Lakatos, Musgrave-A Crítica e o Desenvolvimento Do Conhecimento. Único-Cultrix (1979)
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Obra publicada
com a colaborao da
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
Reitor: Prof. Dr. Waldyr Muniz Oliva
EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO
Presidente: Prof. Dr. Mrio Guimares Ferri
Comisso Editorial:
Presidente: Prof. Dr. Mrio Guimares Ferri (Instituto de
Biocincias). Membros: Prof. Dr. Antonio Brito da Cunha
(Instituto de Biocincias), Prof. Dr. Carlos da Silva Lacaz
(Faculdade de Medicina), Prof. Dr. Prsio de Souza Santos
(Escola Politcnica) e Prof. Dr. Roque Spencer Maciel de Barros
(Faculdade de Educao).
-
A C RT IC A E O DES ENVO L VIM EN T O DO
C ONHEC IM EN T O
Imr e La ka t os e A lan Mu sg rave (org s . )
Dois livros, em particular, exerceram decisiva influncia na Filosofia
da Cincia contempornea: A Lgica da Pesquisa Cientfica, de Karl R.
Popper e A Estrutura das Revolues Cientficas, de Thomas S. Kuhn.
Ambos esses livros concordam quanto importncia das revolues na
Cincia, mas discordam quanto ao papel da crtica no seu desenvolvimento.
Um dos colaboradores do presente volume alega que, para Kuhn, a mu-
dana revolucionria um problema de "psicologia da multido. Kuhn
rejeita tal interpretao de seu pensamento, mas insiste em que "qualquer
que seja o progresso cientifico, devemos expli- c-lo examinando a
natureza do grupo cientfico, descobrindo o que este valoriza, o que tolera
e o que desdenha".
A CRTICA E O DESENVOLVIMENTO DO CONHECIMENTO nasceu de
um simpsio acerca da obra de Kuhn, presidido por Popper e realizado por
ocasio de um colquio internacional em Londres (1965). No se trata de
um simples registro das discusses ento travadas, pois vrios dos ensaios
aqui reunidos foram reescritos e expandidos. O livro comea com um texto
de Kuhn no qual ele enuncia a sua posio, seguindo-se sete textos de
outros autores, de crtica e anlise das formulaes de Kuhn, e concluindo-
se com a resposta deste. Eis, pois, um livro que se destina a estudantes e
professores de Filosofia e Histria da Cincia, bem como a quantos se
interessem por esse setor fundamentai do conhecimento humano.
EDIT ORA CUL T RIX ED IT O RA D A U N IVERS IDAD E D E SO PAUL O
-
Ttulo do original:
CRITICISM AND THE GROWTH OF KNOWLEDGE Copyrigth 1970, Cambridge
University Press
Traduzido por OCTAVIO MENDES CAJADO
Reviso tcnica de PABLO MARICONDA
(do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da
Universidade de So Paulo)
Direitos de traduo para a lngua portuguesa adquiridos com exclusividade pela
EDITORA CULTR1X LTDA.
Rua Conselheiro Furtado, 648, fone 278-4811, 01511 So Paulo, SP que se
reserva a propriedade literria desta traduo
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
MCMLXXIX
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S U M R I O
Prefcio 1
Nota sobre a Terceira Impresso 2
T. S. KUHN: Lgica da Descoberta ou Psicologia da Pesquisa? 5
Discusso:
J. W. N. WATK1NS: Contra a Cincia Normal 33
S. E. TOULMIN: Adequada a Distino entre Cincia Normal e
Cincia Revolucionria? 49
L. PEARCE WILLIAMS: Cincia Normal, Revolues Cientficas e
a Histria da Cincia 60
K. R. POPPER: A Cincia Normal e seus Perigos 63
MARGARET MASTERMAN: A Natureza de um Paradigma 72
I. LAKATOS: O Falseamento e a Metodologia dos Programas de
Pesquisa Cientfica 109
P. K. FEYERABEND: Consolando o Especialista 244
T. S. KUHN: Reflexes sobre os meus Crticos 285
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CIP-Brasil. Catalogao-na-Fonte Cmara Brasileira do Livro, SP
A crtica e o desenvolvimento do conhecimento:
C951 quarto volume das atas do Colquio Internacional sobre
Filosofia da Cincia, realizado em Londres em 1965 / organizado por Imre
Lakatos e Alan Musgrave ; [traduzido por Octa- vio Mendes Cajado ;
reviso tcnica de Pablo Mariconda]. So Paulo : Cultrix : Ed. da
Universidade de So Paulo, 1979.
Bibliografia.
1. Cincia Filosofia I. Colquio Internacional sobre Filosofia da
Cincia, Londres, 1965. II. Lakatos, Imre. III. Musgrave, Alan.
79-0113 CDD-501
ndices para catlogo sistemtico: 1. Cincia Filosofia 501 2. Filosofia da cincia 501
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A CRTICA E O
DESENVOLVIMENTO DO
CONHECIMENTO Quarto volume das atas do Colquio Internacional sobre Filosofia da Cincia,
realizado em Londres em 1965
Organizado por
IMRE LAKATOS Ex-professor de Lgica da Universidade de Londres
e
ALAN MUSGRAVE Professor de Filosofia da Universidade de Otago
E D I T O R A C U L T R I X So Paulo
EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO
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Outras obras de interesse:
A LGICA DA PESQUISA CIENTFICA*
Karl Popper
AUTOBIOGRAFIA INTELECTUAL*
Karl Popper
AS IDIAS DE POPPER * Brian Magee
AS IDIAS DE BERTRAND RUSSEL *
A. J. Ayer
AS IDIAS DE EINSTEIN *
Jeremy Bernstein
AS IDIAS DE WITTGENSTEIN *
David Pears
FILOSOFIA DA CINCIA*
Sidney Morgenbesser
INTRODUO A FILOSOFIA DA CINCIA *
K. Lambert e G. G. Brittan, Jr.
DEFINIES: TERMOS TERICOS E SIGNIFICADO *
Leottidas Hegettberg
ESCOLHA E ACASO: UMA INTRODUO X LGICA INDUTIVA *
Brian Skyrms
INICIAO A LGICA E A
METODOLOGIA DA CINCIA
-----Diversos autores
LGICA E FILOSOFIA DA LINGUAGEM *
Gottlob Frege
(Cont. na outra dobra)
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A CRTICA E O
DESENVOLVIMENTO DO CONHECIMENTO
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P R E F A C I O
Este livro constitui o quarto volume das Atas do Seminrio Internacional
sobre Filosofia da Cincia de 1965 realizado no Bedford College, Regent's Park,
Londres, de 11 a 17 de julho de 1965. O Seminrio foi organizado conjuntamente
pela British Society for the Philosophy of Science (Sociedade Britnica de Filosofia
da Cincia) e pela London School of Economics and Political Science (Escola de
Economia e Cincia Poltica de Londres), sob os auspcios da Diviso de Lgica,
Metodologia e Filosofia da Cincia da Unio Internacional de Histria e Filosofia
da Cincia.
O Seminrio e as Atas foram generosamente subsidiados pelas instituies
patrocinadoras, assim como pela Leverhulme Foundation (Fundao Leverhulme) e
pela Alfred P. Sloan Foundation (Fundao Alfred P. Sloan). O Comit Organizador
foi formado por W.C. Knea- le (Presidente), I. Lakatos (Secretrio Honorrio), J. W.
N. Watkins (Segundo Secretrio Honorrio), S. Kber, Sir Karl Popper, H. R. Post e
J. O. Wisdom.
Os trs primeiros volumes das Atas foram publicados pela North- Holland
Publishing Company, de Amsterd, sob os seguintes ttulos:
Lakatos (org.): Problems in the Philosophy of Mathematics (Problemas da
Filosofia da Matemtica), 1967.
Lakatos (org.): The Problem of Inductive Logic (O Problema da Lgica
Indutiva), 1968.
Lakatos e Musgrave (orgs.): Problems in the Philosophy of Science
(Problemas da Filosofia da Cincia), 1968.
Todo o programa do Seminrio est impresso no primeiro volume das Atas.
Este quarto volume obedece poltica editorial seguida nos trs primeiros
mais uma reconstruo racional e uma ampliao dos debates do que propriamente
um mero registro dos mesmos. Todo o volume se desenvolve a partir de um nico
simpsio, ocorrido no dia
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13 de julho sobre A Crtica e o Desenvolvimento do Conhecimento. De acordo
com os planos originais, o Professor Kuhn, o Professor Feyerabend e o Dr.
Lakatos deveriam ser os principais oradores mas, por motivos diferentes (veja
mais adiante, p. 33), as colaboraes do Professor Feyerabend e do Dr. Lakatos
s chegaram depois do Seminrio. O Professor Watkins concordou, em substitu-
los. O Professor Sir Karl Popper assumiu a presidncia do acirrado debate do
qual participaram, entre outros, o Professor Stephen Toulmin, o Professor Pearce
Williams, a Srt.a Margaret Masterman e o Presidente.
Os textos dos trabalhos, tais como aqui se imprimiram, foram concludos em
diferentes ocasies. O artigo do Professor Kuhn est impresso essencialmente na
forma em que foi lido pela primeira vez. Os trabalhos dos Professores John
Watkins, Stephen Toulmin, Pearce William e de Sir Karl Popper so verses
ligeiramente modificadas das colaboraes originais. Por outro lado, a
contribuio da Srt.a Masterman s foi terminada em 1966, ao passo que as do Dr.
Lakatos e do Professor Feyerabend, juntamente com a rplica final do Professor
Kuhn, foram concludas em 1969.
Os Organizadores auxiliados por Peter Clark e John Worrall
desejam agradecer a todos os colaboradores sua amvel cooperao.
Confessam-se igualmente gratos Srt.a Christine Jones e Srt.
a Mary McCormick
pelo trabalho consciencioso e cuidadoso no preparo dos manuscritos para a
publicao.
OS ORGANIZADORES
Londres, agosto de 1969.
NOTA SOBRE A TERCEIRA IMPRESSO
A terceira impresso de A Crtica e o Desenvolvimento do Conhecimento s
difere da primeira pela eliminao de uns poucos erros de impresso e pela
introduo de correes menores, essencialmente bibliogrficas e estilsticas.
Desde que se publicou a primeira impresso, as idias discutidas neste
volume foram ainda mais desenvolvidas por alguns autores:
Thomas Kuhn publicou uma segunda edio de sua The Struc- ture of
Scientific Revolutions (A Estrutura das Revolues Cientficas) com um posfcio,
que aperfeioa sua teoria dos paradigmas (Chicago University Press, 1970).
