diplomas e, portanto, o impedimento de um futuro
exerccio profissional foi o suficiente para que todos se submetessem a elas.
Porm, pudemos observar que aquelas pessoas
envolvidas no processo, as quais, efetivamente,
aceitaram o desafio e procuraram novas formas de
trabalho educacional, no regrediram jamais s formas
tradicionais. No que dependia do professor elemento constante sempre se procurou concretizar a nova relao aluno-professor, sem dominao, sem
imposio de conhecimentos, mas desenvolvendo
atividades conjuntas, avaliadas por todos, diante de um
produto decorrente destas atividades.
No tem sido um processo linear, mas sim um
processo de acertos, erros, reavaliaes, e, apesar das
determinaes institucionais, cujo peso sentido
cotidianamente, para estas pessoas a mudana foi
radical.
Tambm foi interessante observar que, durante o
movimento, aqueles professores e alunos que
permaneceram apenas reivindicando "novas condies
de ensino", sem desenvolverem uma prtica
conseqente, voltaram, simplesmente, no ano seguinte,
para as formas tradicionais de trabalho em sala de
aula O que demonstra que "falar no fazer", e
-
que as transformaes sociais s ocorrem
historicamente: 1968 foi um momento em que
emergiram contradies, mas no a fundamental,
decorrente das relaes de produo; porm, a
conscientizao de alguns permitiu tocar a histria para
frente, procura de novas prticas conscientizadoras de
muitos funo possvel de ser exercida pela escola. de Leontiev a afirmao de que a "relao entre o
progresso histrico e o progresso da educao to
estreita que se pode, sem risco de erro, julgar o nvel
geral do desenvolvimento histrico de uma sociedade
pelo nvel de desenvolvimento do seu sistema
educativo e vice-versa".
Caberia ainda uma anlise de outros grupos de
convivncia que so menos institucionalizados, como
os de lazer, mas que tambm reproduzem as relaes
sociais na atribuio e cristalizao de papis. Basta um
exame de quanto qualquer grupo julga ser essencial a
existncia de algum que lidere os companheiros e o
quanto "ter caractersticas de liderana" valorizado
por todos, e, se aprofundarmos a questo, veremos que
o que est em jogo a emergncia de uma autoridade
que mantenha os vnculos de dominao, mesmo em
grupos onde, aparentemente, todos se propem como
iguais; porm, fazendo concesses s diferenas
individuais, chegam a afirmar que uns so,
necessariamente, melhores que outros e no apenas
diferentes, e assim consagram a relao de dominao.
BaraoNotizRELACAO DE DOMINACAO EM GRUPOS MENOS INSTITUCIONALIZADOS COMO, POR EX.:LAZER
-
As diferenas individuais podem responder pela
diviso de trabalho, por diferentes atribuies aos
membros do grupo, mas no pela ascendncia de uns
sobre outros.
Devemos considerar tambm o reverso da moeda.
Falamos em dominao, autoridade, liderana como se,
conscientemente, uns quisessem dominar outros;
porm, o que de fato ocorre que os dominados tm
como necessrio ter algum que tome as decises, que
pense por eles, em outras palavras, mais fcil para
eles acompanhar os que pensam, os que tomam a
iniciativa, do que assumir a responsabilidade das
decises e da prpria participao.
na "naturalidade" das relaes que podemos
constatar a fora da ideologia, que se concretiza nos
comportamentos e aes dos indivduos, e, como j
mencionamos anteriormente, a dominao s se exerce
se houver dominados que a entendam como necessria
o lder sempre produto dos liderados.
-
TRABALHO E CLASSE SOCIAL
necessrio retomarmos aqui a origem histrica da
sociedade humana, sem a qual no podemos entender
como o trabalho que modifica a natureza, ao produzir a
subexistncia do Homem, tambm produz o homem.
