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“LANÇANDO A REDE” AO ENCONTRO DE POSSÍVEIS DESDOBRAMENTOS ENTRE OS SABERES DE PESCADORES ARTESANAIS E OS SABERES MATEMÁTICOS ESCOLARES Juciara Guimarães Carvalho 1 Universidade Federal de Santa Catarina [email protected] Claudia Glavam Duarte 2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul [email protected] Financiamento: CNPq 3 Ao perder os olhos, se olha diferentemente... Por causa de Maneca Mazembe, o pescador cego. Deu-se o caso de ele vazar os ambos olhos, dois poços bebidos pelo sol. Maneira como perdeu as vistas é assunto de acreditar. Há dessas estórias que, quanto mais se contam, menos se conhece. Muitas vozes, afinal, só produzem silêncio. Aconteceu em certa pescaria: Mazembe se perdeu nos senfins. A tempestade assustara o pequeno concho (Concho - canoa, pequena embarcação.) e o pescador se infindou, invindável. Passaram as horas, chamadas pelo tempo. Sem rede nem reserva, Mazembe fez fé na espera. Mas a fome começou a fazer ninho em sua barriga. Decidiu lançar a linha, já sem esperança: o anzol carecia de isco. E ninguém conhece peixe que se suicide por gosto, mordendo anzol vazio. (...). E sempre é assim: o juízo emagrece mais rápido que o corpo. Foi nessa magreza que cresceu a decisão de Maneca. Puxou da faca e segurou o gesto com firmeza. Tirou o esquerdo. Deixou o outro para os restantes serviços. E espetou o olho no anzol. Era já órgão estranho, desencovado. Mas ele se arrepiou de o contemplar. Parecia que aquele olho deserdado o continuava a fitar, em magoada solidão de órfão. E assim, aquele anzol, entrando em sua alheia carne, lhe doeu como nenhum espinho pode tanto aleijar (COUTO, 1990, p.49). 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica da Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC. 2 Professora e coordenadora do curso de licenciatura em Educação do Campo: Ciências da Natrureza da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - Campus Litoral Norte. 3 Essa investigação visa contribuir com o projeto de pesquisa intitulado de Etnomatemáticas do campo de Santa Catarina (SC) e Rio Grande do Sul (RS): agricultores familiares e pescadores artesanais, que recebe apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq. Chamada 43/2013 - Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas. Processo nº409228/2013-3.

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“LANÇANDO A REDE” AO ENCONTRO DE POSSÍVEIS DESDOBRAMENTOS

ENTRE OS SABERES DE PESCADORES ARTESANAIS E OS SABERES

MATEMÁTICOS ESCOLARES

Juciara Guimarães Carvalho1

Universidade Federal de Santa Catarina

[email protected]

Claudia Glavam Duarte2

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

[email protected]

Financiamento: CNPq3

Ao perder os olhos, se olha diferentemente...

Por causa de Maneca Mazembe, o pescador cego. Deu-se o

caso de ele vazar os ambos olhos, dois poços bebidos pelo sol.

Maneira como perdeu as vistas é assunto de acreditar. Há

dessas estórias que, quanto mais se contam, menos se conhece.

Muitas vozes, afinal, só produzem silêncio. Aconteceu em certa

pescaria: Mazembe se perdeu nos senfins. A tempestade

assustara o pequeno concho (Concho - canoa, pequena

embarcação.) e o pescador se infindou, invindável. Passaram

as horas, chamadas pelo tempo. Sem rede nem reserva,

Mazembe fez fé na espera. Mas a fome começou a fazer ninho

em sua barriga. Decidiu lançar a linha, já sem esperança: o

anzol carecia de isco. E ninguém conhece peixe que se suicide

por gosto, mordendo anzol vazio. (...).

E sempre é assim: o juízo emagrece mais rápido que o corpo.

