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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA – UNIFOR Vice-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação - VRPPG Centro de Ciências Humanas - CCH Mestrado em Psicologia Lana Mara Andrade Nóbrega Literatura e Psicologia Ambiental: uma análise do livro Memorial de Maria Moura a partir da relação pessoa-ambiente. Fortaleza 2009

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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA – UNIFOR

Vice-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação - VRPPG Centro de Ciências Humanas - CCH

Mestrado em Psicologia

Lana Mara Andrade Nóbrega

Literatura e Psicologia Ambiental: uma análise do livro Memorial de Maria Moura a partir da relação

pessoa-ambiente.

Fortaleza 2009

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Lana Mara Andrade Nóbrega

Literatura e Psicologia Ambiental: uma análise do livro Memorial de Maria Moura a partir da relação pessoa-ambiente.

Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em Psicologia do Centro de Ciências Humanas da Universidade de Fortaleza – UNIFOR, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia, na linha de Pesquisa Ambiente, Trabalho e Cultura nas Organizações Sociais, sob a orientação da Profa. Dra. Sylvia Cavalcante.

Fortaleza 2009

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______________________________________________________________________ N754l Nóbrega, Lana Mara Andrade. Literatura e psicologia ambiental : uma análise do livro memorial de Maria Moura a partir da relação pessoa-ambiente / Lana Mara Andrade Nóbrega. - 2009. 124 f. Cópia de computador. Dissertação (mestrado) – Universidade de Fortaleza, 2009. “Orientação : Profa. Dra. Sylvia Cavalcante.”

1. Psicologia ambiental. 2. Psicologia - análise. I. Título. CDU 159.9:504 ______________________________________________________________________

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Universidade de Fortaleza Mestrado em Psicologia Ambiente, Trabalho e Cultura nas Organizações Sociais

Dissertação intitulada “Literatura e Psicologia Ambiental: uma análise do livro Memorial de Maria Moura a partir da relação pessoa-ambiente” de autoria da mestranda Lana Mara Andrade Nóbrega, submetida à banca examinadora constituída pelos seguintes professores: _________________________________________________________________ Profa. Dra. SYLVIA CAVALCANTE. - Orientadora (Universidade de Fortaleza - UNIFOR) ___________________________________________________________________ Prof. Dr. JOSÉ PINHEIRO (Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN) ___________________________________________________________________ Profa. Dra. LEÔNIA TEIXEIRA (Universidade de Fortaleza - UNIFOR) ___________________________________________________________________ Profa. Dra. VIRGÍNIA MOREIRA (Universidade de Fortaleza - UNIFOR) _____________________________________________________________________ Prof. Dr. HENRIQUE FIGUEIREDO CARNEIRO (Coordenador do Curso de Mestrado em Psicologia – UNIFOR) Fortaleza, ____ de ___________ de 2009 Av. Washington Soares, 1321, Edson Queiroz- Fortaleza, CE – 60.811-905 – Brasil - tel: 55 (0**85) 3477-3000

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Na disciplina de Estética, ainda na graduação de Jornalismo, o Prof. Dr. Márcio Ascerald pediu um dia que nós, seus alunos, trouxéssemos para a aula algo que fosse para nós uma representação da beleza. Eu levei uma foto dos meus pais. Agora, já no mestrado em Psicologia, é mais uma vez a imagem deles que me vem à mente quando penso em beleza. Dedico este estudo a essa beleza que eles despertam em meus olhos. A meus pais: esses dois seres de tantas palavras, de tantos silêncios e de tantos momentos. A esses dois seres que são para mim, lugar. Pausa. Referência. Origem. Lar. A eles, que têm que lidar sempre com o que eu sou e com o que eu deixo de ser. Que amam tão generosamente que sonham para mim sonhos que sequer são meus. Que se entregam a tal ponto que sequer sabem direito onde eles terminam e onde eu começo. Que querem tanto cuidar que teimam em fazer de meus espaços, seus espaços. A meus pais: por toda a graciosidade e encantadora confusão que seu amor gigante me traz. A eles o meu amor mais fiel e a minha gratidão por representarem tudo o que representam.

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Agradecimentos:

Agradeço a Deus, a essa Força maior, a essa Energia que nos guia e acompanha, que

rege nossos espaços e ser. Para mim, se estamos longe dessa energia, é como se

estivéssemos em um rio lutando com as águas com o nosso próprio corpo. Estamos ali,

nos debatendo, soltos, exaustos, tentando sobreviver à violência das águas. Molhados,

engelhados e com frio. Mas quando estamos em sintonia com essa energia maior, é

como se estivéssemos nesse rio dentro de uma canoa sólida. Ainda somos nós ali, na

água. Mas a canoa nos protege. É nela que a força das águas bate. Dessa canoa,

podemos guiar melhor nosso percurso no rio, escolher nossos caminhos sem a falta de

sobriedade da exaustão, do desespero. A canoa nos equilibra, se torna um escudo entre

nosso corpo e o mundo (a água). Ao mesmo tempo, de dentro da canoa, notamos a

fragilidade do nosso corpo. O que nos faz entender muito sobre a vida e a necessidade

de alimentar o espírito. De que o que deve ser enfeitado é nossa alma, e não nosso

corpo. A minha gratidão, então, a essa ‘canoa’, que me faz me sentir acompanhada e

protegida sempre.

Agradeço, mais uma vez, aos meus pais. Adalberto e Socorro. Por sua preocupação

ininterrupta, por seu amor imensurável, por sua dedicação constante, por seu colo

sempre.

Agradeço aos meus irmãos, Nóbrega e Francisco, por torcerem sempre por mim, por

serem companheiros e por acreditarem em mim sempre. Por me incentivarem e por

terem paciência com o mau humor matinal de sua única irmã.

Agradeço à minha avó materna Espedita Moreira (in memorian). A ela que continua

sempre tão presente em mim. Que é ainda lugar e que enfeita ainda a minha vida com o

amor imenso que me deu durante os dezesseis anos que a tive a me mimar.

Agradeço à minha avó torta, Marta Agildes (in memorian), pelas histórias contadas com

exageros, entonações e suspenses na varadinha. Essas histórias ainda continuam a me

embalar.

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Agradeço à minha avó paterna, Adalice Gomes Nóbrega, por sua doçura, orações,

torcida e veia artística.

Agradeço à minha orientadora, a Profa. Dra. Sylvia Cavalcante: por ter sido apoio e

incentivo sempre. Por ter acreditado no meu tema antes que eu mesma tivesse a certeza

de estudá-lo. Por ter ultrapassado as fronteiras acadêmicas e se tornado uma voz e

presença que ilumina a minha vida e escolhas. Obrigada por todas as orientações, no

sentido mais amplo do termo, por essa caminhada de dois anos ter sido feita sempre

com o seu apoio e entendimento. Obrigada, ainda, por eu ter a certeza de seus conselhos

e presença no tempo além-mestrado.

Agradeço aos professores que compõem minha banca: Prof. Dr. José Pinheiro, por

tanta acessibilidade e incentivo. Por ter quebrado a distância hierárquica que às vezes se

faz entre docentes e discentes, por ter me dito palavras que continuarão sempre comigo

e por ter, assim, me feito crer que eu tinha algo relevante a falar. Profa. Dra. Leônia

Teixeira, por sempre ser sinônimo de doçura e sobriedade. Por despertar em mim

sempre a vontade de ouvi-la mais. Pelos livros emprestados durante tanto tempo, pela

confiança e disponibilidade. Pelos conselhos e orientações que me foram tão válidos e

essenciais em minha pesquisa. Profa. Dra. Virgínia Moreira, por sempre me deixar

divagar e por sempre me dar a liberdade de sair dos padrões acadêmicos. Por se

empolgar comigo em minhas viagens escritas, por ser ‘mulher de azul’ e, com isso, me

fazer livre para que eu me enfeite de azul também. – A vocês três, meu muito obrigada!

Pelo seu sim em participar da minha banca, pela sua paciência com as trocas de datas,

pelo tempo que vocês usaram nas leituras e observações em minha pesquisa, por vocês

serem a banca que eu tinha almejado ter.

Alguns professores, ao falarem conosco como alunos, na realidade chegam a tal

profundidade que suas falas entram em nosso âmbito pessoal: no Mestrado em

Psicologia, esse professor foi, para mim, o Prof. Dr. Francisco Cavalcante Júnior. A

disciplina dele me realinhou e me fez ter a certeza de continuar no mestrado. Foi nessa

disciplina que as várias partes de mim entraram em acordo sobre o caminho que meus

pés queriam seguir. Há muito ainda do reflexo de sua disciplina em minha pesquisa.

Muito obrigada por ter sido um grande ‘iluminador de palco’.

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Ao entrar no Mestrado em Psicologia, juntamente com minha grande alegria por tudo o

que eu aprenderia e poderia ter espaço para refletir sobre, veio a preocupação e

dificuldade financeira em dar seguimento a esse curso. Então, meu imenso

agradecimento à CAPES e ao Mestrado em Psicologia, representado na pessoa do

Coordenador Prof. Dr. Henrique Carneiro. Foi a bolsa integral PROSUP-CAPES que

fez acontecer meu percurso nesses dois anos de mestrado. Obrigada de coração ao

fomento que fez esta pesquisa possível.

Agradeço à minha família acadêmica, o Laboratório de Estudos das Relações Humano-

Ambientais, LERHA, da UNIFOR. Em especial à professora Terezinha Elias, pela

doçura, carinho e apoio sempre, e, principalmente, pelo exemplo extraordinário e

contagiante que é; à professora Tereza Matos, por sempre me dizer palavras de apoio,

por sempre torcer por mim, por sempre tecer observações de incentivo e me fazer se

sentir querida; à professora Ângela Araújo, por sua torcida e presença sempre; Aninha,

Salete, Madson, Thiago, Andrezza, Danny, Leo e demais membros do LERHA, que

sempre dão as mãos e enfeitam de sensibilidade o estudo das relações pessoa-ambiente.

Agradeço aos meus amigos-irmãos, que a vida me deu de presente e transformou em

família, que foram já testados pelo tempo e espaços. A eles que sempre têm tanta

paciência comigo e que foram imprescindíveis nessa caminhada acadêmica: Timbal

Filho, meu irmão de alma, por seu companheirismo único, de ontem, de hoje e de

sempre, por sua presença que vence qualquer distância, por sua preocupação e amor, por

ser sempre um sorriso e aceitação, por fazer tudo em seu alcance para sempre me dar a

mão. Cláudia Donato, por ser uma irmã quase de sangue, por me fazer querê-la ao meu

lado para o resto da vida, por sorrir meus sorrisos e chorar minhas lágrimas, por ser colo

certo. Danise Gondim, meu presente de mestrado: que era colega e se tornou amiga e se

tornou irmã, por todas as conversas tidas, por toda a cumplicidade, pelas reflexões e

conclusões, pelas inúmeras risadas e páginas escritas, por ter feito a minha bagagem tão

mais leve e significativa, por ser exemplo e inspiração, por ser meu ouvido acadêmico e

por sempre me dar a segurança confortante de seu aval, por compartilhar comigo os

seus sorrisos, e, assim, também me fazer sorrir. Luiza Matos, por ser parte de mim, por

ser ouvido certo e entendimento, por ser conselheira e consciência, por ser certeza e

vontade de estar-se com sempre. Paula Neves, por ser sempre a risada mais espontânea

e contagiante, por ser minha companheira de praia, por estar sempre de peito aberto para

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me dar conselhos sobre o meu sentir, por ouvir de forma aberta e carinhosa sempre.

Janaína Lisboa, por ser sorriso certo, por ser inteligência agitadora, por sempre me

trazer a sensação de que ‘a vi ontem mesmo’. Ticiana Bezerra, pelo seu constante sim a

qualquer pedido meu e pelo seu apoio sempre.

Agradeço também as minhas amigas de mestrado, que fizeram esses dois anos bem

mais divertidos e reflexivos. Bem como as amigas agregadas que ganhei ao longo de

nossas ‘terapias’ de quinta-feira.

Agradeço a tantos outros amigos, de vida e de momentos. Entre eles, Camila e

Fabrício, o querido casal-doçura pelo apoio e sorrisos certos sempre; Kamila Bossato,

pelas gargalhadas-explosões e reflexões geradas em nossas quartas-feiras; Loredana

Sofia, em muitos sentidos, um anjo em minha vida; Weaver Lima, por ser sócio de

projetos e de sonhos e por me fazer lembrar da parte mais forte de mim.

Agradeço aos professores da graduação que continuam a ser voz constante em mim, são

eles: Prof. Márcio Ascerald, meu eterno orientador; Profa. Kátia Patrocínio; Profa.

Gabriela Reinaldo e Profa. Inês Sampaio. Ainda, agradeço ao Prof. Dr. Ricardo Jorge,

que me orientou e apoiou na especialização em Teorias da Comunicação e da Imagem,

na Universidade Federal do Ceará, UFC, feita juntamente com o Mestrado em

Psicologia.

Agradeço à minha família como um todo: por sempre correr para perto na hora da

alegria e da tristeza. Em especial, agradeço à minha madrinha tia Noeme, por seu apoio,

confiança e carinho sempre. Agradeço também à minha tia Verinha, por ter sempre se

lembrado de oferecer sua ajuda ao longo desses dois anos de mestrado.

A categoria de espaço hoje, mais do nunca, cresceu. Paralelamente ao nosso mundo

físico, temos um outro mundo: virtual por não ser palpável, mas real em relação aos

vínculos que faz criar. Agradeço assim, aos amigos que tenho nesse mundo e que se

misturam à minha vida e espaços concretos e os enfeitam da encantadora complexidade

que vem junto com qualquer coisa humana. Em especial, agradeço ao Fabrizio Lima,

por tantas palavras trocadas, por tantas imagens perfeitas, por tantos sorrisos e

cumplicidade. À Helena, por ser espaço para mim, por ser ouvidos e reflexões; à

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Adriana, por tantas gargalhadas inesquecíveis, por sua leveza, benevolência e bom

humor; à Ká, por tantas dicas literárias e reflexões inestimáveis; à Luna, pelas palavras e

pensamentos conjuntos, pelas sincronicidades e boas intenções; à Luisa, pelas músicas,

vídeos e preocupações com minha pesquisa; à Mari, pelo apoio constante e pelos

sorrisos contagiantes.

Ainda, como não poderia deixar de ser, agradeço aos tantos autores que preenchem esta

pesquisa e a minha vida: de razão-de-ser, de significados e de sentir. De forma muito

especial agradeço à Rachel de Queiroz por ter criado a Maria Moura, por ter escrito

personagens-espaço, por ter criado casas tão repletas de simbologias que permitem que

entremos nelas com nossa alma. Se Rachel de Queiroz foi meu amor nesses dois anos,

Clarice Lispector foi minha amante. Agradeço à Clarice por ela ter existido, por ela ter

sentido tudo o que sentiu: por ela ter sorrido os sorrisos que sorriu, e por ter chorado as

lágrimas que chorou. Clarice foi, e é, o meu ‘cubico’: é nela que guardo o meu cantinho

de sorrisos e reflexões. Ainda, não posso deixar de citar o homem cuja alma eu gostaria

de ter colada à minha: Joseph Campbell, que sempre tem o que me dizer sobre tudo.

Agradeço com toda a intensidade do meu ser à vida. A essa existência terrestre que em

minha opinião nada mais é do que a alma sendo levada à escola. A vida é minha paixão

maior, meio para tudo o mais que se possa experienciar e sentir. A minha gratidão,

então, pelo tempo e espaços que ela me dá. Pelo que ela oferece e desperta.

Se minha lista de agradecimentos é extensa é porque sou pelo outro. É na relação com o

outro, e nos reflexos que eles geram em mim, que se dá a relação comigo mesma. É ao

descobri-los que descubro a mim mesma. É através do outro, seja pessoa, animal, livro,

música, lugar, objeto etc, que me desperto para mim e para minha existência enquanto

ser único. Clarice Lispector diz: “A felicidade aparece para aqueles que choram. Para

aqueles que se machucam. Para aqueles que buscam e tentam sempre. E para aqueles

que reconhecem a importância das pessoas que passam por suas vidas”. E realmente

seriam necessárias muito mais páginas do que as que formam esta pesquisa: porque sou

sim grata a todos os que passaram por minha vida e que são os responsáveis por eu ser

exatamente o que sou hoje e, ainda, por eu ser matéria transforme, que anda de mãos

dadas com o tempo e com os espaços.

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Filmes têm diferentes receitas para grandes sopas, servidas para 300, 400 pessoas por vez. Um livro é

um jantar solitário.

Michael Ondaatje

A palavra pertence metade a quem a profere e metade a quem a ouve.

Michel de Montaigne

A leitura de um bom livro é um diálogo incessante: o livro fala e a alma responde.

André Maurois

O livro já nasceu perfeito, é leve, prático. Ele não precisa de um aparelho para fazer funcionar. Ele só

precisa de você.

Ruy Castro

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Um texto bonito LANA NÓBREGA

Na verdade a beleza é um sorriso. Você vê o que lhe é belo e pronto: você simplesmente sorri. Mas o que é um texto bonito? As imagens que vamos formando, imaginando, à medida que lemos o texto? O sentimento que o texto desperta em nós? Acho que todas as anteriores. A depender do momento, do texto ou do espírito. O que sei é que precisamos de um texto bonito. Precisamos alimentar o que há de belo. Precisamos estimular o que sentimos que é bom, o que nos faz sonhar, o que nos faz ver tudo um pouco mais colorido. Um texto bonito nos traz leveza, nos faz terminar a leitura com um sussurrante “é verdade...!”. Quase como uma confissão a si mesmo. Quase como a mensagem de um anjo que nos foi enviada para que ainda acreditássemos em algo. E não somos nós quem encontramos um texto bonito. É ele que nos acha. Chega às nossas mãos ou vem à nossa mente no momento da precisão. E a verdade é que necessitamos do texto bonito. Que traga à tona boas lembranças, que abrace nossos sonhos, que endosse nossas esperanças. No entanto, creio eu, não é o autor quem faz o texto bonito. Ou se o faz, faz para si – porque é, também, leitor. E é o leitor quem faz o texto bonito. É o leitor quem vê o que de belo há ali. É o leitor quem confessa para si: “é exatamente isso que eu sinto. Que eu precisava ouvir. Perfeito isso!”. Perfeito sim. Porque na verdade só nós somos capazes de reconhecer as peças que nos faltam. E um texto bonito é isso. Um pedacinho seu que estava perdido por aí e que você, de repente, achou.

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Resumo

A Literatura ao guardar relações humanas, é, também, guardadora de espaços. O leitor,

ser onipresente na obra que está sendo lida, expõe-se não apenas à realidade presente na

obra, mas às associações que esta desperta em relação as suas próprias vivências. Em

uma releitura do livro Memorial de Maria Moura (MMM), de Rachel de Queiroz,

percebemos no trecho em que a personagem-título abraça as paredes de sua casa em

despedida, o teor ambiental contido nesta obra. Dessa forma, este estudo constitui-se de

uma análise literária feita a partir da relação pessoa-ambiente presente neste livro.

Como recorte, analisou-se as falas de Maria Moura e a relação dela com os ambientes

presentes em sua vida. Nesta relação, foram identificados alguns conceitos da

Psicologia Ambiental (PA), ramo da Psicologia que estuda as relações pessoa-ambiente.

Entre os conceitos encontrados, foram escolhidos para serem trabalhados ao longo deste

estudo os de territorialidade, apropriação e vinculação ao lugar. Além disso, como

elementos-chave dos estudos dessa área, foram ainda discutidos os Pressupostos da

Psicologia Ambiental nesta análise. Esta pesquisa teve também como objetivo trazer à

tona as possibilidades de estudos da relação pessoa-ambiente através da Literatura. Em

MMM, a presença dos ambientes é tão forte, que a história desta personagem pode ser

contada através de seus espaços. Estes estão presentes de tal forma que podem,

inclusive, serem considerados personagens da mesma. Ao analisar as simbologias dos

espaços de Moura e a relação dela com estes, pode-se entender sobre sua história de

vida, bem como os vários significados presentes nos espaços vivenciados e sonhados

por ela. Ao analisar Maria Moura e seus espaços, percebeu-se que nas obras literárias a

criação paulatina do contexto dado pelo autor e o acesso à intimidade das personagens,

nos permite observar a construção da relação pessoa-ambiente, a formação dos vínculos

com os lugares, bem como suas simbologias e porquês.

Palavras-chave: Literatura; Psicologia Ambiental; Memorial de Maria Moura; Análise

literária; relação pessoa-ambiente.

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Abstract

Literature, because it contains human relations, it is also, a depository of spaces. The

reader, an omnipresent being in the book that is being read, exposes himself not only to

the reality present in the book, but also to the associations that the story awakes in

regard to his own experiences and life. When reading the book Memorial de Maria

Moura (MMM), by Brazilian writer Rachel de Queiroz, we perceived on the scene that

the main character hugs the wall of her house saying good-bye to it, the environmental

issues contained in this book. In such way, this study constitutes a literary analysis

emphasized on the people-environment relation contained in the book. As focus, were

analyzed only the passages of Maria Moura and her relation with the environments

present in her life. In such relation, were identified some concepts of Environment

Psychology, branch of Psychology that studies the people-environment relations.

Among the concepts found, the ones chosen to be studied in this research were

territoriality, appropriation and place attachment. Furthermore, as key-elements to the

studies in this area, were discussed in this analysis the Assumptions of Environmental

Psychology. This research also had as goal to bring light to the possibilities of people-

environment studies present in Literature. In MMM, the presence of the environments

holds such strength that the story of this title-character can be told through them. They

are so present in the story that they can also be considered as characters. When

analyzing Maria Moura and her spaces, it was perceived that in literary works the

author's slow and crescent creation of the context and the access to the intimacy of the

characters allows us to observe the construction of the people-environment relation, the

formation of attachments to the places, as well as their symbologies and reasons.

Key-words: Literature; Environmental Psychology; Memorial de Maria Moura;

Literary analysis; people-environment relation.

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Sumário

I - INTRODUÇÃO........................................................................................................ 16

II - A RELAÇÃO PESSOA-AMBIENTE E A LITERATURA ........................................... 22

2.1 - O TEXTO, A PERSONAGEM, O AMBIENTE ........................................ 33

2.2 - A AUTORA, O LIVRO E O CONTEXTO ............................................... 40

2.2.1 - RACHEL DE QUEIROZ ......................................................... 40

2.2.2 - MEMORIAL DE MARIA MOURA ............................................ 42

2.2.3 - O MASCULINO E O FEMININO EM MMM .............................. 45

III - A PESQUISA: NAS PÁGINAS DE MMM COM UMA LUPA AMBIENTAL ............. 51

3.1 - UMA ANÁLISE DO LIVRO MEMORIAL DE MARIA MOURA – POR

QUÊ? COMO? ..........................................................................................

51

3.1.1 - O OBJETO E O MÉTODO ...................................................... 54

3.1.2 - CONCEITOS DA RELAÇÃO PESSOA-AMBIENTE PRESENTES

EM MEMORIAL DE MARIA MOURA .................................................

57

3.1.3 - A PSICOLOGIA AMBIENTAL E SEUS PRESSUPOSTOS ............. 60

3.1.4 - A INTERPRETAÇÃO DO TEXTO LITERÁRIO E A

INTERPRETAÇÃO DAS RELAÇÕES PESSOA AMBIENTE E O TEMPO ......

61

IV - MEMORIAL DE MARIA MOURA: DO LIMOEIRO À CASA FORTE ................... 65

4.1 - O SÍTIO DO LIMOEIRO .................................................................... 66

4.2 - A ANDANÇA ................................................................................... 81

4.3 – A SERRA DOS PADRES E O ASSENTAMENTO ................................. 97

4.4 - A CASA FORTE ............................................................................... 102

4.4.1 – O ‘CUBICO’ ....................................................................... 106

4.5 - OS LUGARES, OS CONCEITOS E OS PRESSUPOSTOS – ALGUMAS

CONSIDERAÇÕES ....................................................................................

109

V - AS CASAS DE PAPEL E O MEMORIAL DE MARIA MOURA ................................ 111

VI - CONSIDERAÇÕES FINAIS: DE MÃOS DADAS COM MOURA .............................. 117

VII - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 120

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I – Introdução

A Literatura não é espelho do mundo social, mas parte constitutiva desse mundo.

(Facina, 2004, p. 25)

Ao escrever, imprimimos algo no papel. Esse algo, antes pertencente ao

pensamento, ao ser escrito pertence ao mundo material. Escrever, então, é fazer existir.

É criar. É jogar no mundo o algo que estava dentro. Escrever é construir: as palavras,

tijolos, são instrumentos materiais do cimento pensante. O escrito, edifício construído,

gerará então percepções, opiniões, acepções nos que lá criam moradas (leitores). Como

objeto que absorveu tempo, um livro lido é espaço habitado. É lugar repleto de

significações e interpretações.

Por ser objeto criado pelo homem, construído pela mão humana, um livro, ao ser

criado, existe no mundo: ocupa tempo e espaço. Como ser inerte e não-perecível, apenas

nasce. Ao ser constantemente impresso (ou disponibilizado), ultrapassa gerações e nasce

de novo e de novo, em um nascimento em espiral: como se se juntasse a um ponto

parado no tempo, o movimento contínuo do tempo. Um livro, salvo especificidades

históricas, não morre.

Ao nascer, uma pessoa recebe um nome, alcunha que a identifica e particulariza:

essa pessoa é única, com suas características físicas e de personalidade. E, ao longo de

sua vida, essa pessoa provocará inúmeras interpretações, conclusões e significações nas

pessoas com quem tem contato. Essas perspectivas variarão de indivíduo para indivíduo

uma vez que esses também serão diferentes uns dos outros, também serão únicos em sua

existência. Por essa peculiaridade do ser humano, tudo o mais que existe em seu mundo

também parece ser único se minimamente olhado de perto e conhecido: um prédio que

parece ser igual a tantos outros, se acompanhado no movimento e no cotidiano dos que

o habitam será também único.

Parece-me que a qualquer coisa que o homem submete a sua percepção

(interpretação), essa ‘coisa’ estará arraigada de uma constituição mundana subjetiva que

automaticamente lhe confere as variantes de espaço e tempo. Ter a presença simultânea

dessas duas variantes significa estar situado – estar em um ponto preciso no eixo das

linhas temporal e espacial, estar ciente do foco, do momento, da posição. O

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posicionamento é uma forma de trazer à tona a peculiaridade que toda interpretação

cria.

Os livros também se submetem a isso. Olhado de perto, um livro é uma caixa de

coisas humanas: assim, lá estão guardadas um número de coisas do mundo do homem.

Às vezes, essas coisas que estão ‘lá dentro’ do livro se parecem tanto com as que estão

‘aqui fora’ que ele parece ser cópia do mundo. Muitas vezes, inclusive, ele é escrito sob

essa perspectiva. Mas, aglutinação de pensamentos humanos que é, um livro, mesmo

que se pareça com o mundo real, na verdade constitui-se parte dele. É um fragmento da

realidade. O livro é, ao mesmo tempo, recorte, recriação, interpretação e representação

do real. O livro é, estando: ou seja, existe a partir do momento em que se deixa fluir

dentro do tempo de leitura. Sua existência é um processo. E como ao estar supõe-se um

tempo limitado, o livro, objeto humano, existe pelo homem. E é o homem quem

conferirá ao livro sua significação e valor.

O objeto de estudo desta pesquisa é o texto literário. No entanto, como tentei

expor até aqui, a esse objeto somam-se três outros: o homem (pessoa), o espaço

(ambiente) e o tempo (do leitor e da obra). Como criação, o livro automaticamente está

sujeito a pelo menos dois tipos de perspectivas: a de quem o criou e a de quem o

observa. Ao escrever um livro, o autor o impregna de valores humanos, de fatos e coisas

que outros humanos identificarão – inclusive por esse pertencer a um código lingüístico,

lugar, cultura e tempo. “Um livro é como uma casa” (Matta, 1997, p. 11). Ao abri-lo,

ao começar a lê-lo, vamos entrando na casa, olhando cada vão, prestando atenção nos

detalhes, nas relações e sentimentos das pessoas daquela casa. Ao passarmos tempo

nessa ‘casa’, reconhecemos nela seus espaços, seus ambientes, o valor que cada lugar

significa para as personagens que estão ali dentro.

Dentro desse âmbito, esta pesquisa nasceu ao observarem-se as relações que a

personagem literária Maria Moura tem com os ambientes de sua história. Perceberam-se

então na Literatura possibilidades de estudos sobre as relações pessoa-ambiente (p-a).

Para esta pesquisa, foi escolhida a obra que a suscitou: Memorial de Maria Moura

(MMM), de Rachel de Queiroz (1992). Ao estruturar os passos que deveria seguir para

este primeiro olhar sobre a inter-relação entre pessoa e ambiente em obras literárias,

imaginou-se e discutiu-se que questões poderiam guiar este estudo exploratório. Como

reprodução do mundo humano, poderiam ser identificadas na Literatura as relações

pessoa-ambiente existentes no mundo real? Se assim o fossem, elas poderiam então

estar sujeitas às mesmas formas de análise empregadas no mundo real? Estariam os

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conceitos dos estudos pessoa-ambiente presentes na Literatura? No ambiente de Maria

Moura, que conceitos poderiam ser identificados? Que ferramentas usar para analisar

essas relações e conceitos? A Psicologia Ambiental (PA) – área da Psicologia que

estuda as relações pessoa-ambiente – serviria para a análise de um cotidiano ficcional?

Entre esses e outros questionamentos que surgiram à medida que se adentrou no

universo de Maria Moura e por inúmeras contribuições dos que acompanharam esta

pesquisa, essas perguntas nortearam o explorar desse novo terreno. A leitura da obra,

como não podia deixar de ser, transformava-se sob meus olhos. Elementos não vistos

antes, apareciam sob outras simbologias. O Modernismo regionalista de Rachel de

Queiroz me fazia engolir sua prosa seca e econômica em goles grandes. As

transformações de Maria Moura pareciam ocorrer em mim, iniciante no mundo da

pesquisa. E à medida que Maria Moura construía seus espaços, outros eram construídos

aqui, no mundo do qual o mundo dela faz parte: e suas paredes abraçadas eram também

abraçadas por mim, em um caminhar firme e constante de entender seu espaço e tempo.

Assim, na estrada construída ao longo deste estudo, percebi-me trilhando os

passos de uma análise literária. Um certo alívio gerou-se em mim: a Jornalista,

cursando mestrado de Psicologia e pesquisando Literatura, estava de volta ao mundo da

Comunicação Social: de volta ao mundo dos textos e reflexões que fazem nascer a

construção textual. Os espaços vistos sob os códigos verbais tomaram uma dimensão

maior: uma dimensão livre, uma dimensão interpretativa e fenomenológica. Era repórter

exclusiva a vasculhar intimamente Maria Moura. Intimamente: uma palavra de gozo

para qualquer jornalista.

Ao falarmos do homem, falamos de seus espaços; ao falarmos dos objetos do

homem, falamos também de seus espaços. Dessa forma, o homem, embora tenha

natureza móvel, uma vez que é um ser que não apenas se movimenta, mas que cria

ferramentas e meios para melhor se transportar, o homem é também indissociável do

chão por que passa e das paradas que faz ao longo de sua vida. A vida de uma pessoa é,

assim, a junção de seus espaços: dentro de uma única vida ressoam diferentes

existências, marcadas pelos ambientes em que se passaram. “As ressonâncias

dispersam-se nos diferentes planos da nossa vida no mundo; a repercussão convida-nos

a um aprofundamento da nossa própria existência” (Bachelard, 1998, p. 7). Ao

pensarmos sobre os nossos espaços, refletimos sobre nós mesmos. Não se quer dizer

com isso que uma vida que se passa em um único ambiente seja mais superficial que

outra de diversos: a experiência ambiental é bem mais complexa que o plano

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geográfico. “Para bem apreciar como podem variar as atitudes ambientais, necessitamos

conhecer alguma coisa da fisiologia humana e da diversidade do temperamento” (Tuan,

1980, p. 54). Por buscar estabilidade para lidar com o dia a dia, com o clima e com suas

atividades, as pessoas têm algumas constantes no seu comportamento com o ambiente;

as infinitas peculiaridades que escapam a essas constâncias cabem aos elementos

culturais, temporais e subjetivos de cada ser humano: ao que foi chamado de

“intercâmbio dinâmico” (Rivlin, 2003, p. 216) entre as pessoas e os ambientes – sejam

esses físicos ou imaginários.

Ao se decidir tirar uma foto, por exemplo, necessita-se primariamente de duas

coisas: 1] o foco – ou seja, a escolha do objeto que será capturado na foto; 2] da

máquina – instrumento para a apreensão da imagem escolhida. Para as relações

humano-ambientais essa analogia também se aplica: 1] ao se escolher o ambiente que

será observado; 2] ao se escolher a ferramenta de análise desse ambiente e das relações

nele contidas. Poder-se-ia escolher como ferramenta, por exemplo, a Sociologia, ou a

Geografia, ou mesmo a Lingüística. Neste estudo, escolhemos como ferramenta de

análise o ramo da Psicologia que estuda as relações pessoa-ambiente: a Psicologia

Ambiental (PA).

Pode-se entender a Psicologia Ambiental como a disciplina que tem por

objeto o estudo e a compreensão dos processos psicossociais derivados das

relações, interações e transações entre as pessoas, grupos sociais ou comunidades e

seus entornos sócio-físicos. Como disciplina, divide com outras disciplinas um

campo de estudo comum configurado pelo conjunto de fenômenos que implicam

diretamente as pessoas e seus entornos (Valera, 1996, p. 2).

Este estudo constitui-se, então, de uma análise literária feita a partir da relação

pessoa-ambiente. Concentrei-me, assim, em estudar, no texto literário de Memorial de

Maria Moura, as relações entre as pessoas e os ambientes nele contidas. No primeiro

momento da apresentação desta pesquisa, discuti sobre a relação pessoa-ambiente e a

Literatura, como forma de introduzir a temática de uma maneira geral, abordando o

âmbito maior das possibilidades de estudos pessoa-ambiente no universo das obras

literárias e fazendo um breve passeio sobre possíveis exemplos desse tipo de reflexão.

Entrei então no campo específico deste estudo, falando sobre a história criada pela

escritora cearense Rachel de Queiroz e desmembrei os três componentes textuais desta

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análise: o texto, a personagem e o ambiente, refletindo também sobre a questão do

masculino e do feminino em relação à terra – ponto bastante presente na obra. Ainda,

conversei sobre os conceitos da relação pessoa-ambiente e sobre quais deles serão

discutidos nesta análise de MMM.