Quando tratamos da linguagem, mencionamos a sua
origem relacionada necessidade de cooperao entre
os homens para produzirem seus meios de
sobrevivncia, isto , o trabalho. Sem dvida, este
princpio ainda vlido para os dias de hoje, somente
que, dada a complexidade crescente e as formas como
cada sociedade, em cada poca, enfrentou suas
contradies, foram criadas novas relaes de produo
da vida material, ou seja, formas de sobrevivncia que
geram relaes sociais necessrias para manter estas
relaes de produo.
Portanto, a anlise do que significa o
-
trabalho para o indivduo dever se basear nas
condies atuais da nossa sociedade capitalista5, o que
significa que a produo dos bens materiais, alm de
atender a subexistncia social, visa o lucro e o aumento
do capital e para tanto deve, necessariamente, explorar
a fora de trabalho de muitos. no processo de
acumulao de bens que o capital se apodera dos meios
de produo, fazendo com que a mercadoria no seja
apenas o produto fabricado, mas tambm a fora de
trabalho, e as prprias relaes sociais decorrentes, no
processo em outras palavras, os homens se tornam mercadorias.
Desta forma o capitalismo implica na existncia de
duas classes sociais, uma que detm o capital e os
meios de produo e outra que vende sua fora de
trabalho, ou seja, explorada e dominada pelos poucos
proprietrios de indstrias, fazendas, bancos, etc, que
necessitam do lucro gerado pelo trabalho de muitos
para a manuteno do seu poder, atravs da
acumulao crescente de bens.
esta contradio fundamental da sociedade
capitalista que a ideologia dominante procura encobrir,
no de forma consciente ou premeditada, mas
decorrente da prpria diviso de trabalho em intelectual
e manual, cabendo classe dominante o pensar a
prpria sociedade, e assim, decorrente
(5) Veja Indicaes para Leitura.
-
da sua posio social, criar explicaes a partir de uma
viso fragmentada da sociedade. Nenhum patro
concordaria em afirmar que ele explora o trabalhador,
ao contrrio, ele provavelmente dir que os homens so
naturalmente diferentes, apesar das condies serem
iguais para todos, e que uns so mais aptos e capazes
que outros para certas funes, e que em qualquer
sociedade necessrio existir os que decidem e os que
executam, etc, etc.
Resumindo, podemos ver como atravs do trabalho
produtivo da sociedade se constituem classes sociais
antagnicas, que, por sua vez, determinam as relaes
sociais entre os indivduos. Conforme o lugar onde o
indivduo se inserir, Hele ser esperado o desempenho
de determinadas atividades que garantam a manuteno
das relaes de produo e, conseqentemente, as
classes sociais como tais.
dentro deste contexto que iremos analisar, no nvel
psicossocial, o significado de trabalho, como atividades
realizadas por indivduos; atividades estas produzidas
pela sociedade qual eles pertencem.
No nvel individual a atividade decorre de uma
necessidade sentida e objetivada em coisas. Sente-se
fome, sente-se a necessidade de comer algo. Se o nosso
sujeito estiver no mato, este algo ser, provavelmente,
uma fruta e sua atividade se caracterizar por uma
seqncia de aes ou
-
comportamentos de procura, de se dirigir para um local
onde haja rvores frutferas. Se o nosso indivduo
estiver em sua casa, suas aes o levaro at a
geladeira, onde h uma fruta ou outro petisco
imaginado. Se ele estiver no centro da cidade, ir at
uma lanchonete onde comprar um sanduche.
Este exemplo simples mostra como uma atividade
desencadeada por uma necessidade, o que se constitui
numa seqncia de comportamentos, que, dependendo
das condies objetivas, visam um fim especfico. O
que significa que qualquer atividade objetivada, seja
quando ela desencadeada pelo pensamento de "quero,
ou preciso de um objeto real", seja quando ela se traduz
numa seqncia de aes visando um fim, isto , a
obteno do objeto real.