Foi nessa magreza que cresceu a decisão de Maneca. Puxou

da faca e segurou o gesto com firmeza. Tirou o esquerdo.

Deixou o outro para os restantes serviços. E espetou o olho no

anzol. Era já órgão estranho, desencovado. Mas ele se

arrepiou de o contemplar. Parecia que aquele olho deserdado

o continuava a fitar, em magoada solidão de órfão. E assim,

aquele anzol, entrando em sua alheia carne, lhe doeu como

nenhum espinho pode tanto aleijar (COUTO, 1990, p.49).

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica da Universidade Federal de

Santa Catarina- UFSC.

2Professora e coordenadora do curso de licenciatura em Educação do Campo: Ciências da Natrureza da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - Campus Litoral Norte. 3Essa investigação visa contribuir com o projeto de pesquisa intitulado de Etnomatemáticas do campo de Santa

Catarina (SC) e Rio Grande do Sul (RS): agricultores familiares e pescadores artesanais, que recebe apoio

financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq. Chamada 43/2013 -

Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas. Processo nº409228/2013-3.

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Encontramos no conto O Pescador Cego de Mia Couto, extraído de seu livro Cada

homem é uma raça (1990), elementos que potencializam o nosso pensar e nos inspira a contar

com/junto uma outra estória de pescadores artesanais tramada em nossa investigação. O conto

fala sobre uma dolorosa, e um pouco sombria, experiência de um pescador magrelo e sedento

de fome em meio à imensidão do mar. Restando poucas alternativas, lança seus olhos ao mar

como iscas em busca de alimentar-se. “O escuro encerrou o pescador. Mazembe, bicego, só

nos dedos se confiava à visão. Voltou a lançar a linha no mar. Não esperou até sentir o

esticão, anunciando o maior peixe que ele nunca pescara” 4. Ora, mas por que esse peixe era

o maior de todos? Ousamos dizer que se trata de olhar com os dedos, quiçá com o corpo todo,

um olhar para além dos olhos naturalizados, fixos e rígidos que sentem fome.

Realizamos o exercício deste pescador ao perder “nossos olhos” para quem sabe olhar

diferentemente. Nesse processo de desterritorialização, por vezes difícil e doloroso, nos

deslocamos para questionar o que é dito e o que é visto, politicizar e legitimar diferentes

saberes-conhecimento e operar sob rasuras. O movimento que conduziu nossa vontade de

saber propõe, além de perguntar O que é isso? Perguntar como funciona isso? Trata-se de

realizar “a insurreição dos saberes” (FOUCAULT, 1999, p.13) que foram predominantemente

sujeitados, porém se encontram em movimentos diaspóricos.

Sentíamos fome no mar da Educação Matemática e passamos a considerar os discursos

eurocêntricos, as verdades naturalizadas como únicas e universais, a hegemonia exercida nas

e pelas relações de poder e o empoderamento da Matemática Acadêmica como sendo a grande

isca para fisgar o peixe chamado Etnomatemática, numa perspectiva pós-estruturalista, que a

metaboliza permitindo problematizar

os discursos eurocêntricos que instituem as matemáticas acadêmica e escolar;

analisar os efeitos de verdade produzidos pelos discursos das matemáticas

acadêmica e escolar; discutir questões da diferença na educação matemática,

considerando a centralidade da cultura e as relações de poder que a

instituem; e examinar os jogos de linguagem que constituem as diferentes

matemáticas e suas semelhanças de família (KNIJNIK et al, 2012).

Em outras palavras, nos alimentamos por diferentes modos de pensar de agir

matematicamente, ou seja, esse “peixe” gera visibilidade a racionalidade matemática presente

4 COUTO, 1990, p. 50.

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em diferentes formas de vida5. Contudo, as práticas cotidianas [culturais] não devem ser vistas

como a aplicação, interpretação ou variações de práticas matemáticas escolares, mas como um

conjunto de significados em diversos usos que nos permite penetrar em diferentes jogos de

linguagem6 (MIGUEL, 2014).

