Lacerda e Àlmeida, precursor LivingsÍone · Em 1778, recomeça a longa viagem pelo Cuiabá, São...

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Lacerda e Àlmeida, precursor de LivingsÍone P oR ocasião da demarcação de limites das colônias ibéricas da Àmérica, no século XVIII, foram designadas comissões compostas de alguns brasileiros do mais alto valor. No ensaio adrnirável de EucrtoBs DA CuNue sôbre o problema das sêcas, examinado em conjunto sob todos os ângulos - Plano de uma cruzacla" encontra-se êste trecho: "Realmente a simples contemplação dos últimos' dias do regime colonial, nas vésperas da inde- pendência, revela-nos as figuras esculturais de alguns homens que hoje mal avaliamos, tão ape- quenadas andam as nossas energias, e tão gran- des o descaso e desamor com que nos voltamos para os interêsses reais do país. RlcaRoo FneNco oe Arnauoa Ss,nne, Snve PoNrrs e Lacrnoe r Arnauoe são hoje uns quase anôni- mos. Entretanto, os estóicos astrônornos que os grosseiros agulhões mal norteavam nas espes- suras nunca percorridas, sem o arsenal suÍr- tuoso dos atuais aparelhos, determinaram as coordenadas dos mais remotos pontos e des- vendaram muitos traços proeminentes de nossa natureza. Ao último não lhe bastou perlustrar o Brasil de extremo a extremo. Transpôs o mar, e Íoi atravessar a África". Mais tarde, nesta primorosa monografia em que se esboça, em linhas luminosas, a forma- ção sul-americana, que é o "Peru uersus Boli- via", a figura de Lacrnoe e ArnaErDA retorna, quando discute a Íamosa semidistância entre a foz do Madeira no Amazonas e a do Guaporé no Mamoré, acentuando que a determinada por Lacrnoa e Arnrerna difere das de Cosra Azt- vEDo, em 1863, apenas em menos de meio mi- nuto de arco. Comenta com aquêle inflexível espírito de justiça: "O caso é verdadeiramente notável, ernbora se trate de uma determinação de latitude. E, considerando-se os aparelhos imperfeitos do tempo, convenha-se em que La- cERDA r Arnauoa foi um observador admirá- vel". F. VeNÂNcro FrrHo Professor do Instituto de Educação Rio de Janeiro, D. F. Entretanto, esta figura escultural ficou desconhecida à maioria dos brasileiros, mesmo à minoria dos brasileiros cultos. VrncÍrro Connere Frruo consagrou-lhe, bem como aos dois outros ilustres companhei- ros, uma monografia feita com a exatidão e pro- bidade postas em tudo o que escreve, apenas es- quecida em revista de curso reduzido. É o es- tudo mais cornpleto sôbre o grande brasileiro. Como todos os que possuiam recursos, LA- cERDA B Arnzuoa, nascido em São Paulo, diri- ge-se à metropole para cursar a lJniversidade de Coimbra, reformada por outro brasileiro emi- nente, Prnuna CourtNuo, matriculando-se em 1772, e obtendo cinco anos após o grau de dou- tor, com defesa de tese. Sendo necessário orga- nizar as comissões demarcadoras de limites, de- correntes do tratado de Santo Ildefonso, é es- colhido pelo Ministro Martinho Melo, como dos melhores da turma, tendo praticado sob a dire- ção do Doutor Ctrna, astrônomo famoso. Revelou-se desde logo capaz nas demar- cações, no Amazonas, por ordem de |. P. Car- oas. Viala, em seguida, para Mato Grosso, [a- zendo o levantamento do Madeira, em que de- terminou coordenadas de pontos essenciais. Os dados das determinações de Lacenoa são da ordem de precisão, apontada nas pa- lavras admirativas de Eucuors oe CuNHe. Em meio da viagem é colhido por pertinaz enfermidade que o "Diário" revela, na escassez dos comentários, antes tão abundantes. Tendo partido de Barcelos chega seis meses depois à capital de Mato Grosso, e, por informação do governador Lutz or ArnuquEReuE, verifica-se que o seu estado de saúde não melhora. Lentamente se vai restabelecendo e pode assinar com Strva PoNrBs o resumo das obser- vações de Vila Bela, cuja latitude a comissão Guilhobel, na República, encontra com uma di- ferença de 9 segundos. Em 1783, LxcnRDÀ E Arunma explora o Mamoré e tributários oci- ÀBRIL, 1945 l7 l

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Lacerda e Àlmeida, precursor de LivingsÍone

PoR ocasião da demarcação de limites das

colônias ibéricas da Àmérica, no séculoXVIII, foram designadas comissões

compostas de alguns brasileiros do mais altovalor.