Voltemos ao nosso indivduo inserido numa classe
social de uma sociedade capitalista, onde a produo,
depois de atender s necessidades de sobrevivncia,
cria novas necessidades de consumo e,
conseqentemente, objetos que satisfaam estas
necessidades; a sua atividade depender essencialmente
das condies objetivas de vida, e agindo sobre elas as
transforma, produzindo coisas que inicialmente foram
pensadas ou imaginadas e que, quando concretizadas,
trazem em si a atividade objetivada, ou seja, o objeto
est impregnado da atividade do homem, assim como
na ao de fazer o objeto o homem se modifica.
-
Da mesma forma que se diz, genericamente, que o
homem ao transformar a natureza se transforma,
podemos constatar que o indivduo, ao produzir um
objeto, transforma uma matria que se torna coisa
atravs da sua atividade, e pela prpria atividade
desenvolvida ele, indivduo, se transforma.
Esta anlise da atividade nos permite apontar para a
importncia vital do trabalho humano, pois atravs
dele que nos objetivamos socialmente, e tambm
atravs dele que nos modificamos continuamente, ou
seja, nos produzimos, nos realizamos.
A principal caracterstica do trabalho nas sociedades
atuais que ele se realiza utilizando instrumentos, o
que torna a atividade necessariamente social, pois o uso
de instrumentos, como j vimos, pressupe cooperao
e comunicao entre os homens; assim, se o
instrumento nos liga ao mundo das coisas, ele tambm
nos liga a outros indivduos, produzindo a linguagem e
o pensamento, o qual, por sua vez, produzir atividades
e aes que se concretizam nas relaes sociais.
Vejamos uma situao corriqueira, em que algum
sente frio e pensa em um agasalho. Para tanto ele
precisar de l, agulhas e saber tricotar observem o social na produo dos objetos e na tcnica do tric; a
sua atividade ir se desenvolver numa seqncia de
comportamentos que resultar num agasalho real, que
de incio s
BaraoNotizEx. TRABALHO E OBJETIVACAO SOCIAL
-
existia em seu pensamento. Porm, ele s poderia ter
sido pensado se, nas condies de vida de nosso
sujeito, este j houvesse se deparado com ls, agulhas e
pessoas tricotando. Pronto o agasalho, nosso amigo o
veste e, ao mesmo tempo em que se sente protegido do
frio, tambm se apresenta aos outros de uma forma
diferente; podemos imaginar o dilogo:
Blusa nova? bonita. Voc gosta? Fui eu quem fiz. No diga! Voc me d a receita? E o nosso personagem se relaciona com outros,
sendo algum que fez o seu agasalho . . .
Podemos constatar que a separao entre trabalho
manual e trabalho intelectual se d apenas no nvel
ideolgico, pois qualquer atividade implica no pensar
sobre aspectos da realidade e em aes concretas na
realidade objetiva, a qual, por sua vez, ser pensada,
agora, sob uma nova perspectiva, resultante de
transformaes ocorridas tanto no indivduo como na
prpria realidade.
O provrbio de que "ningum se banha duas vezes
num mesmo rio" vlido tanto para as guas do rio
quanto para aquele que se banha: nem o rio, nem o
homem so os mesmos num segundo banho . . .
Se examinarmos as condies de trabalho existentes
na nossa sociedade e as atividades exigidas para a sua
realizao, poderemos entender melhor como se
processa, ao nvel individual, a alienao
-
ou a conscincia social.
Tomemos como ponto de partida um operrio, numa
fbrica, na linha de montagem. Ele tem diante de si
uma mquina, que determina uma seqncia de aes
que devem ser realizadas por diferentes indivduos: um
coloca uma pea, outro aperta o parafuso, um terceiro
ajusta outra pea, e assim por diante. Nesta atividade
produtiva temos um conjunto de aes distribudas por
vrias pessoas: a que pensou, que planejou o produto,
no quem o fabrica; as aes de cada um so
determinadas pela mquina, desvinculando a ao do
seu fim, objetivado no produto.