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Stephen Toulmin publicou o primeiro volume da sua Human Understanding
(Compreenso Humana Princeton University Press e Clarendon Press, 1972).
Paul Feyerabend exps o seu anarquismo metodolgico no livro Against
Method (Contra o Mtodo) (New Left Books, 1974).
Imre Lakatos desenvolveu ainda mais sua teoria dos programas de pesquisa
cientfica em History of Science and Its Rational Recons- truction (Histria da
Cincia e Sua Reconstruo Racional) e em suas Replies to Critics (Respostas aos
Crticos), ambas publicadas na obra organizada por R. C. Buck e R. S. Cohen PSA
1970, Boston Studies in the Philosophy of Science, 8 (PSA 1970, Estudos
Bostonianos de Filosofia da Cincia, 8) (Reidel Publishing House, 1971) e em seu
trabalho Popper on Demarcation and Induction (Popper [fala] sobre Demarcao
e Induo) na obra organizada por P. A. Schilpp: The Philosophy of Karl R.
Popper (A Filosofia de Karl R. Popper), Open Court, 1974. [Elie Zahar
aperfeioou substancialmente a metodologia de Lakatos em seu Why did Einsteins
Programme Supersede Lo- rentzs? (Por que o Programa de Einstein Suplantou o
de Lorentzs?), no n. 24 do The Britsh Journal for the Philosophy of Science, pp.
95-123 e 223-62, aperfeioamento esse tambm aplicado reinter- pretao da
Revoluo Coperniciana no trabalho de Lakatos e Zahar: Why did Copernicus
Programme Supersede Ptolemy's? (Por que o Programa de Coprnico Suplantou o
de Ptolomeu?) e no livro organizado por R. Westman: The Copernican
Achievement (A Realizao Coperniciana), (Califrnia University Press, 1975).]
OS ORGANIZADORES
Londres, janeiro de 1974.
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LGICA DA DESCOBERTA OU PSICOLOGIA DA
PESQUISA?1
THOMAS S. KUHN
Princeton University
Meu objetivo nestas pginas justapor o ponto de vista sobre
o desenvolvimento cientfico esboado em meu livro, The Structure of Scientific
Revolutions (A Estrutura das Revolues Cientficas), aos pontos de vista mais
conhecidos do nosso presidente, Sir Karl Popper.2 Normalmente eu me negaria a
um empreendimento dessa natureza, pois sou menos otimista que Sir Karl quanto
utilidade das confrontaes. Por outro lado, admirei por tanto tempo a sua obra
que, a esta altura, no me fcil critic-la. Apesar disso, estou persuadido de
que, nesta ocasio, a tentativa h que ser feita. Antes mesmo de meu livro ser
publicado h dois anos e meio, eu comeara a descobrir caractersticas especiais e
freqentemente enigmticas da relao entre minhas opinies e as dele. Essa
relao e as reaes divergentes por ela provocadas do a entender que uma
comparao disciplinada entre as duas pode elucidar muita coisa. Permitam-me
dizer por que isso me parece possvel.
1. Este ensaio foi inicialmente preparado a convite de P. A. Schilpp para seu volume
prestes a sair The Philosophy of Karl R. Popper (A Filosofia de Karl R. Popper), que ser
publicado por The Open Court Publishing Company, La Salle, 111., em The Library of Living
Philosophers (A Biblioteca dos Filsofos Vivos). Confesso -me profundamente grato ao Professor
Schilpp e aos editores pela autorizao que me concederam para imprimi-lo como parte das atas
deste simpsio antes de aparecer no volume para o qual foi primeiro solicitado.
2. Para preparar este trabalho, reli de Sir Karl Popper Logic of Scientific Discovery,
Conjectures and Refutations e The Poverty of Hisloricism. Tambm fiz referncias ocasionais
sua Logik der Forschung e a The Open Society and its Enemies. Minha The Structure of
Scientific Revolutions proporciona um relato mais extenso de muitas questes adiante discutidas.
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Em quase todas as ocasies em que nos voltamos explicitamente para os
mesmos problemas, nossas opinies sobre cincia so quase idnticas.3
Interessa-nos muito mais o processo dinmico por meio do qual se adquire o
conhecimento cientfico do que a estrutura lgica dos produtos da pesquisa
cientfica. Em face desse interesse, ambos enfatizamos, como dados legtimos, os
fatos e o esprito da vida cientfica real, e ambos nos voltamos com freqncia
para a histria no intuito de encontr-los. Desse conjunto de dados partilhados,
chegamos a muitas das mesmas concluses. Ambos rejeitamos o parecer de que a
cincia progride por acumulao; em lugar disso, enfatizamos
o processo revolucionrio pelo qual uma teoria mais antiga rejeita - da e
substituda por uma nova teoria, incompatvel com a anterior; 4 e ambos
sublinhamos enfaticamente o papel desempenhado nesse pro- cesso pelo fracasso
ocasional da teoria mais antiga ao enfrentar desafios lanados pela lgica,
experimentao ou observao. Finalmente, Sir Karl e eu estamos unidos na
oposio a algumas das teses mais caractersticas do positivismo clssico.
Ambos enfatizamos, por exemplo, o embricamento ntimo e inevitvel da
observao com a teoria cientfica; conseqentemente, somos cticos quanto aos
esforos para produzir qualquer linguagem observacional neutra; e ambos in-
sistimos em que os cientistas podem, com toda propriedade, procurar inventar
teorias que expliquem os fenmenos observados, e que faam isso em termos de
objetos reais, seja qual for o significado da ltima expresso.
Conquanto no esgote as questes a cujo respeito Sir Karl e eu
concordamos,5 essa lista j suficientemente extensa para nos colocar
3. Uma simples coincidncia no pode ser responsvel por essa extensa superposio.
Conquanto eu no tivesse lido nenhuma obra de Sir Karl antes do aparecimento, em 1959, da sua
Logik der Forschung (ocasio em que meu livro estava no rascunho), ouvi discutido
repetidamente certo nmero de suas idias principais. Ouvi-o, sobretudo, discutir algumas delas
como "Conferencista William James' em Harvard na primavera de 1950. Tais circunstncias no
me permitem especificar uma dvida intelectual para com Sir Karl, mas deve haver uma.
4. Utilizei alhures o termo paradigma em lugar de teoria para deno tar o que
rejeitado e substitudo durante as revolues cientficas. Algumas razes para a mudana do termo
surgiro mais adiante.
5. O realce dado a uma rea adicional de concordncia a cujo respeito tem havido muitos
mal-entendidos pode pr ainda mais em foco o que, no meu entender, constitui as verdadeira s
diferenas entre os pontos de vista de Sir Karl e os meus. Ambos insistimos em que a fidelidade a
uma tradio desempenha papel essencial no desenvolvimento cientfico. Ele escreveu, por
exemplo, "Quantitativa e qualitativamente a fonte mais importante do nosso
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no mesmo grupo minoritrio entre os filsofos da cincia contempornea.
Presumo que seja por isso que os seguidores de Sir Karl tm sido, com alguma
regularidade, meu pblico filosfico mais compreensivo, ao qual continuo a
sentir-me grato. Minha gratido, contudo, no sem reservas. A mesma
concordncia, que provoca a simpatia desse grupo, no raro lhe dirige mal o
interesse. Ao que tudo indica, os adeptos de Sir Karl so capazes de ler grande
parte do meu livro como captulos de uma reviso tardia (e, para alguns, drstica)
de sua obra clssica The Logic of Scientific Discovery (A Lgica da Descoberta
Cientfica). Um deles pergunta se a viso da cincia esboada na minha Scientific
Revolutions no constituiu por muito tempo matria de conhecimento comum. Um
segundo, mais caritati- vo, limita minha originalidade demonstrao de que as
descobertas de fato tm um ciclo vital muito semelhante ao das inovaes-da-
teoria. Outros, ainda, declaravam-se satisfeitos de uma maneira geral com a
leitura do livro, mas discutem apenas as duas questes, comparativamente
secundrias, a cujo respeito minha discordncia com Sir Karl mais explcita: a
nfase que dou importncia de um compromisso profundo com a tradio e meu
descontentamento com as implicaes do termo falseamento. Resumindo, todos
esses homens leram meu livro com culos muito especiais e h outra maneira de
l-lo. A viso que se tem atravs desses culos no est errada minha
concordncia com Sir Karl real e substancial. Entretanto, os leitores fora do
crculo properiano quase invariavelmente deixam de notar at que a concordncia
existe, e so eles que com mais freqncia reconhecem (nem sempre com
simpatia) as questes que me parecem mais importantes. Chego concluso de
que uma mudana de gestalt divide os leitores do meu livro em dois ou mais
grupos. O que um deles v como notvel paralelismo virtualmente invisvel para
outros. O desejo de compreender tudo isso o que motiva a presente comparao
da minha viso com a de Sir Karl.
A comparao, todavia, no deve limitar-se a uma justaposio ponto por
ponto. O que exige ateno menos a rea perifrica em que se devem isolar
nossas divergncias secundrias ocasionais, do que a regio central em que
parecemos concordar. Sir Karl e eu apelamos para os mesmos dados; vemos, numa
extenso incomum, as mesmas linhas no mesmo papel; indagados sobre essas
linhas e esses
conhecimento tirando o conhecimento inato a tradio (Popper, Conjectures and Refutaions, p. 27). De maneira ainda mais pertinente, j em 1948, escrevia: No me parece que
poderemos, algum dia, libertar-nos de todos os laos da tradio, A chamada libertao, na
realidade, apenas a mudana de uma tradio para outra (Conjectures and Relutations, 1953,
p. 122).
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dados, damos, no raro, respostas virtualmente idnticas ou, pelo menos,
respostas que inevitavelmente parecem idnticas na limitao imposta pelo
processo de pergunta e resposta. No obstante, experincias como as que j
mencionei convencem-me de que nossas intenes so muitas vezes totalmente
diversas quando dizemos as mesmas coisas. Se bem as linhas sejam anlogas, as
figuras que delas emergem no o so. Por isso chamo ao que nos separa mudana
de gestalt e no discordncia e por isso me sinto, ao mesmo tempo, perplexo e
intrigado sobre a melhor maneira de examinar a separao. Como poderei
persuadir Sir Karl, que sabe tudo o que sei acerca do desenvolvimento cientfico
e que j o disse num ou noutro lugar, de que o que ele chama de pato pode ser
visto como um coelho? Como poderei ensin-lo a usar meus culos quando ele j
aprendeu a olhar atravs dos seus para tudo o que posso apontar?