No ensaio adrnirável de EucrtoBs DA

CuNue sôbre o problema das sêcas, examinadoem conjunto sob todos os ângulos - Plano deuma cruzacla" encontra-se êste trecho:"Realmente a simples contemplação dos últimos'dias do regime colonial, nas vésperas da inde-pendência, revela-nos as figuras esculturais dealguns homens que hoje mal avaliamos, tão ape-quenadas andam as nossas energias, e tão gran-des o descaso e desamor com que nos voltamospara os interêsses reais do país. RlcaRooFneNco oe Arnauoa Ss,nne, Snve PoNrrs e

Lacrnoe r Arnauoe são hoje uns quase anôni-mos. Entretanto, os estóicos astrônornos que osgrosseiros agulhões mal norteavam nas espes-suras nunca percorridas, sem o arsenal suÍr-tuoso dos atuais aparelhos, determinaram ascoordenadas dos mais remotos pontos e des-vendaram muitos traços proeminentes de nossanatureza. Ao último não lhe bastou perlustraro Brasil de extremo a extremo. Transpôs o mar,e Íoi atravessar a África".

Mais tarde, nesta primorosa monografiaem que se esboça, em linhas luminosas, a forma-ção sul-americana, que é o "Peru uersus Boli-via", a figura de Lacrnoe e ArnaErDA retorna,quando discute a Íamosa semidistância entre afoz do Madeira no Amazonas e a do Guaporé noMamoré, acentuando que a determinada porLacrnoa e Arnrerna difere das de Cosra Azt-vEDo, em 1863, apenas em menos de meio mi-nuto de arco. Comenta com aquêle inflexívelespírito de justiça: "O caso é verdadeiramentenotável, ernbora se trate de uma determinaçãode latitude. E, considerando-se os aparelhosimperfeitos do tempo, convenha-se em que La-cERDA r Arnauoa foi um observador admirá-vel".

F. VeNÂNcro FrrHoProfessor do Instituto de Educação

Rio de Janeiro, D. F.

Entretanto, esta figura escultural ficoudesconhecida à maioria dos brasileiros, mesmoà minoria dos brasileiros cultos.

VrncÍrro Connere Frruo consagrou-lhe,bem como aos dois outros ilustres companhei-ros, uma monografia feita com a exatidão e pro-bidade postas em tudo o que escreve, apenas es-quecida em revista de curso reduzido. É o es-tudo mais cornpleto sôbre o grande brasileiro.

Como todos os que possuiam recursos, LA-cERDA B Arnzuoa, nascido em São Paulo, diri-ge-se à metropole para cursar a lJniversidadede Coimbra, reformada por outro brasileiro emi-nente, Prnuna CourtNuo, matriculando-se em1772, e obtendo cinco anos após o grau de dou-tor, com defesa de tese. Sendo necessário orga-nizar as comissões demarcadoras de limites, de-correntes do tratado de Santo Ildefonso, é es-colhido pelo Ministro Martinho Melo, como dosmelhores da turma, tendo praticado sob a dire-ção do Doutor Ctrna, astrônomo famoso.

Revelou-se desde logo capaz nas demar-cações, no Amazonas, por ordem de |. P. Car-oas. Viala, em seguida, para Mato Grosso, [a-zendo o levantamento do Madeira, em que de-terminou coordenadas de pontos essenciais.

Os dados das determinações de Lacenoasão da ordem de precisão, já apontada nas pa-lavras admirativas de Eucuors oe CuNHe.

Em meio da viagem é colhido por pertinazenfermidade que o "Diário" revela, na escassezdos comentários, antes tão abundantes. Tendopartido de Barcelos chega seis meses depois àcapital de Mato Grosso, e, por informação dogovernador Lutz or ArnuquEReuE, verifica-seque o seu estado de saúde não melhora.

Lentamente se vai restabelecendo e podeassinar com Strva PoNrBs o resumo das obser-vações de Vila Bela, cuja latitude a comissãoGuilhobel, na República, encontra com uma di-ferença de 9 segundos. Em 1783, LxcnRDÀ E

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-Mapa correspondcnte aos limites do Brasil pelo tratado de Madrid, 1750'

Continuando doente recolhe-se à capital,mas segue logo para a exploração do Paraguai,desde o -u..o do |auru até o trecho dos Morros.

Em abril de 1786 deixa Vila Bela e seguepara Lavrinhas, passando pelo marco pôsto pelaComissão de 1753, na barra do |auru, com oParaguai, navegando neste rio até Baía Negra,

* De "Fronteiras do Brasil no Regime Colonial", por JosÉ Cenros pn Meceoo SoenEs, in Anais do Instítuto Histórico e Geo.gráfico Brasileíro, vol. lX, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1944.

II REVISTÀ DO MUSEU NÀCIONÀL

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dentais do Guaporé, cujo relatório se encontrano volume 12 da Revista do Instituto Históricoe Geográfico Brasileiro.

Não é apenas descrição sêca da viagem,mas cheia de observações sôbre as condiçõesfísicas e até sociais da região, inclusive o pro-testo contra a escravidão disfarçada dos índios.

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onde encontra as lagoas características da re-gião, que examina.