Na parte seguinte deste estudo, entrei na pesquisa propriamente dita, aonde

explanei sobre o ambiente que este trabalho aborda, o método utilizado e o objeto

pesquisado, e apresentei uma reflexão sobre as diferenças e semelhanças da

interpretação do texto literário e da interpretação das relações pessoa-ambiente.

Uma vez preparado o terreno das discussões que são propostas neste estudo, expus

o livro em questão: do Limoeiro à Casa Forte – que são os ambientes principais da obra.

Analisei então os ambientes e caminhos do percurso da personagem-título do livro de

Rachel de Queiroz. Utilizando trechos do próprio livro, argumentei sobre as relações p-

a que nele se encontram e analisei, à luz dessas, o contexto de Maria Moura, que muitas

vezes se encontra sob a narração da própria personagem-título. Cada parte da obra foi

por mim dividida de forma a fazer uma análise mais pausada, pontuada e refletida dos

ambientes da obra e de suas impressões em Maria Moura. Em cada espaço e ambiente

analisado, tratei dos conceitos dos estudos pessoa-ambiente encontrados em MMM e

dos pressupostos da Psicologia Ambiental que podem ser identificados nessa inter-

relação.

No último capítulo desta dissertação, me dei a concessão de me ‘libertar’ um

pouco do objeto-foco desta pesquisa e adentrar uma discussão que intitulei as casas de

papel, aonde versei sobre as diversas escritas que adentram os estudos pessoa-ambiente

que foram citadas ao longo deste estudo, e expus alguns questionamentos sobre as

percepções e criações humanas acerca do mundo em que vivem e dos ambientes que

habitam ou imaginam. Essa parte da minha pesquisa visa a ser uma exposição de alguns

dos diversos textos artísticos com os quais entrei em contato por um motivo ou outro ao

longo da construção desta pesquisa. Esses textos alimentam a discussão sobre as

possibilidades do texto literário e artístico para os estudos pessoa-ambiente. Finalizei

esse capítulo fazendo uma conexão com o objeto principal pesquisado aqui.

Por último, expus as considerações acerca dos dois anos desta pesquisa e sobre os

pensamentos e reflexões que ela gerou em mim. Antes desses dois anos, eu e Maria

Moura estávamos guardadas em casa, protegidas das transformações que se seguem a

reflexões constantes. Hoje, eu e Maria Moura andamos livres: porque conversar liberta.

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E este trabalho é, acima de tudo, isso: uma conversa. É um adentrar no mundo

acadêmico: é um rito de passagem ainda adolescente.

Maria Moura agora ocupa minha estante enfeitada de pessoas e espaços. Maria

Moura não é mais personagem-título apenas: é mulher que pensa e sofre suas paredes, é

pessoa que sonha com a casa perfeita, é chefe-de-família que protege e mantém o lar, é

lugar.

A mim, transformada também pelos espaços de Maria Moura, resta seguir com

minha “lupa ambiental”: a buscar a próxima casa, a próxima estrada, o próximo

assentamento, o próximo espaço que guarde em si possibilidades. Possibilidades: um

nome que faz sorrir qualquer pesquisador. Pronto, nasci no mundo da pesquisa.

Tomando emprestadas as palavras do cineasta espanhol Pedro Almodóvar: "Nós

ficamos mais autênticos quanto mais nós nos parecemos com o que sonhamos que

somos". E sou, neste momento, uma pesquisadora a apresentar Maria Moura através de

seus ambientes.

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II – A relação pessoa-ambiente e a Literatura

A Literatura, mais do que os levantamentos das Ciências Sociais, nos fornece informação

detalhada de como os seres humanos percebem seus mundos.

(Tuan, 1980, p. 56)

É cedo da manhã, estava adormecida e, ao ouvir um barulho conhecido, acordo.

Abro meus olhos e vejo o teto do meu quarto. Olho para o lado e vejo minha mesinha de

cabeceira: nela, o copo com água que sempre levo para o quarto antes de dormir, o

celular que acabara de tocar o alarme, o livro da Clarice Lispector que estou lendo no

momento, a pilha de cds que escolhi para ouvir durante a semana, e o aparelho de

telefone. Saio debaixo das cobertas e piso no chão frio de azulejos. Levanto-me, já

sabendo da rotina do dia: caminho para o meu banheiro, que fica a apenas alguns passos

da minha cama e lavo o rosto. No espelho, uma face conhecida. Olho para ela há vinte e

nove anos e alguns meses. Enxugo o rosto e volto para o quarto. Apoiando o joelho

sobre a cama, abro a minha janela: vejo então a parede verde do jardim e a planta que

foi escolhida para aquele local para que eu começasse meu dia olhando para ela.

Caminho para a porta do quarto. Abro-a. Encostado nela, como em todas as manhãs,

está um cachorrinho cinza. O meu cachorrinho cinza. Sorrio. Faço-lhe alguma gracinha.

Vou até a cozinha: o cheiro de café já a perfuma. Lá, dou meus abraços matinais: bom

dia, pai; bom dia, mãe.

No parágrafo acima, descrevi os primeiros minutos de minhas manhãs: como não

poderia deixar de ser, ao contá-los, contei também sobre espaços que fazem parte da

minha vida, o contexto do qual faço parte também foi minimamente exposto. A

presença humana exige espaço: existir pressupõe existir em algum lugar. No pequeno

texto escrito, vários elementos sobre lugares já vieram à tona: a cama, que está dentro

do quarto, que está dentro da casa que tem pais e cachorrinho: lar; a mesinha de

cabeceira com objetos por mim escolhidos: personalizei esse espaço; a planta no jardim

me remete à decisão de sua escolha: vínculo; ao abrir a minha janela, faço sempre o

mesmo movimento, apóio o joelho sobre a cama, técnica criada ao longo do tempo: esse

espaço me é conhecido, já sei como lidar com ele. O percorro fisicamente, mas já o

tenho desenhado em minha imaginação, sei seus limites geográficos, desde o quintal até

a entrada. A porta da frente da casa divide a fronteira do que é meu: ao cruzá-la já não

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estou na minha casa e necessito ter mais cuidado com minhas ações. As regras da rua

não são as da casa. Mas ali ainda é a rua da minha casa e, por isso, ainda é espaço

conhecido e me sinto confortável com isso.

O sentir-se confortável define minha experiência com esse espaço, transformando-

o em lugar. “O lugar é segurança e o espaço é liberdade” (Tuan, 1980, p. 3). No

exemplo dado da rua da minha casa, entra um dos pontos-chave na relação do ser

humano com o ambiente: a referência. Criador natural de referências, o homem tem

nessas dois regentes principais: o espaço e o tempo. “O espaço é como o ar que se

respira. (...) Para sentir o ar é preciso situar-se, meter-se numa certa perspectiva. (...)

Para que se possa ‘ver’ e ‘sentir’ o espaço, torna-se necessário situar-se” (Matta, 1997,

p. 29). Ao situar-me, encontro-me não apenas em um ponto preciso no espaço, mas em

um ponto preciso no tempo. “Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo

comprimido. É essa a função do espaço” (Bachelard, 1998, p.28). Se me situo por

minhas lembranças, posso pensar na casa em que minha família e eu morávamos

quando eu era pequena: esse lugar pertence a outro tempo, mas está também no presente

através de meus pensamentos, de minhas recordações. Se eu for visitar essa casa hoje,

ela me será estranha: porque mesmo que seja a mesma casa, já não o é como eu a

conheci. Ela está a acumular um outro tempo agora: outras pessoas imprimem nela as

suas marcas e lembranças. Não só eu me transformei com o tempo: a casa também se

transformou. Mas a casa continua lá: a guardar nela o tempo em que vivi e a guardar o

tempo dessas novas pessoas. Dessa forma, “o espaço é a acumulação desigual de

tempos” (M. Santos, 1982, p. 10): o espaço sempre guardará em si o tempo. Isso

acontece porque o espaço é matéria humana primeira; já que até nós mesmos somos

espaço enquanto corpo, conteúdo físico; já que o espaço, como diz já o nome que lhe

demos, é guardador, é receptáculo de tudo o mais que possa existir. Assim, estamos no

espaço porque ele faz parte de nós, mesmo que às vezes nós não assimilemos isso, ou

mesmo que não precisemos estar sempre conscientes disso.

Assim, é tão natural para nós estarmos no espaço, uma vez que existimos nele, que

muitas vezes só ao refletirmos sobre ele podemos perceber um número de aspectos que

nos passam despercebidos. “O espaço seria, em primeiro lugar, aquilo que podemos

perceber através do nosso corpo. O espaço que ocupo seria, especialmente, aquele que

vejo” (L. Santos & Oliveira, 2001, p. 68). Num outro momento, no entanto, o espaço

que vejo não seria o único que ‘enxergo’, que percebo: isso porque posso, através de

inúmeras ações – como com uma observação mais próxima, ou com um texto que

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remeta a um espaço que deva ser por mim imaginado, ou com uma lembrança de um

espaço que experienciei no passado – ver além do que o que os meus olhos percebem

fisicamente. O espaço pode ser, assim, sentido. Mas, para que fique mais clara a

nomenclatura utilizada neste estudo: “‘espaço’ é mais abstrato que ‘lugar’. O que

começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o

conhecemos melhor e o dotamos de valor” (Tuan, 1980, p. 6). Dessa forma, lugar é todo

espaço que tem significado. As relações de uma pessoa com os espaços e lugares

diferem, dependem de um conjunto de aspectos, como idade, cultura, experiências de

vida, personalidade, limitações físicas, momento histórico etc. Assim, ao lugar confere-

se um valor subjetivo.

É importante essa caracterização entre espaço e lugar porque são esses ambientes

que propiciam nossas relações com o meio. E, se o lugar me guarda, o espaço me

liberta. “A natureza tem uma maneira muito simples de nos espantar: é fazer coisas

grandes” (Bachelard, 1998, p. 132). No mundo dos homens, há duas categorias

principais de ambientes: o natural, que é ou foi formado pela própria Natureza; e o

construído, que vai desde obras arquitetônicas (casas, edifícios etc), a espaços

construídos através de textos (literários, poéticos etc), a espaços virtuais (rede mundial

de computadores, ambiente virtual etc) – ou seja, espaços que são criados a partir da

ação do homem. Mas essas categorias não definem o que é espaço ou lugar para uma

pessoa: “se pensamos o espaço como algo que proporciona o movimento, então lugar é

pausa; cada pausa no movimento torna possível que a localização se transforme em

lugar” (Tuan, 1980, p. 6). Essa possibilidade de consciência do poder de transformação,

de valoração do espaço, é uma característica humana. Assim, “por mais que a natureza

faça coisas grandes, o homem imagina facilmente coisas ainda maiores” (Bachelard,

1998, p. 133).

O homem é criador de espaços e lugares: o homem é criador de movimento e

pausa. Modificador que é, o homem se apropria do meio em que vive e nele imprime a

sua presença. Ao tentar capturar o ambiente ao seu redor, ou a exprimir suas impressões

e sentimentos a respeito desse mundo, o homem registra a sua leitura do tempo e do

espaço em que vive. “Toda criação literária é um produto histórico, produzido numa

sociedade específica, por um indivíduo inserido nela por meio de múltiplos

pertencimentos” (Facina, 2004, p. 10). Ao criar qualquer registro, o homem utiliza uma

ou mais formas de linguagens, de códigos culturais e temporais que materializam seu

pensar e sentir. “Toda linguagem interpreta o real de um determinado modo” (L. Santos

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& Oliveira, 2001, p. 46). A arte seria então uma maneira do homem guardar tempo e

espaço: a relação do homem com o ambiente que o cerca está nela impressa. Voltolino,

por exemplo, foi o personagem do artista Lemmo Lemmi nos tempos da Velha

República (1889 – 1930) no Brasil. Esse personagem integrava o dia a dia de São Paulo

e gozava de enorme popularidade. Mas “pertenceu de tal modo à sua época que nela

ficou mergulhado no mais completo esquecimento” (Belluzzo, 1992, p. 7). No entanto,

ao olharmos as várias situações existentes nos desenhos de Voltolino voltamos ao tempo

a que ele pertenceu e à São Paulo que ele representa e comunica. A arte tem esse poder:

ela expressa um tempo. E, ao expressar um tempo, expressa lugar. Lugar e tempo

envoltos no contexto sentimentos que ela faz despertar.

A arte expressa a vida vivida, mas acrescentando-lhe um artifício: ao fazer

isto, expressa-a e reproduz-la de maneira ainda mais ‘verdadeira’; porque viver e

não saber sentir, é sentir de maneira confusa, misturando (porque uma sensação

contém múltiplas outras). Só a arte permite aprender a sentir, sentir melhor, sabendo

o que se sente e sentindo mais intensamente. Neste sentido, a arte prolonga a vida.

(Gil, 1988, p. 232).

Embora não concorde que a arte seja a única maneira de aprender a sentir, ela é

com certeza um instrumento importante nesse processo: é uma forma relevante de se

apreender sensações acerca da vida e de suas realidades. A arte permite uma sublimação

da vida: permite o sentir através de nossas limitadas formas de linguagens. A arte é

“uma espécie de emulação nas surpresas que excitam a nossa consciência e a impedem

de cair no sono” (Bachelard, 1998, p. 17). A arte não é um espelho ou uma cópia da

vida, mas um registro de um fragmento de vida: de um momento, espaço, sentimento,

fato, tempo, percepção etc. A arte é vida guardada em si mesma: faz parte do mundo

que a cria: como criatura, guarda seu criador em si. A arte excita os sentidos do homem

acerca do mundo em que vive.

Para esta pesquisa, nos centraremos em um tipo específico de arte: a Literatura. “A

literatura é uma recriação verbal da realidade através da imaginação do artista” (Ataide,

1974, p. 3). A noção de recriação da realidade é consistente na medida em que a arte

literária estará sempre impregnada da visão de seu autor em relação a sua própria

subjetividade, pensamento e espaço. Assim, a Literatura é parte do mundo porque é, em

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suma, a leitura de um mundo – seja esse baseado no real, ou seja fruto da imaginação do

artista. Ainda, ao tratar do conceito de Literatura, temos que:

Geralmente, quando nos referimos à literatura, pensamos no que

tradicionalmente se costuma chamar “belas letras” ou “beletrística”. Trata-se,

evidentemente, só de uma parcela da literatura. Na acepção lata, literatura é tudo o

que aparece fixado por meio de letras – obras científicas, reportagens, notícias,

textos de propaganda, livros didáticos, receitas de cozinha etc. Dentro deste vasto

campo das letras, as belas letras representam um setor restrito. Seu traço distintivo

parece ser menos a beleza das letras do que seu caráter fictício ou imaginário.

(Cândido, Rosenfeld, Prado, Gomes, 2005, p. 11-12).

Assim, nos termos deste estudo, ao nos referirmos à Literatura, estamos nos

referindo ao campo também conhecido como “belas letras”; ou seja: trataremos aqui do

estudo de obras literárias.

As obras literárias apresentam projectos de sentido capazes de aprofundar e

alargar os horizontes de percepção e motivação daquele que o compreende. Elas

apresentam a realidade sob uma perspectiva que põem em relevo momentos não

observados naquela e desafia a compreensão que o receptor tem de si próprio e do

mundo. (Bredella, 1989, p. 131).

A literatura pode me permitir, enquanto leitora, perceber em suas entrelinhas

coisas que estavam nas entrelinhas da realidade, da minha vida cotidiana, por me

apresentar relações e situações com as quais eu posso me identificar e sobre as quais eu

posso refletir em um tempo e espaço que são meus, já que a relação com o livro sou eu

quem crio. No entanto, o papel da Literatura não é apenas

descobrir o que está escondido, mas sim tornar visível o que precisamente é

visível – ou seja, fazer aparecer o que está tão próximo, tão imediato, o que está tão

intimamente ligado a nós mesmos que, em função disso, não o percebemos.

(Foucault, 2004, p. 44).

Assim o temos: um produto da mente humana que fala sobre a mente humana: um

produto do nosso mundo que fala sobre o nosso mundo – que fala também das relações

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presentes nele. O que seria então essa relação entre o homem e o seu mundo, entre as

pessoas e os seus ambientes? Não há de se negar que a minha casa é um lugar querido

para mim: é lar. Este é um sentimento fácil de ser entendido já que produz uma

identificação em muitos. Mesmo que minhas lembranças não remetessem a uma casa

feliz, “todo espaço realmente habitado traz a noção de casa” (Bachelard, 1998, p. 25), o

espaço que me gere conforto e segurança é um lugar que remete a boas significações.

Assim, se o homem, esse ser social, que civilizou a si mesmo, que é heterogêneo

enquanto etnia, personalidade, pensamento, valores etc, vive em um mundo que, mesmo

sem a presença dele já teria em si infinitas variantes ambientais, como o clima, o solo,

os animais etc, como englobar de alguma forma tantos aspectos? Como aglutinar o

homem e seus ambientes em um mesmo conjunto? A primeira reflexão é que não há

como dissociar os dois: o homem é parte do ambiente e o ambiente, ao ser submetido à

presença e observação humanas, tem sua existência intrinsecamente ligada à existência

do próprio homem. Além disso, temos que:

Às vezes é preciso restaurar as partes perdidas, encontrar tudo o que não se vê

na imagem, tudo o que foi subtraído dela para torná-la ‘interessante’. Mas às vezes,

ao contrário, é preciso fazer buracos, introduzir vazios e espaços em branco, refazer

a imagem, suprimir dela muitas coisas que foram acrescentadas para nos fazer crer

que víamos tudo. É preciso dividir ou esvaziar para encontrar o inteiro. (Deleuze,

1990, p. 32).

Em contraponto às divisões e afunilamentos necessários para que se possa

começar a entender determinado fragmento – pausa espaço-temporal – da realidade

humana, é um conhecimento prévio que “o estudo das atitudes e dos valores do meio

ambiente é extraordinariamente complexo” (Tuan, 1980, p. 284). O homem é, ao

mesmo tempo, impregnado do seu meio e fragmentador desse, uma vez que recria suas

interpretações a partir de sua realidade, reage ao que está à sua volta, e comunica, a

partir de sua percepção, sua leitura de mundo, suas relações com o meio. Assim temos

que o homem influencia o meio e que o meio influencia o homem. Em seus ambientes

construídos, o homem interfere diretamente no espaço que trata. O homem constrói

casas e cidades, jardins e praças, piscinas e barragens, carros e foguetes. O homem

registra imagens de sua realidade: desenhos, pinturas, fotografias, filmes. O homem cria

além do que vê: o homem fantasia. Uma pessoa, sentada em uma grama, pode percorrer

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em sua mente todo o trajeto de volta à sua casa: ao terminar de imaginá-lo terá

‘chegado’ em casa sem sequer sair do lugar em que estava sentado. É do ser humano a

capacidade de absorver de tal forma o que lhe é conhecido, que desenvolve caminhos

mentais que o fazem não apenas reconhecer seus ambientes, como representá-los.

“O espaço, habitação do homem, é também seu inimigo a partir do momento em

que a unidade desumana da coisa inerte é um instrumento de sua alienação” (M. Santos,

1982, p. 23). O espaço fechado, que é lugar, circunscreve limites ao homem – sejam

esses limites emocionais ou físicos. Em termos concretos, ou ele ultrapassa fisicamente

as barreiras geográficas desse lugar para ir além, ou apóia-se em sua imaginação para

fazê-lo. À imaginação não são conhecidos limites; salvo possíveis barreiras ou filtros

culturais, de crenças ou psicológicas, é inata ao homem a construção mental de fatos,

pessoas e lugares.

Algumas vezes, no entanto, como no exemplo da literatura, as experiências de

espaço e lugar ganham formas universais, maiores, sensíveis, criativas em

originalidade, segundo o gênio do escritor, tornando as mesmas acessíveis e

conhecidas por muitas pessoas, ainda que de modo conceitual indireto. (Lima, 1999,

p. 156).

A Literatura exerce assim um papel social: mostra, expõe. O que se verá nela, no

entanto, se deixará depender de cada leitor, de sua percepção, interpretação e olhar. “A

grande literatura só adquire sentido na medida em que é recriada pelo leitor” (Leite,

2002, p. 144). Essa recriação, a partir das pessoas e ambientes com que se tem contato

no texto literário, permitirá uma relação única: entre o leitor e o livro. "Quando escuto

ou leio, as palavras não vêm sempre tocar significações preexistentes em mim. Têm o

poder de lançar-me fora de meus pensamentos, criam no meu universo privado cesuras

onde outros pensamentos podem irromper" (Merleau-Ponty, 1980, p. 145). A Literatura

tem o poder de despertar pensamentos, pois apresenta ao leitor uma série de elementos

que não têm outra forma de serem recebidos senão por serem interpretados. “A cada vez

que entramos em contado com um texto literário, o que encontramos são restos que nos

escapam e o inominável que nos inquieta” (Radaeli, 2007, p. 105). Se a interpretação

que se faz virá por meios de reflexões e associações ou não, dependerá de cada leitor;

no entanto, a leitura de uma obra suscitará sempre a possibilidade de reflexões acerca da

realidade do leitor.

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A ficção é um lugar ontológico e privilegiado: lugar em que o homem pode

viver e contemplar, através de personagens variadas, a plenitude da sua condição, e

em que se torna transparente a si mesmo; lugar em que, transformando-se

imaginariamente no outro, vivendo outros papéis e destacando-se de si mesmo,

verifica, realiza e vive a sua condição fundamental de ser autoconsciente e livre,

capaz de desdobrar-se, distanciar-se de si mesmo e de objetivar a sua própria

situação. (...) Através da arte, disse Goethe, distanciamo-nos e ao mesmo tempo

aproximamo-nos da realidade (Rosenfeld, 1992, p. 48-49).

E o que é a realidade humana? Sabe-se que cada ser humano emprega sua

subjetividade em suas ações. O homem é, assim, um produtor de diferenças, um

produtor de realidades, um produtor de percepções. A minha realidade tem a ver não

apenas com meu contexto sócio-cultural – cidade e país onde moro, cultura da qual faço

parte, língua que falo etc, mas com o meu ser, a minha individualidade e percepção:

como eu absorvo e lido com o que está ao meu redor, como me adapto à minha cultura,

como lido com culturas diferentes da minha etc. Ao longo da trajetória de uma pessoa,

diferentes experiências de vida são produzidas, diferentes realidades são conhecidas e

vivenciadas. E o homem é um comunicador de realidades: ao expressar-se, pode

condensar nessa expressão a conjuntura e complexidade de seu ser naquele dado

momento. E como o tempo do homem é fluido e efêmero, é um tempo que se repete: a

realidade de um homem reapresenta-se constantemente: suas experiências só deixam de

ser novas quando cessam de acontecer. Em seu livro Água Viva (1973), Clarice

Lispector diz: “Mesmo que eu diga “vivi” ou “viverei”, é presente, porque eu os digo

já” (p. 19). A língua, código verbal, tem o poder de guardar o tempo, de expressar

passado ou futuro no presente de quem fala. Assim o faz a Literatura: referências

artísticas de uma língua, as obras literárias pertencem ao presente: não importa de que

época sejam – mesmo que sejam representantes da época em que foram criadas. O livro

existe ao ser lido: o livro nasce junto com as percepções de seu leitor. O livro é talvez

como uma ave que só passa a existir ao ser chocada: o livro é um ovo: é possibilidade

de nascimento.

Existe uma história infantil criada por Pedro Bandeira (1989) intitulada O

fantástico mistério de Feiurinha, em que a personagem do título havia desaparecido:

assustadas com esse fato ter acontecido depois de Feiurinha também ter recebido ao

final de sua história o famoso “e viveram felizes para sempre...”, todas as princesas

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encantadas – Branca de Neve, Cinderela, Bela Adormecida etc – vão atrás de saber o

que aconteceu com Feiurinha; já que se algo havia acontecido com ela, também poderia

lhes acontecer. Ao final da aventura, descobrem que Feiurinha havia desaparecido

porque ninguém mais contava a sua história. Está aí o propósito de uma história: ser

contada. Está aí o propósito de um livro: ser lido. A função de uma obra literária é

exercida através das sensações que esta causa em seu leitor. Como epígrafe no livro de

Pedro Bandeira (1989) está uma frase de Marisa Lajolo que resume esta noção: “A obra

literária é um objeto social. Para que ela exista, é preciso que alguém a escreva e outro

alguém a leia” (pág. 5).

O mesmo processo se dá na formação de um lugar ou, para melhor dizer, na

transformação de um espaço em lugar. É necessário que o espaço exista e que alguém

faça dele um lugar: a presença humana é criadora de relações. Horácio Dídimo (2002)

escreve em sua poesia: “ela foi embora/mas as palavras que ela disse ficaram/e

conversaram muito tempo ainda” (p. 31). Esse ficar explicita a reflexão que a Literatura

provoca. É a partir dessa reflexão que se pode pensar sobre as relações presentes em

obras literárias; e, no caso deste estudo, essas relações são as que explicitam, no mundo

fictício, as significações do ambiente para as personagens.

Este mundo fictício ou mimético, que freqüentemente reflete momentos

selecionados e transfigurados da realidade empírica exterior à obra, torna-se,

portanto, representativo para algo além dele, principalmente além da realidade

empírica, mas imanente à obra (Rosenfeld, 2005, p. 15).

A reflexão humana leva à abstração, uma vez que a ação de refletir se dá em um

plano imaterial – mesmo que suas aplicações sejam posteriormente feitas no plano real.

Assim, é natural que representações e significações humanas vão além do que se vê, já

que adentram o plano simbólico. No mundo real, os objetos criados pelo homem têm

uma razão de ser: comunicam. Mesmo que sua utilidade se limite a ser expressão, o

objeto humano carrega em si uma estrutura pensada: nele está guardada a intenção de

ter a forma que tem e de ser da matéria que é. “Nosso olho já está treinado para

reconhecer de determinado modo: existem convenções de visualidade que fazem com

que consideremos uma imagem fiel ou não ao objeto que ela representa” (L. Santos &

Oliveira, 2001, p. 72). Assim, nossos referenciais estão costurados às estruturas, formas

e funções das coisas com que temos contato. São a partir dessas que reconhecemos e

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interpretamos a complexidade do nosso mundo: permitindo assim que nos situemos ou

não perante as realidades a nós apresentadas.

Verificamos que a grande obra de arte literária (ficcional) é o lugar em que

nos defrontamos com seres humanos de contornos definidos e definitivos, em ampla

medida transparentes, vivendo situações exemplares de um modo exemplar

(exemplar também no sentido negativo). (Rosenfeld, 2005, p. 45).

A Literatura é assim um lugar pensado pelo homem: tem forma e função

definidas, é organizado, tem lógica (mesmo que a lógica seja não ter lógica – no caso da

literatura nonsense), e é um mundo definitivo, no sentido de que o tempo só lhe afetará

a partir da visão do leitor. A Literatura é então palco de relações humanas, depositório

de sensações e espaços. Suas imbricações com a realidade vão muito além de uma

possível verossimilhança, uma vez que seu maior trunfo é, não o que guardam, mas o

que despertam. “Evidentemente, são documentos indiretos, nos quais a experiência

surge filtrada pela imaginação, mas que documentos melhores que os artísticos para

reconstruir, por dentro, uma época ou um temperamento?” (Moisés, 1987, p. 19). A

construção literária, embora exista materialmente no mundo real – enquanto livro – na

verdade concretiza-se “por dentro”, ao dialogar com seu leitor em um tempo e maneira

únicos: em um diálogo em que a obra é mediadora, já que o real ‘diálogo’ acontece pelo

e com o próprio leitor. “Todo leitor que relê uma obra que ama sabe que as páginas

amadas lhe dizem respeito” (Bachelard, 1998, p. 10). E embora as obras literárias

criadas em determinado tempo e sociedade tenham em si um teor documental desses, as

obras são documentais também a partir da trajetória de vida do leitor: já que lhe marcam

de maneiras distintas e que lhe provocam transformações e reflexões variadas. Como a

leitura é quase um diálogo do próprio leitor com a interpretação da obra que lê, a leitura

pode despertar sentimentos, pode agitar o que está dormente no leitor, pode confirmar

emoções, ajudá-lo a tomar alguma decisão, servir de parâmetro de comportamento etc.

Ainda assim, por guardar em si esse mundo que o leitor já sabe que lhe significa, a obra

lida é lugar pulsante: a reter memórias e tempo, pessoas, fatos e ambientes que vêm à

tona quando se lá adentra novamente pela lembrança ou releitura.

No entanto, da mesma forma que a Literatura é possuidora de generalidades – por

guardar em si matéria humana, os sentimentos que desperta muitas vezes ultrapassam

barreiras culturais – ela também é possuidora de especificidades: pode guardar em si um

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tempo, valores de uma época, características de uma cultura, circunstâncias de uma

sociedade etc. Ainda, por ter a construção textual como meio de existência, a

contextualização de uma obra pode se dar a partir do momento de sua publicação, do

estilo literário que evoca, da época em que foi escrita, do movimento que representa e

das características que possui.

Logo, podemos concluir que uma obra literária participa de todo um processo

que a relaciona com os demais fatos culturais de uma comunidade. Por isso, ao

analisarmos um texto literário é conveniente situá-lo no tempo e no espaço, isto é,

examinar sua relação com os demais fenômenos culturais da época em que foi

escrito. (Faraco & Moura, 1993, p. 15).

Por sua vez, a obra aqui estudada, Memorial de Maria Moura (1992), escrita por

Rachel de Queiroz, pertence à geração de 1930 da Segunda Fase do Movimento

Modernista, cujo começo no Brasil se deu com a Semana de Arte Moderna em 1922. “O

romance de 30 teria, assim, algumas características comuns: o regional seria uma

referência para o nacional; a literatura seria uma expressão espontânea da terra”

(Chiappini, 2002, p. 163). O Modernismo nasceu como movimento de ‘quebra’, foi uma

manifestação de intelectuais que queriam valorizar o que fosse nacional, que lutavam

para que a liberdade das criações brasileiras fossem exaltadas ao máximo – ao artista

cabia ler a realidade com olhos brasileiros, sem se preocupar com formas literárias ou

artísticas européias. Assim, era um momento de construção de uma nova estética,

voltada para o social porque voltada para as realidades do solo nacional. É em meio a

essa realidade, que nasce assim a prosa regionalista – presente em muitos dos autores da

Segunda Fase do Modernismo, como Rachel de Queiroz. Como aspectos desse tipo de

escrita, temos a evocação de características determinantes de um local e cultura, tipos

humanos específicos de uma região, bem como costumes, ambientes e trajes típicos. Na

prosa regionalista, temos a construção de uma realidade singular, que não pode ser vista

como representante de uma nação inteira, por exemplo, mas como reflexo de algo

peculiar: de um contexto particular e, por isso mesmo, fortemente representativo da

diversidade cultural do país.

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2.1 – O texto, a personagem, o ambiente

O que é real? O que é fictício? O que pode ser observado? Quando tratamos do

homem, criador natural de realidades subjetivas, as respostas para essas perguntas não

são tão óbvias. Qualquer circunstância que tenha a existência humana demanda uma

relação ambiental: o homem constrói ao redor de si relacionamentos, mesmo quando

não é a sua intenção fazê-lo. Ao construir esses relacionamentos, desenvolvemos

sentimentos específicos e subjetivos que nos delineiam a importância e função desses

lugares em nossas vidas. Aqui, adentramos uma área turva: por mais que possamos

identificar esses sentimentos a partir de algumas premissas que os caracterizam, não

podemos prever o que os faz surgir. O que faz um lugar ser querido por mim? Que

lembranças ou sentimentos estão guardadas na imagem desse lugar? O que ele desperta?

Como fui tocada por ele? O sentir não pertence ao mundo das palavras, mas ao das

entrelinhas. “O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente

entregue à mensuração e à reflexão do geômetra. É um espaço vivido” (Bachelard,

1998, p. 19). Para se saber minimamente sobre a razão de um espaço – seu ‘como?’ e

‘por quê?’ – seria preciso adentrar a intimidade humana sem a fragmentação da fala,

seria preciso sentir o que o outro sente, na mesma proporção e medida. Por isso,

“muitos lugares, altamente significativos para certos indivíduos e grupos, têm pouca

notoriedade visual. São conhecidos emocionalmente, e não através do olho crítico ou da

mente” (Tuan, 1980, p. 180).

Quando pensamos em um lugar de simbologia coletiva é mais fácil prever que

contexto suscitou o nascimento dessas percepções: o caso do memorial feito no lugar

das Torres Gêmeas do World Trade Center, derrubadas no atentado de 11 de setembro

de 2001 em Nova Iorque, Estados Unidos, é um exemplo disso. A estátua de Carlos

Drummond de Andrade no calçadão da praia de Copacabana no Rio de Janeiro é outro

exemplo: são lugares que tocam o coletivo por razões de senso comum. A própria

estátua de Rachel de Queiroz na Praça dos Leões em Fortaleza, faz-nos sentido: Rachel

pertence a todos nós. No entanto, quando falamos de um indivíduo, “o próprio espaço

nos aparece como um todo fragmentado. Como as práxis de cada um são fragmentárias,

o espaço dos indivíduos aparece como fragmentos da realidade e não permite

reconstruir o funcionamento unitário do espaço” (M. Santos, 1982, p. 22). O lugar

aonde se deu o primeiro beijo pode ser um exemplo disso: digamos que o seu primeiro

beijo tenha sido em um banco debaixo de uma árvore de uma praça. Aquela árvore,

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aquele banco e aquela praça sempre contarão, para você, a história do seu primeiro

beijo. Mas qualquer outra pessoa que passe por ali ou verá apenas um simples banco,

árvore e praça, ou verá nesse conjunto algo que lhe remeta a outras histórias, de suas

próprias vivências. A escritora Adélia Prado uma vez disse “que Deus, vez por outra, a

castiga. Tira-lhe a poesia. Ela olha para uma pedra, e só vê pedra mesmo.” (Alves,

2003, p. 43). Um lugar é isso: é um espaço carregado de poesia, nunca um lugar será

apenas uma pedra, sempre será algo mais, seja bom ou ruim. Eis a razão de um lugar

ser, na realidade, fragmento: ele sempre se deixará depender da poesia que lhe interpreta

e lhe carrega de significações.