O que ocorre ento com este operrio? Ele pensa
sobre o produto que est fabricando, ele pensa a
respeito da mquina que o controla, mas nas relaes
de trabalho este seu pensar irrelevante "h gente paga para pensar"; na atividade que resultar em
produto, ele participa, atravs de uma e sempre mesma
ao, de uma cadeia complexa de aes. A cooperao
entre muitos mediada pela mquina e no mais pela
comunicao, e o produto final tem to nfima parcela
de sua atividade que ele no se reconhece no objeto
fabricado.
neste processo que o trabalhador se
despersonaliza, se torna parte da mquina; suas aes
so apenas fora de trabalho que ele vende, so
mercadorias e como tal alienveis-alienadas, na
-
medida em que ele deixa de pensar suas prprias aes
em termos de cooperao existente entre ele e seus
colegas, pois esta oculta pela mquina, instrumento
que participa na realizao de uma atividade que gera
um produto.
Quanto ao operrio, sua atividade cotidiana se
resume em ir para o trabalho, despender suas energias
fsicas, voltar para casa, tendo como fim de uma longa
srie de aes o salrio mensal ou quinzenal, presente
num dinheiro impessoal, mas que garante a sua
sobrevivncia.
Esta atividade produtiva implica tambm formas de
relacionamento social, pois, estando a cooperao
necessria para a produo encoberta pela presena da
mquina, o indivduo se sente s no seu trabalho, que
representa o salrio e que ele conseguiu concorrendo a
uma vaga, com outros candidatos; o seu colega de
trabalho , antes de tudo, portanto, um rival, e um rival
que se multiplica por todos aqueles que,
potencialmente, o podem substituir ele est sozinho na luta pela vida.
Esta situao reforada pela ideologia dominante
que, se de um lado afirma a igualdade dos homens, de
outro diz que o esforo, a dedicao e a tenacidade
que fazem de uns mais bem sucedidos que outros; e o
nosso trabalhador continua na sua luta isolada procura
de uma vida melhor, certo de que, competindo,
demonstrar que um indivduo melhor que outros,
sem perceber
-
que o mesmo ocorre com seus companheiros.
Em maior ou menor escala, a nossa sociedade,
capitalista, industrializada e complexa, promove esta
dissociao do homem do produto de sua atividade,
gerando a moral de que o objeto, o instrumento, no
bom nem mau: tudo depende do que as pessoas faro
com ele, como se estes no trouxessem em si a
atividade e o subjetivo de homens concretizados no
produto. Hoje o homem continua transformando o
mundo que o cerca, mas no cabe a ele decidir sobre
esta transformao... a contradio fundamental
gerada pelo capitalismo, que, no nvel individual, se
manifesta atravs da alienao.
A mesma fragmentao que observamos no trabalho
do operrio, tambm pode ser observada no trabalho
dito especializado, seja no nvel tcnico, seja no nvel
intelectual. Quando acima afirmamos que "no cabe a
ele decidir..." porque haver "especialistas" que iro
analisar, cada um, certos aspectos da transformao,
para dizer se ela boa ou m. Como exemplo,
poderamos citar os especialistas sobre a poluio do
meio ambiente, que a detectam como um fenmeno
natural, e procuram corretivos, como se esta no fosse
produzida socialmente.
O mesmo fato podemos constatar em relao ao
trabalho intelectual especializado. Se ao operrio
negado o pensar a sua atividade, ao intelectual negado
o fazer. A ele cabe apenas
BaraoNotizEx. FRAGMENTACAO TRABALHO ITELECTUAL
-
produzir idias, desenvolver estudos, para alguns
poucos, em geral detentores do poder na sociedade, e
que entendem a linguagem abstrata, esotrica do
intelectual, e que faro o uso desta produo de acordo
com perspectivas da classe social a que pertencem. E,
observe-se que quanto mais especializado for o estudo,
mais ele se atm a uma linguagem hermtica, que
poucos entendem.