Regressa, rio acima, pelo Paraguai, SãoLourenço, Cuiabá e atravessa por terra o cami-nho que o leva ao Guaporé, deixando desta via-gem páginas que VIncÍuo Connele recorda commerecida admiração.

Desaparecendo o Comissário espanhol da3.' Divisão de Demarcações, fica abandonadaa idéia de fixação da linha de limites, tão caraaLutz oB ArsueuEReuE.

Incumbe, então, Lacpnoa de Í.azer o levan-tamento do caminho fluvial seguido pelas em-barcações entre Cuiabá e São Paulo, com o re-gresso por Goiaz.

Em 1778, recomeça a longa viagem peloCuiabá, São Lourenço e Paraguai, até desem-bocar no Tapuari, que segue para montante atéo Coxim.

Despertam-lhe impressões entusiásticas aspaisagens que contempla no divisor de águas dabacia do Tapuari, afluente do Paraguai e o rioPardo, do Paraná.

Escreve então: "O ar é temperado e puro,tão alegre e ameno aquêle terreno todo, que de-pois que saí de Portugal não vi, nem nas capita-nias do Pará e Rio Negro, nem na de MatoGrosso, coisa que se the possa comparar, Re-nasceu em mim tôda a alegria que um país apra-zível pode causar e que tinha perdido, vivendopor oito anos em um sertão (assim o posso di-zer) cheio de matas altíssimas, altos e de algumcampo pela maior parte inundado e pestífero".

É vÍtima de um acidente que lhe fraturauma das pernas, forçando-o a permanecer emSão Paulo tempo maior.

Restabelecido, segue para Santos, ondeembarca para Portugal em junho de 1790, che-gando em setembro a Lisboa, prazeirosamenterecebido pelos amigos, apresentando à Acade-mia Real de Ciências o "mapa e o diário da via-gem que fêz de Vila Bela, capital de MatoGrosso até Vila Praça de Santos , em gue f.êz

anotações sôbre toponímia indígena local e asinformações colhidas na última jornada de 530léguas.

Mas o seu regresso a Portugal iria iniciarsegunda Íase da sua vida arrojada de explora-dor.

Em 1936, a Divisão de Publicações e Bi-blioteca da Agência Geral das Colônias de Por-tugal publicou A Trauessia da África peloDr. LecBnoa s ArnaErDA, com erudita introdu-ção do Dr. MaNuEL MuRrÀs.

Por aí pode-se verificar que o grande pau-lista foi precursor de LIvrNcsroNE e Sraxrr;;no propósito de varar o continente africano, oque não levou a têrmo porque a morte o colheuprematuramente.

Roontco DE SousA CourINrro, sucessorde ManrtNHo DE Mnto, espírito culto, que co-nhecia os principais países da Europa, compre-endeu logo a necessidade de um melhor conhe-cimento das colônias portuguêsas. Daí confiara Lecpnoa n Arnauoa, escolhido para procurÍr-dor dos Rios de Sena, uma destas exploraçõesna África

lâ em 1791, era promovido a " 1." Tenentedo Mar" com exercício de Lente de Matemáticada Companhia dos Guardas-Marinha, pôstoem que permaneceu até 1795, em que foi promo-vido a Capitão de Fragata, com exercício deLente de Matemática, igualmente. A missão Prn

África foi em 1797. Não Íôssem as desavençascom o governador de Moçambique e é possivdque LacrRoe levasse a têrmo a temerária em-prêsa de que se incumbira. Reconhece Munra,sque nunca se organizara uma expedição com trlcuidado e saber.

A tudo a previdência do Chefe providen-ciara, desde os instrumentos e livros da Acade-mia de Marinha até as provisões necessárias.

Logo no início, em outubro de 1798. é co-lhido pela morte. Felizmente nem tudo se per-deu. Não fôsse a incompreensão e acanhamentode espírito de MrNesES DA Cos're, o governa-dor de Moçambique, e por certo a travessia daÁfrica teria sido levada a cabo.

Ficaram os preciosos "Diários" do valo-roso brasileiro, por onde se tem hoje uma visão,principalmente pelas cartas que deixou, do co-nhecimento sôbre o continente africano, no sé-culo XVIII.

FnaNcrsco ]osÉ LacnRDA E Arl eroe Íêzparte da admirável geração de brasileirosl nas-cida às vésperas da Independência. Não have-ria em Portugal na época, nomes de maior re-lêvo do que os dêste grupo de moços, nascidcsob o sol do Brasil. Se tivesse escrito em outralíngua seria de fama universal. Um dos seus"Diários" teve divulgação em inglês, pela penado Capitão BunroN, antes de o ter em reda@original. O que bastaria à sua glória.

Por isso é de maior oportunidade a prút-cação que acaba de ser feita pelo Instituto Nacional do Livro, das obras de LecenoÀ E Àr-METDA, ato de justiça histórica e de alto r-ahrcultural.

ÀBRIL, 1915 It