Nesta situao, impe-se uma mudana de estratgia, e a seguinte se
sugere. Relendo mais uma vez alguns dos principais livros e ensaios de Sir Karl,
torno a encontrar uma srie de expresses que se repetem e que, embora eu as
compreenda e no as desaprove de todo, so expresses que nunca teria usado
nos mesmos lugares. Sem dvida, trata-se na maior parte das vezes, de metforas
retoricamente aplicadas a situaes das quais Sir Karl forneceu alhures
descries inatacveis. Contudo, para os propsitos correntes, tais metforas
que se me afiguram manifestamente inadequadas podem revelar-se mais teis
do que descries diretas. Isto , podem sintomatizar diferenas contextuais que
uma expresso literal cuidadosa esconde. A ser assim, tais expresses
funcionam, no como linhas-sobre-o-papel, mas como a orelha-de-coelho, o xale
ou a fita-na-garganta que se isola quando se est ensinando um amigo a
transformar seu modo de ver um diagrama de gestalt. Essa, ao menos, minha
esperana no que a elas se refere. Tenho em mente quatro diferenas de
expresses e delas tratarei seriatim.
I
Uma das questes fundamentais a cujo respeito Sir Karl e eu concordamos
a insistncia em que uma anlise do desenvolvimento do conhecimento
cientfico deve levar em considerao a maneira pela qual a cincia realmente
praticada. Assim sendo, algumas das suas repetidas generalizaes me
surpreendem. Uma delas aparece no incio do primeiro captulo de A Lgica da
Descoberta Cientfica: Um cientista, diz Sir Karl, seja terico, seja
experimentador, apresenta enunciados, ou sistemas de enunciados, e os testa
pouco a pouco. No campo das cincias empricas, mais particularmente, ele
constri hi
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pteses, ou sistemas de teorias, e os pe prova luz da experincia, pela
observao e pela experimentao.'' O enunciado virtualmente um clich e, no
entanto, apresenta trs problemas em sua aplicao. ambguo porque no
especifica qual das duas espcies de enunciados" ou teorias est sendo testada.
No h dvida de que essa ambigidade pode ser eliminada por referncia a
outras passagens dos escritos de Sir Karl, mas a generalizao que dela resulta e
historicamente equivocada. De mais a mais, o equvoco revela-se importante, pois
a forma no ambgua da descrio omite exatamente a caracterstica da prtica
cientfica que, de certo modo, distingue as cincias de outras atividades criativas.
H uma espcie de enunciado ou hiptese que os cientistas submetem
repetidamente ao teste sistemtico. Tenho em mente os enunciados das conjeturas
de um indivduo acerca da maneira apropriada de ligar seu problema de pesquisa
ao corpo do conhecimento cientfico aceito. Ele pode conjeturar, por exemplo,
que determinada incgnita qumica contm o sal de uma terra rara, que a
obesidade dos seus ratos experimentais se deve a um componente especfico da
dieta deles, ou que um modelo espectral recm-descoberto deve ser compreendido
como um efeito do spin nuclear. Em cada caso, os passos seguintes de sua
pesquisa se destinaro a testar a conjetura ou hiptese. Se esta passar por uma
quantidade suficiente ou suficientemente persuasiva de testes, o cientista fez uma
descoberta ou, pelo menos, resolveu- o enigma em cuja soluo estava
empenhado. Caso contrrio, ter de abandonar inteiramente o enigma ou tentar
resolv-
lo com o auxlio de outra hiptese qualquer. Embora nem todos, muitos
problemas de pesquisa assumem essa forma. Os testes desse tipo representam um
componente comum do que denominei cincia normal ou pesquisa normal,
responsvel pela imensa maioria do trabalho realizado em cincia bsica. Esses
testes, porm no so dirigidos, em nenhum sentido usual, para a teoria corrente.
Ao contrrio, quando est s voltas, com um problema de pesquisa normal, o
cientista deve postular a teoria corrente como a regra do seu jogo. Seu objetivo e
resolver uma charada, de preferncia uma charada em qu outros falharam, e a
teoria corrente indispensvel para defini-la e para assegurar que, em havendo
talento suficiente, a charada poder ser resolvida.7 evidente que quem se prope
a um tal empreendi
6. Popper, Logic of Scientific Discovery, 1959, p. 27.
7. Sobre uma extensa discusso da cincia normal, a ativida de para cujo exerccio os profissionais
so treinados, veja minha The Struclure of Scientific Revolutions, pp. 23-24 e 135-42.
importante notar que, quando descrevo o cientista como um solucionador de enigmas e Sir Karl o
descreve como um
9
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mento precisa testar com freqncia a soluo conjetural do enigma que seu
engenho lhe sugere, Mas s testada a sua conjetura pessoal. Se ela no passar
pelo teste, s se impugna a capacidade do cientista e no o corpo da cincia
corrente. Em suma, conquanto ocorram com freqncia na cincia normal, esses
testes so de um gnero peculiar pois na anlise final, o cientista e no a teoria
vigente que se pe prova.
No essa, todavia, a espcie de teste que Sir Karl tem em men- te.
Interessam-no, acima de tudo, os processos por cujo intermdio a cincia se
desenvolve, e ele est convencido de que o desenvolvimento no ocorre
principalmente por acumulao mas pela derru- bada revolucionria da teoria
aceita e pela substituio por uma teoria melhor.8 (Considerar que
crescimento inclui derrubada repe- tida uma singularidade lingstica cuja
raison d'tre poder tornar-se visvel medida que prosseguirmos.) Segundo este
ponto de vista, os testes enfatizados por Sir Karl so os que se realizam para ex-
plorar as limitaes da teoria aceita ou para submeter a teoria vigente a uma
tenso mxima. Entre seus exemplos favoritos, todos .de resultados
surpreendentes e destrutivos, esto as experincias de Lavoi - sier sobre
oxidao, a expedio de 1919 para estudar o eclipse e as recentes experincias
sobre a conservao da paridade.9 Trata-se, naturalmente, de testes clssicos
mas, ao utiliz-los para caracterizar a atividade cientfica, Sir Karl passa por
alto um pormenor importan-
tssimo a respeito deles. Tais episdios so muito raros no desenvolvimento da
cincia. Sobrevem, quase sempre, provocados pr uma crise anterior no campo
pertinente (as experincias de Lavoisier o as de Lee e Yang1") ou pela
existncia de uma teoria que compete
solucionador de problemas (por exemplo em seu Conjectures and Refutations, pp. 67, 222), a
similaridade de nossos termos disfara uma divergncia funda mental. Escreve Sir Karl (os grifos
so meus), No h dvida de que nossas expectativas e, portanto, nossas teorias, pode m at
preceder, historicamente, nossos problemas. Entretanto a cincia s comea com problemas. Os
problemas afloram sobretudo quando estamos decepcionados em nossas expectativas, ou quando
nossas teorias nos envolvem em dificuldades, em contradies. Emprego o termo "enigma no
intuito de enfatizar que as dificuldades que de ordinrio so enfrentadas at pelos melhores
cientistas so, como enigmas de palavras cruzadas ou charadas de xadrez, desafios apenas ao seu
engenho. ele quem est em dificuldade, no a teoria vigente. Meu ponto de vista quase oposto
ao de Sir Karl.
8. Cf. Popper, Conjectures and Refutations, pp. 129, 215 e 221, sobre enunciados
particularmente vigorosos dessa posio.
9. Por exemplo, Popper, Conjectures and Refutations, p. 220.
10. Sobre a obra acerca da oxidao, veja Guerlac, Lavoisier The Crucial Year, 1966.
Sobre os antecedentes das experincias relativas paridade veja-se Hafner e Presswood.
Strong Interjerence and Weak Interactions" , 1965.
10
-
com os cnones existentes da pesquisa (relatividade geral de Eins - tein). Estes
so, todavia, aspectos do que em outro lugar chamei de pesquisa extraordinria
ou ocasies para ela, atividade em que os cientistas exibem muitas das
caractersticas enfatizadas por Sir Karl, mas que, pelo menos no passado, s
surgiram com intermitncias e em circunstncias muito especiais em qualquer
especialidade cientfica."
A meu ver, portanto, Sir Karl caracterizou toda a atividade cientfica em
termos que s se aplicam a suas partes revolucionrias ocasionais. Sua nfase
natural e comum; os feitos de um Coprnico ou de um Einstein constituem leitura
mais aprazvel que os de um Brahe ou de um Lorentz; Sir Karl no seria o
primeiro se tomasse o que chamo de cincia normal por uma atividade
intrinsecamente desinteressante. Apesar isso, nem a cincia nem o
desenvolvimento do conhecimento tm probabilidades de ser compreendidos se a
pesquisa foi vista apenas atravs das revolues que produz de vez em quando.
Por exemplo, embora os compromissos bsicos s sejam testados na cincia
extraordinria, a cincia normal que revela, ao mesmo tempo, os pontos que
devem ser testados e a maneira de test- los. Ou ainda, para a prtica normal, e
no para a prtica extraordinria da cincia, que se treinam profissionais; se eles,
entretanto, forem muitssimo bem-sucedidos nas substituies das teorias de que
depende a prtica normal, esta singularidade ter de ser explicada. Finalmente, e
tal por enquanto o meu ponto principal, um olhar cuidadoso dirigido atividade
cientfica d a entender que a cincia normal, onde no ocorre os tipos de
testes de Sir Karl, e no a cincia extraordinria que quase sempre distingue a
cincia de outras atividades. A existir um critrio de demarcao (entendo que
no devemos procurar um critrio ntido nem decisivo), s pode estar na parte da
cincia que Sir Karl ignora.
Num de seus ensaios mais sugestivos, Sir Karl remonta a origem da
tradio da discusso crtica [que] representa o nico modo praticvel de expandir
nosso conhecimento at os filsofos gregos entre Tales e Plato, homens que, no
seu entender, fomentaram a discusso crtica no s entre as escolas mas tambm
dentro delas.12
A descrio do discurso pr-socrtico muito bem feita, mas o que
se descreve em nada se parece com cincia. antes a tradio de
11. O argumento desenvolvido de maneira circunstanciada em minha The Structure of
Scientific Revolutions, 1962, pp. 52-97.