No provisório alívio da fome, seus braços reganharam

competência. Sua alma regressara do mar. Remou, remou,

remou. Até que o barco chocou, escuro de encontro ao

escuro. Pelo modo das ondas, barulhando em vagas infantis,

adivinhou ter chegado a uma praia. Levantou-se e gritou por

ajuda. Esperou vários silêncios. Por fim, escutou vozes, gente

que chegava. Ele se admirou: aquelas vozes lhe eram

familiares, as mesmas do seu mesmo lugar. Seria que os seus

braços reconheceram o caminho de regresso, sem ajuda das

vistas? Foi arrancado por muitas mãos que lhe ajudaram a

descer.

Havia choros, estremunhos. Todos lhe queriam ver, ninguém

lhe queria olhar. Sua chegada espalhava alegrias, seu

aspecto semeava horrores. Mazembe regressara despido

daquilo que mais nos constitui: os olhos, janelas onde nossa

alma se acende (COUTO, 1990, p. 50).

O balanço das águas tem nos permitido chegar a uma “praia” composta por entre-

lugares “produzidos na articulação de diferenças culturais” (BHABHA, 2003, p.20) que

possibilitam outras vozes híbridas se colocarem no mundo. Nosso encontro com os

pescadores artesanais tem ativado diferentes sensações, olhares e dizeres para pensar a

pesquisa sobre/com o Outro. Nas palavras de Hall (2003, p. 116), “o ‘Outro’ deixou de ser um

termo fixo no espaço e no tempo externo ao sistema de identificação e se tornou uma

“exterioridade constitutiva” simbolicamente marcada de forma diferencial dentro da cadeia

discursiva”.

Desejamos tecer um possível olhar para com os jogos de linguagem de pescadores

artesanais de Florianópolis/SC e Tramandaí/RS na busca de identificar e analisar a

racionalidade matemática colocada a operar em sua prática de pescar. A escolha por pesquisar

em dois locais diferentes que possuem a presença de pescadores artesanais é justificada pela

intenção de evidenciar, em uma linguagem wittgensteiniana, as semelhanças de famílias entre

essas formas de vida. Buscamos evidenciar continuidades e descontinuidades nas gramáticas

5Glock (1998, p. 174) afirma que uma forma de vida, na perspectiva wittgensteniana, é uma formação cultural ou

social considerando a totalidade das atividades comunitárias em que estão imersos nossos jogos de linguagem. 6Jogos de linguagem, conceito criado por Wittgenstein presente na obra Investigações Filosóficas,

envolvem “a totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada”

(WITTGENSTEIN, 2014, §7, p.19).

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que sustentam essa racionalidade gerando visibilidade às possibilidades de interlocução entre

os saberes de formas de vida em diferentes locais. Ademais, também nos interessa perceber os

nuances culturais, as misturas, as impurezas e os afrouxamentos de laços entre a cultura e o

“lugar” (HALL, 2003).

Estamos despidas de nossos olhos naturalizados para lançar mão do seguinte problema

de pesquisa: Qual a racionalidade matemática colocada a operar em jogos de linguagem de

pescadores artesanais de Florianópolis/SC e Tramandaí/RS? Para tanto, iremos tatear as

seguintes perguntas secundárias: Que jogos de linguagem matemáticos são comuns entre os

pescadores artesanais de Florianópolis/SC e Tramandaí/RS? Quais são as gramáticas

vinculadas à racionalidade matemática que sustentam esses jogos de linguagem? Existe

semelhança de família entre essas gramáticas?