Se retornarmos anlise da atividade humana, que
pensada subjetivamente se objetiva em um produto,
transformando o prprio homem e, na medida em que
esta atividade, numa sociedade complexa, s pode
ocorrer pela comunicao e cooperao entre muitos,
implicando necessariamente a transformao dos
homens, e, em decorrncia, das suas relaes sociais,
fica clara a lgica da fragmentao necessria para a
manuteno das relaes de produo, ou seja, os
detentores do capital explorando a fora do trabalho de
muitos e, assim, mantendo a hegemonia do poder.
Enquanto o homem no recuperar para si a sua
atividade que , psicolgica, social e historicamente,
pensamento e ao, e que s ocorre atravs da sua
relao com os outros homens, concretizando o
pensamento na comunicao e a atividade em aes
cooperativas, ele estar alienado de sua prpria
realidade objetiva, com uma falsa conscincia social e,
conseqentemente, com uma falsa conscincia de si.
-
No captulo anterior mostramos como a instituio
cristaliza relaes de poder, reproduzindo as relaes sociais
e as relaes de produo. No caso do trabalho, a mesma
linha de anlise poderia diluir o seu aspecto fundamental na
produo da prpria existncia humana. Partimos da
atividade como caracterstica essencial da vida humana, que,
capaz de se pensar, tambm capaz de aes
transformadoras da sociedade em que vive, as quais s
ocorrero atravs da recuperao do prprio trabalho, na
participao da produo material da sobrevivncia social.
Porm, se partssemos da institucionalizao do trabalho,
e da definio de papis, veramos a atividade produtiva
como uma entre outras possveis, escondendo o seu carter
fundamental, tanto para a realizao de cada ser humano,
como para a existncia da sociedade. O trabalho social,
assim como a atividade do indivduo, a prpria vida
humana que se constri continuamente. A qualidade desta
construo depender sempre da comunicao e cooperao
entre os homens, e somente atravs destes possvel
recuperar a histria e detectar a contradio fundamental na
relao de dominao de uma classe social por outra classe.
A seqncia da nossa anlise permite constatar um fato
crucial: a conscincia de si, a conscincia social e a
conscincia de classe so apenas produtos de um nico
processo, decorrente da atividade
-
humana, que pensamento e ao, teoria e prtica, que
se concretizam atravs da cooperao entre os homens
na produo de suas prprias vidas.
-
O INDIVDUO NA COMUNIDADE
Se o captulo anterior sobre o trabalho apresentou um
quadro onde as sadas parecem ser poucas e difceis,
neste analisaremos as propostas da Psicologia
Comunitria, que vm sendo sistematizadas, dentro da
Psicologia Social, como atividades de interveno que
visam a educao e o desenvolvimento da conscincia
social de grupos de convivncia os mais diversos.
necessrio lembrar que, apesar de central para a vida de
um indivduo, o trabalho remunerado no a nica
atividade socialmente produtiva que ele desenvolve; h
uma srie de necessidades que no so satisfeitas
exclusivamente atravs do salrio, e que podem ser
motivos para o agrupamento de pessoas visando a sua
satisfao.
em torno destas atividades que a Psicologia
Comunitria prope uma sistemtica de
-
interveno, principalmente em sociedades capitalistas, onde a mediao da ideologia dominante se faz sentir nas
relaes sociais desempenhadas na famlia, na escola e no
trabalho, impedindo ou dificultando a criao de novas
formas de relacionamento.
Desenvolver relaes sociais que se efetivem atravs da
comunicao e cooperao entre pessoas, relaes onde no
haja dominao de uns sobre outros, por meio de
procedimentos educativos e, basicamente, preventivos, se
tornou o objetivo central de atividades comunitrias, as
quais podem ocorrer em uma casa, com pessoas criando
novas relaes "familiares", em escolas, hospitais e mesmo
entre um grupo de vizinhana ou de bairro, desde que estes
se identifiquem por necessidades comuns a serem satisfeitas,
atravs de atividades planejadas em conjunto e que
impliquem em aes de vrios indivduos, encadeadas para
atingir o objetivo proposto.