Um texto, qualquer que seja, é também fragmentário. E, por proporcionar essa

mesma visão subjetiva que um lugar para um indivíduo, permite uma recriação de

sentido e valor únicos. O texto suscita uma imagem: “essa obra de arte exige, do

expectador, uma atividade produtiva” (Leite, 2002, p. 144). Ler é o primeiro ato. Há

muito depois do ler. Ler é só olhar a porta, não é sequer abri-la. Ler é só ver a palavra e

se contentar com isso. Sem perceber que tudo na realidade está por trás da palavra:

além da palavra. Fala-se que o escritor americano Ernest Hemingway certa vez foi

incitado a escrever uma história completa com apenas seis palavras. Hemingway

escreveu então a história e chamou-lhe de o seu melhor trabalho: Vende-se: sapatos de

bebê, nunca usados. A palavra é porta de entrada: faz-nos ir a qualquer direção

possível: a palavra é terreno do sentir; e, mesmo que não capte o sentir por completo, o

desperta. “Mas a imagem poética atingiu as profundezas antes de emocionar a

superfície. E isso é verdade numa simples experiência de leitura. (...) Numa imagem

poética, a alma afirma a sua presença” (Bachelard, 1998, p. 6-7). E, se a leitura é uma

atividade reflexiva da percepção, como perceber a percepção? Como delinear a

existência de algo tão fugidio e tão constante como a alma? Como sentir o que o texto

desperta? Não se pode, realmente. Mesmo que seja feito um relato a partir do sentir da

leitura, este será como metalinguagem – descrição segunda de um primeiro comunicar.

No entanto, o texto está aí: é matéria, é criação humana e não só pode como deve ser

interpretado: afinal, é da interpretação que ele nasce e realiza sua função de existir. E “a

percepção é uma atividade, é um estender-se para o mundo” (Tuan, 1980, p. 14). Ao

fazermos isso, ao estendermo-nos através da atividade produtiva que a arte literária nos

suscita, alcançamos algo que a leitura nos propicia com um tempo que é o mesmo nosso

tempo: captamos seu entendimento, um entendimento que é nosso, que é de cada um, e

que cumpre a função social e verossímil do texto literário:

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São momentos supremos, à sua maneira perfeitos, que a vida empírica, no seu

fluir cinzento e cotidiano, geralmente não apresenta de um modo tão nítido e

coerente, nem de forma tão transparente e seletiva que possamos perceber as

motivações mais íntimas, os conflitos e crises mais recônditos na sua concatenação

e no seu desenvolvimento. (Rosenfeld, 2005, p. 45).

Assim, a interpretação se distancia da obra "apenas o bastante para pô-la em

perspectiva e para fazê-la girar em torno de algum eixo secreto, sem projetá-la num

espaço externo" (Prado Jr., 2000, p. 202). A perspectiva dada pelo leitor transformará a

obra sob sua cognição e lhe conferirá valor de ambiente vivido e conhecido. O ambiente

literário é, assim, espaço: no passar das páginas abrimos portas e caminhamos pelos

lugares, a observá-los e apreendê-los, a criar vínculos e sentimentos. Terminada a

leitura, guardamos o que de lugar tem para nós nesse espaço, e é provável que um dia

nos lembremos do livro ao observarmos algo na vida. E quem há de dizer que aquelas

páginas não fizeram parte de nossa história? “Não se espera de uma obra de ficção que

espelhe fielmente o mundo, mas que, reorganizando-o, nos ensine a vê-lo de modo

amplo e profundo” (Moisés, 1987, p. 35). Entender todas as perspectivas que um livro é

capaz de gerar é entender a própria complexidade humana e a riqueza da visão do

homem sobre seu mundo e vida.

Para citar mais um exemplo do escritor Ernest Hemingway (1899-1961):

All good books are alike in that they are truer than if they had really happened

and after you are finished reading one you will feel that all that happened to you

and afterwards it all belongs to you; the good and the bad, the ecstasy, the remorse,

and sorrow, the people and the places and how the weather was.

A diferença desse mundo literário que faz parte do nosso mundo concreto é que

ele permite uma acessibilidade que lhe é característica. Para uma construção verossímil,

o autor desenha um contexto criterioso, paulatino, aonde se tem acesso a intimidades e

pensamentos: aonde se é onipresente. Enquanto leitores, somos testemunhas de tudo:

conhecemos detalhadamente cada imagem que a construção textual nos permite

imaginar. “Graças ao vigor dos detalhes, à ‘veracidade’ de dados insignificantes, à

coerência interna, à lógica das motivações, à causalidade dos eventos, etc, tende a

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constituir-se a verossimilhança do mundo imaginário” (Rosenfeld, 2005, p. 20). Palavra

por palavra constroem-se as imagens mentais que dão forma ao escrito: e o mundo

pensado pelo autor veste-se da subjetividade do leitor. Quem escreve dá o mote, cria

terreno fértil, planta possibilidades.

Então, escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra

pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra - a entrelinha - morde a

isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia

jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca,

incorporou-a. (Lispector, 1999, p. 385).

A ‘não-palavra’ é o que o texto desperta no leitor quando este é tocado pelo texto.

O texto grita e sussurra, esconde e mostra, afaga e esmurra. O texto ora agita, ora

acalma: ora remexe nas lembranças, ora na realidade, ora nos sonhos.

O texto é plural. Isso não significa apenas que tem vários sentidos, mas que

realiza o próprio plural do sentido: um plural irredutível (e não apenas aceitável). O

texto não é coexistência de sentidos, mas passagem, travessia, não pode, pois,

depender de uma interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma

disseminação. (Barthes, 1984, p. 74).

O texto representa assim um universo de mosaicos – fragmentos do próprio leitor

que vão sendo assimilados com o exercício da leitura, pedaços que vão sendo ‘achados’

como se complementassem vazios do próprio leitor. Esses ‘mosaicos’ são como

sementes: multiplicam-se ante as associações latentes no leitor. O pensamento que

recebe o lido transforma-se perante as sensações que são despertadas: o mundo do leitor

amplia-se, seu espaço adquire nova extensão e novos lugares são criados.

Toda leitura se passa no interior de uma estrutura (nem que seja múltipla,

aberta), e não no espaço pretensamente livre de uma pretensa espontaneidade: não

há leitura natural, selvagem: a leitura não excede a estrutura; submete-se-lhe:

precisa dela, respeita-a; mas perverte-a. A leitura seria o gesto do corpo (pois é

claro que lemos com o corpo) que, com um mesmo movimento, funda e perverte a

sua ordem: um suplemento interior de perversão. (Barthes, 1984, p. 33)

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A leitura tem esse poder: agita. É difícil haver imparcialidade na leitura: o ato de

ler é espontâneo, acontece no tempo do próprio leitor – a ato de passar a página é que

delineia esse tempo e é o leitor quem controla essa ação. Nas páginas que vão sendo

lidas há uma semi-construção já feita: uma estrutura base dada pelo autor; mas é o leitor

quem finalizará essa construção e, em releituras, fará ‘reformas’ na construção

primeiramente criada. A transposição do espaço fictício ao espaço pensado pelo leitor

(espaço lido e interpretado) se dá através do elo que ele desenvolve com a história

contada. O espaço do livro por vezes dá lugar a espaços já vivenciados, são ganchos

para memórias e percepções do leitor: “os valores de intimidade são tão absorventes que

o leitor já não lê o quarto (da personagem): revê o dele. Já foi escutar as lembranças de

um pai, de uma avó, de uma mãe (...) do ser que domina o recanto de suas lembranças

mais valorizadas” (Bachelard, 1998, p. 33).

Assim também se dá a relação com as personagens do livro: agentes da ação que o

leitor acompanha, elas são o canal entre o leitor e o ambiente do livro. Para as

personagens, o leitor é um deus-passivo, que as observa cometer os mesmo acertos e

erros, derramar as mesmas lágrimas, sorrir os mesmos sorrisos e enfrentar as mesmas

escolhas e dilemas. O leitor é onipresente, e as personagens, para existirem, estão

sujeitas ao ato que as trazem ao mundo-além de seu autor: a leitura. As personagens e o

leitor participam de uma simbiose múltipla: ao leitor caberão as várias existências que

as diferentes personagens de um livro trazem. E o leitor, inevitavelmente, será um deus-

passivo-parcial: terá suas preferências, desejará o sucesso de umas e o insucesso de

outras, vibrará com desfechos que achará justo e sofrerá junto com as personagens que

achar injustiçadas. O leitor é um ser resignado: a ele é dado o poder de estar presente em

tudo, e de não interferir em nada. Mas o livro opera no leitor e, paradoxalmente,

necessita de sua resignação para existir: são criatura e criador e, ao se relacionarem,

submetem-se um ao outro, como tomados de um amor-mútuo. “Podemos dizer,

portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o

ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem que é a concretização

deste.” (Rosenfeld, 2005, p. 55).

A personagem torna-se então veículo do leitor: é através dela que ele acompanhará

os fatos que se seguem, que ele experienciará diferentes versões de um mesmo

acontecimento, que ele se posicionará perante o que lhe é exposto. Em Água Viva,

Clarice Lispector (1973) diz: “a invenção do hoje é o meu único meio de instaurar o

futuro” (p. 12). Cada folha lida é isso: a invenção do presente da história para que seja

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instaurado o futuro da história – a história corre pelos olhos do leitor e o acompanha

criar forma diante de sua cognição.

Na vida, estabelecemos uma interpretação de cada pessoa, a fim de podermos

conferir certa unidade à sua diversificação essencial, à sucessão dos seus modos-de-

ser. No romance, o escritor estabelece algo mais coeso, menos variável, que é a

lógica da personagem. A nossa interpretação dos seres vivos é mais fluida, variando

de acordo com o tempo ou as condições da conduta. No romance, podemos variar

relativamente a nossa interpretação da personagem, mas o escritor lhe deu, desde

logo, uma linha de coerência fixada para sempre, delimitando a curva da sua

existência e a natureza do seu modo-de-ser. (Rosenfeld, 2005, p. 58).

No livro Memorial de Aires, Machado de Assis (1997) descreve a concisão e

identidade das coisas presentes na casa da personagem D. Carmo: “Todas elas traziam

uma alma, e esta era nada menos que a mesma, repartida sem quebra e com alinho raro,

unindo o gracioso ao preciso (...), tudo trazia a marca da sua fábrica, a nota íntima da

sua pessoa” (p. 25). Assim é a construção de uma personagem: cada fragmento dela

une-se a quem ela é, cada ato dela delineia sua personalidade e função dentro do

ambiente observado, que por sua vez, remete à personagem a quem está relacionado.

Neste mundo fictício, diferente, as personagens obedecem a uma lei própria.

São mais nítidas, mais conscientes, têm contorno definido, – ao contrário do caos da

vida – pois há nelas uma lógica pré-estabelecida pelo autor, que as torna

paradigmas e eficazes. (Cândido, Rosenfeld, Prado, Gomes, 2005, p. 67).

No entanto, apesar de sua gravidade estrutural, já que carrega a missão de expor

uma realidade, o livro também nos surpreende através dessa mesma missão: depois de

sorrir e chorar, depois de viver tudo o que nos foi dado viver naquelas páginas em que

andamos, percebemos: chegamos à última página. A realidade nos toma e despertamos

para a noção de testemunha solitária: tudo aquilo que vivemos naquelas páginas só

existe agora em nós; as fotografias daqueles momentos são fotografias mentais – o leitor

é o único registro do que presenciou. A surpresa que as personagens nos prega é quase

cruel: sentimos saudades daquelas pessoas, daqueles lugares. Ainda, sua existência nos

encanta, e brincamos de realidade com eles. Mário Quitana (1977) descreve esse

sentimento no texto Conto Azul:

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Eu já escrevi um conto azul, vários até. Mas este é um conto de todas as

cores. Porque era uma vez um menino azul, uma menina verde, um negrinho

dourado e um cachorro com todos os tons e entretons do arco-íris. Até que apareceu

uma Comissão de Doutores – os quais, por mais que esfregassem os nossos quatro

amigos, viram que não adiantava. E perguntaram se aquilo era de nascença ou se...

― Mas nós não nascemos ― interrompeu o cachorro. ― Nós fomos inventados! (p.

34).

As personagens pertencem a um ambiente próprio: o livro. Têm seu habitat e nele

coexistem fronteiriçamente com o real – já que são seres reais que as criam e que as

observam. Ainda, o seu ambiente guarda ambientes em si: o meio das personagens tem

as significações pertencentes ao homem: os reconhecemos como ambientes que são. Há

que se ter consciência, então, da realidade específica que é uma obra literária: há que

vê-la dentro do eixo de que faz parte: a sua história cabe às páginas de um livro. Os

ambientes que pertencem à obra, mesmo que se pareçam com ambientes existentes no

mundo, não o são: dissociados da história de que fazem parte, não passam de palavras

soltas e substantivos comuns. Como diz a poesia de João Cabral de Melo Neto (1998):

“Ela tem tal composição/e bem entramada sintaxe/que só se pode apreendê-la/em

conjunto: nunca em detalhe” (p. 164). Fisicamente é possível observar a estrutura

costurada de um livro: destaque-o uma página e lhe faltará algo, leia a página desfalcada

e ela deixará de dizer muito. No entanto, fragmentos do real encontram-se nos livros.

Pedaços do mundo concreto foram emprestados à Literatura para que esta pudesse falar

do mundo sem sê-lo.

O princípio que rege o aproveitamento do real é o da modificação, seja por

acréscimo, seja por deformação de pequenas sementes sugestivas. O romancista é

incapaz de reproduzir a vida, seja na singularidade dos indivíduos, seja na

coletividade dos grupos. Ele começa por isolar o indivíduo no grupo e, depois, a

paixão no indivíduo. Na medida em que quiser ser igual à realidade, o romance será

um fracasso; a necessidade de selecionar afasta dela e leva o romancista a criar um

mundo próprio, acima e além da ilusão de fidelidade. (Cândido, Rosenfeld, Prado,

Gomes, 2005, p. 67).

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No entanto, ao imergir no contexto do livro, o leitor apreende aquele mundo

fielmente: Maria Moura, por exemplo, chora as paredes de sua casa e presenciamos tudo

o que a fez chegar àquele momento: a realidade está ali, a levá-la exatamente para

aquele ponto de sua vida. No conto Os Obedientes, Clarice Lispector (1977) diz: “Mas

se alguém comete a imprudência de parar um instante a mais do que deveria, um pé

afunda e fica-se comprometido” (p. 89). É desse comprometimento que é feita a relação

entre leitor e livro: tem-se que ser imprudente, tem-se que parar, deixar ficar em suas

páginas, adentrar seu mundo, ficar comprometido. Só assim se sabe com alguma

fidelidade sobre aquelas pessoas e sobre aqueles lugares.

2.2 – A autora, o livro e o contexto

2.2.1 – Rachel de Queiroz

Não há como falar da arte e não falar minimamente do artista: criador e criatura

dividem uma matéria em comum. Ainda, historicamente, “os escritores são produtos de

sua época e de sua sociedade” (Facina, 2004, p. 9), assim como as obras que produzem.

E Rachel de Queiroz, em particular, sempre deixou que sua origem geográfica

transparecesse em seus textos: “Rachel capta coisas e seres como os surpreendeu,

expressando, por meio de suas obras, uma visão do mundo bem próxima da realidade

que a circunda” (Assmar, 2006, p. 16). Nascida em Fortaleza, Ceará, no dia 17 de

novembro de 1910 e falecida no dia 04 de novembro de 2003, dormindo em sua rede, na

cidade do Rio de Janeiro, ela foi, em 1977, a primeira mulher eleita para a Academia

Brasileira de Letras (ABL) e chegou aos 90 anos afirmando que não gostava de

escrever. Enraizada na história e cotidiano nordestinos, Rachel marcou seus romances

com grande cunho regionalista. Nas palavras da própria escritora: “Se minha literatura

se fixava aqui, onde nasci e sempre vivi, era porque não a poderia situar num espaço

imaginário e sim no meu espaço natural. (...) É porque o meu extrato social era isso

mesmo”. (Bruno, 1977, p. 119). Assim, o meio da autora está presente em grande parte

de suas obras:

O espaço em que circulam as protagonistas de Rachel de Queiroz é de capital

importância para a compreensão de sua obra. O grande amor da autora pela terra

onde nasceu e a constante ligação com seu povo, particularmente com as pessoas

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simples do sertão, conferem-lhe o vigor com que fixa tipos humanos e paisagens,

rurais ou urbanas, especialmente da região nordestina. (Barbosa, 1999, p. 65).

Uma das principais representantes da literatura social nordestina, Rachel construiu

personagens verossímeis, fáceis de identificar no dia a dia e na história do sertão,

muitos deles possuidores da rispidez que o clima dessa região apresenta. “Rachel se

insere no contexto áureo da literatura moderna brasileira em que as conquistas formais e

estéticas se afirmam numa produção literária regionalista e social” (Assmar, 2006, p.

16). Pertencente à segunda fase do Modernismo, Rachel de Queiroz teve o prodígio de

dar enfoque a personagens femininas: mesmo na dura realidade do contexto seco

nordestino, como em seu primeiro livro, O Quinze (1930), ela fez que com a seca fosse

vista pelos olhos de uma mulher (Conceição). Na peça O Lampião (1953), também da

escritora, ela recriou a história do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva contada pelos

olhos de sua companheira, Maria Bonita – uma mulher em um bando de homens. No

romance Memorial de Maria Moura (1992), Rachel foi além: fez uma mulher reinar em

uma terra de homens. Assim, Rachel de Queiroz

Difere de seus conterrâneos pela ênfase dada ao papel da mulher no contexto

social. Embora se declare não feminista, destaca, da primeira à última obra, as

figuras femininas lutando em busca de uma independência ainda não alcançada pela

mulher até aquele momento. Elas constituem o centro nuclear da obra queirosiana,

de onde emanam as possíveis transformações significativas da narrativa. (Assmar,

2006, p. 16).

As mulheres queirozianas apresentam dois contrapontos principais: o que o meio

(contexto social) espera delas e como elas reagem ao meio em que vivem. A temática da

‘transformação pelo meio’ está presente nas obras de Rachel na medida em que os dois

extratos mostrados por ela – sertão e urbano – determinam comportamentos das

personagens no enredo das histórias que conta. A narrativa da escritora mostra então o

embate das personagens em relação aos limites impostos pelo meio. As normas sociais e

os costumes são apresentados a partir dos conflitos das personagens, e o teor humano de

seus enredos se prolifera na medida em que o meio interno – ser – e o meio externo –

ambiente – se misturam e dissociam, em um embate próprio à vida e à existência

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subjetiva. A obra literária de Rachel está intimamente ligada ao contexto social, sendo

voltada para o ser humano, a terra e o meio.

2.2.2 – Memorial de Maria Moura

Memorial de Maria Moura teve sua primeira publicação em 1992 e antes mesmo

de publicá-lo Rachel de Queiroz anunciou: “este será meu último romance”. Ela tinha

então 82 anos. Essa é uma obra que difere de seus outros livros não apenas pelo volume

(482 páginas – 8ª edição), mas pela pluralidade de vozes que narram o romance. Sua

própria estrutura lhe confere esta característica: ao invés de ser dividido em capítulos, é

dividido em falas; separado pelas vozes do Padre (ou Beato Romano), da própria Maria

Moura, do Tonho, do Irineu, e da Marialva (esses três últimos, primos maternos da

personagem-título). As cinco vozes que narram o romance não têm uma ordem fixa de

aparição, e separam ou percepções diferentes de um mesmo fato, ou diferentes tempos

(presente ou passado) – apresentando por vezes, inclusive, duas narrações de Maria

Moura seguidas uma da outra.

A história permeia o sertão nordestino, fato que se torna evidente pela descrição

da paisagem, das roupas, das comidas e do clima presentes no romance. E, embora não

se possa perceber isso claramente a partir do texto, a pesquisadora Maria de Lourdes

Barbosa (1999), ao conversar com a escritora Rachel de Queiroz, descobriu que ao

longo da trajetória de Maria Moura o sertão vai dando lugar ao Centro-Oeste brasileiro:

Rachel de Queiroz costuma situar suas narrativas em espaços conhecidos,

lugares em que viveu; em Memorial de Maria Moura, porém, não informa

claramente onde se situa a fazenda Limoeiro ou a Serra dos Padres. Ambas

poderiam estar situadas em qualquer um dos estados nordestinos que são citados na

obra, os meios de subsistência da fazenda são semelhantes aos de qualquer fazenda

do sertão nordestino; no entanto, por alguns trechos da narrativa, toma-se

conhecimento que os estados do Nordeste são apenas locais em que o bando age.

Em conversa com a escritora, ficamos sabendo que tanto o Limoeiro, como a Casa

Forte se localizam na região Centro-Oeste. (Barbosa, 1999, p. 74).

No livro, as narrações se entrelaçam em direção à personagem central Maria

Moura. E contam, sob óticas diferentes, a trajetória dessa personagem desde os tempos

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da casa do Limoeiro – terra onde nascera e crescera – à construção e solidificação da

Casa Forte, na terra das Serras dos Padres. De fortes simbologias, esses dois ambientes

principais do romance estão imbricados à própria pessoa de Maria Moura, bem como

aos componentes sociais ali presentes: a terra, o poder/força, o masculino versus o

feminino, a família e a identidade.

Entre idas e voltas de tempo e narrações a história de Maria Moura é explicada:

seus pais, ao casarem, vão morar na casa do Limoeiro, propriedade dos avós maternos

de Maria Moura. Ainda com os pais de Maria Moura em vida, surgia o assunto da

herança dessa casa, que estava destinada aos três filhos dos avós maternos: a mãe de

Moura, a mãe de Tonho, Irineu e Marialva (primos de Maria Moura), e o terceiro filho,

que vendeu – sem papelada que comprovasse – sua parte para o pai dos primos de

Moura, lhes dando, assim, direito de dois terços da terra.

Tinham a parte da mãe deles e a parte do tio que embarcou para o Amazonas

e vendeu aquela parte ao cunhado, pai dos meus primos. Vendeu para levar o

dinheiro na viagem. Muita vez escutei meu pai e minha mãe discutindo, ela falando

na parte do irmão embarcado e ele alegando que o embarcado não deixou recibo,

tudo foi feito com um aperto de mão. E depois da notícia de que o irmão tinha

morrido de beri-beri lá no Amazonas, que prova tinha essa gente para exigir parte

nenhuma? (Queiroz, 1992, p. 36).

O pai de Maria Moura morre quando Maria ainda é pequena e ela e a mãe

permanecem na casa. Com o passar dos anos, a mãe conhece Liberato, que passa a

morar com elas na terra do Limoeiro. Interessado em ser o dono legal da terra, Liberato

ameaça a mãe de Moura para que ela assine um termo lhe repassando seu direito sobre a

terra. Ao se negar a fazer isso a mãe dela acaba assassinada por ele. Tempos depois a

mesma ameaça é feita a Maria Moura, que manda matar o padrasto. Após essas mortes,

aparecem os primos Tonho e Irineu a cobrar suas partes na terra:

E agora? Matar aqueles dois, nem pensar. Desta vez só quem possuía motivo

era eu mesma. Não tinha ninguém pra quem desviar a culpa. E o pior é que eles

eram mesmo donos de dois terços da herança, eu sabia. (Queiroz, 1992, p. 36).

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Como a figura feminina não tinha força de mando em uma terra dominada por

homens, o plano dos primos era tomar posse de tudo, inclusive da pessoa de Maria

Moura. Na fala do Tonho: “A gente tinha mesmo era que tomar as nossas providências.

Levar uns cabras armados, chegar lá de noite, pegar a gata brava, nem que fosse atada

com corda e trazer para as Marias Pretas” (Queiroz, 1992, p. 46). Em uma terra de

violências simbólicas e práticas, vencia-se pela força física e imposição social. Sabia-se,

de antemão, da posição privilegiada do homem e, paradoxalmente, da condição de

vítima da mulher: “É moça órfã, filha de fazendeiro. Os homens têm consideração”

(Queiroz, 1992, p. 46) – fala do Irineu. Para surpresa destes, ela os expulsa da terra e

promete guerra – que se inicia alguns dias depois. Entre tiros e não podendo mais

resistir ou atacar, Maria Moura, abraçando as paredes de sua casa, ateia fogo no

Limoeiro. Já longe, corta os cabelos com uma faca e diz não ser mais a ‘sinhazinha do

Limoeiro’, e sim ‘Maria Moura’, chefe de um bando de homens, que vai em busca da

terra que ela tem direito de herança por parte da família paterna: a terra das Serras dos

Padres. Começa então sua jornada. Depois de vários momentos ao longo da andança e

sempre atacando os abonados que lhe cruzassem o caminho e, assim, acumulando

riquezas, Maria Moura chega à terra dos Padres e começa a construção do seu império.

Lá ergue a Casa Forte, uma verdadeira fortaleza, de onde só se podia entrar e sair com

sua autorização e onde se tinha uma sociedade de regras próprias. A fama de Maria

Moura, a mulher que se vestia como homem e a quem todos temiam já era grande. Em

meio a sua riqueza e poder Maria Moura sabia que abrir mão de si mesma era abrir mão

da terra: seu maior trunfo e legado. A constante luta para ser essa mulher-homem, líder

e símbolo de força, e a vontade íntima de ser cuidada de forma feminina vêm à tona em

uma paixão que lhe traz grande desilusão – mais uma vez ela escolhe a terra como

destino. A esta altura, a Casa Forte já está bem consolidada e mantém-se com

tranqüilidade entre a fábrica de pólvora e o cultivo de gado e plantações. O livro termina

em uma aventura em que Maria Moura se lança para acumular mais riquezas e poder. A

busca constante, o auto-desafio, o bradar “eu posso” parecem ser o impulso-mor de

Maria Moura. Nessa última aventura do livro não fica claro se a personagem retornará

com vida.

A obra é a saga de uma mulher que desperta para as estratégias: a trama central de

Memorial de Maria Moura se dá sobre a terra: é esse o mote, a linha que costura o

enredo e traz sentido ao contexto lá existente. A terra é a simbologia de todo bem

material: é o relacionamento com ela que perfaz a condição social na região. Se dono da

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terra, tem-se o poder em mãos; se jagunço da terra, é-se nada mais que ‘homem do

sítio’. A mulher não cabe nesse contexto: sua existência se limita à cozinha e ao quarto;

e mesmo nas ruas da cidade as mulheres ‘de família’ só são vistas na igreja. É nesse

âmbito de existência masculina que surge Maria Moura a desafiar os homens em nome

de uma terra que pudesse chamar de sua.

2.2.3 – O masculino e o feminino em Memorial de Maria Moura

“A S. M. ELISABETH I, Rainha da Inglaterra (1533 – 1603), pela inspiração”. É

assim que Rachel de Queiroz inicia a dedicatória de Memorial de Maria Moura. A

rainha Elisabeth I ficou conhecida por suas estratégias de poder e liderança em defesa e

conquista de terras para a Inglaterra e também conhecida como a rainha que nunca

escolheu um Rei como companheiro para que não tivesse que dividir seu poder de

decisão e independência.

Nascida em 1533, Elisabeth era filha de Henri VIII e Ana Bolena. Esta, dame

d’honneur da rainha Catarina de Aragão, conquistou os favores do rei que,

divorciando-se da esposa, promoveu em grande pompa sua coroação em

Westminster. Nascia, em seguida, Elisabeth. O rei desinteressou-se rapidamente da

nova esposa, condenada à morte por adultério num tribunal do qual participou seu

próprio pai. Ana morre em 1536, deixando Elisabeth com três anos e declarada

ilegítima; seus direitos foram reconhecidos oito anos mais tarde. Em 1558, com 25

anos, ascendeu ao trono e moveu-se entre católicos e protestantes, tomando partido

dos segundos, em oposição ao partido católico, para o qual permanecia bastarda.

Lutou contra o poder de Mary Stuart, em torno do qual reuniam-se os católicos –

que a excomungaram em 1570 –, e foi responsável pela sua execução, em 1587.

Durante seu reino, a Inglaterra viveu um período de grande expansão marítima,

tendo derrotado a grande armada espanhola. (...) Chamada de ‘a rainha virgem’ (...),

teve seus favoritos, porém nunca casou, nem teve filhos. Teve então que deixar o

trono para o filho de Mary Stuart. (Schpun, 2002, p. 178).

A história da rainha Elisabeth se entrelaça à história de Moura. Entre o amor e a

liberdade, a segunda sempre foi a escolhida. Nas palavras da própria Maria Moura:

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Além do mais eu tinha horror a casamento. Um homem mandando em mim,

imagine; logo eu, acostumada desde anos a mandar em qualquer homem que me

chegasse perto. Até com o Liberato, que era quem era – perigoso –, achei um jeito

de dar-lhe a última palavra. Um homem me governando, me dizendo – faça isso,

faça aquilo, qual! Considerando também dele tudo que era meu, nem em sonho – ou

pior, nem em pesadelo. E me usando na cama toda vez que lhe desse na veneta. Ah,

isso também não. (Queiroz, 1992, p. 324).

Maria Moura contrasta com as mulheres de seu tempo: a história se passa no

século XIX, ainda em um Brasil extremamente patriarcal, em que os homens tinham

poder de mando sobre as mulheres e a estas, o papel social esperado era a passividade.

À exploração da mulher pelo homem, característica de outros tipos de

sociedade ou de organização social, mais notadamente do tipo patriarcal-agrário (...)

convém a extrema especialização ou diferenciação dos sexos. Por essa

diferenciação exagerada, se justifica o chamado padrão duplo de moralidade, dando

ao homem todas as liberdades de gozo físico do amor e limitando o da mulher a ir

para a cama com o marido, toda a santa noite que ele estiver disposto a procriar. (...)

O padrão duplo de moralidade, característico do sistema patriarcal, dá também ao

homem todas as oportunidades de iniciativa, de ação social, de contatos diversos,

limitando (...) a mulher ao serviço e às artes domésticas, ao contato com os filhos, a

parentela, as amas, as velhas, os escravos". (Freyre, 2000, p. 125).

Ademais, essa cultura patriarcal, em que o masculino impunha os ditames (na

figura do pai, do marido, ou irmão/primo), é regida pelo poder simbólico, pela

imposição da força, pela subjugação do feminino. Para entender os caminhos escolhidos

por Maria Moura é necessário perceber que seu contexto social lhe colocava em uma

situação em que ou ela seguiria como ‘sinhazinha’, sem voz ou poder de decisão, ou ela

promoveria uma quebra, indo de encontro aos valores de seu tempo. O contexto social e

o tempo vivido são fatores limitantes do espaço. Em Memorial de Maria Moura, o

gênero era delimitador de ambientes:

Quando menina, ainda, saía pela mata com os moleques, matando passarinho

de baladeira, pescando piaba no açudinho, usando como puçá o pano da saia. Mas

depois de moça, a gente fica presa dentro das quatro paredes de casa. O mais que

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saí é até o quintal para dar milho às galinhas, uma fugidinha ao roçado antes do sol

quente, trazer maxixe ou melancia, umas vagens de feijão verde. O curral é

proibido, vive cheio de homem. E ainda tem o touro, fazendo pouca vergonha com

as vacas. Fica até feio moça ver aquilo.

Restava ainda o banho no açude, tomado muito cedinho, a água ainda morna.

Mas banho só naquela hora certa, que os homens respeitam. Já sabem que não

podem chegar no açude e ai de quem vá espiar. Por causa de banho de mulher já

tem morrido muito rapaz adiantado. Pela mão de um pai ou marido mais zeloso.

Passeio na vila era ainda mais difícil, só mesmo nas festas da igreja. Mas

nunca entrei em uma dança – filha de fazendeiro não vai a samba de caboclo, nem

mesmo a baile de bodegueiro da vila. E na casa dos fazendeiros ricos, ninguém me

convidava, depois que Pai morreu, eu fiquei moça e Mãe caiu na boca do mundo.

(Queiroz, 1992, p. 62).

A questão da imposição no contexto de MMM passa pela relação entre o

masculino e o feminino; e o sexo também impõe o espaço a que se tem direito dentro

desse contexto social. Tem-se um exemplo dessa imposição espacial definida a partir do

gênero na personagem Marialva, prima de Maria Moura. Valentim – moço circense

enamorado por Marialva, diz em relação aos irmãos dela:

E hoje o Duarte, aqui, conversou comigo. Confirmou que eles trazem você

como prisioneira... com medo de que se case e bote um cunhado aqui, querendo

dividir tudo. (...) Já pensei nisso tudo. E, porque pensei, não vou pedir sua mão em

casamento a ninguém. Vou lhe roubar. (Queiroz, 1992, p. 132).

Para ela, que era praticamente mantida como prisioneira para que eles não

corressem o risco de dividir os bens da família, a única saída era a de um casamento

fugitivo; mesmo casando oficialmente – para que se sentisse de acordo com os valores

morais esperados de uma mulher, era preciso adentrar um outro espaço masculino: o do

seu marido, para sair do espaço regido pelos irmãos. É a partir da visão de Moura, que

quer conquistar um espaço seu, e de Marialva, que também quer viver além da terra das

Marias Pretas, que podemos traçar um panorama da restrição ambiental a que as

mulheres são submetidas nessa sociedade e tempo. Marialva diz sobre seu quarto:

“camarinha de moça não tem janela; a minha, já se vê, não tinha mesmo”. (Queiroz,

1992, p. 138). Ainda, se nas cantigas de ninar e histórias infantis estão plantadas papéis

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sociais reconhecidos, vê-se um exemplo da posição masculino X feminino na canção

que Rubina (escrava forra, ama de Irineu e Marialva e mãe de Duarte, meio-irmão dos

mesmos) canta para Marialva enquanto ela espera ‘ser roubada’ por Valentim – mesma

canção que entoava quando ela criança:

A princesa encarcerada

No seu castelo a indagar

Já vês cavalo na ponte?

Já vês a vela no mar?

Nada vejo, minha mana

Vinde vós mesmo espiar

Ai não, tenho os olhos cegos

Só me servem pra chorar... (Queiroz, 1992, p. 95).

À passividade feminina se junta o encarceramento, o espaço limitado, o aguardo

da guia masculina, o drama de uma espera por caminho: um caminho ditado e

anunciado por outros. Moura estava então limitada à casa do Limoeiro e, quando esta se

tornou ameaçada, sua personalidade impôs-se à sua biologia: subjugou sua condição de

mulher e transgrediu o que era esperado do seu gênero. O próprio percurso de Moura

tomou caminhos transgressores: filha única, órfã de pai, Maria tornou-se uma

sinhazinha sem senhor. Restavam-lhe duas opções: acatar seu papel de mulher e abraçar

a passividade perante outras figuras masculinas (como seus primos); ou transgredir sua

condição social e assumir um comportamento destinado aos homens: “Desta vez eu

tinha que me declarar. Resistir e atacar, porque – essa certeza eu tinha – eles não iam

dar por menos” (Queiroz, 1992, p. 43). Maria Moura, sem senhor, torna-se então

senhora de si. “Eu nunca na vida tinha encontrado quem fizesse as coisas para mim.