12. Popper, Conjectures and Rejutations. captulo 5, especialmente pp. 148-52.
-
razes, contra-razes e debates sobre questes fundamentais que, exceto talvez
durante a Idade Mdia, caracterizassem a filosofia e boa parte da cincia social
desde ento. J por volta do perodo helens- tico a matemtica, a astronomia, a
esttica e as partes geomtricas da tica haviam abandonado esse tipo de
discurso em favor da soluo de enigmas. Outras cincias, em quantidades cada
vez maiores, sofreram depois disso a mesma transio. Em certo sentido, para
virar do avesso o ponto de vista de Sir Karl, - precisamente o abandono do
discurso crtico que assinala a transio para uma cincia. Depois que um campo
opera essa transio, o discurso crtico s se repete em momentos de crise,
quando esto em jogo as bases desse campo.13
Apenas quando precisam escolher
entre teorias concorrentes os cientistas se comportam como filsofos. por isso
provavelmente que brilhante descrio de Sir Karl das razes da escolha entre
sistemas metafsicos se parece tanto com minha descrio das razes da escolha
entre teorias cientficas.14
Em nenhuma das escolhas, como logo tentarei
demonstrar, o sistema dos testes desempenha papel decisivo.
H, contudo, uma boa razo para que o teste parea desempenhar esse
papel e, ao estud-lo, o pato de Sir Karl pode, afinal, conver- ter-se no meu
coelho. No existir nenhuma atividade de soluo de enigmas se os seus
praticantes no partilharem de critrios que, para aquele grupo e aquele
momento, determinam o instante em que certo enigma solucionado. Os mesmos
critrios determinam necessariamente o fracasso na obteno de uma soluo, e
quem quer que escolha, pode ver esse fracasso como o fracasso de uma teoria em
passar por um teste. Normalmente, porm, como j tenho dito, no se v dessa
maneira. S se censura o praticante, no se lhe censuram os instrumentos. Mas
em condies especiais, que provocam uma crise na profisso (como, por
exemplo, um grande malogro, ou o malogro repetido dos profissionais mais
brilhantes) a opinio do grupo pode mudar. Um fracasso visto antes como
pessoal parece ento o fracasso da teoria que est sendo testada. Dali por diante,
por ter nascido de um enigma e ter critrios determinados de soluo, o teste se
revela, ao mesmo tempo, mais severo e mais difcil de eludir do que os que se
encontram dentro de uma tradio ,cujo processo normal muito mais o discurso
crtico do que a soluo de enigmas.
13. Conquanto eu no estivesse ento procurando um critrio de demarcao, so
exatamente esses os pontos desenvolvidos em minha The Structure oj Scientific Revolutions, pp.
10-22 e 87-90.
14. Cf. Popper, Conjectures and Rejutat ions, pp. 192-200, com minha The Structure of
Scientijic Revolutions, pp. 143-58.
12
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/
Num sentido, portanto, a severidade dos critrios-de-teste to- -s um
lado da moeda cujo verso a tradio de soluo-de-enigmas. Da que a linha de
demarcao de Sir Karl e a minha coincidam com tanta freqncia. A
coincidncia, contudo, est apenas no resultado delas; o processo de aplic-las,
muito diferente, isola aspectos distintos da atividade a cujo respeito dever ser
tomada a deciso cincia ou no-cincia. Examinando, por exemplo, os casos
mais debatidos, a psicanlise ou a historiografia marxista, para os quais, no dizer
de Sir Karl, seu critrio foi inicialmente destinado,15
concordo em que eles no
podem ser apropriadamente qualificados de cincia. Mas chego a essa
concluso por um caminho muito mais seguro e direto do que o dele. Um breve
exemplo talvez mostre que, dos dois critrios, o dos testes e o da soluo de
enigmas, este ltimo o menos equvoco e o mais fundamental.
A fim de evitar controvrsias contemporneas sem importncia, prefiro
focalizar a astrologia a focalizar, digamos, a psicanlise. A astrologia o
exemplo mais freqentemente citado por Sir Karl de uma pseudocincia.16 Diz
ele: Fazendo suas interpretaes e profecias suficientemente vagas, eles [os
astrlogos] conseguiram explicar de modo plausvel tudo o que poderia ter sido
uma refutao da teoria se a teoria e as profecias tivessem sido mais precisas. No
intuito de escapar ao falseamento eles destruram a testabilidade da teoria. 17 Tais
generalizaes captam algo do esprito da atividade astrolgica. Tomadas, no
entanto, literalmente, como o tero de ser para fornecer um critrio de
demarcao, so insustentveis. A histria da astrologia durante os sculos em
que foi intelectualmente respeitvel registra inmeros vaticnios que falharam de
forma categrica.l,s
Nem mesmo os expoentes mais convencidos e veementes da
astrologia duvidavam da repetio desses malogros. A astrologia no pode ser ex-
cluda das cincias pela forma com que eram feitos seus prognsticos.
Tampouco pode ser excluda em virtude do modo com que seus praticantes
explicavam o malogro. Assinalavam os astrlogos, por exemplo, que, quanto
diferena das predies gerais acerca das pro-
15. Popper, Conjectures and Rejutations, p. 34.
16. O ndice do livro de Popper Conjectures and Rejutations tem seis verbetes cujo ttulo
"a astrologia como pseudocincia tpica".
17. Popper, Conjectures and Rejutations, p. 37.
18. Sobre exemplos, veja Thorndike, A History of Magic and Experimental Science, 5,
pp. 225 e seguintes; 6, pp. 71, 101, 114.
13
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penses de um indivduo ou de uma calamidade natural, o prenncio do futuro de
um indivduo era uma tarefa imensamente complexa, que exigia a mxima
habilidade e extrema sensibilidade aos menores erros em dados importantes. A
configurao das estrelas e dos oito planetas mudava constantemente; as tabelas
astronmicas utilizadas para computar a configurao po_ ocasio do nascimento
de um indivduo no primavam pela perfeio; poucos homens conheciam o
instante do seu nascimento com a indispensvel preciso.1(1
No era de se
admirar, portanto, que as previses falhassem com freqncia. S depois que a
prpria astrologia se tornou implausvel comearam esses argumentos a dar
impresso de que consideravam certo precisamente o que estava em questo.20
Hoje se empregam amide argumentos semelhantes para explicar, por exemplo,
malogros na medicina ou na meteorologia. Em ocasies de dificuldades eles
tambm so apresentados pelas cincias exatas, em campos como a fsica, a
qumica e a astronomia.21
No havia nada de no-cientfico na explicao do
fracasso dada pelo astrlogo.
No obstante, a astrologia no era uma cincia. Ao invs disso, era um
ofcio, uma das artes prticas, que apresentava ntimas semelhanas com a
engenharia, a meteorologia e a medicina, pela maneira com que se exercitavam
h pouco mais de um sculo. Os paralelos com uma medicina mais antiga e com
a psicanlise contempornea so, a meu ver, particularmente rigorosos. Em cada
um desses campos a teoria partilhada s era adequada para estabelecer a
plausibilidade da disciplina e fornecer uma base-racional s vrias regras-de-
ofcio que governavam a prtica. Tais regras tinham demonstrado sua uti lidade
no passado, mas nenhum profissional as supunha suficientes para impedir a
repetio do fracasso. Faziam-se mister uma teoria mais inteligvel e regras mais
poderosas, mas teria sido absurdo abandonar uma disciplina plausvel e muito
necessria, com uma tradio de xito limitado, s porque ainda no se haviam
alcanado tais desi- deratos. Na ausncia deles, no entanto, nem o astrlogo nem
o mdico poderiam fazer pesquisas. Conquanto tivessem regras para aplicar,
19. Sobre reiteradas explicaes de malogro, veja, ibid., I, pp. 11 e 514;
4, 368; 5, 279.
20. Um apanhado inteligente de algumas das razes por que a astrologia perdeu sua
plausibilidade est includo no ensaio de Stahlman, Astrology in Colonial America: An
Extended Query, ( no estudo de Thorndike, The True Place of Astrology in the History of
Science", o leitor encontrar uma explicao do fascnio exercido anteriormente pela astrologia.
21. Cf. minha The Struclure of Scientific Revolutions, pp. 66-76.
1 4
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no tinham enigmas para resolver e, portanto, no tinham cincia para praticar.22
Comparem-se as situaes do astrnomo e do astrlogo. Se a pre- dio de
um astrnomo falhasse e seus clculos conferissem, ele poderia esperar corrigir a
situao. Os dados podiam estar errados: velhas observaes podiam ser
reexaminadas e novas mensuraes feitas, tarefas que criavam uma quantidade de
quebra-cabeas de clculo e instrumentao. Ou talvez a teoria necessitasse de
ajustamento, quer pela manipulao de epiciclos, excntricos, equantes, etc., quer
por reformas mais fundamentais de tcnica astronmica. Por mais de um milnio
tais foram os enigmas tericos e matemticos em torno dos quais, juntamente com
suas contrapartidas instrumentais, se constituiu a tradio da pesquisa
astronmica. O astrlogo, em compensao, no tinha esses quebra -cabeas. A
ocorrncia de fracassos poderia ser explicad, mas os fracassos particulares no
deram origem a enigmas da pesquisa, pois nenhum homem, por mais habili tado
que fosse, poderia utiliz-las na tentativa construtiva de revisar a dificuldade, em
sua maioria fora do conhecimento, do controle ou da responsabilidade do
astrlogo. Os fracassos individuais eram correspondentemente no-informativos,
e no se refletiam na competncia do prognosticador aos olhos de seus colegas
profissionais.23
.
22. Essa formulao d a entender que o critrio de demarcao de Sir Karl pode ser salvo
enunciando-o de uma forma ligeiramente diferente, inteiramente de acordo com sua inteno
aparente. Para que um campo seja uma cincia suas concluses precisam ser logicamente
derivveis de premissas partilhadas. Sob esse aspecto h que excluir a astrologia, no porque suas
previses no sejam testveis, mas porque s as previses mais gerais e menos testveis podiam ser
derivadas da teoria aceita. Visto que qualquer campo capaz de satisfazer a essa condio pode
suportar uma tradio de soluciona- mento de enigmas, a sugesto claramente proveitosa. Est
bem prxima de fornecer uma condio suficiente para que um campo seja uma cincia. Mas nesta
forma, pelo menos, no sequer uma condio suficiente e por certo no uma condio
necessria. Ela admitiria, por exemplo, a agrimensura e a navegao como cincias e excluiria a
taxonomia, a geologia histrica e a teoria da evoluo. As concluses de uma cincia podem ser
precisas e cogentes ao mesmo tempo, sem ser plenamente derivveis, pela lgica, de premissas
aceitas. Cf. minha The Slructure of Scientific Revolutions, pp. 35-51, e tambm a discusso na
Seo III, mais adiante.
23. Isto no quer dizer que os astrlogos no se criticavam uns aos outros. Ao contrrio,
como praticantes de filosofia e de algumas cincias sociais, pertenciam a uma variedade de escolas
diferentes, e a luta entre as escolas, s vezes, era acirrada. Mas esses debates, de ordinrio, giravam
em torno da Implausibilidade da teoria adotada por uma ou por outra escola. s rralogros de
predies individuais desempenhavam um papel muito pequeno. Compare-se A Hislory of Magic
and Experimental Science de Thorndike, 5, p. 233.