Este olhar para com as formas de vida dos pescadores artesanais será apoiado pelas

lentes teóricas compostas pela perspectiva pós-estruturalista da Etnomatemática7 e pelo

pensamento dos filósofos Michel Foucault com a noção de poder-saber e Ludwig

Wittgenstein, considerando sua obra de maturidade intitulada Investigações Filosóficas, com

as noções de forma de vida, jogos de linguagem, gramática, usos, significados e semelhanças

de família. Os dois filósofos possuem aproximações8 que nos auxiliam na problematização

dos saberes tidos como “universais”, únicos possíveis. Além disso, dialogaremos com os

autores Homi Bhabha e Stuart Hall envolvendo as contribuições para pensar as práticas

culturais.

Apresentaremos aqui os primeiros resultados da pesquisa de mestrado que está em

andamento. Considerando seu caráter qualitativo buscamos realizar o entrelaçamento de

contribuições da etnografia e cartografia. Nossa intenção não é engessar um método de

pesquisa, mas capturar elementos que subsidiem a inserção e permanência, mesmo que

temporária, nas formas de vida dos pescadores artesanais. Assim como, a sensibilidade para

observar, interagir, suspender os automatismos, compreender a cultura e modos de vida,

7A Etnomatemática possui duas perspectivas de pesquisa: a d’ambrosiana e a pós-estruturalista. A perspectiva

d’ambrosiana está apoiada nas contribuições de Ubiratan D’Ambrosio que busca evidenciar as diferentes práticas

matemáticas realizadas por grupos culturais tendo como objeto de estudo a explicação dos processos envolvidos

nessas práticas. A perspectiva pós-estruturalista conta com as contribuições dos pensamentos de Michel Foucault

e Ludwig Wittgenstein para problematizar os discursos eurocêntricos, relações de poder, os jogos de linguagem

que constituem as diferentes matemáticas (acadêmica, escolar, racionalidade matemática de diferentes formas de

vida) e suas semelhanças de família. 8 Duarte (2009; 2011) discute, respectivamente, a aproximação entre os dois filósofos e problematiza a

matemática acadêmica com seus pressupostos de universalidade alicerçados pela pretensa neutralidade e

formalismo deste conhecimento.

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aproximar da linguagem e produção de significados. Para André (2010) a ênfase está no

processo, naquilo que está ocorrendo e não no produto ou nos resultados finais.

Desse modo, nossa vontade de detalhes busca a “interação constante entre o

pesquisador e o objeto pesquisado” (ANDRÉ, 2010, p.28). O material empírico será composto

por observações participante, entrevistas semi-estruturadas, filmagens e diário de campo. A

análise da investigação será guiada pelo referencial teórico escolhido. Estamos situadas nesse

lugar que é ao mesmo tempo conhecido e desconhecido, problematizado e re-problematizado

estando à espreita de seu movimento.

Aportes teóricos situados entre terra-mar...

Desde então, Maneca Mazembe viveu no barco, marinho-

terrestre. Ele junto com a embarcação, parecia uma tartaruga

virada, incapaz de regressar ao mar. E, nessa extensa solidão,

Mazembe se deixou ao abandono. Até uma manhã incerta.

Salima se aproximou do barco, ficou contemplando o marido.

Ele estava em apurado desleixo, com cara de muitas barbas (...)

(COUTO, 1990, p. 52).

O barco marinho-terrestre no qual estamos vivendo é subsidiado pelo pensamento dos

filósofos Michel Foucault e Ludwig Wittgenstein. Esses autores nos permitem problematizar

a Educação Matemática Escolar a partir de suas contribuições teóricas. No que tange a

contribuições de Foucault estas se dão na problematização dos saberes, as relações poder-

saber produzidas e a constituição dos regimes de verdade. Na obra Em defesa da sociedade,

Foucault sugere a insurreição dos “saberes sujeitados” designando-os de duas formas:

“os saberes sujeitados” são blocos de saberes históricos que estavam presentes e

disfarçados no interior dos conjuntos funcionais e sistemáticos, e que a crítica pôde

fazer reaparecer pelos meios, é claro, da erudição. Em segundo lugar, (...) eu

entendo igualmente como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente

elaborados: saberes hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível do

conhecimento ou da cientificidade requeridos (FOUCAULT, 1999, p. 11-12).