Desde a morte de Mãe, de mim é que se esperava que fizesse tudo. Até brigar como

homem. Ou fui eu mesma que escolhi assim?” (Queiroz, 1992, p. 304). Assim, para

assumir-se dona do próprio destino, Moura incorpora as mesmas regras que antes a

subjugavam: entra no universo simbólico-masculino.

A protagonista, ao romper com a submissão feminina típica da organização

patriarcal, transmigra da posição social de sinhazinha à de jagunça, ocasionando a

transgressão dos valores vigentes. Transgressão esta, contudo, que se dá pelo

continuísmo da ideologia patriarcal por meio de uma mulher que reproduz o modelo

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masculino nas relações de poder, principalmente ao encarnar o papel de senhor de

baraço e cutelo (Langaro, 2006, p. 65).

A Maria Moura ‘sinhazinha’ anuncia sua morte-simbólica após a saída do

Limoeiro, como se essa versão de si tivesse ido junto com o fogo que queimara aquela

casa. Ela declara então o surgimento da ‘Maria Moura’, chefe de um bando de homens.

Vestida com as roupas que eram do Pai, anuncia:

Aqui não tem mulher nenhuma, tem só o chefe de vocês. Se eu disser atire,

vocês atiram; se eu disser que morra é pra morrer. Quem desobedecer paga caro.

Tão caro e tão depressa que não vai ter tempo nem para se arrepender. (Queiroz,

1992, p. 84).

Os espaços perpassam a própria pessoa de Moura, em um tempo em que o poder

era voz e a terra era mensagem pulsante sob os pés: declarando senhores e subjugados.

Ao tomar para si o destino de suas terras – seja com o fim do Limoeiro por suas mãos,

seja com a construção da Casa Forte, Moura adquire um papel original em seu meio: se

transforma em mulher que decide seu próprio destino, se transforma em mulher que tem

voz. Rachel de Queiroz, "numa construção talvez utópica, provocadora, mas em todo

caso paradigmática, traz Maria Moura ameaçando e efetivamente atravessando os

limites que separam o masculino e o feminino enquanto territórios do social" (Schpun,

2002, p. 186). Em termos espaciais, Maria Moura é mulher fazedora de lugar: ultrapassa

os limites destinados ao feminino e desbrava a terra com sede e gana só permitidas aos

homens de sua sociedade.

Toda a dinâmica da obra desenvolve-se em torno de uma inversão entre o

feminino e o masculino operada por Maria Moura que, apesar de apresentar-se

como Dona Moura, veste-se como homem, tem os cabelos curtos, anda armada e

reina sobre seus homens executando a lei e a justiça. (...) Assim, para Maria Moura,

a solução de herdar do pai as calças e o cinturão acaba sendo, dentro do horizonte

existente, a melhor. Ou seja, tendo em vista o frágil destino reservado a uma moça

em suas condições, em meio aos esforços de Liberato e dos primos em tomar-lhe as

parcas terras, passar para o lado dos homens parece resolver o problema. Eis o

sentido da inversão operada. Sentido de liberdade que, como ela sabe, não está do

lado feminino. (Schpun, 2002, p. 179/182).

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No contexto da obra o ambiente é regido pelo masculino, e essa é uma barreira

que só seria transponível ao se abraçar a própria realidade masculina: e é justo esse o

caminho que Moura encontra. Ao apresentar-se caracterizada pelas roupas de seu pai,

Moura deixa de ser a sinhazinha que não pôde salvar o sítio do Limoeiro e torna-se a

mulher-jagunço que ordena homens e caça terra. Herdeira por si mesma: e não pela mão

de um marido ou irmão. O contraste entre o masculino e o feminino interliga-se à

disposição dos donos de terra e dos subjugados a esses. A representação social, o

reconhecimento de um ambiente enquanto lugar demarcado pertence aos homens: e

Maria Moura tem a questão ambiental tão forte em si, que a ela não basta ser sinhazinha

da terra regida por um homem. Moura representa então algo nunca visto antes dentro

daquele contexto: uma mulher dona de terras – de posse e de direito. A simbiose entre

Moura e seus lugares é tão pulsante que ela necessita falar por si, precisa ter controle

sobre seu corpo e sobre seu território. É assim que nasce a ‘Dona Moura’: a busca por

um lugar controlado e reconhecido como seu é maior que a limitação social atribuída às

mulheres de seu tempo. Assim como para a Rainha Elizabeth I, a importância da terra e

do que ela representa, inclusive para a sustentação do poder e persona de Maria Moura,

está de tal forma acima da vida pessoal de Maria e da sua feminilidade (sempre posta

em segundo plano), que quando ela tem que escolher entre sua grande paixão, Cirino, e

a segurança da Casa forte, é o bem-estar da terra que ela escolhe: mesmo pondo em

xeque o seu próprio bem-estar. A sustenção do poder através da terra é mais forte que

tudo e, em seu entender, Maria faz-se dona de seu destino ao fazer-se dona de seu

espaço.

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III – A Pesquisa: nas páginas de MMM com uma lupa

ambiental É a própria obra literária que decreta o

procedimento a adotar: o caminho a percorrer inicia-se na obra e termina no método.

(Massaud, 1997, p. 20)

A questão inicial da qual nascem todas as outras questões desta pesquisa é: e se

olhássemos para dentro do livro Memorial de Maria Moura com uma ‘lupa

ambiental’? Se quisermos ver a questão da orfandade, casamento e sexualidade

feminina em MMM (Barbosa, 1999) esse livro nos dá elementos para fazê-lo. Se

quisermos ver a questão do comportamento feminino (Schpun, 2002) também Rachel de

Queiroz construiu um contexto que permite essa análise. Se quisermos ainda ver a

simbologia da guerreira-donzela em Moura (Langaro, 2006) a trajetória dessa

personagem caracteriza essa leitura. Mas e se quisermos pôr em foco o fato de toda a

trajetória de Maria Moura acontecer a partir da terra? Em um romance em que a

personagem principal abraça as paredes de sua própria casa, em que ateia fogo ao lugar

que lhe é mais querido para não entregá-lo a quem acha que não o merece, ou que faz

toda uma trajetória de busca para encontrar o lugar-sonhado, há que se perceber que o

teor ambiental dessa obra é grande.

3.1 – Uma análise do livro Memorial de Maria Moura: Por quê? Como?

O ponto de partida: uma personagem regida pela busca de um lugar. Não apenas

qualquer lugar, não apenas um lar, mas um local que seja tão grandioso quanto a sua

necessidade de busca. Maria Moura tem sede, muita sede: e a água é a terra: e quanto

maior e mais exuberante a terra, mais a sua sede é ao mesmo tempo confortada e

estimulada: “Eu sentia (e sinto ainda) que não nasci para coisa pequena. Quero ser

gente. Quero falar com os grandes de igual para igual. Quero ter riqueza! A minha casa,

o meu gado, as minhas terras largas. A minha cabroeira me garantindo”. (Queiroz, 1992,

p. 125).

A personagem de Rachel de Queiroz enxerga na terra, caminho: caminho para o

poder, caminho para a garantia de sucesso, caminho para a segurança, caminho para ser

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respeitada no universo masculino que ela transgride a cada minuto. A terra é uma

geradora de possibilidades: é através dela que tudo o mais se dá.

No entanto, academicamente, como olhar para o contexto que envolve Maria

Moura? O que seria essa ‘lupa ambiental’ a vasculhar as linhas escritas por Rachel de

Queiroz? Como se daria uma análise do livro Memorial de Maria Moura à luz das

relações pessoa-ambiente nele contidas?

Inicialmente seguiu-se o caminho-primeiro de estudo de qualquer livro: a leitura e

a releitura da obra. Exponho então um detalhe importante na trajetória que qualquer

leitor faz ao adentrar no universo de um livro: toda interpretação do lido deixa-se a

depender do situar-se do leitor. Explico: a leitura flui de acordo com o que chamarei

aqui de fator-curiosidade. Ou seja: se leio MMM tendo como fator-curiosidade a

sexualidade da personagem, então saltarão sob minha leitura os trechos que envolverem

essa característica. Se por outro lado meu fator-curiosidade é o uso da força simbólica

em MMM já terei sob meus olhos outros detalhes do livro.

No entanto, uma primeira leitura, a leitura-primeiro-contato, é de tal forma o

percorrer de um novo caminho, que o que vem à tona ao longo dessa leitura deixa-se a

depender do que é então despertado no leitor. O fator-curiosidade surgiria então como

um re-olhar, como um ato segundo, como um retorno ao que foi desperto. A cada novo

retorno, novos elementos são observados: como se o terreno de linhas e entrelinhas

ficasse mais rico de detalhes à medida que se passe mais tempo a observá-lo. Assim, o

fator-curiosidade aqui, foi o que chamo de lupa ambiental: o que esteve a aguçar as

releituras do MMM foram justamente os aspectos ambientais que o livro carrega, foram

as simbologias dos lugares-chave, foram as buscas e processos de formação de lugar

nele contidas.

Clarice Lispector diz sobre o escrever:

Às vezes, tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa.

É que, ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever

que, muitas vezes, fico consciente de coisas, das quais, sendo inconsciente, eu antes

não sabia que sabia. (Lispector, 1999, p. 254)

O processo de leitura não é diferente: a curiosidade vai sendo despertada,

surpresas vão acontecendo, consciências vão sendo criadas, conhecimentos vão sendo

apreendidos, despertos. Ao ler com o objetivo de encontrar algo que já previamente se

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procura (no caso a relação pessoa-ambiente), o caminho vai sendo trilhado de forma

aguçada: o fator-curiosidade é como uma lente minuciosa a farejar o caminho e a

apontar a direção. Mas, uma vez que já temos como certo o estado de consciência que é

despertado através da leitura e da busca de um objeto nas páginas lidas, o que fazer à

medida que esse objeto for sendo encontrado?

Nesta pesquisa “como” e “por quê” andam lado a lado: “a análise constitui um

modo de ler, de ver o texto e de, portanto, ensinar a ler e a ver” (Moisés, 1987, p. 22). E

são os elementos que estão contidos no texto que irão determinar o tipo de análise a ele

cabível. O texto ‘me leva’ para a direção que nele for apontada como mais forte a mim:

o que me ‘salta aos olhos’, o que se evidencia na leitura, o que se torna destaque a partir

do situar-se em questão. Toda leitura é um ato de cumplicidade entre leitor e texto. “O

ato de ler é sempre especulativo; diante do texto o leitor examina, observa, pesquisa,

medita, raciocina, reflete, considera”. (Oliveira, 1999, p. 40). Ainda, “a análise literária

implica em desmembrar o texto em seus principais núcleos” (Moisés, 1987, p. 14).

Divide-se para então multiplicar: o texto fragmentado exige a conexão com o seu todo,

o contexto que palpita dele gera as diferentes leituras que o texto suscita. O texto

fragmentado abre portas diversas para o todo de que faz parte.

Assim, dividiu-se o livro Memorial de Maria Moura em quatro núcleos de análise:

1) o sítio do Limoeiro; 2) o período de Andança, 3) o período de Assentamento e 4) A

Casa Forte. O sítio do Limoeiro e a Casa Forte são os dois ambientes principais do

livro: e tudo o mais (andança e assentamento) é a trajetória e a preparação entre a saída

do sítio e a construção da Casa Forte:

1. Sítio do Limoeiro: A casa do sítio do Limoeiro é onde Maria Moura nasceu: é

seu lugar primeiro, receptáculo e palco de suas memórias. No entanto, é nesta casa

também aonde sempre conviveu com o sonho da terra das Serras dos Padres, em

histórias e direcionamentos contados e recontados por seu avô e seu pai, na esperança

de que um dia essas terras fossem retomadas por um marido ou filho de Maria Moura

(no contexto de MMM é esperado do homem a luta pela terra, pelo lugar).

2. Andança: quando acontece a saída forçada do sítio do Limoeiro e onde a

personagem Maria Moura inicia um período de mudança de entornos e valores. Maria

Moura e seu – então pequeno – bando iniciam a longa caminhada rumo às terras a que

ela tem direito por lei, herdadas da família paterna.

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O período da Andança é a representação do conhecimento do espaço por Maria

Moura: é movimento, percepção das possibilidades de mundos, é trajetória rumo a um

lugar, espaço transitório e rito de passagem (transformação pessoal) (Campbell, 1990).

3. A Serra dos Padres e o Assentamento: Terra prometida de Maria Moura. Da

qual era a única herdeira do avô paterno. Tomar posses dessas terras era o sonho da sua

família a gerações. Maria Moura e seu bando iniciam então o processo de planejamento

e construção da Casa Forte. Um lugar especial é muitas vezes um lugar projetado,

sonhado, pensado, idealizado, planejado: e assim é a Casa Forte para Moura. Ao fim da

Andança, ao encontrar a Terra das Serras dos Padres, Maria Moura ainda necessita de

tempo e espaço para apropriar-se de seu lugar ideal. Esse período, pré-Casa Forte, é o de

Assentamento, quando um pouso temporário é achado (de onde se sai e para onde se

retorna) enquanto se dá a construção da Casa Forte.

4. A Casa Forte (CF): A Casa Forte era a fortaleza idealizada e construída por

Maria Moura, como uma pequena cidade, a CF tem relações e leis próprias de seu

contexto. É também a materialização de um lugar que já existia no plano abstrato:

repleto de simbologias das figuras masculinas de sua família. Maria Moura finalmente

constrói para si a representação social de que necessitava para ter poder numa sociedade

de homens: sua casa era mais que um pai ou marido: era uma masculinidade criada

para si própria. Mais que uma casa, a Casa Forte é uma mensagem.

Essas quatro partes não representam seções definidas na própria estrutura do

romance escrito por Rachel de Queiroz, mas uma divisão em que nos apoiamos para

abordar os diferentes entornos presentes na história. Não por acaso, essas quatro partes

também apresentam tempos diferentes dentro do contexto do livro, bem como relações e

percepções distintas, porque momentos diferentes, sobre os entornos presentes nas

mesmas.

3.2 – O objeto e o método

Horácio Dídimo (2002) recitou: “começo a andar pelas calçadas/olhando para

fora/de mim/descubro pedras objetos pessoas caminhos” (p. 41). A relação pessoa-texto

é um diálogo: o como-fazer está no leitor, mas está também no texto. Moisés (1987) diz

que o método de análise é escolhido “sempre que o texto determinar” (p. 18). Isso,

claro, acontece por meio do leitor: que percebe através do texto os instrumentos que

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esse disponibiliza para a análise. Essa relação é então sensitiva: como na poesia de

Dídimo, o caminho está fora de nós, mas somos nós quem caminhamos no caminho, é

uma relação entre o olho e o que se deixa ser olhado. As ‘pedras objetos pessoas

caminhos’ estão fora de nós, mas é deixando-os entrar em nós através do

andar/descobrir que somos realmente capazes de vê-las.

Assim, como objeto deste estudo temos os capítulos narrados por Maria Moura no

livro de Rachel de Queiroz (1992). De dentro deles, foram extraídas passagens que

guardam em si as relações pessoa-ambiente: essas, ao se evidenciarem no texto através

das leituras, puderam ser delineadas e encaixadas em categorias que pertencem à

Psicologia Ambiental. Dessa forma, no processo de separação desses trechos, se

percebeu neles a presença constante de três conceitos trabalhados nos estudos pessoa-

ambiente: a Territorialidade (Itteltson, et all, 1974; Pedersen, 1997; Sockza, 2005;

Sommer, 1973); a Apropriação (Pol, 1996; Tuan, 1980; Bachelard, 1998), e a

Vinculação ao Lugar (Tuan, 1983; Giulinani, 2004; M. Santos, 1982; Hay, 1998).

No entanto, ao buscarmos a forma mais próxima do ideal para analisarmos essas

passagens, nos deparamos com algumas questões: deveríamos utilizar que métodos de

análise textual? Se esse estudo se pretendia uma pesquisa das relações pessoa-ambiente,

como adentrar o universo literário e utilizar, neste, referenciais da Psicologia

Ambiental?

Deparamos-nos com algumas estratégias disponíveis para estudos em Literatura:

métodos de análise crítica (Bergez et all 1997; Moisés, 1987), métodos de análise social

(Facina, 2004), métodos de análise psicológica (Bartucci, 2002; Leite, 2002) e

fenomenológica (Ramos, 1972; Bachelard, 1998), dentre outros. Em todos esses

métodos, o teor literário do texto aqui escolhido poderia ser trabalhado. Salvaguardando

que tivemos como conteúdo não apenas a análise literária de Memorial de Maria Moura,

mas a associação dessa com outra ciência, decidimos por nos pautar no olhar crítico

dessa reunião.

A cada vez que entramos em contato com um texto literário, o que

encontramos são restos que nos escapam e o inominável que nos inquieta. A crítica,

ao indicar o texto como seu objeto, ao invés de extrair dele um sentido, nos

presenteia com produções mais complexas resultantes da articulação com o pré-

texto estudado. (Radaelli, 2007, p. 105).

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Fizemos assim, uma leitura crítica textual que teve como primeira fase a

fragmentação do texto, o desmembramento desse: uma vez que a relação pessoa-

ambiente teve como critério inicial os quatro núcleos de análise já citados (Casa do

Limoeiro, Andança, Assentamento e Casa Forte).

Uma das preocupações ao longo dos porquês desta pesquisa foi a de apontar não

apenas as possibilidades contidas na Literatura para os estudos pessoa-ambiente, mas a

de pontuar a sua especificidade, uma vez que o que está sob análise é um contexto

fictício. Dito isso, e considerando o caráter muitas vezes formal dos estudos

acadêmicos, perguntamo-nos: como fundamentar um olhar analítico sobre as relações

humano-ambientais em uma obra literária trazendo para o estudo em questão a

legitimidade científica que se almeja?

A resposta que encontramos foi a de que este estudo se dá através de duas

ferramentas: um par de olhos e um diálogo. O par de olhos é o da leitora-pesquisadora

que conversou durante meses com Maria Moura; o diálogo são as várias associações

que a leitora fez entre o mundo de Moura e o mundo real – nessas associações estão,

entre outros, teóricos da Psicologia Ambiental, da Literatura e da Filosofia. Como ser

que se deixa adentrar pelo texto, ao leitor resta conversar com o impacto que a leitura

causa em si:

Isso porque, com o impacto surpreendente, o leitor interrompe bruscamente a

leitura e entra em suspensão. Com isso, é conduzido para uma posição de

'fantasmar' e de refletir sobre o que aconteceu, para poder retornar à leitura logo em

seguida. Nesta retomada, a continuidade temporal se restabelece e o eu do leitor se

recompõe novamente. Enfim, se restabelece um retorno do leitor sobre si mesmo,

que é o correlato do seu retorno para a seqüência narrativa do texto. (Briman, 1996,

p. 57)

Assim, como a análise sobre um texto a partir da própria experiência de leitura não

pode fugir de uma escrita autoral, este é então um estudo-sentido do livro Memorial de

Maria Moura, tendo em foco a mútua convivência entre Moura e os espaços que lhe

foram significativos.

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3.3 – Conceitos da relação pessoa-ambiente presentes em Memorial de Maria

Moura

Barbosa (1999) fala sobre Memorial de Maria Moura: “a terra exerce um fascínio

extraordinário sobre a protagonista e sua família, por ela são capazes de tudo, inclusive

matar” (p. 46). A bem verdade é que é a nossa relação com as coisas que as definem. É

o meu sentimento para com tal coisa que lhe conferirá sua importância (ou não) para

mim.

Não amamos ou desamamos lugares, coisas, paisagens. Amamos ou

desamamos o significado delas para nós como representantes dos nossos

investimentos que por seu turno bem podem ser outras representações de outros

representantes, uma complexa cadeia de constructos entrelaçados. (Sockza, 2005, p.

9).

Assim, é a todo esse complexo contexto sócio-emocional que cabe não apenas as

experiências de cada um, mas o tempo que produz esses significados. “Experiências

íntimas são difíceis, mas não são impossíveis de expressar” (Tuan, 1983, p. 163). A

Literatura, por sua vez, é um instrumento de expressão das experiências íntimas dos

personagens: mais que isso, ela guarda em si o tempo destes. Como uma seqüência de

acontecimentos, a obra guarda diferentes momentos, logo, diferentes percepções dos

espaços tratados e das relações com esses. “Dir-se-ia que o fim último, consciente ou

não, de qualquer narrador consiste em criar tempo” (Moisés, 1987, p. 101). O tempo

que se divide em si mesmo na sua fragmentária continuidade é também criador dos

espaços. Os espaços, por sua vez, ao serem concretos geograficamente, abstraem-se e se

misturam ao sentido, por receberem impressão e interpretação.

A literatura costuma interrogar a certeza que possuímos quando acreditamos

na concretude dos espaços. Não se trata de negar a existência do espaço físico, mas

de chamar atenção para o fato de que é impossível dissociar, do espaço físico, o

modo como ele é percebido. (L. Santos, Oliveira, 2001, p. 69).

É justamente nessa percepção dos espaços, criadora da relação que se tem com

eles, de onde nasce o elo entre pessoa e ambiente. Dentro das inúmeras caracterizações

possíveis desse elo, três estão constantemente presentes em Memorial de Maria Moura;

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foram esses os três conceitos da Psicologia Ambiental por nós trabalhos ao longo da

análise:

1) Territorialidade – Sentimento de proteção ante um lugar e/ou o próprio corpo.

Geralmente a territorialidade se torna mais evidente quando há ameaça de invasão,

quando algo ou alguém tenta trespassar a área sentida como território. Essa área sequer

necessita ser de posse legal do indivíduo, já que a territorialidade é intrínseca à

apropriação e a vinculação ao lugar, ou seja, à vivência, à relação que se tem com esse

lugar. A territorialidade é sentida como aspecto intrínseco da relação pessoa-ambiente:

está relativa ao que se tem como seu, ao seu espaço, ao seu ambiente, ao seu lugar.

“One way man achieves a sense of control over his life is through his ability to control

significant behaviors in defined areas of space” (Itteltson, et all, 1974, p. 142). Embora

evocada sempre que se sente o perigo de invasão, o sentido de territorialidade também

pode estar associado a atitudes preventivas: muros, portões, delimitações de terreno,

esquema de segurança, etc. O conceito de territorialidade está interligado também à

privacidade: “privacy may be viewed as a boundary control process in which the

individual regulates with whom contact will occur and how much and what type of

interaction it will be” (Pedersen, 1997, p. 147). Ao longo da trajetória de Moura

podemos observar predominância desse conceito não apenas em relação ao seu corpo,

mas aos espaços que tem como queridos, em especial a casa do Limoeiro, a Casa Forte e

as roupas e objetos de seu pai.

2) Apropriação – À medida em que um espaço vai se tornando parte de nossas

vidas, temos a necessidade de personalizá-lo de acordo com nossas características e

subjetividade. Quanto mais tempo se passa em nossa relação com esse lugar, mais

marcas nossas deixamos nele: provas concretas para nós mesmos e para os outros de

que habitamos, de que utilizamos tal lugar. Nas palavras de Pol (1996):

El ser humano, como la mayoría de otros seres animales necesita marcar su

territorio, aunque sea de forma sofisticada. Necesita sus referentes estables que le

ayuden a orientarse, pero también a preservar su identidad ante si y ante los demás.

Identidad y pertinencia, privacía e intimidad, ser causa y a su vez dejarse llevar por

sus referentes, constituyen la clave de la creación y la asumción de un universo de

significados que constituyen la cultura y el entorno del sujeto, fisicalizado a través

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del tiempo en un espacio ‘vacío’ que deviene un ‘lugar’ con sentido. Es lo que

llamamos apropiación. (p. 45)

Moura passa, em termos gerais, por quatro períodos distintos de apropriação da

casa do Limoeiro: um com o pai vivo; outro com a mãe viúva; outro já órfã, mas com a

presença do padrasto Liberato; e um último já sozinha. Além desse espaço, podem ser

observadas ainda apropriações dela em relação aos espaços com que entra em contato

nos períodos da Andança e do Assentamento. No entanto, são ainda mais visíveis,

porque nascem inclusive de antecipações e planejamentos, as apropriações de Moura em

relação a Casa Forte.

3) Vinculação ao Lugar – O contato contínuo com um lugar cria um elo afetivo

que, mesmo quando da destruição desse lugar, ou mesmo que ele só exista no plano

abstrato, nos sentimos vinculados a ele. Nesse vínculo perpassa a nossa identidade e o

nosso senso de lugar. Daily or periodic (physical) contact with a place is necessary to

maintain a sense of place, just as such contact is necessary to maintain other

relationships; otherwise, the sense of place becomes more nostalgic in character (Hay,

1998, p.6). É esse elo emocional (place attachment), que cria “potenciais similitudes

entre vinculações íntimas a pessoas e a lugares e o por vezes amargurado luto com a sua

perda” (Speller, 2005, p. 140) ou não realização. Por ser parte das nossas referências

enquanto criadores de sentimentos, a vinculação ao lugar está imbricada à nossa história

pessoal, bem como à nossa própria identidade. All aspects of identity will, to a greater

or lesser extent, have place-related implications (Twigger-Ross, Uzzell, 1996, p. 206).

Os ambientes de MMM estão arraigados de simbologias: e, muitas vezes, é delas

que parte o vínculo de Moura com os mesmos. Aspectos como sua infância, a relação

com seus pais, e a metáfora masculina são algumas das associações aos vínculos

relativos aos lugares presentes na obra.

A partir desses três conceitos pudemos perceber melhor a significação dos espaços

para Moura. Entre o tempo e a espacialidade da vida dessa personagem, a percepção dos

ambientes sob sua cognição e sentir nos foi caracterizada. O ser humano Maria Moura é

benevolente com quem o lê: dá-se por inteiro. Tivemos assim acesso à Moura que

nenhum personagem do livro teve; somos um pouco Rachel de Queiroz nesse sentido:

escrevemos Maria Moura à medida que a lemos.

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3.4 – A Psicologia Ambiental e seus Pressupostos

O pressuposto para se estar vivo é fazer escolhas: inerente ao ser humano, a

capacidade de fazer escolhas chega a ser pragmática: até o ato de não fazer escolhas já é

uma escolha. A questão é que não há como falar do ser humano sem falar, obviamente,

de suas escolhas: são elas que perfazem seus sentimentos, experiências e destinos. Da

mesma forma, não se pode usar da Psicologia Ambiental sem, mesmo que

minimamente, falar de seus pressupostos: eles estão implícitos em sua própria estrutura

e conceitos. Os Pressupostos da Psicologia Ambiental (Ittelson et al. 1974; Rivlin,

2003), são características básicas que perfazem a relação pessoa-ambiente. São então

um conjunto de fundamentos nos quais estão inseridos o próprio viver do humano e,

portanto, seus espaços. De forma pontual, os Pressupostos são:

1º. O ambiente é experienciado como um campo unitário (Ittelson et al, 1974, p.12). Tal pressuposto se refere à natureza do ambiente e como as pessoas vivenciam o (seu) mundo (Rivlin, 2003, p. 216). 2º. A pessoa tem qualidades ambientais tanto quanto características psicológicas ambientais (Ittelson et al, 1974, p.12). Ou seja, as pessoas são componentes do ambiente (Rivlin, 2003, p. 217). 3º. Não há ambiente físico que não esteja envolvido por um sistema social e inseparavelmente relacionado a ele (Ittelson et al, 1974, p.13). Dessa forma, as dimensões cultural, econômica e política também são parte desse envoltório (Rivlin, 2003, p. 217). 4º. O grau de influência do ambiente físico no comportamento varia de acordo com o comportamento em questão (Ittelson et al, 1974, p.13). Assim, as influências podem ser tanto sutis quanto poderosas (Rivlin, 2003, p. 217). 5º. O ambiente freqüentemente opera abaixo do nível de consciência (Ittelson et al, 1974, p.13), o que sugere que a pessoa se torna consciente do ambiente quando algo muda nele e é preciso adaptar-se a isso (Rivlin, 2003, p. 218). 6º. O ambiente ‘observado’ não é necessariamente o ambiente ‘real’ (Ittelson et al, 1974, p.13). O que permite reconhecer as diferenças individuais, geradoras das diferentes percepções; ainda, o mesmo local pode ser percebido diferentemente em diferentes momentos (Rivlin, 2003, p. 218). 7º. O ambiente é organizado como um conjunto de imagens mentais (Ittelson et al, 1974, p.14). Enquanto percepções podem ser consideradas como um conjunto de imagens, a cognição como um todo sofre o impacto das expectativas e dos objetivos pessoais, os quais, por sua vez, levam a pontos de vista seletivos que afetam o papel dessa mesma pessoa no ambiente (Rivlin, 2003).

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8º. O ambiente tem valor simbólico (Ittelson et al, 1974, p.14), o que apresenta as dimensões visíveis e invisíveis dos locais (Rivlin, 2003, p. 5).

Chico Buarque canta: “Vou voltar/ Sei que ainda vou voltar/ Para o meu lugar/ Foi

lá e é ainda lá/ Que eu hei de ouvir cantar / Uma sabiá”. Ao lermos esses versos fica

implícito muito do teor emocional que um lugar comporta. Os Pressupostos da PA

envolvem esse contexto espacial-emocional de uma forma circular: cuidam do visível e

do invisível, do dito e do que está nas entrelinhas, do individual e do coletivo, do

subjetivo e do cultural.

Ao longo da análise do livro de Rachel de Queiroz pudemos então usá-los como

base para as entrelinhas que todo texto suscita. Por termos metodológicos e para facilitar

a análise feita, bem como por, tanto os Pressupostos como os conceitos de

Territorialidade, Apropriação e Vinculação ao lugar estarem muito próximos um dos

outros, se interligando e se complementando sempre, não foi feita uma separação de

cada um desses fatores para que a interpretação fosse realizada. Respeitadas as quatro

divisões de tempo do livro (que ligam os espaços de chegada e saída dos lugares aqui

analisados), trabalhamos esses conceitos e pressupostos ao longo da análise do texto.

3.5 – A interpretação do texto literário, a interpretação das relações pessoa-

ambiente e o tempo

Sobre a campanha de Canudos, Euclides da Cunha (2002) escreveu: “Aquela

campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra,

um crime” (p. 7). A guerra de Canudos (1893-1897) foi um fato histórico; deu-se no

tempo real:

Conseguindo reunir um grande número de seguidores, Antônio Conselheiro

estabeleceu-se em Canudos, um velho arraial no sertão baiano. Em pouco tempo,

Canudos transformou-se numa das cidades mais povoadas da Bahia, com uma

população com cerca de 30 mil habitantes. (...) Finalmente, um poderoso exército

de 7 mil homens foi organizado pelo próprio ministro da Guerra, e, depois de

sangrentas batalhas, Canudos foi completamente destruído. Era 5 de outubro de

1897. Mais de 5 mil casas foram incendiadas pelo Exército. Toda a população

sertaneja morreu defendendo sua comunidade. (Cotrim, 1996, p. 255).

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Aqui temos uma convergência interessante: um romance, Os Sertões, de Euclides

da Cunha, foi escrito em meio (literalmente) a um fato real. Ficção e realidade se

misturaram: no entanto, o livro de Euclides é ainda um registro da guerrilha que ele

presenciou, e o leitor sabe disso. O julgamento de regressão, tamanha a violência

perante os sertanejos, e o taxamento disso como crime, expressam ao leitor a

interpretação valorativa de Euclides. Mas é importante perceber que isso se dá

naturalmente: o texto nos guia, enquanto leitores, ao deixar à tona posicionamentos. O

texto entrega: e cabe a cada leitor escolher o que irá receber.

Ainda, a relação texto versus realidade na verdade não faz sequer sentido: a

realidade não pode ser abarcada pelo texto e, em contrapartida, o texto é uma realidade

em si. “Não que a realidade seja desprovida da importância, mas porque a arte não se

confunde com o real” (Ramos, 1972, p. 96). Mesmo no caso citado, aonde fontes

históricas podem confirmar fatos narrados por Euclides, a Canudos dele não será jamais

a Canudos que se passou no mundo palpável – e vice versa. Trouxemos o exemplo de

Canudos à tona para mostrar que o interessante é que justamente por ser realidade de

seu próprio contexto a Literatura se confere uma auto-legitimidade.

Sob essa perspectiva, ambas as interpretações, do texto literário e das relações

pessoa-ambiente, são formadas da mesma matéria: ambas existem em um contexto

humano específico e ambas existem pelo homem. Ainda, “o espaço é a matéria

trabalhada por excelência: a mais representativa das objetificações da sociedade, pois

acumula, no decurso do tempo, as marcas das práxis acumuladas” (M. Santos, 1979, p.

18). E essa é uma verdade para qualquer espaço: seja o impresso nas páginas de um

livro, seja o existente no mundo concreto: mesmo porque ambos passam por nossa

cognição para serem reconhecidos como espaço.

Para a interpretação do texto literário e das relações humano-ambientais é

necessária então uma perspectiva dinâmica, a consciência de que as experiências de

temporalidade e de espacialidade são fundantes do subjetivo. A construção textual, por

sua vez, permite essa dinamicidade no sentido de ser fiel ao processo de formação de

lugar, já que a lógica do texto precisa apresentar os comos e porquês paulatinamente e

de maneira que o leitor possa compreendê-las à medida que forem sendo apresentadas.

No livro de Lewis Carroll (2006, p. 73), Alice e o gato travam o seguinte diálogo:

― Podes dizer-me, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?

― Isso depende muito de para onde queres ir - respondeu o gato.

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― Preocupa-me pouco aonde ir - disse Alice.

― Nesse caso, pouco importa o caminho que sigas - replicou o gato.

O processo de leitura é assim: um entregar-se. Os caminhos vão surgindo à

medida que às páginas vão sendo viradas, e o leitor tem apenas uma certeza: está indo

para algum lugar. Esse caminho, no entanto, vai lhe fazendo sentido: a interpretação

dele vai se multiplicando perante a sua percepção – o sensitivo-poético que o texto

desperta. “Ao nível da imagem poética, a dualidade do sujeito e do objeto é irisada,

reverberante, incessantemente ativa em suas inversões” (Bachelard, 1998, p. 4). Assim,

não se lê apenas o que se está escrito, se lê, principalmente, as entrelinhas: e às

entrelinhas cabe a interpretação do leitor.