15
-
Embora a astronomia e a astrologia fossem quase sempre praticadas pelas
mesmas pessoas, incluindo Ptolomeu, Kleper e Tycho Brahe, nunca existiu um
equivalente astrolgico da tradio astronmica de soluo de charadas. E sem
charadas, que pudessem primeiro desafiar e depois atestar o engenho do
profissional, a astrologia no poderia ter-se tornado cincia, ainda que as estrelas
controlassem, de fato, o destino humano.
Em suma, conquanto os astrlogos fizessem predies que poderiam ser
testadas e reconhecessem que essas predies s vezes falhavam, no podiam
empenhar-se, e no se empenhavam, nos tipos de atividades que normalmente
caracterizam todas as cincias reconhecidas. Sir Karl est certo ao excluir a
astrologia do rol das cincias, mas sua superconcentrao nas revolues
ocasionais da cincia o impede de ver a razo mais segura para faz-lo.
Esse fato, por seu turno, pode explicar outra singularidade da
historiografia de Sir Karl. Embora sublinhe repetidamente o papel dos testes na
substituio de teorias cientficas, v-se tambm obrigado a reconhecer que
muitas teorias, como por exemplo a de Ptolomeu, foram substitudas antes de
terem sido realmente testadas.24
Em algumas ocasies, pelo menos, os testes no
so imprescindveis s revolues atravs das quais progride a cincia. Mas isso
no verdade em relao aos enigmas. Se bem que as teorias citadas por Sir Karl
no tenham sido postas prova antes da sua substituio, nenhuma delas foi
substituda antes de haver deixado de sustentar convenientemente uma tradio
de soluo-de-enigmas. O estado da astronomia era um escndalo no incio do
sculo XVI. No obstante, a maioria dos astrnomos acreditava que os
ajustamentos normais de um modelo basicamente ptolemaico corrigiriam a
situao. Nesse sentido a teoria no falhou ao ser testada. Mas alguns
astrnomos, entre os quais Coprnico, entendiam que as dificuldades deviam
estar no prprio enfoque ptolemaico e no nas verses particulares da teoria pto-
lemaica at ento desenvolvidas, e os resultados dessa convico j foram
registrados. A situao tpica.25
Com ou sem testes, uma tradio de soluo-
de-enigmas pode preparar o caminho para a prpria substituio. Confiar no teste
como marca de uma cincia passar por alto o que os cientistas mais fazem e,
com isso, o trao mais caracterstico da sua atividade.
24. Cf. Conjectures and Refutations, de Popper, p. 246.
25. Cf. minha The Structure of Scientific Revolutions, pp. 77-87.
16
-
II
Com o pano de fundo fornecido pelos reparos precedentes podemos
descobrir logo a ocasio e as conseqncias de outra expresso favorita de Sir
Karl. O prefcio escrito para Conjectures and Refuta- tions (Conjecturas e
Refutaes) inicia-se com esta sentena: Os ensaios e conferncias de que se
compe este livro so variaes sobre um tema muito simples a tese segundo a
qual podemos aprender com nossos erros. O grifo de Sir Karl; a mesma tese
repete-se em seus escritos desde uma data bem anterior;2,1
tomada isoladamente,
ela obriga inevitavelmente ao assentimento. Todos podemos aprender, e
aprendemos, com nossos erros; o processo de isol-los e corrigi-los uma tcnica
essencial no ensino das crianas. A retrica de Sir Karl tem razes na experincia
cotidiana. Apesar disso, nos contextos para os quais ele invoca esse imperativo
familiar, suas aplicaes parecem decididamente torcidas, pois no estou certo de
que tenha sido cometido um erro, pelo menos um erro, com o qual se possa
aprender.
No h necessidade de confrontar os problemas filosficos mais profundos
apresentados pelos erros para ver o que est agora em debate. um erro somar
trs mais trs e obter cinco, ou concluir de Todos os homens so mortais que
Todos os mortais so homens. Por motivos diferentes, um erro dizer Ele
minha irm ou afirmar a presena de um campo eltrico forte quando as cargas
experimentais no a indicam. Presume-se que haja ainda outras espcies de erros
mas todos os erros normais tendem a possuir as seguintes caractersticas. Um erro
feito, ou cometido, num tempo e num lugar especificveis, por determinado
indivduo. Esse indivduo deixou de obedecer a alguma regra estabelecida de
lgica, de linguagem, ou das relaes entre uma delas e a experincia. Ou deixou
de reconhecer as conseqncias de determinada escolha entre as alternativas que
as regras lhe facultam. O indivduo s pode aprender com o seu erro porque o
grupo cuja prtica incorpora essas regras pode limitar o fracasso individual na
aplicao delas. Em suma, as espcies de erros
26. A citao do livro Conjectures and Rejutations, de Popper, p. vii, num prefcio
datado de 1962. Anteriormente, Sir Karl equiparara aprender com nossos erros a "aprender por
ensaio-e-erro (Conjectures and Rejutations, p. 216), e a formulao de ensaio-e-erro data,
pelo menos, de 1937 (Conjectures and Rejutations, p. 312) e , em esprito, mais velho do que
isso. Muita coisa dita mais adiante sobre a noo de equvoco de Sir Karl aplica-se igualmente
ao seu conceito de erro.
17
-
a que se aplica o imperativo de Sir Karl de modo mais bvio esto numa falha de
compreenso ou deconhecimento do indivduo dentro de uma atividade
governada por regras preestabelecidas. Nas cin- cias, tais erros ocorrem com
maior freqncia, e talvez de forma exclusiva, na prtica da pesquisa normal d
soluo-de-enigmas.
No a, todavia, que Sir Karl os procura, pois o seu conceito de cincia
obscurece at a existncia da pesquisa normal. Ele os procura nos episdios
extraordinrios ou revolucionrios do desenvolvimento cientfico. Os erros. para
os quais aponta geralmente no so atos, seno teorias cientficas do passado: a
astronomia ptlmai- ca, a teoria do flogisto ou a dinmica newtoniana, e
aprender jcom nossos erros o que acontece, correspondentemente, quando
uma comunidade cientfica rejeita uma dessas teorias e a substitui por outra.27
Se
isto no parece de imediato uma utilizao estranha, a razo principal porque
apela para o resduo indutivista que existe em todos ns. Acreditando que as
teorias vlidas so o produto de indues corretas a partir dos fatos, ,o
indutivista tambm sustenta que uma teoria falsa resulta de um erro de induo.
Em princpio, pelo menos, ele est preparado para responder a perguntas: que
erro se perpetrou, que regra foi violada, quando e por quem, para se chegar,
digamos, ao sistema ptolemaico? Ao homem para o qual essas perguntas so
sensatas, e s a ele, a expresso de Sir Karl no apresenta problemas.
Mas nem Sir Karl nem eu somos indutivistas. No acreditamos que existem
regras para induzir teorias corretas a partir dos fatos, nem mesmo que as teorias,
corretas ou incorretas, so induzidas. Ao invs disso, ns as encaramos como
suposies imaginativas, que se
27. Conjectures and Refutations, de Popper, pp. 215 e 220. Nessas pginas Sir Karl
esboa e ilustra sua tese de que a cincia se desenvolve atravs de revolues. Ao faz -lo, nunca
justape o termo erro ao nome de uma teoria cientfica superada, presumivelmente porque o
seu slido instinto histrico no lhe permite incorrer num anacronismo to grosseiro. No
obstante, o anacronismo fundamental para a retrica de Sir Karl, que reiteradamente fornece
pistas conducentes a diferenas mais substanciais entre ns. A menos que as teorias superadas
sejam erros, no h maneira de reconciliar, digamos, o pargrafo inicial do prefcio de Sir Karl
para o livro Conjectures and Refutations, p. vii, "aprender com nossos erros, nossas
tentativas freqentemente equivocadas de resolver nossos problemas, testes que podem ajudar -
nos na descoberta de nossos erros, com a opinio (Conjectures and Refutations, p. 215) de que
o crescimento do conhecimento cientfico... [consiste na] repetida derrubada de teorias
cientficas e sua substituio por teorias melhores e mais satisfatrias.
18
-
inventam em um s bloco para serem aplicadas natureza. E se bem assinalemos
que essas suposies podem encontrar, e geralmente acabam encontrando
enigmas que no lhes dado resolver, tambm reconhecemos que tais
confrontaes incmodas raro ocorrem durante algum tempo depois de inventada
e aceita a teoria. Em nossa opinio, portanto, no se perpetrou nenhum erro para
chegar ao sistema pt- lemaico, e acho difcil compreender o que Sir Karl tem em
mente quando chama de erro esse sistema, ou qualquer outra teoria superada.
Poder-se- querer dizer no mximo que uma teoria que no era um erro passou a
s-lo ou que um cientista errou ao aferrar-se a uma teoria por um tempo
demasiado longo. E nem mesmo tais expresses, a primeira das quais pelo menos
extremamente inbil, nos devolve o sentido de erro com o qual estamos mais
familiarizados. Esses erros so os erros normais que um astrnomo ptolemaico
(ou coperniciano) faz dentro do seu sistema, talvez observando, calculando ou
analisando dados. Isto , pertencem ao tipo de erros que se podem isolar e logo
depois corrigir, deixando intacto o sistema original. No sentido de Sir Karl, por
outro lado, um erro contamina todo um sistma e s pode ser corri gido
substituindo-se todo o sistema. No h expresses nem similaridades capazes de
disfarar essas diferenas fundamentais, nem se pode esconder o fato de que,
antes de instalar-se a contaminao, o sistema tinha a plena integridade do que
ora denominamos conhecimento slido.
muito possvel que o sentido de erro de Sir Karl possa ser recuperado,
mas uma operao bem-sucedida de recuperao ter de priv-lo de certas
implicaes ainda correntes. Como o termo teste, o termo erro foi tomado da
cincia normal, onde o seu uso razoavelmente claro, e aplicado a episdios
revolucionrios, onde sua apli- ao, na melhor das hipteses, problemtica.