Foucault (1999) afirma que a insurreição dos saberes trata de fazer que intervenham saberes

locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que

pretenderia a hierarquia dos conhecimentos e das ciências. “Tratava-se do saber histórico das

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lutas” (Ibidem, p.13). Esta investigação se propõe a fazer intervir os saberes dos pescadores

artesanais para enfatizar os diferentes modos de pensar.

Na perspectiva foucaultiana, “é o poder enquanto elemento capaz de explicar como se

produzem os saberes e como nos constituímos na articulação entre ambos” (VEIGA-NETO,

2011, p.56). Poder e saber são indissociáveis. Desse modo, as imbricações dos saberes e

poderes nos permitem problematizar a politicidade do conhecimento gerando um movimento

de desnaturalização de saberes que foram constituídos como verdades. Foucault entende que a

verdade se dá pelo conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e

se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder. E ainda acrescenta que cada sociedade

tem seu regime de verdade com os tipos de discursos que operam como verdadeiros, os

mecanismos para obtenção da verdade e o estatuto que avalia o verdadeiro do falso

(FOUCAULT, 2000). Assim, pensamos discutir as verdades que atravessam a pesquisa e em

efeito, dar visibilidade ao conhecimento do pescador artesanal e assim, contribuir para a

legitimidade de seus saberes no espaço da academia.

Em consonância com o pensamento de Foucault, o filósofo Wittgenstein abandona a

crença em uma linguagem que seria capaz de representar o mundo e a coloca em suspeição,

ocorrendo assim a desnaturalização de uma linguagem que seria universal, única a todos os

indivíduos. Em outras palavras ambos “dão as costas para a busca de uma suposta razão pura

e voltam-se para a análise das relações da linguagem consigo mesma e das relações entre a

linguagem e o mundo” (VEIGA-NETO, 2011, p.90-91). Apesar de estarem situados em

problemáticas distintas os filósofos se interessavam pela filosofia analítica pragmática de

modo a realizar a análise do significado dos enunciados diante do contexto do seu uso.

Para Wittgenstein a produção de significados e as práticas desenvolvidas em cada

forma de vida estão atreladas ao “seu uso na linguagem” (WITTGENSTEIN, 2014, §43,

p.38). Além disso, uma forma de vida não estabelece “a” inteligibilidade do mundo, mas

“uma” inteligibilidade possível (peculiar àquela forma de vida). Assim, formas de vida

diferentes produzem inteligibilidades diferentes (CONDÉ, 2004). Em outras palavras,

assumimos aqui a existência de múltiplos modelos de racionalidade9 ancorados em diferentes

“linguagens” (WITTGENSTEIN, 2014, §65, p. 51). Contudo, os usos são regidos pela

gramática10 que compõe um conjunto de regras colocadas a operar em jogos de linguagem

9 A ideia de racionalidade, na perspectiva wittgensteiniana, estabelece a relação indissociável com as práticas

sociais imbricadas nas diferentes formas de vida. 10 Segundo Condé (2004, p.175) “a gramática, para Wittgenstein, é vista como o “lugar” a partir do qual

estabelecemos nossas “considerações” do mundo (I.F. §§ 47, 90, 122, 392, 401), do qual dominamos técnicas e

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envolvendo assim, “a totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as quais ela

vem entrelaçada” (ibidem, §7, p.19).

Embora diferentes formas de vida estejam em certa consonância com os eventos

mundanos elas produzem inteligibilidades diferentes que podem gerar estranhamentos e

conflitos (CONDÉ, 2004). Por outro lado, essa consonância também permite que formas de

vida distintas possam dialogar entre si e apresentar semelhanças de família presente nos jogos

de linguagem que salientam os modos de agir, pensar, as crenças, as tradições e hábitos

comuns. Ao evidenciar as semelhanças não se está acentuando o caráter de unicidade

invariável que possa remeter a essência, mas sim de que os jogos de linguagem participam de

analogias ou contraposição entre si. Hall (2003, p.61) partilha dessa questão ao afirmar que “o

significado não possui origem nem destino final, não pode ser fixado, está sempre em

processo e “posicionado” ao longo de um espectro”.