Para se jogar um pouco de acidez ante uma análise textual, se poderia versar que o

livro me transforma, mas eu não posso transformar o livro. Em um diálogo constante

acontecido no mundo real, na interpretação da relação pessoa-ambiente nesse mundo

concreto, o fator tempo é fluido: o sujeito observado estaria constantemente se

transformando ante a minha cognição, reagindo a mim, e criando reações também

constantes em minha pessoa. Seria necessária uma constante adaptação da minha

interpretação perante as mudanças que vão acontecendo para que eu pudesse dar conta

de registrar o máximo. Ainda, tudo no mundo real está sujeito a mudar no próximo

minuto: o acaso é sempre um fator a ser considerado. No entanto, a questão é que o

livro que está sendo interpretado pela leitura, na realidade, não é o mesmo livro estático

que há poucos minutos antes estava na estante. O livro que leio vai se transformando em

matéria dentro de mim: e essa construção textual por mim absorvida nada tem da

estaticidade do texto concreto. E ela se transforma na mesma velocidade em que eu sou

transformada pelo lido.

Pontes (1992) defende que “o espaço é de alguma maneira menos abstrato, mais

próximo de nós que o tempo” (p.7). No entanto, o espaço, como nós o conhecemos, está

inserido em um tempo (um espaço em que estivemos, um espaço em que estamos, um

espaço em que estaremos; um espaço em que pensamos ontem, um espaço em que

pensamos hoje, um espaço em que pensaremos amanhã). Espaço e tempo verbal vêm

juntos na linguagem – seja essa falada, escrita, pensada ou, ainda, sentida. Para nos

situarmos espacialmente, necessitamos também nos situarmos temporalmente (no

âmbito literário, excetuam-se a esse critério, em nossa opinião, obras nonsense ou

gêneros demasiado fantásticos que não tenham em si o tempo humano – ex: universos

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paralelos). Espaço e tempo não poderiam então ser dissociados, até porque, em última

análise, o tempo é guardador de espaços. A essa junção entre tempo e espaço na

Literatura se dá o nome de cronotopo (Bakhtin, 1996). Por sua própria organização

temporal e espacial acessível em conjunto (passado, presente e futuros podem ser vistos

a qualquer hora em um simples abrir de páginas) o cronotopo é mais facilmente

percebido na literatura. Nas palavras de Bakhtin (1996): We will give the name

chronotope (literally 'time space') to the intrinsic connectedness of temporal and spatial

relationships that are artistically expressed in literature (p. 84).

Assim, vemos um romance (obra literária) como pertencente a dois tempos

distintos: 1) o tempo estático: sob a perspectiva do mundo real – já que uma obra

concluída será sempre isso: uma obra concluída. Posso adaptá-la de inúmeras formas,

criar diferentes versões daquela primeira obra, mas a obra original assim o permanecerá

enquanto existir. O livro Memorial de Maria Moura de Rachel de Queiroz, por

exemplo, terá sempre a forma que tem em cada publicação. Assim, para este primeiro

tempo temos o livro fechado: obra criada e estática que existe no mundo material;

tempo guardado. O primeiro tempo só existe quando o indivíduo ainda não é leitor da

obra: o livro ainda está na estante. Como segundo tempo, temos: 2) o tempo contínuo: já

não sou eu – indivíduo separado da obra – sou leitor: o romance se transforma sob meus

olhos e sob minha cognição. Temos assim o livro aberto. Esse tempo segundo será

sempre transforme, já que se deixará depender da subjetividade e do momento em

questão. Essa obra aberta (Eco, 1988) se deixará depender do leitor e mudará a cada

nova interpretação, a cada releitura ou reflexão. É nesse segundo tempo, criador de

cognições e apresentador de personagens, que este estudo se foca e é nele que a

interpretação do texto literário e a interpretação das relações pessoa-ambiente se

convergem em uma mesma matéria interpretativa.

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IV – Memorial de Maria Moura: do Limoeiro à Casa

Forte As palavras são pequenas formas no

maravilhoso caos que é o mundo. Formas que focalizam e prendem idéias, que afiam os

pensamentos, que conseguem pintar aquarelas de percepção.

(Diane Ackerman)

São essas as últimas linhas do livro Memorial de Maria Moura:

Duarte tomou as rédeas do cavalo das mãos de Pagão, esperou que eu me

aproximasse para montar. E antes que eu botasse o pé no estribo, rogou mais uma

vez:

― Ainda está na hora de mudar de idéia, Sinhá. Vai ser uma luta muito dura,

com esses homens traquejados para matar. Não é briga pra mulher. E se lhe matam?

Saltei na sela. Mas, antes de dar partida, me dobrei sobre o pescoço do cavalo

e disse, olhando nos olhos de Duarte:

― Se tiver que morrer lá, eu morro e pronto. Mas ficando aqui eu morro

muito mais.

Saí na frente, num trote largo. Só mais adiante, segurei as rédeas, diminuí o

passo do cavalo, para os homens poderem me acompanhar. (Queiroz, 1992, p. 482).

Maria Moura é uma personagem que representa a busca, ela faz o seu caminho até

sentir que chegou a um limite; e uma vez reconhecido esse limite, ela põe em prática

uma quebra: escolhe um novo caminho, uma forma de continuar a sua jornada, e segue

adiante. Então, talvez a trajetória dessa personagem represente a trajetória de todos nós:

peregrinos da vida que nos foi dada. Talvez os espaços de Maria Moura sejam os nossos

espaços: a casa dos pais que um dia se transforma em memória, o processo de achar o

seu canto no mundo, o sonho de uma casa que lhe seja o lar ideal, e a esperança de

encontrar um propósito na vida depois de uma grande desilusão.

Os compositores brasileiros Toquinho e Vinicius de Moraes escreveram em sua

música Aquarela: “um menino caminha/ e caminhando chega no muro / e ali logo em

frente / a esperar pela gente/ o futuro está”. O futuro, tempo por vir de qualquer ser

humano, representa uma quebra temporal: o passado necessita ficar para trás para que o

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futuro seja recebido. E qualquer mudança é a transgressão do que existe no agora: o

futuro é a transgressão do presente. Essa mudança de percurso que acontece na divisa

entre tempo presente e tempo futuro se dá justamente quando se chega ‘ao muro’. O

muro é parada, é limite: o muro representa a necessidade de um novo lugar, um lugar

que permita todas as coisas que estão no além-muro. Assim, podemos dizer que o

percurso de Moura é formado de quatro ‘muros’ principais: o momento de expulsão da

casa do Limoeiro, o fim do período da andança, o encerramento do período do

assentamento e o sentimento de esgotamento de possibilidades da Casa Forte – que já

não mais supria Moura.

4.1 – O sítio do Limoeiro

O ser humano é um ser social. Seu mundo é sempre dinâmico: fica a passear entre

a esfera privada e a esfera coletiva. “Do ponto de vista da dinâmica, o espaço vital de

cada indivíduo é uma totalidade que é equivalente à totalidade do mundo físico todo”

(Lewin, 1973, p. 87). Assim, como não cabe à nossa cognição apreender o mundo por

completo em todas as suas instâncias de tempo, espaços, fatos etc, acabamos por ter

como nosso mundo, o ‘pedaço do mundo’ com o qual nos relacionamos, o espaço que

cabe à nossa socialidade. Sabemos que há ‘outro mundo’ lá fora, sabemos que o mundo

é maior do que o que (convi)vemos, mas sabemos também que ele nos é abstrato, uma

vez que não nos relacionamos diretamente com ele. Assim, é o nosso espaço cotidiano

que nos concentra. E “o espaço reproduz a totalidade social” (M. Santos, 1979, p. 18).

O primeiro espaço de Maria Moura foi a casa onde nasceu: a casa do sítio do

Limoeiro. A Bíblia diz: “Pois onde estiver vosso tesouro, ali estará também o vosso

coração” (Lc 12, 34). É pelo afeto que passa o nosso bem-querer e o nosso repúdio, as

nossas cognições e interpretações sobre o que nos cerca. O nosso elo com as coisas e

com os lugares.

Talvez não exista nenhum sentimento de afinidade mútua, comunidade,

fraternidade entre as pessoas, seja ele formal ou informal, institucionalizado ou não

– nem nenhum sentimento de diversidade, aversão, hostilidade –, que não esteja

relacionado de alguma forma a questões de lugar, território e apego a lugares.

(Giuliani, 2004, p. 90).

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Podemos afirmar isso na medida em que a vida de qualquer ser estará sempre

associada a um lugar. No entanto, quando de um olhar mais próximo, quando existe a

intimidade, quando a aproximação (física e/ou emocional) permite o desenvolver de

uma relação, cria-se o apego. É como Saint-Exupéry (1987) conclui: “A gente só

conhece bem as coisas que cativou” (p. 70). Um lugar é um espaço que foi não apenas

cativado por nós, mas que também nos cativou. Então, “o apego é definido como o laço

afetivo entre um indivíduo e um lugar, acompanhado do desejo de estar próximo a esse

local” (Giuliani, 2004, p. 94). A esse apego, nesta pesquisa chamamos de vinculação ao

lugar.

O mundo dos homens, assim é formado de ‘coisas’ e seres – e da relação entre

ambos. Na entrevista com Bill Moyers, Campbell fala sobre os significados que as

coisas carregam em si:

MOYERS: Em que sentido? O que se pode extrair do relógio que você está

usando? Que espécie de mistério ele revela?

CAMPBELL: O relógio é uma coisa, não é?

MOYERS: É.

CAMPBELL: Você sabe realmente o que é uma coisa? O que a fundamenta?

É algo no tempo e no espaço. Pense em como é misterioso que alguma coisa possa

ser. O relógio se torna o centro de uma meditação, o centro do mistério inteligível

de ser, que está em toda parte. Este relógio é agora o centro do universo. O ponto de

repouso do mundo que se move. (Campbell, 1990, p. 64).

Assim é também qualquer coisa sobre a qual se volte o olhar humano: ela torna-se

o foco pulsante, o centro e o ponto de partida do situar-se. O arredor vira o ‘tudo mais’,

cenário; mas o olhar, o sentir e o ponto referencial estão ali: na coisa. Quando a coisa é

um lugar, a pontecialidade de ser ‘centro do universo’ é ampliada: ali são criadas

vivências, tanto no plano físico como no emocional: ali se passa a vida. “O lugar é mais

do que o contexto, sendo uma parte integrante do processo identitário” (Speller, 2005, p.

138).

Quando falamos de uma casa onde toda a infância se passou, uma grande carga

emocional e simbólica está ali inserida. “A casa é uma das maiores (forças) de

integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. (...) O passado,

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o presente e o futuro dão à casa dinamismos diferentes” (Bachelard, 1998, p. 26). O

sítio do Limoeiro de MMM é assim: uma casa-mistura-de-tempos:

Me fervia o sangue, pensar que aquele bando de insetos tinha a ousadia de vir

me ameaçar dentro da minha casa! A casa do meu pai e da minha mãe, a casa onde

eu tinha nascido; que tinha sido a casa da minha avó, levantada de telha e taipa pelo

meu próprio bisavô! Era ousadia demais. (Queiroz, 1992, p. 42).

A questão não era a casa: mas tudo o que estava associado à casa do Limoeiro. Ali

viveram seus avós, ali viveram e morreram seu pai e sua mãe. Moura carregará ao longo

de toda a sua jornada as palavras de ‘Pai’ – como ela o chamava – e do avô. “A nosso

favor nós tínhamos a posse do sítio por estes anos todos – também ouvi Pai dizer isso

mais de uma vez”. (Queiroz, 1992, p. 37). Talvez possamos imaginar que o lugar que

pressupõe todos os outros lugares é o lar: algo como a condensação da essência do que

torna um espaço um lugar. O lar está ali: falando muito mais do que o que as palavras

podem abarcar. O lar comunica, guarda, afaga. O lar faz companhia com suas inúmeras

memórias: é um canto cheio de passado. “O lar é um lugar íntimo”, diz Tuan (1983, p.

160); e citando Freya Stark, complementa: “Este é certamente o significado de lar – um

lugar em que cada dia é multiplicado por todos os dias anteriores” (Tuan, 1983, p. 160).

O sítio do Limoeiro é isso: a reunião de todos os dias anteriores que lá se passaram. E

Moura tentará ‘reconstruir’ essa realidade sempre: toda a sua busca passa pela

idealização que o Pai lhe deixara: pelas histórias, lugares e sonhos do tempo vivido com

ele. “Aqui eu estou na minha casa. Este sítio é meu, foi o que o meu pai sempre me

disse. Se os ladrões dos meus primos querem tomar o que é meu, que venham, com

delegado e tudo. Eu enfrento. Da minha casa só saio à força e amarrada.” (Queiroz,

1992, p. 38).

Ittelson (et al, 1974) e Rivlin (2003) afirmam com o oitavo pressuposto que o

ambiente tem valor simbólico: e o sítio do Limoeiro era todo formado dessa matéria

emocional-representativa:

Deitada no mato, olhando as estrelas no céu escuro, eu ia me lembrando das

conversas do Avô, os casos que ele me contava tantas vezes, tantas. Começou a

contar quando eu era pequena e me deitava com ele, em noite de lua, na rede do

alpendre. Depois, eu já mocinha, ouvia os mesmos casos, repetidos já agora por Pai,

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às visitas, aos parentes. E muito mais explicados do que no tempo em que ainda eu

não podia entender. (Queiroz, 1992, p. 87).

A questão é que essa casa, embora física, era formada de uma malha abstrata: de

uma mistura de tempos e realidades. Era formada de lembranças que ainda alimentavam

a alma de Moura – agora sozinha no mundo. Mas todos ainda estavam lá naquele lugar:

a lhe fazer companhia, a conversar com ela, a representar tudo o que sempre

representaram. A casa do Limoeiro é raiz, é referência, é base, é chão gerador de afago e

de segurança.

Man is cognitive animal. He does more than see, hear, feel, touch, smell, in

the simple sense of ‘recording’ his environment. He interprets it, makes inferences

about it, judges it, imagines it, and engages in still other human forms of knowing.

It is all of these forms of knowing that permit the individual to accumulate a past,

think of the present, and anticipate the future. The ‘poetry’ of this human process is

the substitution of an ‘inner reality’ of words, images, ideas, feelings, and still other

symbols and representations for an ‘outer reality’ of shapes, sizes, objects,

movements, sounds, structures, and other attributes of the environment” (Ittelson, et

all, 1974, p. 85).

Essa associação, típica do ser humano, é extremamente presente na relação de

Maria Moura com o sítio do Limoeiro. “A casa é um corpo de imagens que dão ao

homem razões ou ilusões de estabilidade” (Bachelard, 1998, p. 36). E era precisamente

isso: Moura mantinha sua estabilidade através das lembranças do Limoeiro. Quando

morta sua mãe, Maria Moura diz: “Aquele quarto, aquela cama, o baú, a santa na

parede, era só o que me restava dela. Da pessoa dela.” (Queiroz, 1992, p. 20). O valor

estava impresso na casa, nos móveis, nos lugares que existiam dentro do lugar maior: o

sítio. “O lugar pode adquirir profundo significado para o adulto através do contínuo

acréscimo de sentimento ao longo dos anos. Cada peça dos móveis herdados, ou mesmo

uma macha na parede, conta uma história” (Tuan, 1983, p. 37).

Ainda assim, os diferentes tempos do sítio do Limoeiro também exigiam

diferentes comportamentos de Moura. Como afirma o segundo pressuposto (Itelson et

al, 1974; Rivlin, 2003): a pessoa tem qualidades ambientais tanto quanto características

psicológicas ambientais. Cada vez que a ausência de uma pessoa acontecia (no caso, por

morte), também o ambiente mudava e Moura necessitava se adaptar a isso. Por essa

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razão, sua relação diária, suas ações e altivez em relação ao Limoeiro iam se

transformando com essas mudanças.

A participação individual (ou de um grupo) em um determinado ambiente

físico é influenciada não só pelo espaço físico e suas propriedades, mas também

pelas pessoas que aí estão, seus papéis e atividades, definidos pelo contexto social

no qual está inserido aquele ambiente físico. (Campos de Carvalho, 1993, p. 438).

Quando o pai de Moura morre, Maria e sua mãe se vêem então sozinhas: um novo

começo é necessário. E mesmo que o livro não mostre detalhes ou passagens específicas

em relação a isso, já que a memória em relação ao pai da protagonista aparece de forma

fragmentada ao longo de todo o romance, fica sempre implícita nas falas de Moura a

veneração pelos tempos do Pai vivo: “Quando Pai morreu, eu não era tão pequena

assim. Nunca me esqueci de Pai (...). Meu pai, esse vivia fechado no meu coração,

sozinho” (Queiroz, 19992, p. 20).

Pelo que se deixa entender, o sítio foi sobrevivendo com o que já tinha, sem que a

mãe interferisse muito no dia a dia do Limoeiro: “Depois da morte de Pai o gado foi se

acabando” (Queiroz, 1992, p. 82). Mesmo com a chegada do Liberato ao sítio – “A

amizade com Liberato, Mãe nunca escondeu de ninguém, era mesmo amigação de porta

aberta” (Queiroz, 1992, p. 33) – a administração do Limoeiro segue solta, sem grandes

feitios ou investimentos, sem apropriações mais significativas.

Após a morte da mãe (Moura tinha então dezessete anos), Maria não sabe ainda

que papel ocupar, mas aos poucos foi ocupando espaços que antes eram da mãe: “Uns

dias passados, comecei a dormir no quarto de Mãe, me deitando na cama que foi dela”

(Queiroz, 1992, p. 20). Agora, a Sinhá do Limoeiro era ela: e ela começava a ver isso e

a querer ocupar o seu papel.

É precisamente quando o Liberato é morto a mando de Moura porque a ameaçou

pela posse da casa, que ela poderia começar a realmente se apropriar do sítio do

Limoeiro. “Eu tinha que pensar era na minha herança; o nosso sítio do Limoeiro, dentro

do distrito de Vargem da Cruz, boa terra de planta e cria, agora meio abandonado, é

verdade” (Queiroz, 1992, p. 30). É importante ressaltar que tanto a mãe de Moura, como

a própria – mesmo antes de se assumir efetivamente como Sinhá do Limoeiro – têm um

sentido de territorialidade muito grande em relação ao sítio.

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The dynamic nature of people’s relationships to places not only demonstrates

that these relationships include many different places, feelings and experiences, but

also suggests that our relationships to places include both conscious and

unconscious processes. (Manzo, 2003, p. 53).

Moura e sua mãe não entendem muito bem como, mas sabem que tem que

proteger o sítio, inclusive das tentativas do Liberato de se apoderar dele:

Já tinha se passado bem uns seis meses da morte de Mãe, já tinha se

desvanecido dos meus olhos o vulto do corpo pendurado, a visão daquele rosto

horrível que não era o dela, quando, certa noite, ele (Liberato) chegou trazendo um

papel enrolado, que era para eu assinar. Explicou com poucas palavras que, sendo

eu menor de idade, não ia ser capaz de tomar conta da herança de Mãe. Daí, Mãe

também não entendia de negócios; e só de teimosia, não concordou em casar com

ele e lhe passar a propriedade. (...) O pior é que eu, tal como mãe, não queria assinar

nada. (Queiroz, 1992, p. 21).

Elas sabem que o Limoeiro faz parte delas, de sua história, de sua segurança. E

sentem-se atreladas a esse lugar, relutando sobre qualquer coisa que signifique colocá-

lo, mesmo que minimamente, sob risco.

Place Identity. To begin with, it is, a sub-structure of the self-identity of the

person consisting of, broadly conceived cognitions about the physical world in

which the individual lives. These cognitions represent memories, ideas, feelings,

attitudes, values, preferences, meanings, and conceptions of behavior and

experience which relate to the variety and complexity of physical settings that

define the day-to-day existence of every human being. (Proshansky, Fabian,

Kaminoff, 1983, p. 59).

A formação dos vínculos e as significações do espaço dão-se pela vivência:

pessoas e entornos influenciam-se mútua e continuamente a construir essas simbologias

que passam a fazer parte da subjetividade de cada indivíduo. “Quanto aos lugares,

aqueles ligados à nossa infância, frequentemente, parecem manter um determinado

status na hierarquia afetiva” (Giuliani, 2004, p. 97). Moura nasceu na casa do Limoeiro,

foi lá que se criou: há um acúmulo grande de tempo envolvendo esse espaço e suas

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significações. “Mais que um centro de moradia, a casa natal é um centro de sonhos”

(Bachelard, 1998, p. 34). E o sítio do Limoeiro tem essa representação: é casa natal no

senso lato, é casa do nascimento de memórias, vivências, senso familiar e referencial. É

tecido temporal-espacial vivenciado: e “o tempo confere valor” (Tuan, 1983, p. 211). O

Limoeiro é, acima de tudo, lar. E o que é um lar? Talvez possamos até dizer que um lar

é o receptáculo que guarda a mais forte essência humana: sua idéia de origem, de

referência. O lar remete a um princípio: é tão complexo, tão subjetivo e valorativo que

se deixa depender apenas do sentir. Não há como englobar em palavras a totalidade de

significados de um lar. O lar remete ao querido: à referência minha, e minha apenas.

Há um exemplo que pode ser citado do livro O Pequeno Príncipe, de Saint-

Exupéry (1987): o principezinho tem como referência e significado do seu lar – o

Asteróide B-612 –, uma flor. Essa flor representa todo o sentir e toda a importância e

valor do seu pequeno asteróide. Após chegar à Terra, o principezinho encontra um

campo de grande extensão cheio de flores exatamente iguais à sua: a mesma flor que ele

amava tanto por pensar única. É então que, após encontrar a raposa, chega à conclusão

de que não importa quantas flores existam, a sua será sim sempre única, precisamente

por ser sua:

― Vós não sois absolutamente iguais à minha rosa, vós não sois nada ainda.

Ninguém ainda vos cativou, nem cativastes a ninguém. Sois como era a minha

raposa. Era uma raposa igual a cem mil outras. Mas eu fiz dela um amigo. Ela é

agora única no mundo. (...) ― Sois belas, mas vazias, disse ele ainda. Não se pode

morrer por vós. Minha rosa, sem dúvida um transeunte qualquer pensaria que se

parece convosco. Ela sozinha é, porém, mais importante que vós todas, pois foi a

ela que eu reguei. Foi a ela que abriguei com o pára-vento. Foi dela que eu matei as

larvas (exceto duas ou três por causa das borboletas). Foi a ela que eu escutei

queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa. (Saint-

Exupéry, 1987, p. 72).

A questão é essa: o nosso lar nos é tão querido e importante que vale ‘morrer por

ele’. “A casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro

universo. É um verdadeiro cosmos” (Bachelard, 1998, p. 24). Ali se concentram os

tesouros da alma: o que vale o mundo para nós, o que nos pulsa como lugar principal.

‘Home’ is a spatial metaphor for relationships to a variety of places as well as a way of

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being in the world, but more literal interpretations connect this term to the residence

and positive feelings toward it (Manzo, 2003, p. 56). Como ‘metáfora espacial’, o lar

tem imbricado em si significações relevantes e que pertencem apenas ao conhecimento

de quem delega àquele espaço o título de lar: cada um de nós, quando chega em casa

após um dia difícil e recita para si a frase Ah! Lar, doce lar! sabe o que se quer dizer

com isso, sabe os sentimentos que estão arraigados a esse espaço: não o espaço físico ou

geométrico, mas o espaço-contexto, que envolve precisamente o que a palavra lar

comporta em termos de sentimento e de identidade para cada indivíduo.

O sítio do Limoeiro tem então essa gama de significados: é lugar pulsante de

sentimentos relacionados à vida e ao passado de Maria Moura. E a legalidade dessas

terras – ou seja, sua partilha – lhe é inadmissível. A apropriação dessa terra, o estar nela

e poder imprimir nela esse estar, é mais importante que qualquer papel: já que só Moura

contém em si todas as significações da história do lugar. A casa é de Maria porque são

dela as histórias vividas nesse lugar: o sentido de territorialidade se dá não apenas pelo

estar neste entorno no presente, mas também pelo tempo em que se esteve nele no

passado, a malha temporal de sua vida, se junta ao tempo a que a casa pertence

formando um contexto que a transforma em lar e em referência de lugar e elo.

Pode um lugar conter em si expressões de vivência de uma família, de uma

pessoa? O lugar sozinho não é nada. É como uma caneta sem a mão humana: não se

pode esperar que ela crie palavras, que produza vocabulário. Los espacios, los objetos y

las cosas toman un significado a través del usos y del tiempo (Pol, 1996, p 48). O

espaço necessita do humano a atribuir-lhe significações, a transformá-lo em lugar, a

preencher de vivências sua geografia. Assim, para os primos de Maria Moura, o sítio do

Limoeiro era uma terra a mais em suas mãos, herança financeira; para Moura, essa casa

era sua referência de mundo e família, herança simbólica. “Eu me levantei, já danada da

vida. Eles pouco se importavam com Mãe, casada ou amigada, queriam era passar a

mão nas terras do Limoeiro” (Queiroz, 1992, p. 35).

Esse sentimento de propriedade, de território, fazia com que Moura também se

sentisse em controle dessa terra. One way man achieves a sense of control over his life

is through his ability to control significant behaviors in defined areas of space

(Itteltson, et all, 1974, p. 142). Maria Moura tinha assim o controle do sítio do

Limoeiro, era ela quem decidia quem podia permanecer na terra que tinha como sua:

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Me senti tão enfurecida que de novo me levantei do banco e corri abrir a

cancelinha do alpendre. E botei os dois pra fora:

― Podem fazer caminho, que eu não estou aqui para ouvir vocês destratando

Pai e Mãe.

Chamei João Rufo, que escutava por perto, encostado no pé de jucá do

terreiro:

― João, sele os animais desses moços, que eles já vão embora.

E, para arrematar, me virei para os primos, procurando imitar o que eu ainda

lembrava das palavras de Pai:

― Se acham que têm parte na herança, vão procurar os seus direitos na

justiça. E agora adeus, boa viagem. (Queiroz, 1992, p. 36).

Lembramos que o sentimento de Territorialidade muitas vezes é despertado

quando o indivíduo sente a segurança do seu espaço ameaçada.

Quando podemos compreender as funções de determinado espaço, podemos

predizer a intensidade com que será defendido e os tipos de táticas defensivas que

provavelmente serão usadas. Mesmo que não aceitemos a idéia de territorialidade

instintiva nos seres humanos, parece que as pessoas defendem ativamente alguns

espaços contra a invasão através de emprego de todo o repertório de técnicas

defensivas no reino animal, além de algumas outras. (Sommer, 1973, p. 54).

Maria Moura, com a chegada dos primos a cobrar suas partes da herança, viu seu

território em perigo: “Só eu, de ignorante, podia pensar que, acaso se perdendo o papel

das escrituras, eu estava garantida, pois não havia mais outra prova. Mais tarde é que

soube: no livro do cartório se escreve tudo, seja caso de compra ou de herança”

(Queiroz, 1992, p. 37). Seu lar estava em perigo e era preciso defendê-lo a todo custo.

“Fiquei meio inquieta, com medo de tanta trapalhada de lei. Mas uma coisa eu resolvi:

da minha casa ninguém me retirava. Só à força bruta.” (Queiroz, 1992, p. 37).

Ao ter acesso aos pensamentos de Maria Moura em relação à sua terra, podemos

perceber que essa não é uma guerra apenas sua: é uma guerra pela memória de seus

pais, pela terra que para ela carregava o nome, a imagem e a importância deles. E ela

pensa como se compactuasse com esse pai que parece guiar seus passos em nome da

terra que defende e representa.

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“Se o homem está ameaçado, ele se defende. Às vezes, atacando aquele que o

ameaça, às vezes ignorando-o” (Pankow, 1988, p. 30). Defender essa casa então se

tornou seu objetivo maior de vida: seu legado familiar estava em jogo. “Minha primeira

ação tinha que ser a resistência” (Queiroz, 1992, p.40). Ela era a única a ‘enxergar’

tantos elementos na casa do Limoeiro e a única que era capaz de defendê-lo. “Eu senti

que tinha chegado a uma encruzilhada na minha vida e era hora de escolher o caminho

novo” (QUEIROZ, 1992, p. 40). Em meio à ameaça, montou suas estratégias de defesa.

Contratou ‘caboclos’ e os administrou na defesa dessa terra, a ‘sinhazinha do Limoeiro’

começava a morrer: dando lugar à ‘Maria Moura’, guerreira de sua terra e de sua

liberdade. “Nunca se viu mulher resistindo à força contra soldado. (...) Pois, comigo eles

vão ver. E se eu sinto que perco a parada, vou-me embora com os meus homens, mas

me retiro atirando. E deixo um estrago feio atrás de mim” (QUEIROZ, 1992, p. 40).

O ex-presidente americano Winston Churchil disse: “primeiro construímos nossas

casas; depois são elas que nos constroem” (SANTOS, 1982, p. 20). Quando um espaço

torna-se atrelado a inúmeras significações e simbologias, ele faz parte de nós, de nossa

subjetividade e identidade. Barchelard (1998) diz que a casa é como “um instrumento de

análise para a alma humana” (p. 20). A casa é como uma extensão de nosso corpo, de

nosso ser. A casa não é a rua: a casa é o nosso lugar. A casa somos nós mesmos porque

a casa é o nosso mundo. Assim, Maria Moura via a si mesma na casa do Limoeiro: e a

defendia como se defendendo sua própria pessoa, seu próprio corpo. “Defender a minha

morada e a minha pessoa, pra desgraçado nenhum botar a mão em qualquer das duas”

(Queiroz, 1992, p. 43). Ambas, seu corpo e sua casa, estavam em um mesmo patamar de

importância.

Joseph Campbell (1990) defendia que ao longo da vida morrem-se várias mortes

simbólicas: e que são essas mortes simbólicas que nos permitem vestir ‘novas

roupagens’ de nós mesmos e, assim, transformar-nos a cada nova fase de nossas vidas.

“Nas situações mais graves, em que a ameaça pesa sobre sua vida e torna-se

insuportável, há sempre a possibilidade de uma fuga, isto é, de uma evasão no espaço”

(Pankow, 1988, p. 31). A ‘sinhazinha do Limoeiro’ percebia sua morte, já que ela só

cabia à realidade do Limoeiro: sabia que uma nova decisão e destino a esperavam. Seu

mundo acabara de ficar maior. Estava sendo empurrada de seu ninho e necessitava

aprender a voar. “É, eu me sentia encurralada. E o meu coração me pedia para sair dali.

Sentia que tinha acabado o meu tempo no Limoeiro. Que me adiantava ficar no sítio, me

agüentando a ferro e fogo, sem recursos, mulher sozinha, nova?” (Queiroz, 1992, p. 62).

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O ninho, primeira morada, tem sempre algum reflexo sobre nós: amado ou odiado,

ele nos gera um afeto, seja esse positivo (apego) ou negativo (repulsa). E quando chega

a hora de partir sentimos alegria e/ou tristeza – não existe a neutralidade ao se sair do

ninho. A percepção dessa hora de partir fez com que Maria Moura refletisse sobre o

significado da casa de Limoeiro para ela: “Mas esse meu desejo de ir embora não tem

nada a ver como o meu amor pela casa e pela terra: aqui nasci e me criei. Acontece que

sempre chega a hora de largar o ninho. Do pinto quebrar a casca e pular do ovo”

(Queiroz, 1992, p. 62).

Quando chega a hora da partida, o mundo alarga-se. O que se tinha antes como

mundo, torna-se pequeno: como uma geografia limitada. O lar desprende-se da casa

física e roga ser encontrado novamente em outro lugar, pois ali não está mais: é tempo

de busca. Aquele canto que antes era lar, continuará repleto de significações pelo tempo

que for memória. E será lar ainda – mas um lar abstrato, preso a um tempo e a um

espaço que não mais se constituem presentes. “Vi que tinha chegado a hora principal da

minha vida. Ou era hoje ou era nunca. A minha casa, a impressão que dava agora, era a

de um mundéu se fechando em cima de mim” (Queiroz, 1992, p. 63).

No entanto, nascia ‘Maria Moura’: a guerreira. E ela jamais deixaria sua casa

amada, seu elo com sua vida até ali, para essa ser tomada por quem lhe expulsou, por

quem lhe forçou a saída de seu lar. Maria Moura, a futura chefe de jagunços e dona de

um império, não permitia ver maculado o que lhe era querido. Antes destruir, antes

‘matar’, a ver o espaço que amava usado por pessoas que achava indignas desse espaço.

“Espalhei pelos cantos da casa uns canudos de pólvora (...). Derramei pelo chão e pelas

paredes todo o pote de azeite de carrapato que se guardava para as candeias. Ensopei

tudo de azeite, o mais que podia” (Queiroz, 1992, p. 64). Maria Moura ateou fogo em

sua própria casa. Ali matava uma existência sua. Deixava para trás um passado e iria

rumo ao futuro.

Me benzi, senti os olhos ardendo, aquele aperto horrível no coração. Fui até o

quarto, beijei o lugar onde ficava a santinha de Mãe. Abri os braços, abracei e beijei

as paredes da minha casa, me despedindo para sempre. (...) Vendo minha casa

transformada num fogaréu, e feito pela minha própria mão, desabei em pranto.

(Queiroz, 1992, p. 65).

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Destruída a casa que lhe guardava, Moura estava agora em movimento, solta no

mundo. A casa do Limoeiro, fisicamente deixando de existir, trazia um novo destino a

Maria Moura. Era necessário que Maria vestisse uma nova ‘couraça’, uma nova versão

de si que fizesse jus ao novo espaço que iria ser buscado. Ao perder um canto fixo,

também sua vida estava solta, em busca de uma nova alocação de si. Mais uma vez a

simbologia do seu pai entra em cena como referência do agir, como a masculinidade de

que Moura necessitava para ser aceita socialmente como ser que busca espaço dentro da

sociedade paternalista em que vivia. “Eu enfiei uma calça que tinha sido de Pai, pra

montar com mais liberdade. Me servia perfeitamente, eu sabia. Pai era magro como eu,

e tinha pouco mais que a minha altura” (Queiroz, 1992, p. 63). A simbologia que

impregnava todo o Limoeiro opera mais uma vez nas atitudes de Moura, que se prepara

para deixar o sítio.

Os significados simbólicos que se desenvolvem ao longo do tempo estão

contidos nas lembranças tanto de ambientes específicos quanto das pessoas lá

presentes (domínio sócio-físico), e também nos elementos simbólicos dos locais que

nos fazem lembrar de alegrias, prazeres, qualidades estéticas e terror. Eles se

tornam componentes das conexões das pessoas com os lugares e do seu apego aos

mesmos (Rivlin, 2003, p. 219).