O carter educativo decorre da reflexo que feita sobre
o porqu das necessidades, de como as atividades vm sendo
realizadas, ou seja, como as aes se encadeiam e que
resultados so obtidos, tornando possvel a todas as pessoas
envolvidas recuperarem, atravs do pensamento e ao, da
comunicao e cooperao entre elas, as suas histrias
individuais e social, e conseqentemente, desenvolverem a
conscincia de si mesmas e -de suas relaes historicamente
determinadas.
-
Quando um grupo de pessoas se rene para discutir
seus problemas, muitas vezes sentidos como exclusivos
de cada um dos indivduos, descobrem existirem
aspectos comuns, decorrentes das prprias condies
sociais de vida; o grupo poder se organizar para uma
ao conjunta visando a soluo de seus problemas. E
aquelas necessidades, que sozinhos eles no podiam
satisfazer, passam a ser resolvidas pela cooperao
entre eles.
O nosso cotidiano tem apresentado inmeros
exemplos deste processo: desde grupo de mes,
organizando e mantendo creches para seus filhos,
mutires entre moradores de um bairro para construo
de locais para lazer, ou mesmo de moradias, at
organizaes de grupos para reivindicar gua, luz,
esgoto, etc.
preciso salientar que a atividade comunitria, por si
s, no supera a contradio fundamental do
capitalismo, pois esta decorre das relaes de produo,
que definem as classes sociais; porm atravs da
participao comunitria que os indivduos
desenvolvem conscincia de classe social e do seu
papel de produtores de riquezas, que no usufruem, e,
em conseqncia, podem, gradativamente, irem se
organizando em grupos maiores e mais estruturados
visando uma ao transformadora da histria de sua
sociedade.
O desenvolvimento de uma comunidade se d de
forma lenta, com avanos e recuos, pois o
BaraoNotizEXs. DE ACOES COMUNITARIAS
-
sistema social mais amplo a todo momento exerce
presses, diretas ou indiretas, para a manuteno de
solues individualistas, promovendo a competio,
valorizando status e prestgio de posse da propriedade.
Basta assistirmos algumas novelas e propagandas na
televiso para percebermos algumas presses neste
sentido.
Alm destas influncias sociais mais amplas, h todo
um processo de aprendizagem das pessoas envolvidas
numa experincia comunitria. O se defrontar com os
outros, o se descobrir diferente, nico e, ao mesmo
tempo, assumir a igualdade de direitos e deveres, a
responsabilidade de pensar, de decidir e de agir, um
processo que se desenvolve atravs de prticas e
reflexes sucessivas. No h receitas, nem tcnicas
pr-definidas, cada grupo desenvolve um processo
prprio, em funo das suas condies reais de vida e
das caractersticas peculiares dos indivduos
envolvidos.
Transformar as relaes sociais apreendidas na
famlia, na escola, no fcil, pois elas se apresentam
como espontneas no cotidiano, e, quando menos se
percebe, relaes de dominao entre as pessoas esto
ocorrendo. Se no houver uma reflexo conjunta, um
pensamento crtico, e atividades que permitam o
"treino" destas novas relaes, o grupo comunitrio se
separar, cada um cuidando de seus problemas
individuais, esperando que Deus cuide de todos.