Diante disso, queremos colocar os conceitos a operar com nosso campo de

investigação. Vamos chamar esse campo de mar-lagoa, pois consideramos que nossos “pés”

não estão fixos na terra, mas sim flutuantes nas águas de Florianópolis/SC e Tramandaí/RS.

Mar-lagoa, acompanhando o movimento...

Desde então, todas as infalíveis manhãs, se viu o pescador cego

vagandeando pela praia, remexendo a espuma que o mar

soletra na areia. Assim, em passos líquidos, ele aparentava

buscar seu completo rosto, gerações e gerações de ondas

(COUTO, 1990, p. 54).

Onde há pescadores artesanais há também redes, tarrafas, canoas, embarcações, mãos

marcadas e pés cansados pelo trabalho, no rosto sinais do tempo e olhos em espreita

desejando avistar um cardume. Esse conjunto vai compondo jogos de linguagem que inclui

também a pluralidade e combinação dos elementos lua, vento, maré, força, equilíbrio,

movimento do peixe e “sorte”. Assim, vamos exercitando a sensibilidade para captar os

detalhes e nos permitir habitar esse território outro.

Direcionamos nosso olhar para alguns fios condutores que se engendram e constituem

as formas de vida de pescadores artesanais de Florianópolis/SC e Tramandaí/RS. Estamos

de onde construímos a nossa ideia de racionalidade (I.F. §§ 304, 520, 528). Jogar um jogo de linguagem

qualquer como “relatar um acontecimento – conjecturar sobre o acontecimento – expor uma hipótese e prová-la

(...) inventar uma história e ler; representar teatro” (I.F. §23), já pressupõe sua gramática”. Ressalto o uso da

abreviação da obra Investigações Filosóficas como sendo I.F. para referenciar os parágrafos utilizados.

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considerando-as como sendo formas de vida distintas que podem transitar e compartilhar

significações e modelos de racionalidade apresentando assim, gramáticas e jogos de

linguagem11 flexíveis que possibilitam incorporar novos significados criando vários pontos de

contato. Condé (2004, p. 171) salienta ainda que “para estabelecer um “acordo” entre

diferentes formas de vida, o papel desempenhado pelas respectivas gramáticas é tão

importante quanto o caráter “aberto” dos jogos de linguagem”. Nas palavras de Wittgenstein

(2014, §51, p. 44) “precisamos ter em vista os pormenores dos processos; olhar de perto o

que se passa”.

Cada comunidade12 pesqueira apresenta suas peculiaridades derivadas do lugar em que

está inserida, principalmente, aquelas atreladas a produção de significados. Afinal, há muitas

maneiras de ser pescador artesanal. No entanto, há a possibilidade de traçar semelhanças de

família entre si considerando “os aspectos pertencentes aos diversos elementos que estão

sendo comparados, mas de forma tal que os aspectos semelhantes se distribuem ao acaso por

esses elementos”. Não sugere uma essência (CONDÉ, 2004, p.53).

Desse modo, diante da produção de dados realizada nas idas ao mar-lagoa, até o

presente momento, emergiu a unidade de sentido que se refere à divisão do espaço e do tempo

na e pela pesca artesanal. Percebemos a possibilidade de discorrer sobre a racionalidade

empregada mais especificamente a racionalidade matemática nela envolvida. Em outras

palavras, os pescadores artesanais de ambos locais de investigação realizam a divisão das

águas, seja no mar ou na lagoa, criando verdadeiros territórios de pesca. Essa prática tem

como objetivo organizar o grupo de pescadores para que todos tenham a oportunidade de

pescar naquele espaço e em determinado tempo.