Joseph Campbell (2003) dizia que “quando ocupamos um lugar em nossas vidas e

queremos estar em outro, há um obstáculo para superarmos, um limiar que deve ser

transposto” (p. 157). O Limoeiro esgotava-se diante dos olhos de Moura: mesmo que

tenha sido por violência imposta, ela não tinha outra opção senão deixar seu lar. Para

além do Limoeiro, estava o resto do mundo. Um mundo que só havia existido para

Moura de forma abstrata. Para ter forças e referenciais para seguir adiante, no entanto,

ela necessitava levar do Limoeiro não apenas as memórias, a sua idéia de lar, mas

objetos que simbolizassem para ela a essência daquele lugar:

Chamei as meninas, disse que elas pegassem as trouxas que já tinham

preparado de véspera, com a roupa delas e algumas das coisas que Mãe me deixou –

três lençóis bordados, uma toalha de mesa e uma peça de renda que Mãe guardava

“para o meu enxoval”. À Chiquinha, que era a mais cuidadosa, entreguei, imagine!

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enrolados num cobertor de baeta, um copo de vidro fino, uma faca e uma colher de

prata e a santinha que Mãe tinha no quarto. Era o que eu possuía de mais valor. (...)

Fui em seguida ao baú de Mãe, de onde eu já tinha tirado aquelas coisas que a

Chiquinha levou. Peguei lá o papo-de-ema que Pai, quando viajava, usava para

guardar o dinheiro. (...) Peguei também, no baú, todo o dinheiro que ainda tinha –

doze patacas de prata, um dobrão de ouro, que era do tempo do meu avô. Enfiei

tudo no papo-de-ema, e amarrei aquele rolo grosso em redor da minha cintura,

apertado, como via Pai fazer. Vesti em cima o casado de Pai, para esconder a

cintura aumentada. (...) Trabalhava ligeiro, mas calma, nunca pensei ter tanta calma.

Desde a chegada da tal da intimação que eu estava me prevenindo para um ataque

como o daquela noite. (...)

Botei a tiracolo o saco da munição; tinha ali o chumbo, e o polvarim grande

de chifre, as pedras de isca e o artifício de fazer fogo. Tudo herança de Pai. Peguei

também a faca que era dele, uma pajeú linda, com cabo de rodelas de osso e prata,

na sua bainha bordada. (...) Voei em cima da sela – sela de homem – claro que

também de Pai. Ali tudo era dele, até eu – até eu, não – principalmente eu, sangue e

carne dele. (Queiroz, 1992, p. 64-65)

Ao coletar os valores do Limoeiro que podia carregar consigo, Moura concentrava

a ‘imagem’ do sítio nesses objetos. O apego de Moura ao Limoeiro estava representado

não só em suas lembranças, mas na simbologia desses objetos. Como Tuan (1983)

argumenta, “os objetos seguram o tempo” (p. 207). O sentimento de territorialidade de

Moura, antes a defender o sítio do Limoeiro a todo custo, havia sido transferido para

essas pequenas coisas: coisas pulsantes de um valor invisível, mas grande. Ainda, por

condensar em si diferentes tempos e memórias, “a casa nos fornecerá simultaneamente

imagens dispersas e um corpo de imagens” (Bachelard, 1998, p. 23). Assim, diante da

fragmentação do seu mundo, a ex-sinhazinha tentava ainda abraçar o que quer que lhe

desse a noção de segurança, de referência. No meio disso tudo, a guiá-la, a imagem de

seu pai: é das recordações e idealização dele que ela consegue vestir a armadura

necessária para transgredir seu destino feminino. Joseph Campbell (1990) explica:

É o que acontece na mitologia: ao se defrontar com uma mitologia em que a

metáfora para o mistério é o pai, você terá um conjunto de sinais diferentes do que

teria se a metáfora para a sabedoria e o mistério do mundo fosse a mãe. E ambas

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são metáforas perfeitamente adequadas. Nenhuma delas é um fato. São metáforas. É

como se o universo fosse meu pai (p. 20).

Assim é a metáfora (simbologia) do pai de Moura: ele é caminho: está presente em

todas as suas referências e nas escolhas que faz. É muitas vezes personificando a forma

como pensa que o pai agiria, que Moura age. Em um contexto masculino, Moura

tornou-se não apenas seu próprio homem, mas seu próprio pai.

Mas essa transformação, como toda morte simbólica, foi dolorosa. “Ser posto para

fora de casa significa algo violento, pois, se estamos expulsos de nossas casas, estamos

privados de um tipo de espaço marcado pela familiaridade” (Da Matta, 1997, p. 54). Foi

necessário ter seu mundo destruído, foi necessária a violência e a expulsão. Foi

necessária a destruição da casa que a criara e a transformara em Sinhazinha.

O Limoeiro então virou cinzas: lembranças abstratas no coração e mente de

Moura. Ela agora era outra: a sinhá estava ali, nas cinzas do lugar a que pertencia. O

passo seguinte seria então livrar-se de vez de qualquer semelhança à Sinhazinha do

Limoeiro. Afinal, somos, também, o que o espaço nos permite ser. Já longe das terras

do sítio, na primeira parada que ela e seu bando fizeram, bradou aos seus jagunços:

― Vou prevenir a vocês: comigo é capaz de ser pior do que com cabo e

sargento. Têm que me obedecer de olhos fechados. Têm que se esquecer de que sou

mulher – pra isso mesmo estou usando estas calças de homem. (...)

Não sei que é que tinha na minha voz, na minha cara, mas eles concordaram,

sem parar pra pensar. Aí eu me levantei do chão, pedi a faca de João Rufo, amolada

feito uma navalha – puxei o meu cabelo que me descia pelas costas feito uma trança

grossa; encostei o lado cego da faca na minha nuca e, de mecha em mecha, fui

cortando o cabelo na altura do pescoço. (...)

Os homens olhavam espantados para os meus lindos cabelos. Pareceu até que

o Maninho tinha os olhos cheios de água. E eu desafiei:

― Agora se acabou a Sinhazinha do Limoeiro. Quem está aqui é a Maria

Moura, chefe de vocês e herdeira de uma data na sesmaria da Fidalga Brites, na

Serra dos Padres. (Queiroz, 1992, p. 84).

Maria Moura, com o Limoeiro destruído, daria então início a outra etapa de sua

vida: em outro ambiente. Como se a cada novo espaço, fosse necessária uma nova

versão de si. No entanto, “os verdadeiros bem-estares têm um passado” (Bachelard,

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1998, p. 25). E esse sentimento-referência em relação ao sítio do Limoeiro iria continuar

sempre. “La construcción del significado ambiental se realiza en función de distintos

tipos de variables” (Corraliza, 2000, p. 61). Por essa razão, a todo lugar que cabe a

palavra lar, só podem ser explicados os detalhes dessa construção, por quem tem acesso

aos sentimentos formadores dessa – o que muitas vezes acontece inconscientemente, já

que, como o quinto pressuposto afirma, “o ambiente freqüentemente opera abaixo do

nível de consciência” (Ittelson et al, 1974, p.13; Rivlin, 2003, p. 218). Uma das

vantagens de ser leitor-observador seria, então, ter acesso a esses processos formadores

de lugar, necessários para a compreensão do personagem e do contexto que ele faz

parte, bem como para o melhor entendimento das relações pessoa-ambiente.

No entanto, Moura tem consciência de que foi arrancada de seu primeiro lar, ela

sabe que sua saída foi feita precipitadamente e de forma a não lhe deixar escolhas. Esse

sentimento de remoção, de deslocamento forçado ainda ficou presente nela por muito

tempo:

Agora eu estava livre de tudo, sem casa, sem dono, sem família, e daí? Pelo

menos ninguém me botava o pé no pescoço; e falando em botar o pé no pescoço, de

repente me lembrei do Tonho, aquele condenado. Se me saísse tudo errado nessa

vida que eu começava, no remate dos males a culpa era dele. Foi o Boca-mole, com

a ajuda do bestalhão do Irineu, que precipitou tudo. Embora eu saiba que nunca ia

ficar o resto da minha vida presa no Limoeiro; nem mesmo em casa de rua na

Vargem da Cruz; mas não carecia começar com tanta violência. (Queiroz, 1992, p.

122).

O vínculo a um lugar independe de sua existência física: carregamos o lugar em

nós. E um lugar, uma vez criado, não deixa de existir (Tuan, 1983). Maria Moura

continuava a ter dentro de si a casa do Limoeiro. Era a lembrança do vivido nessa casa

que a guiava para a terra nova, a Terra das Serras dos Padres, da qual era a única

herdeira. A história de Maria Moura era impulsionada pelos espaços presentes nela: seu

destino era sua casa, seu lar. E por ele, sempre, mataria ou morreria.

Embora não pudesse mais se apropriar fisicamente do Limoeiro, Moura

continuamente apropriava-se da essência desse lugar, pensando sempre sobre o que lá se

passara, sobre o que lá vivera – o vínculo forte que mantinha com esse lugar era sempre

alimentado em si. E Maria Moura carregava consigo todo o poder-referencial que era

tudo o que advinha do Limoeiro: que havia sido sua noção de território, que era ainda o

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lugar que significava elo e que representava tanto – no período de Andança, já longe da

época do Limoeiro, Moura relembra:

Acabei arrancando uma folha de uma caderneta velhinha onde Mãe tinha

assentado o nome dela e o de Pai, o nome dos pais deles, o dia em que casaram. E o

dia em que eu nasci, o meu nome e o meu sobrenome. Eu nunca me separava

daquele caderninho. Era o único documento que eu tinha. (Queiroz, 1992, p. 197).

Já o território de Maria era agora indefinido: percorria o espaço, estava em

movimento, andava no novo caminho de sua vida, esperando por novos lugares e se

preparando para o seu lar sonhado: as terras que eram suas por direito. E ela então

bradava para o seu bando, como quem proclama um hino: “A terra é minha, o direito é

meu” (Queiroz, 1992, p. 83). Buscando a segurança da legalidade, do reconhecido

socialmente, Moura buscava um canto em que pudesse ser, em paz. Acima de tudo,

buscava. E é essa busca que representa a próxima etapa de sua história: o período que

intitulamos de Andança.

4.2 – A Andança

O corredor significa passagem, movimento, nascimento para uma nova vida

(Chevalier, Gheerbrant, 1998). O corredor simboliza a saída de um espaço para outro:

mudança de ambiente. Todos nós estamos sujeitos a diversos tipos de corredores ao

longo de nossas vidas: físicos e emocionais. O primeiro corredor por qual passamos é a

própria mãe: primeiro mundo, primeiro lar, primeiro lugar. Ao passar por esse primeiro

corredor, deixamos de ser o ser duplo que somos com a mãe gestante e começamos a ser

um: indivíduo de corpo próprio, destinado a achar novos lugares sempre. O período de

Andança em MMM é como um grande corredor: ali será o rito de passagem (Campbell,

1990), o caminho que levará Moura ao nascimento do seu sonhado lar.

O oposto da casa, no entanto, é a rua. Assim como o oposto ao fechado, é o

aberto: e ambos figuram a bivalência entre o seguro e o inseguro. Moura está pela

primeira vez na vida no aberto. “Se a casa distingue esse espaço de calma, repouso,

recuperação e hospitalidade (...), a rua é um espaço definido precisamente ao inverso.

(...) A rua é um local perigoso” (Da Matta, 1997, p. 57). Maria se surpreende então com

a imensidão do mundo: “Ai, a gente só descobre quanto o mundo é grande e

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despovoado quando se anda nele perdido” (Queiroz, 1992, p. 85). Mas embora

apresente perigo, a ‘rua’ também apresenta possibilidades: como todo lugar aberto,

vários caminhos lhe são possíveis. E Moura tem consciência disso:

Teve um cantador no Limoeiro que, no desafio, quando um perguntou ao

outro onde é que ele morava, o cabra soltou a voz e respondeu: ‘Em cima das

minhas apragatas, em baixo do meu chapéu...’ Fiquei sonhando com aquela

liberdade. (...) Pois agora eu era livre. Em cima do meu cavalo Tirano, em baixo do

meu chapéu de palha... (Queiroz, 1992, p. 87).

Contudo, se o espaço aberto representa possibilidades e conquistas a serem feitas,

é também um caminho custoso: com o tempo vivido de cada passada dada, de cada

estrada trilhada – com tudo o que cabe dentro do tempo. Rubem Alves (2003) diz que

“o tempo se mede com batidas. Pode ser medido com as batidas de um relógio ou pode

ser medido com as batidas de um coração” (p. 67). O tempo sentido (e convém lembrar

que o tempo existe dentro do espaço) é um tempo mais perceptível: nossos sentidos

estão aguçados, cada segundo conta e é percebido de forma mais consciente – o que

sugere que a pessoa se torna consciente do ambiente quando algo muda nele e é preciso

adaptar-se a isso (Rivlin, 2003). Quando isso acontece, referências estão sendo

buscadas, e tentar se localizar e tentar construir um caminho e um destino provoca

excitamento e cansaço. É período de transição, de mudanças, de adaptação.

Me doíam os lombos, me doía o espinhaço. Os pés já estavam meio inchados,

dentro dos coturnos. Quando o cavalo chouteava forte, me atacava aquela dor que

chamam dor de veado, a que dá uma pontada forte nos vazios. Me sentia suja, sem

os meus banhos de cheiro, sem roupa branca pra trocar. (Queiroz, 1992, p. 87).

O período de Andança é quase um lidar com a perda-de-lugar, ao mesmo tempo

em que se cria a consciência de uma necessidade-de-lugar. Ele se estende da saída

forçada do Limoeiro ao momento em que Moura finalmente encontra o seu lugar-

destino: a terra das Serras dos Padres. El espacio no tiene un sentido meramente

funcional. Es el resumen de la vida y las experiencias públicas e íntimas. La

apropiación continua y dinámica del espacio da al sujeto una protección en el tiempo y

garantiza la estabilidad de su propia identidad (Pol, 1996, p. 45). Ao construir seu

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caminho, como não podia deixar de ser, Maria construía a si própria: ou à persona que

criara para sobreviver no mundo masculino de que fazia parte. "A dupla moral patriarcal

legitimou a exploração feminina frente aos interesses masculinos. No entanto, a

protagonista em questão passa a se beneficiar dessa moral, ao reproduzir o modelo

masculino nas relações.” (Langaro, 2006, p. 19).

Se para ter espaço, Maria tinha que personificar a imagem de seu pai em si

mesma, ela faria justamente isso. E foi isso o que fez, herdeira do legado sempre

presente em si em detrimento do seu pai não ter tido filhos homens – “Afinal, coitado,

de todos os filhos que ele esperava, só vinguei eu – e mulher” (Queiroz, 1992, p. 83) –

Maria destina então seu bando de jagunços a ‘captar’ os recursos que não tinham ainda.

Ao longo da Andança vão fazendo pequenos e grandes assaltos aos transeuntes do

caminho, ou nos pontos de parada. O terceiro Pressuposto da PA afirma: “não há

ambiente físico que não esteja envolvido por um sistema social e inseparavelmente

relacionado a ele” (Ittelson et al, 1974; Rivlin, 2003, p. 217). A lei no descampado da

Andança era a lei do mais forte: qualquer pessoa representava perigo e qualquer posse

estava à mercê de ser perdida. O sistema social a que pertencia o campo aberto era o da

aventura: tinha-se que sobreviver e por esse propósito tudo se justificava:

Continuamos vivendo de aventura e evitando as casas. Arruado mesmo não

avistamos nenhum; só duas vezes uns passantes nos visaram, mas foi de longe;

antes que chegassem perto, pegamos a primeira vereda e sumimos na catinga. De

comida não se passava tão ruim. Os rapazes fizeram um bodoque com uns cordões,

e sempre conseguiam derrubar rolinha, nambu. Até jacu eles mataram. (...)

Andamos mais algumas léguas – era sempre aquela solidão. A farinha se acabava

no fundo do saco; em compensação a caça era mais fácil. A espingardinha já podia

ser usada; quem ia ouvir tiro naquele desterro? Mas tinha-se que poupar a munição.

A qualquer momento era capaz de surgir um mau encontro e a gente não podia ficar

desprevenida. (Queiroz, 1992, p. 111).

Ao viver está relacionado um, e apenas um, comportamento nosso: a reação a esse

viver. Somos uma interpretação-de-texto em forma de ser, estamos sempre a absorver o

que está à nossa volta com nossa subjetividade: e cabe a nós o que fazer com esse

‘texto’ que nos é dado em forma de vida. Engolimos a vida, cada um de nós, e a

digerimos com o nosso-modo-de-ser. Sobre o processo criativo, Ostrower (1999) diz:

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Compreendemos que todos os processos de criação representam, na origem,

tentativas de estruturação, de experimentação e controle, processos produtivos onde

o homem se descobre, onde ele próprio se articula à medida que passa a identificar-

se com a matéria. São transferências simbólicas do homem à materialidade das

coisas e que novamente são transferidas para si” (p. 53).

Sugerimos aqui que o processo de criação de um lugar não é diferente de qualquer

outro processo de criação humana. A criação de um lugar passa por uma identificação,

por uma valoração, por uma apreensão (apropriação) deste. Antes do lugar, há um

vazio: que o lugar vem preencher. Somos então, na verdade, a soma dos lugares de

nossas vidas: porque é a eles que está atrelada nossa vivência: nosso caminho terreno.

Ao perceber que estava à deriva, Moura percebe também a necessidade de um canto de

repouso, de uma referência, de uma pausa estável.

Nessa noite, dormimos um belo sono. João Rufo atou a minha rede em duas

chibatas grossas de louro. (...) Deitada na rede, eu me sentia inquieta. Ah, não era

aquela vida de correria miúda que eu procurava, quando fugi do Limoeiro. A gente

tinha que tomar uma decisão. Reuni de novo os homens ao redor no nosso fogo e

decretei:

― De hoje em diante, nós vamos procurar um canto pra fazer o nosso ponto

de parada. Um lugar nosso mesmo, de onde a gente saia e para onde volte, por mais

longe que se vá, e se meta no que se meter. Tem que ser um lugar escondido e com

aguar perto. Essa mata por aí é muito grande; procurando a gente acha.

Levou quase três semanas para achar. Mas numa manhã bem cedo, ainda com

névoa no ar, a gente descobriu o que queria. (Queiroz, 19992, p. 114).

Na voz do velho negro Amaro, o nome desse lugar foi dito: “Nós chamamos de

Lagoa do Socorro, pois foi ela que nos socorreu.” (Queiroz, 1992, p. 118). Maria Moura

concorda então com o velho senhor: “― Socorro. É isso mesmo. Vai ser Socorro para

nós também.” (Queiroz, 1992, p. 118). Existe um livro infantil de Ruth Rocha (1976)

intitulado Marcelo, Marmelo, Martelo, no qual ela chama a atenção para a apropriação

coletiva que fazemos das coisas e objetos através dos nomes convencionados a eles.

Marcelo, indo contra a esses nomes que para ele não fazem sentido porque não remetem

ao por quê de ser das coisas, conclui:

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Pois é, está tudo errado! Bola é bola porque é redonda. Mas bolo nem sempre

é redondo. E por que será que a bola não é a mulher do bolo? E bule? E belo? E

bala? Eu acho que as coisas deviam ter nome mais apropriado. Cadeira, por

exemplo. Devia chamar sentador, não cadeira, que não quer dizer nada. E

travesseiro? Devia chamar cabeceiro, lógico! Também, agora, só vou falar assim”.

(Rocha, 1976, p. 13).

E Marcelo continua sua história chamando colher de ‘mexedor’, bom dia de ‘bom

solário’, boa noite de ‘bom lunário’ e assim por diante. Embora uma historinha que

brinca com a capacidade dos pais de entender seus filhos, mesmo quando esses são

diferentes do tido como normal, Ruth Rocha nos faz perceber que as coisas que têm

nome reconhecido fazem parte de um vocabulário que já foi apropriado por nós. No

entanto, quando algo nos é valorativo, muitas vezes sai da esfera do substantivo comum

e adentra a categoria dos substantivos próprios. Ao atribuir à Lagoa do Socorro esse

nome por conta do socorro que lhes prestou, tanto o velho Amaro quanto Moura

assumem o seu vínculo com esse lugar. Ele passa a ser território demarcado, apropriado

por eles:

A partir das perspectivas descortinadas pela experiência única e individual, a

noção abstrata de espaço vai-se transformando, à proporção que o nosso

conhecimento direto e íntimo ou indireto e conceitual se amplia, chegando, então, a

fundir-se com o sentido de lugar, mesclando razão e emoção. (...) Esta renovação

contínua do sentido de espaço e de lugar, tanto em termos de duração relativa da

nossa capacidade de apreender e conhecer, como de experienciar, sentir e refletir

um espaço, nos conduz à questão do tempo, seja em evocações de imagens de um

passado, seja em imagens desejadas para o presente ou projetadas para o futuro.

(Lima, 1999, p. 154).

Horácio Dídimo (2002) tem um poema que intitula Durante:

“desde/quando/?/quando/até” (p. 67). Todo lugar está atrelado a um ‘quando’. Toda

necessidade de mudança de lugar está atrelada a um ‘quando até’. A Lagoa do Socorro,

pouso do período de Andança, representava um ‘quando até’ para Moura. Ela sabia que

ali era tempo de preparação para a terra das Serras dos Padres. Talvez tenha sido nesse

período de Andança que a questão do tempo mais esteve presente em Moura.

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Enquanto a gente combinava as coisas, parecia fácil, mas na verdade foi uma

consumição. Eu sempre tinha vivido trancada em casa, as cunhãs me trazendo tudo

na mão, preparando meu banho, lavando e passando a minha roupa, fazendo

comidinha especial porque eu era biqueira. Mãe tinha me acostumado muito mal.

Agora aquela vida dura, só com os homens por companhia, naquele mato

isolado, nem sei como pude enfrentar. Mas tinha que ser e eu adiante. (...) Dormir a

minha primeira noite sossegada, debaixo da cobertura, depois de não sei quanto

tempo ao sereno. (...) Todos os dias os homens montavam, para os animais não

perderem o costume de andar, nem eles próprios. (...) Mas aquilo ali, para nós, era

muito diferente. A mata parece que engolia tudo, a catinga de verão era um mar de

garrancho e folhas secas, onde a gente se afogava. A minha idéia era ir levando os

cabras a se acostumarem na luta, porque da luta é que ia sair o nosso pão de cada

dia. Tinha muito com quem se brigar nesse mundo afora – porque eu já estava

convencida de que, nesta vida, quem não briga pelo que quer, se acaba. (Queiroz,

1992, p. 120/121).

A ‘Maria Moura’ já havia surgido, existiam apenas resquícios, memórias da

Sinhazinha que ela um dia fora: “Eu queria ter força. Eu queria ter fama. Eu queria me

vingar. Eu queria que muita gente soubesse quem era Maria Moura. Sentia que, dentro

da mulher que eu era hoje, não havia mais lugar para a menina sem maldade” (Queiroz,

1992, p. 121). Esse sentimento de busca, do desejo de que seria futuramente essa

‘Maria Moura’ de fama, a fazia trilhar seus caminhos, buscar o canto de onde pudesse

governar a realidade que queria para si. “El impacto emocional directo de la situación

con frecuencia dirige las estrategias de relación e intercambio que el sujeto mantiene

con el ambiente” (Corraliza, 2000, p. 62).

A situação em que Moura se encontra no período de Andança é a de busca de

referências: não pode edificar um canto decisivo, que caiba a longo prazo, pois ainda

não está no lugar que tem como definitivo. Enquanto isso, cria a estabilidade de um

lugar: então ela se fixa naquele ponto preciso do tempo e espaço, para que tenha de

onde sair e para onde voltar, mesmo sabedora de que ele é passagem para um futuro que

quer próximo. “Daily or periodic (physical) contact with a place is necessary to

maintain a sense of place, just as such contact is necessary to maintain other

relationships; otherwise, the sense of place becomes more nostalgic in character” (Hay,

1998, p. 6). Um lugar tem a perspectiva de ser referência emocional. Mesmo que

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criemos lugares quase que inconscientemente, já que não temos a constante noção das

referências e laços que vamos construindo, um lugar é como uma raiz: seja essa ‘raiz’

rasa ou profunda, são os lugares que são os responsáveis por sermos esses ‘seres

enraizados’, ou seja, por termos em nós a noção de origem, de segurança, de lar, de

localização, de pertencentes a um local e ambiente. Como afirma Campbell (1990):

“Tempo e espaço formam as vias sensíveis que moldam as nossas experiências. Nossos

sentidos estão limitados pelo campo de tempo e espaço, e nossas mentes estão limitadas

pela moldura das categorias de pensamento” (p. 65).

Como uma guerreira-donzela, no entanto, enquanto Moura não construísse ao

redor de si um castelo, uma fortaleza, ela teria que andar como que fugida, atenta aos

inimigos e à sociedade que estavam sempre prontos para lhe lembrar e impor a sua

“condição de mulher” (Queiroz, 1992, p. 114). Entretanto, ao longo do movimento

temos locais de refúgio, paradas discretas que nos servem de reabastecimento de força,

de lugar de reflexão para os passos futuros. É nas paradas que repensamos o

movimento. É preciso que se pare de andar para que se reflita sobre o caminho trilhado

até então. O passado deixa-se a depender do presente para que possa ser modificado e

transformado em futuro. Assim, Moura administra a construção de seu repouso

temporário, de onde viria o treino e preparação para o caminho que queria trilhar para

chegar a sua terra sonhada:

O mais – quer dizer – as nossas moradas novas, tinha tudo que ser situado

mais pra dentro, no fechado da mata, por onde não corresse caminho nem vereda.

A derrubada lá era para ser a menor possível; as casas levantadas debaixo das

árvores grandes (a gente encontrou uns angicos e uns paus d’arco que pareciam

umas torres). O cercado dos cavalos já tinha uma ramada provisória e o lugar

escolhido era bom. As nossas duas barracas deviam se levantar não muito perto do

cercado; se alguém achasse uma coisa, não obrigava a achar a outra; ou as casas, ou

os cavalos. Roçado que a gente plantasse, também seria lá dentro, muito mais no

fundo da catinga. (...)

Começamos o trabalho e não foi pouco. Deixamos as barracas velhas dos

escravos – a do filho e a do genro, no seu estado de ruína, quase tapera; na nova

acrescentamos uns paus tortos, nem rebocamos as paredes por fora, ficou só no

sopapo do barro. O cercado das cabras continuou do mesmo jeito também: a cerca

meio desdentada, faltando uns paus aqui e ali.

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Já para nós, lá dentro, a coisa era outra. Duas barracas bem aprumadas; a

minha, pequena, que era só para uma rede; a dos homens larga pra três redes.

Seguindo a combinação, o Alípio ficava com os velhos, se fazendo de neto, na

verdade para nos servir de sentinela. (...)

Limparam um terreirinho defronte à minha porta. João Rufo fez um banco –

duas forquilhas de cada lado e, por cima, uma tora de uma braça de comprido;

diziam eles que, ali, era o meu ‘gabinete’. (...)

A gente já sonhava com uma vaca parida para dar leite; o velho Amaro sabia

de uma fazenda com muito gado solto, pra lá da tal Camiranga. Um dia se mandava

dois dos meninos dar uns campos por lá. Não era à toa que, do nosso sítio, se tinha

trazido um cavalo campeiro!

Os dois negros velhos já começavam a chamar o nosso acampamento de ‘a

fazenda’. (Queiroz, 1992, p. 123/124).

Ao tachar esse lugar de ‘acampamento’, sabedora das limitações que ele lhe

apresentava, bem como de sua temporalidade, Moura, embora administrasse

modificações a esse espaço e até gozasse dele de forma positiva e proveitosa, tinha

como certo que não era ali o local a que pertencia. Esse lugar, que aos poucos sofria

apropriações de Moura e seu bando, era visto de forma muito diferente por Libânia, por

exemplo, e por Moura. Para a velha escrava, a chegada do bando veio trazer riqueza e

vida ao local pobre e abandonado em que viviam:

Quase chorou quando lhe entreguei um punhadinho de sal.

― Sal, meus santos anjos! Não vejo são sal desde aquela noite que a gente

fugiu da senzala!

Molhou com a língua a ponta do dedo, tocou o dedo molhado no sal, lambeu

o dedo com delícia:

― É sal mesmo. É sal das águas do mar, secado no sol... (Queiroz, 1992, p.

117)

Para Maria Moura, no entanto, embora a certeza de um canto que lhe protegesse

do aberto fosse confortante e promovesse segurança, ela tinha a constante sensação de

temporalidade. A Lagoa do Socorro representava o que o próprio nome definia: um

lugar que veio em ajuda, que promovia a quebra do movimento, que transformava o

desconforto do aberto em sensação de fechado, que lhe dava o sentimento de ter um

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território a que estivesse apegada. Já que ainda não podia ter o seu lugar ideal, a

necessidade de um lugar que pudesse se transformar em casa, mesmo que desapegada

de uma noção mais profunda e definitiva de lar, vinha a ser conferida pela Lagoa do

Socorro:

É, estava tudo uma beleza; eu até tinha engordado um pouco. Nem pensava

mais nos meus banhos de cheiro, na boa cama com lastro de sola que eu tinha no

Limoeiro. Também isso, e tudo o mais, estava agora virado em cinza. Do meu

conforto de sinhazinha, nada. A vida era outra, eu estava endurecendo. Já um dia

inteiro a cavalo, por maus caminhos, não chegava a me deixar enfadada. (...)

Eu comia, assada na brasa, banda de nambu ou de preá, ou de tatu; ou uma

traíra, da lagoa, temperando o feijão. E dormia até a manhã seguinte. Andava

mesmo tão bem disposta que, ao fim de uma desses dias de correria, João Rufo

brincava, dizendo que era mais fácil o Tirano ficar enfadado do que eu.

Mas comigo mesma, dentro do meu coração e da cabeça, ainda nada estava

bem. Aquilo para mim era só um tempo de passagem ou mesmo um começo, mas

um começo pequeno, primeiros passos de um caminho que ainda tinha de ir muito,

muito mais longe.

Pensava, em primeiro lugar, no que eu ia fazer quando se acabasse o nosso

dinheiro de prata, que nem era tanto. Ficar roubando bode e garrote das fazendas

léguas abaixo? Isso não era para mim. Eu queria era coisa grande; era poder na

minha mão. (...)

Viver em estrada aberta; e não escondida pelos matos, em cabana disfarçada,

como índio ou quilombada. Mas num alto descoberto, deixando ver de longe o

casarão lá em cima, telhado vermelho, paredes brancas caiadas. Cavalos de sela

comendo milho na estrebaria, bezerro gordo escaramuçando no pátio.

Quero que ninguém diga alto o nome de Maria Moura sem guardar respeito.

E que ninguém fale com Maria Moura – seja fazendeiro, doutor ou padre, sem ser

de chapéu na mão. (Queiroz, 1992, p. 124/125).

A noção de territorialidade passa pela necessidade inerente ao homem de possuir e

delimitar um território para que possa assegurar, entre outras coisas, alimentação,

proteção e familiaridade com o ambiente (Fischer, 1989). Assim como a territorialidade,

a apropriação e a vinculação ao lugar cabem dentro do tempo. Via de regra é que,

quanto mais tempo se passa em um lugar, mais chances se têm de se apropriar dele, de

senti-lo mais como território e de estar mais vinculado a ele. No entanto, como diz

Rubem Alves, “o tempo se mede com batidas. Pode ser medido com as batidas de um

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relógio ou pode ser medido com as batidas do coração” (Alves, 2003, p. 67). Assim, não

necessariamente será o tempo do relógio que determinará a fortaleza do sentir em

relação a um lugar.

Há uma passagem no livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll (2006)

em que Alice diz: “Estou meio cansada com todas essas mudanças! Eu nunca sei o que

vou ser de um minuto para o outro...” (p. 64). O livro, que cabe ao gênero nonsense,

claro, não tem uma lógica certa de acontecimentos ou, em outras palavras, sua lógica é

justamente não ter lógica. A questão é que quando pensamos em um lugar, ele nos vem

exatamente para que em nós seja criada uma lógica: é o lugar quem nos situa, e dele,

uma vez que já é lugar (ou seja, já foi apropriado por nós), sabemos o que esperar; ele já

nos é conhecido. Interagimos com ele de forma estável, com a lógica que ele nos

oferece e que, em retorno, podemos lhe dar. Por essa mesma razão, é que a cada lugar

sabemos que cabe uma lógica diferente.

Maria Moura sabia da lógica que a Lagoa do Socorro, lugar que se encontra dentro

do período que aqui chamamos de Andança, lhe oferecia. Sabia o que esperar desse

lugar e sabia o que ele lhe representava. Para ela, a Lagoa do Socorro não precisava ser

mais do isso: o socorro que lhes prestava. Era um lugar que cabia ao presente e que ela

sequer queria no futuro. Sua utilidade era limitada. Assim como sua significação.

Extraía desse lugar o que ele podia lhe dar dentro desse senso de finitude temporal: para

Moura, a Lagoa do Socorro era a própria representante de seu período de andança, algo

temporário, uma pausa no meio do caminho. Era o seu lugar-preparação: “Tinha que

andar devagar, eu sabia. Ir adestrando os meninos, que todos os domingos faziam

exercício de pontaria; cada um dava dois tiros e nada mais, pra se poupar a pólvora”

(Queiroz, 1992, p. 125).

Às vezes, é em ter o que não queremos que temos a certeza do que queremos.

Assim era esse lugar temporário para Maria: dava-lhe mais do que nunca a certeza de

que queria achar seu canto definitivo e construir uma fortaleza que expressasse por fora

o que ela sentia por dentro. Esse sentimento de grandeza que cabia na própria busca

incansável de Moura, era cada vez mais alimentado por ela. Talvez por não conseguir

achar a segurança interna que fora lhe tirada com a perda do Pai, da Mãe e, por fim, do

Limoeiro (que representava esses pais), Moura buscava a segurança externa: queria

rodear-se de tudo o que o mundo concreto poderia oferecer como ostentação de poder e

proteção.

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Já na vida de jagunça com seus homens, cada vez mais preparados para o destino

furtivo do crescimento financeiro de Maria Moura, ela, ainda na Lagoa do Socorro, diz

sobre a pequena riqueza que já acumulava:

De noite, eu não ia mais precisar mais sonhar com botija dos outros. Já

possuía a minha.

Fiquei algum tempo sentada na rede, me balançando, pensando em mim, na

vida, nas coisas do mundo. O que é bom e o que é ruim, na vida. Pra mim, pra todas

as pessoas. (...)