Podemos ver que a presena e a fora da
-
ideologia dominante uma constante que no se revela
de um momento para o outro, mas que vai sendo
superada lentamente, em funo de cada atividade
realizada que, repensada, leva a novas atividades. A
fora da ideologia se d no apenas na representao de
mundo, mas nas aes decorrentes destas
representaes.
o que explica por que tantas experincias
comunitrias falharam, principalmente aquelas onde as
relaes so mais ntimas, como as implcitas em morar
juntos para a manuteno do cotidiano. Comer, limpar,
arrumar a casa, cuidar de roupa, exigem uma diviso de
trabalho e de despesas, de uma forma equitativa entre
todos, mas tambm exigem manter vnculos com a
sociedade onde este grupo de pessoas vivem, tornando
extremamente difcil para elas desempenhar papis
esperados no seu trabalho, nas atividades com outros
grupos de pessoas e, entre as quatro paredes da
moradia, viverem novas formas de relaes sociais,
como se o mundo no existisse l fora.
O trabalho remunerado e todas as suas implicaes,
como prestgio, ascenso, e, principalmente, o
consumir necessidades criadas pelo capitalismo constantemente esto minando e influindo nas relaes
sociais que se propem comunitrias. Aceitar
diferenas individuais, mantendo relaes de igualdade,
ou melhor, de no dominao, em uma sociedade onde
as diferenas
-
so valorizadas em termos de competio, torna-se algo
extremamente difcil.
A atividade comunitria numa sociedade de classes
antagnicas pode ser comparada com uma situao em
que estivssemos com um p em cada barco, descendo
um rio s chegaremos a um lugar seguro se cada movimento for pensado e revisto para se decidir sobre
o prximo, e ainda assim haver desvios, impasses,
para, lentamente, avanarmos at o ponto desejado.
Se o conviver de algumas pessoas, igualitariamente,
em uma casa, to difcil, pode-se imaginar as
dificuldades existentes para que instituies se tornem
comunidades, tais como escolas, hospitais e outras.
Porm, convido-os para uma visita a um hospital
psiquitrico.
H alguns quilmetros de um centro urbano,
chega-se a um grande porto, aberto para uma avenida,
cercado por gramados, que leva a edifcios antigos,
com grades nas janelas, mas com as portas abertas. a
ala dos homens: ao entrarmos em um deles vemos, no
terrao, alguns pacientes em cadeiras de balano, lado a
lado. Eles nos olham, sorriem, falam coisas que no
entendemos bem. Entramos nos dormitrios onde h
vrias camas, arrumadas, limpas, mas vazias. No prdio
vizinho h uma exposio de pinturas, todas feitas por
pacientes; chamando a ateno os motivos freqentes
sobre astronautas, castelos de fadas,
BaraoNotizEX. ACAO COMUNITARIA
-
abstratos todos muito elaborados. Continuando por avenidas, chega-se a prdios de
construo mais recente; so as oficinas onde se
fabricam sapatos, bolsas, cintos e uma infinidade de
objetos, todos produzidos pelos pacientes, cada um
escolhendo uma atividade e executando-a no seu ritmo.
Alguns nos mostravam, orgulhosos, o conjunto de seus
trabalhos, respondendo a nossas perguntas,
entremeando risos e silncios.
Em um outro prdio havia cabeleireiros, manicures,
pedicures, atendendo e sendo atendidos por homens e
mulheres todos pacientes. Mais adiante, na ala das mulheres, chamaram a ateno os dormitrios
enfeitados com gravuras nas paredes e bonecas nas
camas, tudo sempre limpo e arrumado; as salas de estar
confortveis, com as portas-janelas abertas para
terraos que do para gramados verdes e bem cuidados.
No final da visita assistimos a um show musical,
apresentado pelos pacientes, que tocavam em conjuntos, cantavam em corais ou solos msicas latino-americanas.
Durante todo o tempo da visita sentia-se um
ambiente descontrado, de respeito mtuo e, se
possvel ocorrer em um hospital psiquitrico, uma
atmosfera alegre. E tudo isto como decorrncia de uma
prtica comunitria, onde mdicos, enfermeiras,
psiclogos, pacientes se relacionam em base de
igualdade; os pacientes, estimulados a participarem em