Essa transferncia cria, ou pelo menos refora, a impresso predominante de que
teorias inteiras podem ser julgadas pela mesma espcie de critrios que se
empregam para julgar as aplicaes de pesquisa individual de uma teoria. A
descoberta de critrios aplicveis torna-se, ento, um dei- derato fundamental
para muitos. estranho que Sir Karl se encontre entre eles, pois a pesquisa se
ope mais original e frutuosa investida de sua filosofia da cincia. Mas no
posso compreender de outra maneira seus escritos metodolgicos desde a Logik
der Forschung. Parece-me que ele, a despeito de repdios explcitos, procurou
sistematicamente processos de avaliao que se podem aplicar a teorias com a
segurana apodtica caracterstica das tcnicas pelas quais se identificam os erros
na aritmtica, lgica ou mensurao. Receio que ele esteja perseguindo um fogo -
ftuo nascido da mesma conjuno de
19
-
cincia normal e cincia extraordinria que fez que os testes parecessem um trao
to fundamental das cincias.
Em sua Logik der Forschung, Sir Karl sublinhou a assimetria entre uma
generalizao e sua negao na relao delas com a evidncia emprica. No se
pode mostrar que uma teoria cientfica se aplica de maneira bem-sucedida a todos
os casos possveis, mas pode mos- trar-se que ela foi malsucedida em determinadas
aplicaes. A nfase emprestada a esse trusmo lgico e s suas implicaes
afigura-se um passo frente do qual no h que voltar atrs. A mesma assimetria
desempenha um papel fundamental em minha Structure of Scientific Revolutions,
onde a incapacidade de uma teoria de fornecer regras para identificar quebra-
cabeas solveis encarada como a origem de crises profissionais que no raro
resultam na substituio da teoria. Minha idia est muito prxima da de Sir Karl, e
bem posso t-la tirado do que ouvi sobre a obra dele.
Mas Sir Karl descreve como falseamento ou refutao o que acontece
quando uma teoria flh na tentativa de aplicao, e estas so as primeiras de uma
srie de expresses que me parecem sumamente estranhas. Tanto falseamento
quanto refutao, antnimos de prova, so tiradas principalmente da lgica e
da matemtica formais; as cadeias de raciocnio a que elas se aplicam rematam-se
com um Q.E.D.; a invocao desses termos supe a capacidade de obrigar ao
assentimento qualquer membro da comunidade profissional pertinente. Ningum
entre os aqui presentes, no entanto, precisa ainda que se lhe diga que os argumentos
raros so to apodticos nos casos em que est em jogo toda uma teoria ou, com
maior freqncia, at uma lei cientfica. Todas as experincias podem ser contesta-
das, quer quanto relevncia, quer quanto exatido. Todas as teorias podem ser
modificadas por uma variedade de ajustamentos ad hoc sem por isso deixar de ser,
em suas linhas gerais, as mesmas teorias. De mais a mais, importante que assim
seja, pois amide contestando observaes ou ajustando teorias que se desenvolve
o conhecimento cientfico. Contestaes e ajustamentos so uma parte comum da
pesquisa normal na cincia emprica, e os ajustamentos, pelo menos, representam
tambm um papel dominante na matemtica no-formal. A brilhante anlise das
contra-rplicas permissveis s refutaes matemticas levadas a efeito pelo Dr.
Lakatos fornece os
III
20
-
argumentos mais impressionantes que conheo contra a posio fal- seacionista
ingnua.28
Sir Karl no , obviamente, um falseacionista ingnuo. Sabe tudo o que
acaba de ser dito e enfatizou-o desde o princpio da sua carreira. Em sua Logic of
Scientific Discovery (A Lgica da Descoberta Cientfica), por exemplo, escreve:
Na verdade, nunca se poder produzir a refutao concludente de uma teoria;
pois sempre possvel dizer que os resultados experimentais no merecem
confiana ou que as discrepncias que se afirmam existir entre os resultados ex -
perimentais e a teoria so apenas aparentes e desaparecero com o processo de
nosso entendimento.29 Enuniados como esse mostram mais um paralelo entre a
viso da cincia de Sir Karl e a minha, mas o que fazemos com eles dificilmente
poderia ser mais diferente. Para a minha viso eles so fundamentais, no s
como evidncia mas tambm como fonte. Para a viso de Sir Karl, no entanto, so
uma qualificao essencial que ameaa a integridade da sua posio bsica.
Tendo excludo a refutao, concludente, ele no providenciou um substituto para
ela, e a relao que continua a empregar a do falseamento lgico. Conquanto
no seja um falseacionista ingnuo Sir Rarl, no meu entender, pode ser
legitimamente tratado como tal.
Se ele s se interessasse pela demarcao, os problemas colocados peia falta
de disponibilidade de refutaes concludentes seriam menos severos e talvez
eliminveis. Isto , a demarcao poderia con- seguir-se mediante um critrio
exclusivamente sinttico.30
A posio de Sir Karl seria ento, e talvez assim o
seja, que uma teoria cientfica se e somente se os enunciados de observao
sobretudo as negaes de enunciados existenciais singulares puderem ser logi-
camente deduzidos dela, talvez em conjuno com o conhecimento bsico
expresso. As dificuldades (s quais logo voltarei) para decidir se o resultado de
determinada operao de laboratrio justifica a assero de determinado
enunciado de observao seriam ento irrelevantes. Talvez se pudessem eliminar
da mesma maneira as dificul
28. Proofs and Refutations, de Lakatos.
29. Logic of Scientific Discovery, de Popper, p. 50.
30. Se bem que o meu ponto seja um pouco diferente, devo meu reconhecimento da
necessidade de enfrentar essa questo s crticas dirigidas por C. G. Hempel aos que interpretam
erroneamente Sir Karl atribuindo-lhe uma crena no falseamento absoluto em lugar de uma crena
no falseamento relativo. Veja os seus Aspects of Scientific Explanation, p. 45. Reconheo-me
tambm devedor do Professor Hempel por sua crtica atenta e ' inteligente deste ensaio quando
ainda no passava de um rascunho.
21
-
dades igualmente graves para decidir se um enunciado de observao deduzido
de uma verso aproximada (por exemplo, matematicamente controlvel) da teoria
deva ser considerado conseqncia da prpria teoria, embora a base para faz -lo
seja menos aparente. Problemas como esses no pertenceriam sintaxe, mas
pragmtica ou semntica da linguagem em que a teoria foi moldada, e no
desempenhariam, portanto, papel algum na determinao do seu status como
cincia. Para ser cientfica, a teoria precisa ser falsevel apenas por um
enunciado de observao e no pela observao real. A relao entre enunciados,
diferena da que existe entre um enunciado e uma observao, poderia ser a
refutao concludente familiar da lgica e da matemtica.
Por motivos sugeridos acima (p. 15, nota de rodap n. 22) e desenvolvidos
logo depois, duvido que as teorias cientficas possam ser moldadas, sem uma
mudana decisiva, numa forma que permita os julgamentos puramente sintticos
exigidos por essa verso do critrio de Sir Karl. Mas ainda que o pudessem ser,
essas teorias reconstrudas s proporcionariam uma base para o seu critrio de
demarcao, ho para a lgica do conhecimento to intimamente associada a
ele. Esta ltima, entretanto, tem constitudo o interesse mais persistente de Sir
Karl, e a noo que ele tem dela bem precisa. A lgica do conhecimento...
escreve ele, consiste to-s em investigar os mtodos empregados nos testes
sistemticos a que toda idia nova tem de ser submetida para ser tomada
seriamente em considerao. 31 Dessa investigao, continua ele, resultam
regras ou convenes metodolgicas como as seguintes: Depois que uma
hiptese tiver sido proposta e testada, e tiver demonstrado sua tmpera, no se
deve permitir que seja posta de lado sem uma boa razo. Uma boa razo pode
ser, por exemplo. . . o falseamento de uma das suas conseqncias. 32
Regras como essa e, com elas, toda a atividade lgica acima descrita, j no
so simplesmente sintticas em sua importncia. Requerem que tanto o
investigador epistemolgico quanto o cientista pesquisador sejam capazes de
relacionar sentenas derivadas de uma teoria no com outras sentenas mas com
observaes e experincias reais. Esse o contexto em que precisa funcionar o
termo falseamento de Sir Karl, e Sir Karl mantm absoluto silncio sobre como
isso pode ser feito. Que o falseamento se no a refutao conclu
31. Popper, Logic of Scientific Discovery, p. 31.
32. Popper, ibidem, pp. 53 e seguintes.
-
dente? Em que circunstncias exige a lgica do conhecimento que o cientista
abandone uma teoria previamente aceita quando se defronta, no com
enunciados sobre experincias, mas com as prprias experincias? At a
elucidao dessas questes, no me parece muito claro que o que Sir Karl nos
deu seja uma lgica do conhecimento. A meu ver, embora igualmente valiosa,
trata-se de coisa muitssimo diversa. Em lugar de uma lgica, Sir Karl nos
ofereceu uma ideologia; em lugar de regras metodolgicas, ele nos deu mximas
de procedimento.
Cumpre, todavia, adiar essa concluso at que se lance um derradeiro e
mais profundo olhar origem das dificuldades surgidas com a noo de
falseamento de Sir Karl. Ela pressupe, como j sugeri, que se pode moldar ou
remoldar, sem distoro, uma teoria numa forma que permite aos cientistas
classificar cada evento concebvel como um caso que confirma a teoria, como
um caso que a falseia ou como um caso que irrelevante para a teoria. Para que
uma lei geral seja falsevel requer-se obviamente que, a fim de testar a
generalizao (x) (x) aplicando-a constante a, sejamos capazes de dizer se a
se encontra ou no dentro do mbito da varivel x e se o caso de que 0 (a) ou
no. A mesma pressuposio ainda mais aparente na medida de
verossimilhana recm-elaborada por Sir Karl. Ela requer que se produza
primeiro a classe de todas as conseqncias lgicas da teoria e depois se
escolham entre essas conseqncias, com a ajuda do conhecimento bsico, as
classes de todas as conseqncias verdadeiras e de todas as falsas/*3 Pelo menos
ser preciso faz-lo se o critrio de verossimilhana tiver de resultar num
mtodo de escolha de teorias. Entretanto, nenhuma dessas tarefas pode ser
levada a cabo se a teoria no for totalmente articulada logicamente e se os
termos atravs dos quais ela se liga natureza no tiverem sido suficientemente
definidos para determinar-lhes a aplicabilidade em cada caso possvel. Na
prtica, todavia, nenhuma teoria cientfica satisfaz a essas exigncias, e muita
gente j sustentou que, se o fizesse, a teoria deixa ria de ser til pesquisa.34
Eu
mesmo apresentei alhures o termo paradigma com o propsito de destacar a
dependncia da pesquisa
33. Popper, Conjectures and Rejutations, pp. 233-5. Note-se tambm, no p da ltima
dessas pginas, que a comparao de Sir Karl da relativa verossimilhana de duas (eorias
depende do fato de no haver mudanas revolucion rias em nosso conhecimento bsico,
suposio que ele no desenvolve em parte alguma e que difcil de harmonizar com a sua
concepo da mudana cientfica mediante revolues.