Quem sabe a força dos ricos está mesmo é nas casas de alvenaria, nos cavalos

de sela, na roupa de seda e veludo, o muito gado pastando nos campos sem fim – e

os próprios campos sem fim? O ouro será o confeito dessas posses? Pois quem tem

ouro tem tudo que o ouro compra, que o ouro vale.

Fiquei então assim, cismando, passando a mão pelos meus ouros que me

enrolavam o pescoço, tirando e enfiando os anéis dos dedos.

É. Eu tinha que ter o ouro para ter o poder. As terras, o luxo, a força para

mandar nas pessoas. (Queiroz, 1992, p. 177).

Embora envolta de escudos, como a própria persona de “Maria Moura”, ou o seu

bando de homens, ou até as riquezas que ia já acumulando, a verdade é que Maria tinha

medo. Maria era ainda uma sinhazinha assustada, uma sinhazinha sem uma Casa

Grande que lhe acolhesse em sua função de sinhá. El sentimiento de inseguridad o el

miedo sentido en un lugar es real, y está basado en la construcción del significado que

para el sujeto tenga el lugar en su conjunto o facetas específicas del mismo (Corraliza,

2000, p. 62). Brigando sempre com sua ‘condição de mulher’ e personificação

masculina, Moura vivia a tentar buscar o espaço a que realmente pertenceria. Como diz

o terceiro pressuposto da Psicologia Ambiental, “não há ambiente físico que não esteja

envolvido por um sistema social e inseparavelmente relacionado a ele” (Ittelson et al,

1974, p.13): a sociedade de Moura a fazia viver essa bivalência ambiental, transitando

sempre entre as fronteiras do feminino e do masculino, buscando transgredir o sistema

social a que pertence para poder ter tudo o que deseja. Dentro de si, calculava que ao ter

sua fortaleza poderia enfim ser realmente as duas coisas: sua própria mulher, com as

regalias femininas de banhos perfumados, lençóis finos, cabelos penteados, e camisolas

brancas; e seu próprio homem, com seu espaço próprio, a comandar e administrar seu

próprio destino, a ser respeitada e ouvida, a ter poder e grandes posses, a ser dona e

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feitora de sua terra. O sonho desse lugar que faria tudo o mais possível era o que a

mantinha em sua Andança.

A Lagoa do Socorro, como todo lugar temporário, um dia deixou de ser

necessária. Expirou. O próprio lugar às vezes comunica que já propiciou o que poderia.

A inter-relação constante entre pessoa e ambiente cria vários diálogos comunicados pelo

sentir: é com base nessa ‘comunicação’ entre nós mesmos e nossos espaços que vamos

escolhendo nossos caminhos, decidindo nossas direções e delineando nosso destino.

Chega então o dia em que Moura percebe que já é hora de partir para seu lugar-objetivo:

“Enfim achei que tinha chegado a hora de fazer a minha grande viagem – quer dizer, a

romaria em procura da Serra dos Padres. Lá ficava o meu destino: disso eu tinha

certeza” (Queiroz, 1992, p. 225). Para Moura, a ida ao encontro da sua terra sonhada era

justamente isso: uma peregrinação. Esse lugar representava a exaltação e condensação

de todos os seus planos e sonhos: era realmente terra sagrada, envolta de toda a

simbologia do que fala à alma, carregada de toda a intensidade do sentir.

Como oração, tinha o caminho para essa terra decorado. Repetido de novo e de

novo: do Avô para ela, do Pai para ela, dela para si própria. A rota desejada que levaria,

enfim, para a terra que tinha como herança paterna já era mais do que conhecida:

Passa por catinga e por serrotes; por mata e cerrado, por léguas de campos e

alagados. Dois rios se atravessa, sempre secos no verão; mas no inverno eles correm

encachoeirados, das águas que descem da serra. E, depois que se atravessa os dois

rios, e se topa com os primeiros contrafortes do pé de serra, segue sem desencostar,

até encontrar com dois serrotes juntos, um pequeno e mais baixo, o outro comprido

e alto, e que chamam o Pai e o Filho.

Essa é que era a referência importante. A gente quebra às direitas, anda mais

de uma légua, costeando sempre o pé de serra, até alcançar um ponto em que as

pedras se amontoam, grandes e pequenas; e no meio delas, dá de cara o Pai e o

Filho. Só que aquele amontoado não é pedra caída lá de cima, é pedra firme,

enraizada no chão. Então já se está nas próprias quebradas da serra.

E o local especial onde fica a furna é onde o mato está sempre verde, de verão

a inverno; lá fica a nascente, o olho d’água. (...)

Como se vê, eu tinha todo aquele roteiro na cabeça. Aprendi como quem

aprende reza, ensinada pelo Avô. Que o velho, no desgosto de não ter um neto

macho, me obrigava a aprender tudo dos nossos direitos na terra das Serras dos

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Padres, para eu fazer o meu marido, ou um filho, um dia, recuperar aquele chão que

valia mais do que ouro, com a sua água perene, com suas terras frescas.

E era nosso, nosso! Nosso, que tinha sido comprado, parte da sesmaria da

Fidalga Brites. Na mão dos herdeiros dela.

Eu agora já tinha mais tenência com as coisas. Sabia esperar para fazer, e

fazer com propósito. (...)

A nossa ausência do Socorro não devia ser longa. A gente ia, mas era pra

voltar. (Queiroz, 1992, p. 225/226).

Os espaços se sobrepõem sobre si mesmos: em outras palavras, para sair de um

espaço, é necessário entrar em outro. Quando essa saída se dá de forma forçada ou por

perda, são mais intensos os nossos sentimentos em relação a um lugar que venha suprir

o que o outro supria.

Por outro lado, quando uma pessoa sente que ela mesma está dirigindo as

mudanças e controlando os assuntos importantes para ela, então a saudade não tem

lugar em sua vida: a ação, em vez de lembranças do passado, apoiará seus sentido

de identidade. (Tuan, 1983, p. 208).

A perspectiva real do lugar sonhado enche de forças e metas o indivíduo que

busca. Moura sonhava em encontrar esse lugar já tão conhecido em sonho. A vinculação

ao lugar não necessariamente se dá no contato físico com esse lugar, mas pode ser

construído pelas sensações que a imagem desse lugar causa à pessoa. A terra das Serras

dos Padres já pertencia ao imaginário de Moura desde os tempos do Limoeiro e, agora,

com ela se encaminhando para a real apropriação desse lugar, o vínculo tornava-se

ainda mais forte, uma vez que se alimentava de toda a realização e sentimento de

identidade que essa terra despertava em Moura.

The person’s needs and desires may be gratified to varying degrees, and there

can be little doubt that physical settings vary from time to time to the next in their

capacity to satisfy these needs and desires. Out of these ‘good’ and ‘bad’

experiences emerge particular values, attitudes, feelings and beliefs about the

physical world – about what is good, acceptable and not so good – that serve to

define and integrate the place-identity of the individual. (Proshansky, Fabian,

Kaminoff, 1983, p. 59/60).

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A Lagoa do Socorro não representava mais apelo algum para Moura, para a busca

de sua terra-destino, ela poderia partir como se sequer fosse voltar, essa busca valeria

isso: “Me arrumei com o maior capricho, como quem vai para outro mundo, sem volta”

(Queiroz, 1992, p. 228). A terra das Serras dos Padres, embora ainda não fosse uma

realidade palpável, era a condensação de bons sentimentos e crenças. Lá Maria Moura

esperava encontra-se a si própria, seria essa terra uma terra-espelho, em que ela pudesse

finalmente ser em liberdade e expansão, em que ela pudesse estar em paz com o

passado, por ter finalmente tomado posse das terras de herança, como era desejo de seu

Avô e Pai, e em que ela pudesse, enfim, abraçar o futuro de fama e poder que almejava.

Como toda peregrinação, foi necessário um preparo para a jornada, que se sabia longa e

difícil.

Num estirão como o que a gente ia enfrentar, a água era o mais importante de

tudo. (...) Desta vez não se estava indo enfrentar luta, arriscar briga; a gente estava

querendo só ir conhecer o terreno, ver se tinha ainda alguém ocupando o lugar que

era meu. (...)

Era isso, exatamente, o que a gente ia descobrir. Pisar na terra, fazer visão do

lugar, avaliar os recursos. (...)

A marcha foi custosa. A cada hora se perdia o rumo, porque se tinha que

andar ao capricho das trilhas e não se sabia bem para onde botavam; e às vezes se

afastavam demais do nosso rumo norte-poente. (...)

Pelos nove dias de viagem, era sol alto, nós tínhamos saído da mata mais

fechada e entrado num vargueado, quando de repente levantei os olhos e soltei um

grito:

― Lá está! Lá está!

Na verdade, bem no meio do rumo entre o norte e o poente, se levantando aos

poucos até tomar mais altura, se via muito bem o lombo azulado da serra.

― Lá está! – e eu apontava com a mão trêmula. ― Lá está a Serra dos

Padres!

Avançamos quase a galope. Até os cavalos pareciam animados. Então o

caminho estava certo! O rumo dado pelo Avô servia mesmo de guia seguro.

(Queiroz, 1992, p. 229/230).

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Não há outra forma de conhecer um ambiente: é preciso vivenciá-lo, seja por meio

de palavras, pensamentos, olhares, experiências, enfim, convivências que faça possível

algum tipo de relação com o ambiente tratado. No contexto de Maria Moura, datado

aproximadamente de meados do século XIX, ainda no Brasil imperial, quando a

escravatura ainda era uma realidade mesmo que decadente, o meio de transporte mais

comum eram os cavalos e carruagens. Em grandes caminhos percorridos, era a própria

paisagem que servia de referência e localização no espaço. As distâncias medidas em

dias e léguas, um rio que passa por lá, uma serra que se avista: é a geografia que

direciona e sinaliza o homem nos espaços abertos.

Portanto, a partir das perspectivas descortinadas pela experiência única e

individual, a noção abstrata de espaço vai-se transformando, à proporção que o

nosso conhecimento direto e íntimo ou indireto e conceitual se amplia, chegando,

então, a fundir-se com o sentido de lugar, mesclando razão e emoção. (Lima, 1999,

p. 154).

O caminho de busca até a Serra dos Padres já foi uma forma de assimilação, de

conhecimento daquele território: os olhares atentos observavam as informações que a

paisagem lhes fornecia e, à medida que caminhavam, iam reconhecendo nessas a

descrição que Moura tanto ouvira toda a sua vida. Ainda, de acordo com o sétimo

pressuposto da Psicologia Ambiental, “o ambiente é organizado como um conjunto de

imagens mentais” (Ittelson et al, 1974, p.14). Por sua vez, reconhecer um lugar é

apropriar-se dele com os olhos: é como se a imagem mental que se tem se juntasse à

imagem concreta, como chave e fechadura, como signo e significante, como palavra e

som.

De acordo com Twigger-Ross e Uzzel (1996), o apego nasce do significado que o

lugar tem para a identidade da pessoa. O desejo maior de Moura era apropriar-se

daquela terra, fazer dela território demarcado, tomar conhecimento de seus relevos e

declives, de sua vegetação e água, de todos os pormenores relativos àquele lugar. Ela

queria fazer com que o vínculo emocional que já sentia há tempos fosse colocado,

enfim, em prática; que pudesse se relacionar fisicamente com aquela terra que já lhe

influenciava tanto.

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Eu não podia negar o alívio que sentia. Esperava encontrar gente armada, a

raça dos posseiros em pé de guerra e afinal estava ali só a triste Jove, viúva,

desvalida, com o pobrezinho do Pagão, que, só de olhar pra ele, dava um aperto no

coração. (...)

Felizmente era terra do Avô, pai de Pai, não tinha nada a ver com aqueles

almas de sapo das Marias Pretas.

Não, do Limoeiro eu queria a distância e as poucas lembranças.

― Quem faz o dono é a posse, João. Se nós temos as escrituras no cartório,

melhor. O que eu quero é tomar posse da terra, fazer aqui a minha casa.(...)

O João ainda estava em dúvida:

― Mas, como é que vai ser essa posse? Aqui não tem nada, nem um começo

de nada.

― É assim mesmo que eu quero. Quero fazer uma casa pra mim, defendida

por estes serrotes e as suas furnas. Quero uma casa que cachorro de Tonho nenhum,

ou outro qualquer, se atreva a cercar.

Dito isto, pensei um pouco, determinei:

― Nós demoramos uns dias, descansando e tomando sentido das coisas.

Depois se volta para o Socorro. Vou arranjar uns machados e mais toda a

ferramenta que for preciso para se levantar a casa. Nesta terra tem muita madeira de

lei, é só olhar, até daqui se vê. Dá pra fazer cem casas de taipa, quanto mais uma.

― E a telha? Cobrir com quê?

― Você vai me descobrir um oleiro. Não precisa nem ir na Vargem da Cruz

para encontrar. Na Camiranga não tem casa coberta de telha? Então, tem lá quem

sabe fazer. A gente traz um mestre telheiro nem que seja à força; depois se vê o que

se faz com ele. Daí, tem que se alistar mais uns homens. Nós vamos precisar de

gente. O Roque pode ajudar nisso: o alistamento é de se fazer devagarzinho, de um

em um, pra não se correr risco. (Queiroz, 1992, p. 236/237).

O processo construtivo de um lugar pode se dar tanto do espaço que já existe para

o indivíduo, como do indivíduo para um espaço projetado e ainda a ser construído: o

lugar está ali, a pulsar possibilidades, tanto o lugar já físico como o ainda abstrato.

Veículo de nossas ações, um lugar é palco de nossas vidas e momentos, sentimentos e

percepções.

Place is more than mere physical or spatial location, capable of being

translated into neatly bounded, compartmentalizing definitions. (…) Human beings

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are not simply materially placed within a world, nor do they simply occupy space.

On the contrary, the human subjectivity is actively immersed in the environment,

interpreting, intuiting, sensing, responding emotionally and intellectually, and

meaningfully assigning signification in a complexity of ways. (…) It follows that

special places are more than merely lone points of geographical interest, but that

they may reveal something essential about human ways of being-in-the-world.

(Stefanovic, 1998, p. 32/33).

De acordo com o quarto pressuposto da Psicologia Ambiental, O “grau de

influência do ambiente físico no comportamento varia de acordo com o comportamento

em questão” (Ittelson et al, 1974, p.13). Assim, em relação ao ambiente, “as influências

podem ser tanto sutis quanto poderosas” (Rivlin, 2003, p. 217). Com a chegada à terra

das Serras dos Padres, Moura pôde juntar a resposta emocional que tinha em relação a

esse lugar, com o envolvimento intelectual: lá estava a terra, esperando ser

administrada, esperando que Moura operasse nela as modificações próprias à

convivência, que Moura deixasse nela as marcas de sua subjetividade.

O período que se dá em que Maria Moura passa a realizar modificações na terra

das Serras dos Padres é o que chamamos de Assentamento. Moura não necessitava mais

buscar: havia encontrado o que procurava. Restava agora construir ali sua morada.

4.3 – A Serra dos Padres e o Assentamento

Diz a Clarice Lispector que “a causa é matéria de passado” (1973, p. 9). A coisa

segura em si todas as significações que cabem ao tempo: a essas, não se pode colocar

em palavras; pode-se, no mínimo, trazer à tona referências através de frases que

expressem uma parcela ínfima dos sentimentos que aquela coisa faz emergir no

indivíduo. Mas é só no sentir, proliferação de percepções internas, domínio da alma, que

são abraçados fielmente os porquês que envolvem a coisa.

Maria Moura estava agora exatamente sobre a meta que pulsara por tanto tempo

no imaginário de três gerações da sua família. Cada um de nós sabe o valor de achar a

coisa com que se sonhou: o mundo parece entrar em sintonia consigo; de repente, o

corpo enche-se de energia e tudo o mais é também possível.

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La valoración de la experiencia del ambiente, de esta forma considerada, se

convierte en un recurso a través del cual el sujeto se implica a sí mismo en el lugar:

se imagina actuando, y, sobre todo, es capaz de imaginar el grado de adecuación del

ambiente en su conjunto o de una parte del mismo a sus propias metas e

intenciones. (Corraliza, 2000, p. 62).

Moura poderia finalmente agir sobre a terra que sempre sonhara. No entanto,

grandes planos têm que ser bem arquitetados, terrenos novos precisam primeiro ser

conhecidos, materiais precisam ser coletados para que se tornem disponíveis, e

atividades precisam ser enumeradas para que caibam dentro do plano de ações que toda

construção demanda. “O espaço convida à ação” (Bachelard, 1998, p. 31). A primeira

ação de Moura seria então o reconhecimento de área. A percepção ambiental da terra

das Serras dos Padres.

Like all perceptual processes, environment perception plays a dual role in our

lives. First, it is the source of our phenomenal experience of the world; all its sights

and sounds and smells, all its simple and subtle meanings, all its ugliness and its

beauty, all its sense of value comes to us through the process of perception. Second,

it provides us with a guide to action in the environment, it gives us both the arena

within which actions take place and the ability to register and record the

consequences of these actions. (Ittelson, Proshansky, Rivlin, Winkel, 1974, p. 123)

Como animal cognitivo, o homem vive a interagir com seus ambientes, vive no

constante binômio da ação e reação. A percepção ambiental assim, quando nascida da

consciente exploração e observação do ambiente, é uma coleta de informações, como

dados necessários para o agir futuro, como o enquadramento de características

existentes para que se possam então realizar as mudanças desejadas.

A cavalo, a pé, começamos a travar conhecimento com a Serra dos Padres, e

com a vargem larga e comprida que ficava no sopé. Lá em cima, os serrotes se

entremeavam com os morros; e quanto mais esses morros tomavam altura, mais a

mata ia engrossando. Por toda parte os homens me mostravam madeira de lei, os

pais d’arco, as aroeiras, os angicos, os cumarus, e tudo esperando ser cortado e

servir na construção. (...)

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Se a serra subimos a pé, pelas várzeas lá de baixo a gente andou a cavalo,

conferindo as esperanças de comida e bebida para o gado. É verdade que tinha o

olho d’água, muito bom para servir a uma casa; mas dar de beber a um magote

maior de reses, já era outra empreitada. E o Roque que, anos antes, tinha trabalhado

nas obras de um açude, acabou descobrindo um riacho com umas ombreiras muito

boas para levantar uma barragem apoiada nelas.

― Dá uma parede famosa, vai ser água muita. Esta barranca é só pedra e

pirraça. E olhe, Dona, o espraiado pra represa! Vai ser um pai das águas!

Derrubamos o velho rancho da Jove, fizemos uma casinha nova pra ela, ainda

coberta de palha, era o jeito. Mas ficava prometido que logo estaria coberta de telha.

Era só eu trazer o oleiro, pois o precioso Roque já tinha descoberto barro de telha na

terra onde ia ser a futura represa do futuro açude. (...)

Fui descobrir a furna que já era famosa desde o tempo dos Padres. Era mesmo

um esconderijo difícil de se achar igual. Nascia numa fenda de pedra, embaixo, e

seguia por um corredor de umas duas braças de comprimento e saía disfarçado, mas

tão bem encoberto que só podia dar conta dele quem já de antes soubesse onde

ficava.

Depois de um mês, na madrugada, nos arrancamos de lá. Eu, pelo menos, me

arranquei, e com dor. Ali eu senti, de verdade, que tinha encontrado o meu canto no

mundo, o meu condado. (...)

― Pois então, acredite agora. Eu vou mas eu volto. Esta terra é minha! Vou

levando os homens comigo porque careço deles pra adquirir as coisas pra casa

nova. Os ferrolhos e as dobradiças, os ferros todos que se precisa para uma casa de

gente rica. A nossa casa, aqui, vai ser uma casa de rico, e você vai morar com a

gente, vai ter o seu quarto, seu e do Pagão, por toda a sua vida. Vou trazer roupa

nova pra você e pro Pagão, vou trazer comida pra gente, vou trazer semente pra se

plantar. Vou trazer sal pra temperar a panela. (...)

― Olhe, Mestre Luca, eu vou levantar aqui, neste lugar, uma casa importante,

pra ser sede da minha fazenda. E eu, mais o João Rufo, estava se quebrando a

cabeça pra descobrir de onde se podia tirar barro, fazer uma olaria. E aí descubro

que o senhor mesmo é mestre oleiro, sabe arrancar o barro e fazer a telha e o tijolo!

Pode crer, eu lhe dou tudo o que pedir para a minha olaria: os homens, os ferros, a

lenha pra queimar, tudo mesmo! O senhor só precisa ir ensinando a eles, que a

minha rapaziada faz todo o resto!

Seu Luca sorria meio assustado:

― Mas Vossa Senhoria não vai sair de viagem ainda hoje?

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― Eu vou ali e já volto, Mestre! Enquanto eu não chego, vá marcando as

minas do barro e vá praticando numas telhas, pra refrescar a memória.

Ele se levantou, espigado, parecia que tinha ficado mais moço:

― Pois vá e venha, Senhora Dona Moura! Vá e venha que quando chegar de

volta já encontra novidade. (...)

Os outros me acompanharam e eu me virei para os Serrotes do Pai e do Filho,

olhei os dois um instante, depois deu adeus com a mão.

― Adeus, minha Serra dos Padres! Adeus minha Casa Forte que eu vou

levantar!

E ora essa, adeus não, que isto não é despedida. Até qualquer hora, que eu

volto logo!

Estava tão feliz que comecei a chorar. Apertei o Tirano com o tacão da bota,

ele tomou galope. O vento, batendo no rosto, me secou as lágrimas. (Queiroz, 1992,

p. 237/238-244/245).

Achar o seu ‘canto no mundo’. Existe algo mais valoroso que isso? Perceber, estar

consciente do seu vínculo e territorialidade a um lugar; estar-se certo da apropriação

emocional e física que lhe liga àquele lugar, que faz dele uma extensão sua. Para Moura

a Casa Forte era já um sonho realizado: porque agora era toda formada de possibilidade,

de viabilidade, e para um sonho se concretizar basta que percebamos que chegou a sua

hora, que é tempo dele acontecer.

Se o apego é definido como o laço afetivo entre um indivíduo e um lugar,

acompanha do desejo de estar próximo a esse loca, a literatura atual sobre laços

pessoas/lugares distingue pelo menos três processos diferentes, que podem resultar

em um sentimento de apego. (...)

a) o apego deriva de uma avaliação positiva da qualidade do local ante as

necessidades do indivíduo. (...)

b) o apego deriva do significado que o lugar tem para a identidade da pessoa

(Twigger-Ross e Uzzel, 1996). (...)

c) o apego deriva de um longo período de residência e familiaridade. A base é

mais emocional do que funcional. (Giuliani, 2004, p. 94/95).

Podemos assim dizer que o apego, o vínculo, que Maria Moura tem em relação à

terra das Serras dos Padres é tão forte que envolve esses três processos de apego: a nova

terra apresenta todas as possibilidades e demandas para o que ela sonha; o significado

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daquele lugar ressoa não apenas ao seu vínculo familiar e ao desejo de seu Avô e Pai,

mas a toda a conjuntura de sonhos e planos que ela tem para si mesma; embora tenha

acabado de chegar a terra, seus pensamentos estão ali já faz tempo e a base emocional

daquele lugar lhe vem servindo de alimento e força há muito.

Maria volta então ao lugar que se tornou seu canto-preparo: a Lagoa do Socorro.

De lá queria juntar tudo o que fosse preciso para enfim partir uma última vez em destino

a Serra dos Padres.

A volta da Serra dos Padres foi muito melhor do que a ida. Aqueles homens,

depois que passam por uma trilha, não esquecem nada, nunca. Se lembram da

jurema torta, da rebolada de pau branco, do juazeiro caído; são marcos do caminho.

Na volta já estão à procura deles, como velhos conhecidos. (Queiroz, 1992, p. 257).

O espaço é como um texto: ao ser lido, tem a possibilidade de ficar impresso em

nossas mentes, a nos servir de referência constante, a nos ser uma memória e

informação a mais, a nos trazer à mente coisas que nos confortem ou gerem incômodo.

No contexto de Moura, a referência espacial é, inclusive, questão de sobrevivência: a

natureza ainda é predominante na grande quantidade de estradas cruas e campos abertos

que lá existem, a convivência do homem com a natureza é ainda de subserviência, ele

tenta adaptar-se à soberania da terra na maior parte do tempo, e lida com ela de forma

pacífica e passiva. Embora todo espaço gere senso de orientação, no contexto de MMM

isso é ainda mais evidente uma vez que a mobilidade deixa-se a depender das marcas da

paisagem natural e das características formadas pela própria natureza. O olhar de

atenção é grande, porque é uma árvore, uma mata, ou uma pedra que indicará a certeza

do caminho e direção.

Depois de algum tempo preparando a si mesma, aos seus homens e angariando os

materiais de que necessitaria, chegou a hora da ida definitiva para a Serra dos Padres:

Saímos quando a barra levantava (...).

Cada um levava a sua arma à bandoleira. Isto é, quem a tinha.

E eu me mirava neles, os meus cabras. Deus que me perdoe, mas até se podia

dizer que era uma tropa bonita, gente nova e bem resolvida. E agora, que já se

conhecia o caminho para a Serra dos Padres, a volta ia ser quase um passeio.

Os tabuleiros também estavam lindos. Mês de julho – fins d’água, a terra

agradecia as chuvas e rebentava em flor.

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Não tivemos nenhum encontro importante, em caminho. (...)

Passou-se por toda parte sem perigo. Àquelas alturas, a gente é que era o

perigo.

Afinal avistamos a serra. Parecia ainda mais bonita, depois que perdeu o

mistério: já se sabia o que ia se encontrar nas entranhas daqueles serrotes. Eu, então,

já via a minha Casa Forte levantada, encostada na pedra. E olhava as vargens onde

ia pastar o meu gado. (...) Paciência não me faltava; nem paciência, nem esperança.

(Mestre Luca) Pegou no meu estribo, eu saltei no chão sentindo que pisava no

que era meu. (Queiroz, 1992, p. 271/272).

Há momentos em que todos os afluentes de nossa vida seguem para a mesma

direção, em uma sintonia fluida. Como uma metáfora para o aportar, Moura havia

chegado a seu destino. Tudo ali comunicava seu sonho, tudo ali significava mais do que

o que os olhos podiam ver, a terra das Serras dos Padres, é matéria da alma para Moura.

Uma identidade pulsava ali: havia encontrado a si própria, àquela terra cabia o pronome

possessivo que a ligava a ela. A Serra dos Padres gerava em Moura um senso de ser-se

atrelado à paz de estar-se, ali tudo fazia sentido e tudo parecia possível. Ali, o tempo e a

pressa sequer importavam: pois já estava no lugar em que queria.

What emerges as ‘place-identity’ is a complex cognitive structure which is

characterized by a host of attitudes, values, thoughts, beliefs, meanings and

behavior tendencies that go beyond just emotional attachments and belonging to

particular places. (Proshansky, Fabian, Kaminoff, 1983, p. 62).

O ser humano é como um quebra-cabeça de peças infindáveis: estaremos sempre

incompletos, com pecinhas ainda faltando; no entanto, estaremos sempre no ato de nos

completar, sempre agregando à nossa falta, novas pecinhas. A complexidade que nos

envolve e, assim, envolve tudo a que submetemos nossa subjetividade faz com que as

coisas que à nós são ligadas estejam sempre além do que o que parecem em um

primeiro olhar. A continuidade do tempo que tanto nos forma como nos constrói faz

com que nossos significados, nossas percepções e vínculos estejam também em

movimento, junto à massa fluida e abstrata que forma o nosso sentir. A identidade de

lugar, em termos de representação, que Moura sente na Serra dos Padres era uma antes

de sua chegada, é outra agora que lá está e continua transforme: a movimentar-se junto

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com a vivência e tempo na relação com esse lugar. No entanto, lá está sua Casa Forte,

simbólica até em seu título, a representar toda uma carga de valores e emoções.

4.4 – A Casa Forte

João Cabral de Melo Neto (1998) diz em um de seus poemas:

Até que, tantos livres o amedrontando,

renegou dar a viver no claro e aberto.

Onde vãos de abrir, ele foi amurando

opacos de fechar; onde vidro, concreto;

até refechar o homem: na capela útero,

com confortos de matriz, outra vez feto. (Melo Neto, 1998, p. 189).

Nossa maior sede e desespero é a segurança: buscamo-la sempre. Ao primeiro

risco de perdê-la, ficamos como que soltos do chão, a buscar a proteção de algo, de

alguma referência que traga de volta a sua certeza. Nossas casas, separação da rua que

são, limite que se volta para dentro, fechado que permite a privacidade e a intimidade, e

muitas vezes reflexos de quem somos e de nossos gostos, são como um ser materno:

limitam-nos; mas também abraçam-nos, confortam-nos, protegem-nos, aceitam-nos.

“Sabemos e aprendemos muito cedo que certas coisas só podem ser feitas em casa e,

mesmo assim, dentro de alguns de seus espaços” (Da Matta, 1997, p. 50). O lugar que

temos como representante de segurança nos é benevolente. Ali, em termos gerais, não

necessitamos ser o advogado, o médico, o empregado, a doceira; ali estamos

resguardados dos títulos sociais e públicos, ali se configura nossa existência privada.

Na vida do homem, a casa afasta contingências, multiplica seus conselhos de

continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem

através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o

primeiro mundo do ser humano. (...) E sempre, em nossos devaneios, ela é um

grande berço. (...) A vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada no

regaço da casa. (Bachelard, 1998, p. 26).

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No entanto, a casa é vista como um conjunto, mas também há outros espaços

dentro da casa: espaços que simbolizam diferentes coisas, espaços que diferem em suas

significações e liberdade. Para Moura, a Casa Forte era, antes de mais nada, uma

mensagem: erguia-se imponente, segura e rica, a intimidar e a mostrar quem era Maria

Moura. Nessa casa, no sentido geral do termo, Maria Moura ainda estava, a bem dizer,

na rua: ainda tinha que manter sua persona, sua cara sisuda, suas ordens, seu cargo de

Dona Moura. Era no seu quarto, entretanto, que Moura podia soltar os cabelos e vestir

sua camisola de renda branca: era esse lugar que era verdadeiramente seu lugar íntimo.

A Casa Forte era a extensão de sua fortaleza interna, e seu quarto era o acolhimento de

sua fragilidade.

Mas enquanto símbolo de tudo o que sempre sonhara, a Casa Forte era justamente

a materialização de todos os desejos de Moura: sua mão estava em cada espaço

planejado, em cada função atribuída, na dinâmica que aquele espaço tinha. Olhava para

ela com orgulho de si e da Casa, extensão sua.

Foi duro e foi devagar. Mas agora estava eu no alpendre da minha Casa Forte,

olhando o mundo em redor: lá embaixo na várzea, lá em cima na Serra e, para os dois

lados, as perambeiras do pé do morro.

Nas vargens, tudo quanto era roçado, já de broca feita neste tempo de verão,

esperando a sementeira. Para além, o açude ainda por acabar. (...)

O curral do gado. (...) Com tudo isso, meu orgulho maior era a casa. Começando

pela cerca, as estacas de aroeira, com sete palmos de altura, tudo embutido numa faxina

fechada, rematando em ponta de lança. Entre um pau e outro não passava um rato. E pra

abalar um mourão daqueles, só a força de uma junta de bois: eram enterrados a mais de

quatro palmos de fundura, socados com bagaço de tijolo e pedra miúda. (...)

Pra dentro da cerca, o terreiro batido, aberto, subindo devagar o alto onde a casa

fica. E aí, a casa mesma, se espalhando dos lados, na frente, o alpendrão largo, com os

seus esteios também de aroeira bem lavrada, o chão ladrilhado. As paredes rebocadas,

caiadas, como as do Limoeiro. (...)

Muito tempo se viveu no rancho provisório, que era praticamente o da Jove

melhorado e alargado. (...)

Era pra dar mesmo um orgulho, enchia o peito pensar que todo aquele mundo de

meu Deus a gente podia chamar de seu... (Queiroz, 1992, p. 293/294).

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Territorialidade, apropriação, vinculação ao lugar: todos três conceitos fronteiriços

e interligados, todos três a falar do bem-querer ao lugar que lhe significa algo, todos a

envolver a relação que se tem a partir do que o lugar lhe desperta. A Casa Forte,

símbolo maior de MMM, personagem que existe desde as primeiras páginas do

romance, vem ser a culminância da significação dos ambientes do livro.

Os verdadeiros bem-estares têm um passado. Todo um passado vem viver,

pelo sonho, numa casa nova. (...)

Assim, a casa não vive somente no dia-a-dia, no curso de uma história, na

narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se

interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos. (...)

Por vezes, a casa do futuro é mais sólida, mais clara, mais vasta que todas as

casas do passado. (...) Casa sonhada. (...) Assim, a casa sonhada deve ter tudo.

(Bachelard, 1998, p. 25/74).

Tão forte é a simbologia da Casa Forte dentro da história de Maria Moura que,

uma vez ela estável e construída, parece-me que o romance perde um pouco o seu foco,

pareceria que ali já poderia acabar: construiu-se a Casa Forte!

Mas esse ambiente, no entanto, se transforma aos poucos em uma pequena

sociedade, com ritmo, cotidiano, hábitos, valores e leis próprias. “Dizia o povo que a

Dona da Casa Forte não carece de cadeia nem de delegado. Lá mesmo ela julga e dá

sentença.” (Queiroz, 1992, p. 333). A reger tudo, estava, até então, Maria Moura. Em

um momento do romance chega-lhe seu meio-primo Duarte, e logo depois a mãe deste,

a escrava forra Rubina, a quem Moura simbólica e literalmente entrega as chaves para a

administração do lar:

Horas passadas da sua chegada, quando Rubina, depois de ter tomado o seu banho e

enfiado um galho de manjericão no cabelo, veio me pedir as ordens, eu tirei do cinto a

grande cambada onde estavam todas as chaves da casa, e declarei:

― Estas chaves agora são suas, Rubina. Pergunte às meninas onde é que serve cada

uma. E eu fico livre de qualquer responsabilidade! Casa, roupa, comida, não é mais

comigo. Você que providencie tudo!

Rubina ficou muito séria:

― Isso eu sei fazer! (Queiroz, 1992, p. 304).

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A dinâmica do dia a dia, a partir da época desses novos parceiros na

administração, vai tomando conta da Casa Forte e o romance vai se centrando mais nas

relações entre as personagens humanas do que nas personagens-espaço – fato que

acontece principalmente pela chegada de Cirino, que se torna a grande paixão de

Moura. A interferir e ser palco e intercessão de tudo, no entanto, está a Casa Forte, a

reinar solene e rica, passando ininterruptamente sua mensagem do poder de Moura,

sendo-lhe fiel em sua própria existência.