Buscamos investigar e analisar a existência de uma racionalidade matemática que

muito embora possa não ser chamada, por eles, de matemática e seus objetos possam não ser

considerados como matemáticos ilumina o caminho para tecer considerações sobre outros

modos de pensar matematicamente. Assim, a divisão é colocada a operar em outros usos que

não o uso da matemática escolar. Trata-se de uma significação criada pelos pescadores que

organiza, normatiza, faz funcionar sua prática no dia a dia. Nesse momento, vamos realizar

uma digressão para contar um pouco sobre como a divisão acontece entre os pescadores.

11 “Wittgenstein ‘propõe’ a gramática e os jogos de linguagem como uma racionalidade que se forja a partir das

práticas sociais em uma forma de vida e que não mais se assenta em fundamentos últimos” (CONDÉ, 2004, p.

29). 12 Stuart Hall (2003) faz o alerta quando se usa o termo comunidade, pois é perigoso se fazer idealização de um

modelo grupal homogêneo. Consideramos assim, que cada comunidade possui atravessamentos outros que

podem ou não constituir em um grupo heterogêneo, mas não deixa de ser um grupo.

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Aqui separa parelhas – Barra da Lagoa, Florianópolis/SC

Um pescador-temporário13contou que “a temporada da pesca tainha é a grande safra,

aguardada pelos pescadores artesanais, todo mundo quer participar. Então nós dividimos as

parelhas (grupos de pescadores com um patrão) e marcamos no mar com uma estaca de

madeira com uma bandeira para que todos tenham a oportunidade de pegar o peixe. (...) A

bandeira é preta é feita com o material do guarda chuva que é resistente só por isso, a cor

não importa”. Podemos perceber que ocorre a ‘divisão do mar’ para distribuir a área que cada

parelha pode pescar.

Na ida ao mar-lagoa, o pescador-temporário falou que ficam na praia “só na

temporada da tainha, depois o grupo se dispersa uns vão pescar em outros lugares, ficam

envolvidos com o Sindicato da pesca, vão trabalhar em outra coisa, ou vão na pesca

industrial. Viver só da pesca hoje tá difícil”. O grupo Saragaço é formado por pescadores

nativos de diferentes idades (de vinte a setenta anos) e por outros pescadores que se juntam ao

grupo nessa época. A maioria deles é sindicalizada e possuem carteira de pescador. O nome

do grupo remete a agitação, o ‘corre-corre’ deslizando a canoa para o mar e ao fato que a

pesca é vista como uma festa.

Atualmente o grupo é formado por “três vigias que ficam na região mais alta da praia

para observar a chegada do cardume quando forma a manta, que é uma mancha no mar, e

avisar para o grupo (antes eles abanavam um pano branco e a gente entendia que era para

colocar a canoa n’água, hoje é tudo por rádio); sete pessoas que vão na canoa sendo que

quatro são remadores (que tem que remar acompanhando o gingado do mar) , um

chumbereiro (que deve jogar a rede na água), o patrão (que tem que remar para dar a

direção certa para a canoa cercar o cardume e se preocupar para a canoa não virar), e um

mergulhador (se joga para arrumar a rede para as tainhas não escapar. Os demais ajudam a

puxar a rede do mar com os peixes e tem outra função importante que é o cozinheiro, sem ele

o grupo fica de barriga vazia”.

A dança das balizas – Tiroleza, Tramandaí/RS

O pescador-faz-tudo aflito nos contou que estava dois dias sem sair para pescar na

lagoa, porque estava esperando entrar no rodízio. “Rodízio aqui para nós é passar pelas

13Vamos nomear os sujeitos da pesquisa de pescador-temporário por atuar em temporada e pescador-faz-tudo

pelas diversas funções que o pescador assume quando não está pescando.