34. Braithwaite, Scientific Explanation, pp. 50-87, especialmente p. 76, e minha The
Structure of Scientific Revolutions, pp. 97-101.
23
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cientfica para com exemplo s concretos, que lanam uma ponte sobre o que de
outro modo seriam lacunas na especificao do contedo e na aplicao das
teorias cientficas. No se podem repetir aqui os argumentos pertinentes. Mas um
breve exemplo, embora altere temporariamente minha linha de discurso, talvez
seja ainda mais til.
Meu exemplo tem a forma de um resumo construdo a partir de
conhecimentos cientficos elementares. Esse conhecimento refere- se aos cisnes e
para isolar-lhe as caractersticas atualmente pertinentes farei trs perguntas a
respeito: (a) Quanto se pode saber a respeito de cisnes sem introduzir
generalizaes explcitas como esta: Todos os cisnes so brancos? (b) Em que
circunstncias e com que conseqncias convm acrescentar tais generalizaes
ao que era sabido sem elas? (c) Em que circunstncias se rejeitam as
generalizaes depois de feitas? Ao formular essas perguntas meu objetivo
sugerir ] que, embora a lgica seja um instrumento poderoso e essencial da
investigao cientfica, possvel ter um conhecimento slido em formas a que
escassamente se pode aplicar a lgica. Sugiro outrossim que a articulao lgica
no um valor em si mesma, mas s deve; ser buscada quando as circunstncias
a exigem e na medida em que' a exigem.
Imagine, o leitor, que lhe foram mostrados, e voc pode lembrar- se deles,
dez pssaros peremptoriamente identificados como cisnes; imagine ainda que
possui uma familiaridade semelhante com patos, gansos, pombos, rolinhas,
gaivotas, etc., e que est informado de que cada um desses tipos constitui uma
famlia natural. Voc j sabe que uma famlia natural um grupo observado de
objetos semelhantes, suficientemente importantes e suficientemente discretos
para exigir um nome genrico. Com maior preciso, embora eu aqui simplifique
mais do que o requer o conceito, uma famlia natural uma classe cujos membros
so mais parecidos uns com os outros do que com os membros de outras famlias
naturais.35
A experincia das geraes tem confirmado at agora que todos os
objetos observados cabem numa ou noutra famlia natural. Isto , mostrou que
toda a populao do mundo pode ser dividida (embora no de uma vez por
35. Note-se que a semelhana entre os membros de uma famlia natural aqui uma
relao aprendida e uma relao que pode ser desaprendida. Pondere-se o antigo provrbio:
Para um ocidental, todos os chineses so parecidos. Esse exemplo tambm pe em destaque a
mais drstica das simplificaes introduzidas neste ponto. Uma discusso mais completa teria
de tomar em considerao hierarquias de famlias naturais com relaes de semelhana entre
famlias nos nveis mais elevados.
24
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todas) em categorias perceptivamente descontnuas. Acredita-se que nos espaos
perceptivos entre as categorias no existe objeto algum.
O que voc aprendeu a respeito de cisnes pela exposio a paradigmas
muito parecido com o que as crianas aprendem primeiro acerca de ces e gatos,
mesas e cadeiras, mes e pais. Claro est que impossvel especificar-lhes o
mbito e o contedo espec- fico mas, apesar de tudo, conhecimento slido.
Derivado da obser- vao, pode ser invalidado por uma observao ulterior e,
entremen- tes, proporciona uma base de ao racional. Ao ver um pssaro muito
parecido com os cisnes que j conhece, voc poder com razo supor que ele
come o que comem os outros e dar-lhe o mesmo alimento. Se os cisnes
constituem uma famlia natural, nenhum pssaro que se parea muito com eles
primeira vista exibir caractersticas radicalmente diferentes a um exame mais
atento. claro que voc talvez tenha sido mal informado acerca da integridade
natural da famlia dos cisnes. Mas isso pode ser descoberto pela experincia,
como por exemplo a descoberta de certo nmero de animais (observe-se que mais
de um so necessrios) cujas caractersticas estabeleam uma ponte entre os
cisnes e, digamos, os gansos por intervalos vagamente perceptveis.36
At que
isso ocorra, entretanto, voc saber muita coisa a respeito de cisnes, embora no
esteja plenamente seguro do que sabe nem tem certeza do que um cisne.
Suponha agora que todos os cisnes que voc realmente observou so
brancos. Dever adotar a generalizao Todos os cisnes so brancos? O faz -lo
mudar muito pouco o que voc sabe; essa mudana s ter utilidade no caso
pouco provvel de voc encontrar um pssaro no-branco que sob outros aspectos
se parea com um cisne; fazendo a mudana voc aumenta o risco de que se
prove que a famlia dos cisnes no , apesar de tudo, uma famlia natural. Nessas
circunstncias voc tender a abster-se de generalizar, a menos que haja razes
especiais para faz-lo. Talvez, por exemplo, voc precise descrever cisnes a
homens que no se podem expor diretamente a paradigmas. Sem uma cautela
sobre-humana, tanto de sua parte quanto da parte dos seus leitores, sua descrio
adquirir
36. Essa experincia no exige o abandono da categoria cisnes nem o abandono da
categoria "gansos, mas exige a introduo de um limite arbitrrio entre elas. As famlias cisnes
e gansos deixariam de ser famlias naturais, e no se poderia concluir coisa alguma acerca do
carter de um novo pssaro semelhante a um cisne que tambm no fosse verdadeiro em relao aos
gansos. O espao perceptual vazio essencial para que a qualidade de membro da famlia tenha
contedo cognitivo.
-
a fora de uma generalizao; tal , muitas vezes, o problema do taxilogo. Ou
voc talvez tenha descoberto alguns pssaros cinzentos, que se parecem em outros
sentidos com os cisnes, mas que comem comida diferente e tm uma conformao
defeituosa. Voc poder ento generalizar para evitar um equvoco de
comportamento. Ou poder ter uma razo mais terica para pensar que a
generalizao vale a pena. Talvez tenha observado, por exemplo, que os membros
de outras famlias naturais possuem a mesma colorao. A especificao desse
fato de modo que faculte a aplicao de tcnicas lgicas poderosas, ao que voc
sabe, pode permitir-lhe aprender mais a respeito da cor animal em geral ou da
reproduo animal.
Ora, tendo feito a generalizao, que far voc se encontrar um pssaro
preto que de outra forma se parece com um cisne? Quase as mesmas coisas, penso
eu, que faria se j no estivesse comprometido com a generalizao. Examinar o
pssaro com cuidado, externamente e talvez internamente tambm, a fim de
encontrar outras caractersticas que distingam esse espcime dos seus paradigmas.
O exame ser particularmente demorado e completo se voc tiver razes tericas
para acreditar que a cor caracteriza as famlias naturais ou se o seu ego estiver
profundamente envolvido na generalizao. muito provvel que o exame revele
outras diferenas, e voc anunciar a descoberta de uma nova famlia natural. Ou,
no encontrando tais diferenas, poder anunciar o achado de um cisne preto. A
observao, contudo, no pode for-lo a essa concluso falseador, 5 voc, de
vez em quando sairia perdendo se isso acontecesse. Consideraes tericas podem
sugerir que a cor basta para demarcar uma famlia naturail: o pssaro no um
cisne porque preto. Ou voc poder simplesmente adiar a questo enquanto
espera a descoberta e o exame de outros espcimes. S se j se tiver
comprometido com uma
plena definio de cisne, uma definio que lhe especifique a aplicabilidade a
todo objeto concebvel, poder voc ser logicamente forado a rescindir sua
generalizao.37
. E por que teria oferecido tal definio?* Ela no teria nenhuma
funo cognitiva e o exporia a
37. Novas provas da desnaturalidade de uma definio dessa natureza so fornecidas pela
pergunta seguinte. Deve incluir-se a "brancura entre as caractersticas que definem os cisnes? Em
caso afirmativo, a generalizao Todos os cisnes so brancos ser imune experincia. Mas se se
excluir a brancura da definio, ser preciso incluir outra caracterstica qualquer capaz de substituir
a brancura. As decises a respeito das caracterst icas que fazem parte de uma definio e estaro
disponveis para o enunciado de leis gerais so amide arbitrrias e, na prtica, raramente se fazem. O
conhecimento, em regra geral, no se articula dessa maneira.
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tremendos riscos.38
Est visto que, muitas vezes, vale a pena assumir riscos, mas
dizer mais do que se sabe, s por amor ao risco, temeridade.
Tenho para mim que o conhecimento cientfico, embora logicamente mais
articulado e muito mais complexo, desse tipo. Os livros e os mestres onde ele se
adquire apresentam exemplos concretos a par de uma infinidade de generalizaes
tericas. Ambos so veculos essenciais do conhecimento e , pois, pickwickiano
procurar um critrio metodolgico que suponha o cientista capaz de determinar
ante- cipadamente cada caso imaginvel se ajustar sua teoria ou a falsear. Os
critrios de- que eie dispe, explcitos e implcitos, s so suficientes para
responder a essa pergunta nos casos que se ajustam claramente ou que so
claramente irrelevantes. Esses so os casos que eie espera, e para os quais o seu
conhecimento foi planeja- do: Defrontando-se com o inesperado, ele deve sempre
fazer novas pesquisas a fim de articular melhor a sua teoria na rea que acaba de
tornar-se problemtica. Poder ento rejeit-la em favor de outra e pior uma boa
razo. Mas critrios exclusivamente lgicos no podem ditar sozinhos a concluso
que ele deve obter.
IV
Quase tudo o que foi dito at agora so variaes sobre um nico tema. Os
critrios com que os cientistas determinam a validade de uma articulao ou de
uma aplicao da teoria existente no bastam por si mesmos a determinar a
escolha entre teorias concor- rentes. Sir Karl errou transferindo caractersticas
escolhidas de pesquisa cotidiana para os episdios revolucionrios ocasionais em
que o avano cientfico mais bvio, ignorando, inteiramente a partir da, a
atividade de todos os dias. Ele procurou, em particular, resolver o problema da
escolha da teoria durante revolues pelos critrios lgicos s aplicveis ntegra
quando a teoria j pode ser pressuposta. Esta a maior parte da minha tese neste
trabalho e poderia ser toda ela se eu me contentasse em deixar completamente
abertas as questes aventadas. Como que os cientistas procedem escolha
38. Essa incompletude das definies muitas vezes denominada "textu ra aberta ou
vagueza de significado, mas tais expresses parecem decididamente enviesadas. As definies
talvez sejam incompletas, mas no h nada de errado com os significados. dessa maneira que se
comportam os significados!