Dentro da pequena cidadela que é a Casa Forte, festas são feitas, casamentos são

realizados, criação de gado, plantações, e até fabricação de pólvora: “aos poucos fui

descobrindo a força que aquela produção nos dava. Em toda uma distância de cinqüenta

léguas em roda, só na Casa Forte havia moinho de pólvora” (Queiroz, 1992, p. 331). A

Casa Forte funcionava quase que sozinha agora. Se auto-sustentava. Era uma entidade

em si própria, a sustentar sempre a fortaleza e fama de Maria Moura.

No entanto, por tornar-se espaço cada dia mais complexo e rico em relações

humanas, haveria ainda um espaço que seria construído dentro da Casa Forte. Como não

poderia deixar de ser, esse espaço é carregado de simbologias e está atrelado à própria

pessoa de Moura: o ‘Cubico’.

4.4.1 – O ‘Cubico’

Temos, todos nós, cantinhos de segredo. É necessário sempre, e provavelmente até

inevitável, mesmo que inconscientemente, resguardar uma parte de nós para nós

mesmos. Como reflexo disso, há espaços que são só nossos, seja fisicamente, seja em

seu significado ou em ambos os casos. Além disso, tendemos a sempre esconder o que

nos é mais precioso, como que a guardar, a cuidar; talvez o medo da constante

socialização a que estamos sempre expostos seja algo presente em nós: temos medo de

que o que guardamos como tesouro e precioso seja espalhado aos quatro ventos, temos

medo dos olhos dos outros sobre as nossas coisas mais secretas. Guardamos aquela

coisa escondida como se fosse um pedaço de nós, como se a nossa própria segurança

dependesse disso – e talvez muitas vezes dependa realmente.

Assim era o ‘cubico’ para Moura:

Mas o que a ajuda de Duarte me deu de melhor foi de realizar um meu sonho,

meio maluco, que dizia respeito a uma certa obra muito especial, dentro da casa.

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Tinha-se que fazer alterações nas paredes e justamente Duarte chegou quando ainda

se podia mexer nas divisões de dentro, contanto que se respeitasse a cumeeira e as

paredes grossas dos oitões.

Bem era o seguinte: acontece que Pai, entre os casos da família que me

contava, quando eu menina, falava muito no ‘cubico’ que existia na fazendo da avó

dele. Era um quartinho disfarçado entre as paredes da sala e dos quartos, mas tudo

tão bem encoberto, que o exame mais exigente não tinha como encontrar nem rastro

do cômodo extra. A planta era mais ou menos assim, como estou mostrando aqui, já

modificada por mim. Pai desenhou para eu ver e eu conservei o papel, junto com

aqueles poucos outros guardados que pus na trouxa dos salvados do incêndio (...).

E fiz o meu cúbico tão bem disfarçado que qualquer pessoa, até mesmo a

mais esperta, não ia conseguir atinar com o nosso jogo de paredes. Os cantos das

duas salas e os dois quartos se desencontrando, para ocultar aquele vão metido no

meio.

O cubico não tinha porta nem janela, as paredes corriam lisas, como se pode

ver pelo risco. Só no meu quarto se abria um alçapão com uns três palmos de alto e

uns quatro de largura; e trancado com uma fechadura de segredo, de que eu trazia

sempre a chave pendurada no meu cinto. Tapando o alçapão, encostamos à parede o

meu baú grande, taxeado, aquele do M.M.

O chão do cúbico tinha um fundo falso; quem fez todo o trabalho foi o

Duarte. Era cavado palmo e meio de fundura, ladrilhado, e, na altura do rés do chão,

corria em cima dele um assoalho de que se podia levantar uma parte. Pois debaixo

desse fundo falso eu fiz o meu cofre, onde guardava os meus ouros e o dinheiro;

onde até podia guardar as escrituras da terra, quando as tivesse na mão.

Mas o verdadeiro fim do cubico não era servir de cofre; isso foi invenção

minha. Ele se destinava, conforme contava Pai, a esconder algum amigo

perseguido, ou a guardar em segredo algum prisioneiro. Se viesse atrás de um deles,

dando busca, quer os da justiça, quer os inimigos, as paredes, corridas até em cima,

não deixavam adivinhar nada. (Queiroz, 1992, p. 304/305).

Tamanha é a significação e orgulho de Maria Moura em relação ao ‘cubico’, que a

única imagem do seu Memorial é justamente a imagem dele (a que ela fez referência na

fala acima):

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Se formos pensar para além da utilidade prática do ‘cubico’, poderíamos perguntar

por que uma mulher que é tão temida e respeitada, que construiu toda uma fortaleza ao

seu redor, que têm tantos homens e mulheres como seguidores fiéis seus, ainda sentiu a

necessidade de mais um espaço que representasse segurança. O ‘cubico’ ficava no

quarto de Moura, guardava os tesouros de Moura e ainda tinha a ocultá-lo o baú tão

querido com suas iniciais. Seria o ‘cubico’ apenas um cômodo a mais da casa? Ou seria

ele a própria representação de quão escondida de todos era a pessoa de Moura?

Bachelard (1998) diz:

As imagens de intimidade que são solidárias com as gavetas e os cofres,

solidárias com todos os esconderijos em que o homem, grande sonhador de

fechaduras, encerra ou dissimula seus segredos. (...)

Os móveis complexos, construídos pelo operário são o testemunho sensível

de uma necessidade de segredos, de uma inteligência do esconderijo. Não se trata

simplesmente de guardar a sete chaves um bem. Não há fechadura que resista à

violência total. Toda fechadura é um convite para o arrombador. Que umbral

FIGURA I: O ‘CUBICO’

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psicológico é uma fechadura! Quantos “complexos” numa fechadura ornamentada!

(...)

No cofre estão as coisas inesquecíveis; inesquecíveis para nós, mas também

para aqueles a quem daremos os nossos tesouros. O passado, o presente, um futuro

nele se condensam. E assim o cofre é a memória do imemorial. (p. 94/97).

Então o que se diria do fato de Moura carregar a chave da fechadura do ‘cubico’ –

que está embaixo de um alçapão, coberto por um baú, sem janelas ou portas ou luz, com

fundo falso – em sua cintura sempre? Essa chave, que guarda tanto segredo junto,

colada ao seu corpo ininterruptamente, quase como parte de si quereria talvez dizer o

quanto ela tinha necessidade de ser decifrada? Quereria talvez mostrar quantas camadas

de personas, de máscaras sociais eram necessárias para que essa mulher reinasse em um

mundo de homens? Deixamos essas reflexões para os psicólogos.

Ressaltamos apenas o quanto Moura necessitava, ao máximo, delimitar espaços

seus, aos quais só ela teria acesso e controle; o quanto ela tinha a precisão de criar

territórios que representassem sua segurança, espaços que fossem uma prova para si de

sua esperteza, esquivo e preparo ante qualquer tentativa contra a sua pessoa.

It has been suggested before that a person’s sense of identity is fostered by

the places and things that are important to him. The loss of valued objects or places,

or the involuntary removal from familiar settings for long periods of time, may

contribute in some measure to a blurring if not a loss of self identity. Considered in

this context, territoriality becomes one means of establishing and maintaining one’s

sense of self. In part this may explain why territorial behavior manifests itself under

conditions of isolation. (Ittelson et al., 1974, p. 144).

Durante o processo de qualificação desta pesquisa, uma das professoras da Banca,

a Dra. Leônia Teixeira, levantou a hipótese do percurso de Maria Moura ser uma

jornada para a morte – não pelo final incerto do livro, mas justamente pelo conjunto de

reações, atos e autodefesas que a fizeram cada vez mais fechar-se em si mesma.

Depois da perda do Limoeiro, às vezes se tem a noção de que Moura perdeu-se

também: e vive a buscar esse ninho perdido, sem nunca porém encontrar algo a que se

agarre por tempo suficiente, sem nunca sentir-se realmente salva e segura. Os espaços

de Moura parecem sempre tentar suprir essa grande falta: e falham porque a falta na

realidade parece ser interna.

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4.5 – Os Lugares, os Conceitos e os Pressupostos – Algumas Considerações

Até aqui vimos mais de perto os lugares de MMM: na relação de Moura com eles,

encontramos constantemente a presença dos conceitos de Territorialidade, Apropriação

e Vinculação ao Lugar, além dos aspectos que permeiam os Pressupostos da Psicologia

Ambiental. De início, pensamos em listar cada um desses conceitos e pressupostos e

trabalhar, dentro de cada um separadamente, os trechos da obra. No entanto logo

entendemos ser tarefa impossível: assim como não se pode dissociar do espaço o tempo

ou o contexto social a que ele pertence, também não poderíamos tratar de conceitos tão

próximos – e muitas vezes complementares e crescentes em envolvimento – de forma

pontual; tampouco poderíamos falar em forma de lista de pressupostos que estão

presentes em qualquer relação humano-ambiental.

Assim, nesta análise literária feita tendo como foco a relação entre a personagem-

título e as personagens-espaço da obra, tentamos apontar como a própria essência da

relação explicava por si só a presença dos conceitos e os aspectos dos pressupostos.

Como diz Clarice Lispector (1973), deixamo-nos envolver no fascínio que é “a palavra

e sua sombra” (p. 10). E deixamos muitas vezes subentendido o envolvimento dos

conceitos e pressupostos ao leitor deste estudo. Ainda como diz Clarice (1973), usamos

a palavra como isca: e deixamos que o ‘pescar’ próprio de cada pessoa entenda os

aspectos ambientais que quisemos ressaltar nesta análise.

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V – As Casas de Papel e o Memorial de Maria Moura

O homem é o único ser que sorri. O que poderia significar isso? Não seria de

tamanha responsabilidade carregar em si a consciência do sorrir? Não seria pela nossa

capacidade de associar umas coisas a outras que isso se dá? Olho para a água no chão e

lembro do tombo que um dia levei em pleno pátio da escola na hora do intervalo. Sorrio

pela confusão que foi aquele tempo e momento que estão já tão distantes do hoje,mas

que permanecem vivos em minha memória.

Há uma poesia de Horácio Dídimo (2002, p. 90):

os meninos estão brincando na calçada

vamos começar tudo de novo

pode ser que os relógios de aço

nos esqueçam:

as folhas verdes

o sol

os velocípedes

E nós, ao lermos a poesia, logo criamos dentro de nós essa imagem: os meninos

brincando na calçada. Os meus meninos sorriem alto e escandalosamente, são quatro ao

todo, vestem camisas soltas e coloridas, shorts manchados de peraltices, dois deles estão

descalços, que é para ficar mais à vontade na brincadeira; de vez em quando os

velocípedes brigam com o quebrado da calçada, o vento faz as folhas dançarem e o sol

queima de leve os meninos entretidos em serem crianças. Mas esses são os meus

meninos, não são os seus ou sequer os de Horácio Dídimo. Clarice Lispector está certa:

pegamos a palavra como isca.

É por isso que ao ler a vontade de ‘começar de novo’ e o desejo dos ‘relógios de

aço’ esquecerem do tempo, remeto-me à seriedade e às vezes à falta de despreocupação

da vida adulta, fato que fica metaforizado no frio brutal e imparcial do aço. Mas o fato é

que tudo isso, e o tanto mais que continua aqui a se materializar em minha mente à

medida que me ocupo em escrever estas linhas, me veio porque essas seis frases da

poesia de Dídimo me tocaram. Conversaram comigo, criaram diálogo, apresentaram

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ambiente e me mostraram crianças interagindo com um local em um tempo e contexto

específico.

Assim o faz a palavra. Ela delineia realidades, expõe contextos, descreve situações

e, por mais precisa ou evasiva que seja a sua descrição, ainda muito será dito pelas

entrelinhas que o leitor preenche com sua subjetividade. Ao longo desta pesquisa,

quando os trechos de Memorial de Maria Moura me saltavam aos olhos encaixando-se

ao que eu tinha lido em livros teóricos dos estudos pessoa-ambiente, outros livros e

textos teimavam em se intrometer querendo também ser usados como o mesmo

exemplo. Não resisti a esses apelos e usei ao longo deste estudo na realidade várias

obras. Quereria ter usado outras ainda, que continuam aqui a pedir sua vez.

No entanto, o que quero ressaltar aqui neste breve trecho do trabalho, é a grande

variedade de riqueza ambiental que nossos livros, músicas e poesias carregam. Ao

olharmos para eles, olhamos para a própria vida. Olhamos para nós mesmos. Olhamos

profundamente para o reflexo de nossa interação com o meio que nos cerca. Luiz

Gonzaga cantava: Aquilo sim que era vida/Aquilo sim, que vidão/Aquilo sim que era

vida, seu moço/A vida lá do sertão (música: “Aquilo sim, que vidão”, de composição

dele). E, por conhecer um pouco sobre Psicologia Ambiental, percebo logo o vínculo e

o apego ao lugar. Lembro também de boas fases da minha vida. Imagino o ambiente que

Luiz Gonzaga canta e, ao mesmo tempo, imagino também o meu. O fotógrafo Oliviero

Toscani diz que o "olhar é um ato criador". Seríamos então essas máquinas fotográficas

em forma de gente a registrar imagens dos lugares que nos tocam?

O Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry (1987) escolheu fugir de sua rosa e depois

passou todo o resto de sua existência a sentir saudades da rosa: percebeu então que a

rosa, problemática, bela e imperfeita, era a sua representação de lar. A Alice do Carroll

(2006) precisou sonhar com um mundo louco e sem sentido para que percebesse a nossa

necessidade de constância, estabilidade e previsão. Fabiano e sua família precisaram

viver os terrores da seca relatada por Graciliano Ramos (1999) para que se lesse a

subserviência do homem ante os dizimadores fenômenos da natureza.

Roberto da Matta (1997) veio e me disse que “um livro é como uma casa” (p. 11).

E eu acreditei nele porque lembrei que fiz morada em todos os livros que li e que deixei

guardados dentro de mim: eles viraram lugares; e, se são lugares, é porque me têm valor

e são, assim, um pouquinho lar. Lembrei também, como ele diz, que toda casa tem porta

de entrada, depois uma sala, e, mais para dentro, lugares mais íntimos, que só os que

deixam de ser apenas visitas e viram amigos podem conhecer. Essas casas de papel

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precisam disso: precisam que a gente vire amigo íntimo, que vá conversar muitas vezes,

que se discuta e debata e escute; que escute muito.

O Horácio Dídimo (2002) versou: “a palavra verde/amadurece; a palavra ave/ voa

no papel” (p. 102). A função da palavra é comunicar: mas ela deixa-se a depender não

apenas de quem a profere, mas de quem a recebe. A palavra tem que amadurecer, a

palavra tem que voar.

Há um quadro do pintor belga René Magritte (1898–1967) chamado The

Treachery Of Images (1928/1929) – ou, ‘a traição das imagens’, em tradução livre.

Nele, está a imagem de um cachimbo; logo abaixo dela, a frase: Ceci n'est pas une pipe.

E você fica ali olhando, se achando a criatura mais louca do mundo: Mas eu tenho

certeza de que isso é sim um cachimbo! Aí, embevecida com a imagem, concentrada na

reflexão que ela lhe desperta, você finalmente percebe: Mas é claro que isto não é um

cachimbo! É uma pintura de um! Todo livro resume-se justamente a convencer-lhe de

que ele “não é um cachimbo”. Todo livro quer ser mais que um mero livro: quer virar

parte do leitor, quer entrar em sua vida, quer virar parte de suas lembranças, quer que

seus personagens virem pessoas amadas ou odiadas, pessoas sentidas. Como disse o

autor Ernest Hemingway, se realmente lemos o livro, até o clima daquele ambiente fica

conosco; tudo ali vira coisa vivida por nós, a fazer parte de quem somos e do que

fizemos.

E então temos o Memorial de Maria Moura, com seus ambientes-chave: o sítio do

Limoeiro e a Casa Forte. E parece-nos que eles são como o ponto “A” e o ponto “B”: e

sabemos que entre dois pontos há uma reta, e que uma reta é formada de inúmeros

outros pontos. MMM nada mais é do que a história de vida de uma mulher e seus

espaços: acontece que em um contexto em que seu sexo já determina o seu percurso de

vida, ou se aceita tal destino ou sai-se enfrentando o mundo em pé de guerra. Maria

Moura escolheu justamente essa segunda opção. Como animal acuado, revoltou-se. E

em sua revolta conquistou o mundo dominado pelos homens.

Mas Maria Moura na verdade nunca deixou de ser vítima de sua própria história:

primeiro órfã de pai em uma época em que era o homem quem dava dignidade à casa;

depois órfã de mãe, sozinha no mundo; depois seduzida e ameaçada pelo próprio

padrasto; depois expulsa de sua casa pelos primos. Maria Moura sai de sua casa

destruindo-a: encena ali o que sente por dentro, está sem canto no mundo, sem

identidade, sem referências concretas.

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Agarra-se então à memória-referência mais constante em sua vida: seu Pai.

Vestida nas calças dele, incorpora-o; e passa a ser seu próprio pai, passa a ser a imagem

e segurança que um homem representaria em sua vida. Mas tinha a consciência de que

esse não era o destino ideal. Tinha a consciência de como teria que lutar por cada

centímetro de espaço conquistado: “Ai, Pai, se o senhor não tem morrido, a vida nossa

seria tão diferente. Talvez eu já estivesse casada, dormindo nos braços do meu marido.”

(Queiroz, 1992, p. 227).

A morte do pai foi o divisor de águas em sua existência. Mas, bem ou mal, dentro

da casa do Limoeiro, havia ainda espaço para a Sinhazinha Moura, a menina abusada e

cheia de vontades que ela era. Ali ela ia vivendo uma vida pequena, delimitada pelos

espaços do sítio. Mas ainda filha de fazendeiro. Ainda mulher órfã e jovem a ser

respeitada e cuidada. Mas então acontece o que de pior pode acontecer: é arrancada de

seu ninho por terceiros. E isso não faz parte do percurso natural da vida: do ninho, ou

sai-se por vontade própria quando se vê que chegou a hora, ou é-se empurrada para fora

pelos pais, como a ave-mãe que diz que é hora de voar. Maria, não: foi forçada por seus

primos em sua saída prematura:

Um dia ainda vou me vingar daquelas almas de morcego das Marias Pretas.

Mas isso tem o seu tempo. Afinal, não fosse a investida deles eu talvez não tivesse

coragem de sair de casa, ficasse presa dentro dos dois palmos de terra do Limoeiro,

brigando pelas extremidades com os outros vizinhos. Foi na verdade o Tonho quem

me deu o primeiro empurrão. Assim mesmo, um dia eles ainda me pagam. Um dia.

Pela minha casa queimada, pela agonia daquela noite. (Queiroz, 1992, p. 125).

E então Maria Moura torna-se de tal modo personagem de si mesma que esconde

de si e de todos qualquer sinal de fraqueza. Como naquela noite da fuga do Limoeiro,

acredita que precisa ser sempre essa guerreira em pé de guerra para sobreviver, não

consegue nunca apenas ser-se, acha que é necessário sempre estar vestida de sua

armadura de Maria Moura; sem ela, tem medo, deixar-se-ia ser apenas uma mulher:

No escuro, na cama, de noite, quando me vi, estava chorando. Enxuguei os

olhos no lençol, danada da vida. Te aquieta, Maria Moura. Você não é mulher de

chorar, nem mesmo escondido.

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Cadê a Dona da Casa Forte, a cabecel desses homens todos, que comanda de

garrucha na mão e punhal no cinto? Com vinte bacamartes carregados, garantindo a

retaguarda, pra o que der e vier?

Mas ali, na cama vazia, vestida na minha camisola cheirosa a manjericão, eu

não tinha vontade nenhuma de ser durona, tinha vontade era de abrir a boca e cair

no berreiro, tal e qual o Xandó estava fazendo naquele instante mesmo. (Queiroz,

1992, p. 383).

Pode ser que Maria tenha virado refém de Maria Moura. Pode ser que mesmo

tendo achado seu ‘canto no mundo’, Maria Moura tenha se perdido mais uma vez,

esquecendo-se do sentimento de paz que tivera quando chegou à Serra dos Padres. Pode

ser que ela tenha construído uma casa, e não um lar: já nunca pudera usufruir da

intimidade desarmadora que o âmbito do lar propicia.

Na grande carência por encontrar esse lar, fez de instrumento para conseguir

permitir-se esse sentir, a sua paixão por Cirino. Entregou-se a esse homem e deixou-se

ser mulher, de cabelos soltos e passiva. Mas Cirino também não era o lar que Maria

pensava ter encontrado, e mais uma vez Maria Moura teve sua segurança destruída.

Dessa última perda, não se recuperou: nem mesmo a Casa Forte parecia ter mais o

brilho e significação que um dia tivera.

Cria seu testamento deixando todas as suas posses e terras para o afilhado Xandó,

filho da sua prima Marialva. Apega-se então a uma aventura arriscada, em que ela e seu

bando roubariam um grupo de marchantes ricos e poderosos. Sai com seu bando

dizendo: “― Se tiver que morrer lá, eu morro e pronto. Mas ficando aqui eu morro

muito mais.” (Queiroz, 1992, p. 482).

No livro O meu Pé de Laranja Lima de José Mauro de Vasconcelos (1994, p. 189)

se dá o seguinte diálogo entre Zezé e seu pai:

― Depois tem mais. Tão cedo não vão cortar o seu pé de Laranja Lima.

Quando o cortarem você estará longe e nem sentirá.

Agarrei-me soluçando aos seus joelhos.

― Não adianta, Papai. Não adianta...

E olhando para o seu rosto que também se encontrava cheio de lágrimas

murmurei como um morto:

― Já cortaram, Papai, faz mais de uma semana que cortaram o meu pé de

Laranja Lima.

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Zezé fala, na verdade, sobre o Portuga, que viera preencher o papel de pai e dar-

lhe sentido à sua vida. Com a morte dele em um acidente com o trem, o pé de Laranja

Lima perdera o sentido, a magia, o encantamento. Estava, a bem dizer, como se já

tivesse sido cortado.

Assim parece ser com Maria Moura: a consciência da perda do encantamento com

a Casa Forte, que veio à tona com a morte de Cirino – a mando seu – fazia-a morrer em

vida, já que não conseguia mais ver sentido em tudo aquilo, já que perdera a

significação que aquele ambiente poderia ter para si.

Joseph Campbell (2003) afirma que nossas verdadeiras mortes são mortes

simbólicas: são mortes de significados. Como existimos através dos espaços que

habitamos, não parece haver morte mais cruel realmente do que a morte de um lugar e

do que o que ele significa.

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VI - Considerações Finais: de mãos dadas com Moura

Há dois anos, eu estava relendo o Memorial de Maria Moura, já cursando o

Mestrado em Psicologia, quando a cena de Moura abraçando as paredes do Limoeiro me

tocou de uma forma diferente: vi ali o que eu estava estudando, vi ali a Psicologia

Ambiental.

Os dois anos foram se passando e Moura fez-me companhia, falando-me sobre a

importância de achar o seu canto no mundo, falando-me sobre as significações e

simbologias contidas nos espaços, mostrando-me as lutas envolvidas na conquista de

um espaço seu, os sorrisos e lágrimas que os lugares guardam.

Essa personagem de Rachel de Queiroz me fez repensar sobre lugares, sobre a

importância de um lar, de um lugar que proporcione segurança emocional e física, que

seja base de comparação e referência para todos os outros lugares que possamos ocupar

durante nossas vidas.

Chorei juntamente com Maria Moura, ao vê-la perder-se de si mesma, ao vê-la

sempre tentar deixar de ser o bicho acuado que se tornou com a morte do pai e com a

perda do Limoeiro: e sempre falhar por não ter em ninguém, lugar. Maria Moura me fez

despertar para o lugar que determinadas pessoas são, que nos dão a sensação de lar, que

nos remetem a esse; simplesmente por existirem, seja fisicamente, seja em nossas

memórias. Lembrei-me de que na volta de minhas viagens, depois de meses fora, só

tinha a sensação de realmente ter chegado em casa, quando via o rosto de meus pais no

aeroporto. Ao ver suas faces, eu então sabia que estava em casa.

Ao longo desses dois anos, tive reações diversas de outras pessoas em relação à

minha pesquisa: alguns logo se interessaram pela temática e a acharam inovadora;

outros fizeram uma observação que por um tempo me entristeceu: ah, eu prefiro estudar

coisas da vida real. Perguntei-me então o que seriam ‘coisas da vida real’. Perguntei-me

que diferença havia entre a dor da perda do Limoeiro de Maria Moura, e a dor da perda

da casa de uma família em um incêndio. Não morria ali um lugar? Não iam junto com

ele muitas das imagens que existiam naquelas paredes e espaços? Não sentiam todas

essas pessoas a mesma dor? O mesmo medo? Não eram todos eles seres agora acuados,

precisando de um novo canto no mundo?

Então, fiz o que todos nós precisamos fazer às vezes para seguir em uma estrada:

desviei-me dos buracos. Continuei a acreditar nos lugares que influenciam e são

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influenciados pelo homem: seja na literatura, seja no mundo concreto. Eles são feitos da

mesma matéria: são lugares. Com todas as complexidades e relações que lhes cabem.

Estão ali a comunicar relações, a falar sobre significados, a guardar vidas e histórias.

São um olhar sobre o mundo: delimitando-o e tornando-a apreensível.

Passeei junto com os teóricos dos estudos pessoa-ambiente por várias obras

literárias, e os tinha como a apontar para mim em determinados trechos das obras:

“Olha, era isso o que eu quis dizer quando falei sobre privacidade!”; “Veja! Isso aqui

serve como exemplo para o que dissemos sobre territorialidade.”; “Está notando? Aqui

cabe justamente o que argumentamos sobre apropriação!”.

Conversei com eles e deixei que conversassem comigo. Pensamos juntos sobre as

várias histórias, os vários espaços, os diferentes contextos, lugares e tempos que

observamos em conjunto. Tendo a fala desses teóricos em mente, percebi em todos

esses ‘lugares literários’ uma constância: a relação pessoa-ambiente. Mudavam as

histórias, mudavam as personagens, mudavam as sociedades e valores: mas ali estavam

os lugares; a servirem de território, a serem apropriados, a despertarem o vínculo

humano.

Dei então as mãos com Maria Moura e a acompanhei intima e longamente. Entrei

em seu sentir mais privado, fui testemunha do processo de formação dos lugares para

ela. Pude ver de perto as raízes dos sentimentos que tinha em relação aos seus

ambientes: por que significavam o que significavam. Pude seguir os passos de Moura

lado a lado com ela, ao mesmo tempo em que vivenciava tudo o que ela vivenciava.

Pude estar presente no momento exato de suas lágrimas, sorrisos e medos. Pude assim,

olhá-la com uma lupa que ia além da ambiental: que adentrava o campo do sentir

pessoal, que se deixava ir além das palavras e que não me deixava outra opção a não ser

a de sentir tudo o que Moura sentia.

Ao fim desse percurso, tenho apenas uma certeza: muito mais poderia ser dito. Os

lugares são infinitos em suas significações. Descrevi aqui apenas um olhar sobre os

espaços de Maria Moura. E um olhar está sempre preso a um tempo. E um olhar é

sempre transforme. Chegado ao fim deste tempo, muito já vejo de novo. Muito mais há

que significam os lugares de Moura.

Tive o pretenso objetivo de lançar luz às relações pessoa-ambiente contidas em

obras literárias. Em todo caso, como não poderia deixar de ser, os lugares com os quais

tive contato me transformaram, me fizeram viver relações e interações, me guiaram por

seus limites e fronteiras, me comunicaram o tempo de ficar e a hora de partir. Sobre as

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questões levantadas no início desta pesquisa, temos como certo que as relações pessoa-

ambiente presentes na literatura são tão significativas e complexas quanto as do mundo

tido como real. Assim, ambas apresentam em si os conceitos dos estudos pessoa-

ambiente. As formas de análise dessas relações (literatura X mundo real), no entanto,

são diferentes: já que são também diferentes o meio e as formas de obtenção de

informações a respeito dessas.

Dessa forma, pude pensar sobre a relação leitor e livro: o caminho que se percorre

ao ler, ao adentrar esse espaço que é, como diz Bachelard (1998), imagem poética. Esse

espaço que contém vários espaços em si, e nos faz viver outras existências a partir de

nossa própria. Pude refletir sobre as transformações e discussões que esses livros

despertam em mim. Pude pensar sobre as relações que as personagens têm com seus

espaços e como essas relação se transferem e se encaixam em relações que podem ser

observadas em meu próprio cotidiano.

Ao refletir sobre o contexto de Maria Moura, pude entender como às vezes

existem tempos históricos e valores que fazem com que o gênero defina e delimite

nossas relações com os espaços. Ao testemunhar Moura transgredindo o papel

permitido às mulheres de sua sociedade, pude pensar sobre as várias transgressões que

temos que fazer ao longo de nossas vidas em nome de nossos espaços; pude pensar

sobre as eternas brigas por territórios que acontecem ao redor do mundo; pude refletir

sobre quão forte é chamar um espaço de seu e sobre como é uma forma de estupro

simbólico que outros se apossem de seu lar por meio de força e coerção.

Maria Moura mostrou-me toda a carga pessoal e sentimental que pode estar

presente em um lugar sonhado. Com ela pude testemunhar como a busca por um lugar

nos faz criar força e coragem para enfrentar as barreiras que existem pelo caminho.

Transpus o sonho de Moura para a casa própria que tantos almejam; para a

materialização de um sonho familiar que tantos querem ver concretizado. Pude perceber

que existem várias formas de se manter vivas as presenças daqueles que amamos e que

já se foram: e que uma delas é pelos espaços.

Concluí que os espaços são também livros, esperando serem abertos, lidos,

interpretados. Esperando estável e pacientemente para ganhar o movimento e

complexidade da presença humana. Esperando serem transformados e transformarem.

Esperando virarem verdadeiramente história: ao virar memória, ao virar parte de nós.

Memorial de Maria Moura é, realmente, um livro sobre uma mulher e seus

lugares. Podemos crer que Moura tem em seu percurso um ponto ‘A’ (que é a casa do

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Limoeiro) e um ponto ‘B’ (que é a Casa Forte): entre esses dois pontos, há uma reta; e

como se sabe, em uma reta há uma gama de outros vários pontos. Cada movimento e

pausa de Moura, cada espaço e lugar, é percorrido de forma a criar sua história. Moura,

arrancada de seu berço, tenta achar outro ninho que lhe dê a guarida emocional de que

necessita. Quantos existem de nós, ainda buscando, ainda deslocados de um lugar que

nos dê o espaço de sermos o que somos, de desenvolver plenamente nosso potencial e

subjetividade. Moura traz isso à tona em sua jornada ambiental: percebe-se que para

encontrarmos a paz interior, é necessário que encontremos um lugar que se encaixe às

nossas necessidades; não apenas as básicas, mas ao abraçar emocional que faz com que

o espaço físico dê às mãos com o nosso espaço interno, nos possibilitando então ser

tudo o que somos, sem máscaras sociais ou personas criadas. A busca incessante de

Moura, sua falta de paz e lugar, talvez se dê pelo fato de que lar, no fim, seja justamente

um lugar em que possamos estar nus de alma; frágeis, sem medo de julgamentos ou

recriminações; sem o risco de ataques ou necessidade de estar-se sempre armados.

Os espaços de Moura, ao serem analisados, trazem à tona justamente essa

discussão: quais as implicâncias para a vida de uma pessoa de um lar perdido e nunca

mais achado? Até que ponto uma casa é verdadeiramente um lar? Até quando se deve

tentar reconstruir a exata noção de segurança que um dia se teve? Ao mudarmos

juntamente com nossos espaços, será que nos perdemos se eles na verdade não

refletirem o que somos realmente? A Casa Forte de Maria Moura era, antes de tudo,

uma mensagem: mas não uma mensagem para si, e sim para os outros; para a imagem

que ela gostaria que os outros tivessem dela; para a representação social de poder que

ela almejava. Moura pensava assim conseguir o poder e a segurança que sempre

desejou. Mas o vazio de si continuava: sua busca ainda não havia cessado. Pergunto-me

se encontrar o seu ‘canto no mundo’ na verdade é encontrar não o canto que lhe deixe

ser a versão mais forte de si; mas sim um canto que lhe deixe ser a versão mais frágil de

si. Concluo então que um lar é na verdade uma casa-caracol: um lugar que abrace o seu

corpo no formato mais mole e vulnerável que ele possa ter.

Para finalizar, devo dizer que depois de dois anos ao lado de Moura, termino este

estudo sem me despedir dela. Não sentirei sequer saudades: para sentir saudades é

necessária a ausência, a falta, o vazio específico. E Maria Moura continua aqui onde

sempre esteve desde o início de nossa jornada: dentro de mim. Ainda a dialogar comigo,

ainda a me mostrar seus espaços e porquês, ainda a ser lugar em mim e a me gerar

reflexões.

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Seguimos agora, eu e ela, juntas, para outras páginas e outros espaços. Vamos

mais completas porque percebemos que ao descobrir lugares, ao interpretá-los,

descobrimos e interpretamos também a nós mesmas.

A palavra sagrada diz: Dize-me com quem tu andas que te direi quem és. Descobri

que os estudos que voltam o seu olhar para as pessoas e os ambientes dizem: dize-me

quais as tuas relações com os ambientes da tua vida que te direi quem és. Nossos

espaços são formadores de nós: nos significam, nos limitam e nos expandem enquanto

seres; são veículos de nossas experiências; palcos de nossas vidas e guardadores de

nosso tempo. Sou não o que me acontece, mas o que faço com o que me acontece; sou

não o que olho, mas o que faço com o que olho; sou não o que leio, mas o que faço com

o que leio.

Então, obrigada, Sinhazinha. Obrigada Maria Moura. Obrigada senhora Dona

Moura da Casa Forte. Porque ao estudar os seus lugares, pude também estudar os meus.

Por ver suas várias existências dentro de uma única vida, pude também despertar para as

minhas várias existências. Por entender os porquês de seus espaços, pude também

entender alguns porquês dos meus. Acho que um estudo relevante é aquele que

adiciona, que gera reflexões, que ensina, que agrega valor, que modifica positivamente,

que transforma, que faz crescer. Então, posso dizer que este estudo me foi relevante e

essencial. Assim como tudo o que coube nos dois anos que o fizeram nascer pouco a

pouco em mim. Termino hoje não apenas esta dissertação de mestrado, mas uma fase da

minha vida. Tudo foi válido: e os lugares criados permanecem em mim.

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