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balizas numeradas, aí é feito o sorteio entre os pescadores artesanais que sempre participam

e alguns novos que querem participar. As balizas são estacas de madeiras fincadas na água,

geralmente bambu que a gente pega no mato, elas são numeradas, tá sendo de um a trinta e

dois. De uma baliza para a outra tem uns oitenta metros, então a gente pode colocar até duas

redes de espera de cem metros porque a rede fica curva. A malha é noventa milímetros. No

sorteio são colocados os números num saco. Cada pescador sorteia um número no caso até a

quantidade que ta ali. Como as balizas vão até trinta e dois se tiver mais pescadores vão ter

que esperar até chegar a sua vez. O rodízio é de trás para frente 32, 31, 30,..., 1. Porque aí

todos têm chance de pegar peixe. Quanto mais vem para frente mais peixe pode pegar”.

Na oportunidade em acompanhar o pescador-faz-tudo e seu ajudante, em uma ida ao

mar-lagoa, com a tarefa de colocar a rede de espera na baliza de número um foi possível

perceber a dança de caícos, como o barco é chamado, se aproximando das balizas. O ritmo é

conduzido pelos movimentos dos ponteiros do relógio que marcam às dezoito horas, no

horário de verão, em que vários caícos começam a se deslocar em direção a baliza. Apesar de

no máximo enxergar a próxima baliza, os pontos de referência são as torres submersas da

Central Estadual de Energia Elétrica que ficam paralelas.

Entrelaçando as águas de Florianópolis/SC e Tramandaí/RS

No momento da realização das entrevistas com as formas de vida foi possível perceber

que a prática da pesca possui diferentes maneiras de organização, normatização, padronização

e regras que têm por objetivo atender suas necessidades. No bairro Barra da Lagoa,

Florianópolis/SC, os pescadores estão organizados em grupos de pesca e assim, dividem as

parelhas. Já no bairro Tiroleza, Tramandaí/RS, a organização por balizas é pensada para

determinado grupo de pescadores, mas a pesca é realizada individualmente com cada

pescador responsável pelo seu caíco. No entanto, como ocorre determinação da distância, a

fixação da rede de espera e a divisão do espaço e do tempo entre cada baliza? Pretendemos

investigar como eles operam com uma divisão que pode fugir dos moldes escolares, ou seja,

sem utilizar o algoritmo da divisão.

Ainda que em pequenos recortes, procuramos mostrar nossos primeiros “mergulhos”

nas formas de vida dos pescadores artesanais e a existência da unidade de sentido. Como eles

operacionam efetivamente a divisão serão cenas ou escritas para os nossos próximos capítulos

para contar os “saberes das pessoas”.

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Na onda dos saberes

Procuramos gerar visibilidade a diferentes modos de pensar, agir e estar no mundo de

pescadores artesanais de Florianópolis/SC e Tramandaí/RS. Nossa intenção é propor que se

faça intervir os saberes das pessoas para enfatizar as diferentes racionalidades com suas

gramáticas específicas. Como nos diz Foucault (1999, p.12) “o ‘saber das pessoas’ não é de

modo algum saber comum, um bom senso, mas, ao contrário, um saber particular, um saber

local, regional, um saber diferencial, incapaz de unanimidade e que deve sua força apenas a

contundência que opõe a todos aqueles que o rodeiam”.

Assim, gerar visibilidade ao saber local é realizar a insurreição dos saberes, mas “uma

insurreição sobretudo e acima de tudo contra os efeitos centralizadores de poder que são

vinculados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no interior

de uma sociedade como a nossa” (ibidem, p.14). Não se trata de desencavar esses saberes e

recodificá-los ou reconolizá-los por discursos unitários, mas sim exteriorizá-los da margem

em que se encontram, ou ainda, borrar as fronteiras entre os saberes ditos científicos e saberes

não-científicos, colocando-os ao lado.

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