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entre teorias concorrentes? Como havemos ns de compreender o modo com que
a cincia progride?
Seja-me permitido esclarecer de pronto que, tendo aberto essa caixa de
Pandora, no tardarei em fech-la. H muita coisa em relao a tais questes que
eu no entendo, nem devo fingir que as compreendo. Mas acredito ver as
direes em que as respostas devem ser buscadas, e concluirei com uma breve
tentativa para mostrar o caminho. Perto do seu fim tornaremos a encontrar um
conjunto de expresses caractersticas de Sir Karl.
Preciso perguntar primeiro que o que ainda requer explicao. No que
os cientistas descobrem a verdade a respeito da natureza, nem que eles se
aproximam ainda mais da verdade. A no ser, como sugere um dos meus
crticos,39
que definamos simplesmente o enfoque da verdade como o resultado
da atividade dos cientistas, no podemos reconhecer o progresso na direo dessa
meta. Precisamos antes explicar por que a cincia nosso exemplo mais seguro
de conhecimento slido progride, e precisamos descobrir primeiro como de
fato o faz.
Ainda se conhece surpreendentemente pouco sobre a resposta a essa
questo descritiva. Ainda se faz necessria grande quantidade de cuidadosa
investigao emprica. Com o passar do tempo, as teorias cientficas tomadas em
grupo tornam-se obviamente mais e mais articuladas. Nesse processo, equiparam-
se natureza em um nmero cada vez maior de pontos e com crescente preciso.
Ou o nmero de temas a que se pode aplicar o enfoque da soluo de enigmas
cresce claramente com o tempo. H uma contnua proliferao de especialidades
cientficas, em parte pela extenso dos limites da cincia e em parte pela
subdiviso dos campos existentes.
Tais generalizaes, no entanto, so apenas um princpio. No sabemos, por
exemplo, quase nada sobre o que um grupo de cientis- tas est disposto a sacrificar
a fim de lograr os ganhos que uma nova teoria invariavelmente oferece. Minha
impresso, embora no seja mais do que isso, que uma comunidade cientfica
raro ou nunca adotara uma nova teoria a no ser que esta resolva todos ou quase
todos os enigmas quantitativos e numricos que se deparavam sua predecessora.40
Por outro lado. eles sacrificaro o poder expla- natrio, embora com relutncia,
deixando s vezes abertas questes
39. Hawkins, crtica da "The Structure of Scientific Revolutions, de Kuhn.
40. Cf. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, pp. 102-8.
28
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anteriormente resolvidas e, s vezes, declarando-as inteiramente no- -
cientficas.4r
Voltando-nos para outra rea, pouco sabemos acerca das mudanas
histricas ocorridas na unidade das cincias. Apesar de xitos espetaculares, a
comunicao atravs das fronteiras entre especialidades cientficas torna-se cada
vez pior. Crescer com o tempo o nmero de pontos de vista incompatveis
empregados pelo nmero sempre maior de comunidades de especialistas? A
unidade das cincias representa sem dvida um valor para os cientistas, mas em
favor do que sero eles capazes de renunciar a ela? Ou ainda, conquanto o volume
do conhecimento cientfico aumente claramente com o tempo, que diremos da
ignorncia? Os problemas resolvidos nos ltimos trinta anos no existiam como
questes abertas h um sculo. Em qualquer poca, o saber cientfico j
disponvel esgota virtualmente o que h para saber, s deixando quebra-cabeas
visveis no horizonte do conhecimento existente. No ser possvel, nem mesmo
provvel, que os cientistas contemporneos saibam menos do que h para saber a
respeito do seu mundo do que sabiam a respeito do seu os cientistas do sculo
XVIII? Cumpre lembrar que as teorias cientficas s se ligam natureza aqui e
ali. Sero agora talvez os interstcios entre os pontos de ligao maiores e mais
numerosos do que no passado?
Enquanto no pudermos responder a mais perguntas como essas, no
saberemos direito o que o progresso cientfico e no poderemos, portanto,
esperar explic-lo. Por outro lado, pouco faltar para que as respostas a essas
perguntas forneam a explicao desejada. As duas vm quase juntas. J devia
estar claro que a explicao, na anlise final, precisa ser psicolgica ou
sociolgica. Isto , precisa ser a descrio de um sistema de valores, uma
ideologia, juntamente com uma anlise as instituies atravs das quais o
sistema transmitido e imposto. Sabendo a que os cientistas do valor, podemos
esperar compreender os problemas pelos quais se responsabilizaro e as escolhas
que faro em determinadas circunstncias de conflito. Duvido que se possa
encontrar outra espcie de resposta.
A forma que a resposta assumir, naturalmente, outro assunto. Neste
ponto termina tambm minha conscincia do controle do meu tema. Mais uma
vez, porm, algumas generalizaes de amostras ilustraro os tipos de respostas
que se devem procurar. Para um cientista, a soluo de um difcil enigma
conceptual ou instrumental
41. Cf. Kuhn, The Function of Measurement in Modern Phvsical Science.
29
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representa uma meta principal. O seu xito nessa tentativa recom- pnsado pelo
reconhecimento de outros membros do seu grupo profissional e s deles. O
mrito prtico da soluo, na melhor das Hipteses, um valor secundrio, e a
aprovao de homens fora do grupo especialista um valor negativo ou no
nenhum valor. Tais valores, que muito contribuem para ditar a forma da cincia
normal, so tambm s vezes significativos quando preciso escolher entre
teorias. Um homem treinado para solucionar enigmas desejar preservar o maior
nmero possvel de solues j obtidas pelo seu grupo, e desejar tambm
maximizar o nmero de enigmas passveis de soluo. Mas at esses valores
freqentemente conflitam entre si e outros h que tornam o problema da escolha
ainda mais difiil. exatamente nesse sentido que seria mais significativo um
estudo daquilo a que os cientistas renunciaro. A simplicidade, a preciso e a
compatibilidade com as teorias utilizadas em outras especialidades sa valores
expressivos para os cientistas, mas nem todas ditam a mesma escolha nem sero
aplicadas da mesma maneira. Nessas circunstncias, importa igualmente que a
unanimidade do grupo seja um valor soberano, levando o grupo a minimizar as
ocasies de conflito e a congregar-se rapidamente em torno do mesmo conjunto
de regras para a soluo de enigmas, ainda que para isso lhe seja preciso subdi -
vidir a especialidade ou excluir um membro anteriormente produtivo.42
No estou dizendo que estas so as respostas certas ao problema do
progresso cientfico, mas apenas os tipos de respostas que devem ser procurados.
Poderei esperar que Sir Karl me faa companhia nesta maneira de ver a tarefa
que ainda est por ser feita? Durante algum tempo presumi que ele no o faria,
visto que um conjunto de expresses que se repetem em sua obra parece impedi -
lo de assumir essa posio. Ele rejeitou reiteradamente a psicologia do
conhecimento ou o subjetivo e insistiu em que o seu interesse se resumia no
objetivo ou na lgica do conhecimento.43 O ttulo de sua contribuio mais
fundamental para o nosso campo A Lgica da Descoberta Cientfica, e ali que
ele afirma da maneira mais positiva que o seu interesse diz muito mais respeito
aos estmulos lgicos para conhecimento do que aos impulsos psicolgicos dos
indivduos. At h pouco tempo eu supunha que essa maneira de encarar o
problema excluiria a soluo que tenho advogado.
42. Cf. The Structure of Scientific Revolutions, de minha autoria, pp.
161-9.
43. Popper, Logic of Scientific Discovery, pp. 22 e 31 e seguintes, 46; e Conjectures and
Refutations, p. 52.
30 /
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Mas agora estou menos seguro, pois h outro aspecto da obra de Sir Karl
no muito compatvel com o que precede. Quando ele rejeita a psicologia do
conhecimento, o seu interesse explcito apenas negar a importncia
metodolgica da fonte de inspirao do indivduo ou da conscincia de certeza do
indivduo. Disso no posso discordar. Vai, todavia, uma longa distncia entre a
rejeio das idiossincrasias do indivduo e a rejeio dos elementos comuns
induzidos pela criao e pela educao na composio psicolgica da situao de
membro licenciado de um grupo cientfico. A dispensa de um no impe a do
outro. E isso tambm Sir Karl parece reconhecer s vezes. Embora insista em que
est escrevendo sobre a lgica do conhecimento, um papel essencial em sua
metodologia desempenhado por trechos que s posso interpretar como
tentativas de inculcar imperativos morais aos membros do grupo cientfico.
Presumamos, escreve Sir Karl, que nos impusemos deliberadamente a
tarefa de viver neste nosso mundo desconhecido; ajustar- nos a ele da melhor
maneira que pudermos;. ... e explic-lo, se possvel (no precisamos presumir que
o seja) e at onde for possvel, com a ajuda de leis e teorias explanatrias. Se nos
impusermos essa tarefa, no existe processo mais racional que o mtodo da. . .
conjetura e da refutao: de ousadamente propor teorias; de envidar nossos
melhores esforos para mostrar que estas so errneas; e de aceit -las como
tentativas se nossos esforos crticos forem malsuce- didos.44 Entendo que no
devemos compreender o xito da cincia sem compreender toda a fora de
imperativos como estes, reto- ricamente induzidos e profissionalmente
partilhados. Ainda mais institucionalizados e articulados (e tambm um tanto
diversamente) tais mximas e valores talvez expliquem o resultado de escolhas
que no poderiam ter sido ditas s pela lgica e pela experincia. O fato de
passagens como estas ocuparem um lugar proeminente nos escritos de Sir Karl ,
portanto, mais uma prova da semelhana dos nossos pontos de vista. E o fato de
continuar ele, no meu entender, sem os ver como os imperativos
sociopsicolgicos que so mais uma prova da existncia da mudana de gestalt
que ainda nos divide profundamente.
44. Popper, Conjecures and Rejutaticms, p. 51. O grifo est no original.
31
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REFERNCIAS
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Thorndike r 1955]: The True Place of Astrology in the History of Science, Isis, 46, pp. 273-
8.
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CONTRA A "CINCIA NORMAL
JOHN WATKINS London School of
Economics
I
H algumas semanas fui convocado para responder na tarde de hoje ao
Professor Kuhn. Feyerabend e Lakatos forneceriam os outros ensaios; mas o
primeiro no pde vir e o segundo descobriu que, ao organizar este seminrio,
gerara um monstro de muitas cabeas e s para atender s suas exigncias, que se
multiplicavam, estaria ocupado aproximadamente vinte e quatro horas por dia.
O convite inesperado deixou-m