Laboratório Madalena: derivações de uma experiência cênica. Fernanda Paixão Moreira

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1 UNIRIO UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - UNIRIO CENTRO DE LETRAS E ARTES - CLA ESCOLA DE TEATRO – DEPARTAMENTO DE ENSINO DO TEATRO LABORATÓRIO MADALENA: DERIVAÇÕES DE UMA EXPERIÊNCIA CÊNICA POR FERNANDA PAIXÃO MOREIRA Rio de Janeiro Novembro de 2012

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UNIRIO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - UNIRIO

CENTRO DE LETRAS E ARTES - CLA

ESCOLA DE TEATRO – DEPARTAMENTO DE ENSINO DO TEATRO

LABORATÓRIO MADALENA:

DERIVAÇÕES DE UMA EXPERIÊNCIA CÊNICA

POR

FERNANDA PAIXÃO MOREIRA

Rio de Janeiro

Novembro de 2012

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Fernanda Paixão Moreira

LABORATÓRIO MADALENA:

DERIVAÇÕES DE UMA EXPERIÊNCIA CÊNICA

Trabalho de Conclusão de Curso submetido à Banca Examinadora como requisito parcial para obtenção do Grau de Graduado em Teatro, na modalidade Licenciatura, da Escola de Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, sob a orientação da Professora Elza de Andrade.

Rio de Janeiro

Novembro de 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - UNIRIO

CENTRO DE LETRAS E ARTES - CLA

ESCOLA DE TEATRO – DEPARTAMENTO DE ENSINO DE TEATRO

LABORATÓRIO MADALENA:

DERIVAÇÕES DE UMA EXPERIÊNCIA CÊNICA

por

Fernanda Paixão Moreira

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Elza de Andrade (Orientadora)

Profa. Dra. Liliane Ferreira Mundim

Prof. Dr. José Luiz Ligièro Coelho

Rio de Janeiro, 27 de novembro de 2012

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos amigos que conheci ao longo da minha formação pelos

questionamentos e cumplicidades, à Alessandra Vannucci, Centro de

Teatro do Oprimido, Cláudia Simone, Marcos Brizio, Projeto Conexão

ArteViva, Regina Paixão e aos mestres que me formaram ao longo da vida.

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RESUMO

Palavras-chave: teatro, opressão, feminino, espaço, derivação

Laboratório Madalena é um laboratório estético desenvolvido com mulheres catadoras

de lixo reciclável da cidade de Brasília, que teve como ponto de partida a pesquisa

sobre o corpo feminino e o gesto de catar. Este projeto monográfico pretende refletir

sobre as derivações dessa experiência cênica feita com mulheres não atrizes, tais como

o trabalho dramatúrgico elaborado a partir da própria biografia, a estética descoberta

daquele grupo e as reflexões que o processo criativo detonou no corpo das mulheres.

É de bastante importância, a percepção de como o teatro trouxe para elas uma

problematização e uma desestabilização das relações de opressão do cotidiano

daquela realidade social. As questões levantadas ao longo da escrita deste trabalho de

conclusão de curso partem sempre dos acontecimentos da prática artística ocorrida

em Brasília.

RESUMÉN

Palabras llaves: teatro, opresión, femenino, espacio, derivación

Laboratório Madalena es un laboratorio estético desarrollado con mujeres

recolectores de residuos reciclables en la ciudad de Brasilia, que tuvo como punto de

partida la investigación sobre el cuerpo femenino y el gesto de picking. Este proyecto

monográfico pretende discutir las derivaciones de esta experiencia escénica hecha con

mujeres no actrices: el trabajo dramatúrgico extraído de la propia biografía, el

descubrimiento de una estética del grupo y las reflexiones que el proceso creativo

provoco en el cuerpo de las mujeres. Es muy importante, la percepción de la forma en

que el teatro les trajo un cuestionamiento y una desestabilización de las relaciones de

opresión que existian en el cotidiano de trabajo e vivienda de las mujeres. Las

cuestiones planteadas durante la redacción de este trabajo de conclusión de grado son

apuntadas siempre a partir de la experiencia vivida en Brasília.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................... 01

CAPÍTULO I – Pedagogia Teatral, Processo Criativo e

Construção da Dramaturgia ...............................................................................08

CAPÍTULO II - mArias & maDaLenAS .................................................................... 20

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 29

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................31

ANEXOS...................................................................................................................32

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1. INTRODUÇÃO

Essa pesquisa monográfica, apresentada como trabalho de conclusão do Curso

de Licenciatura em Teatro, pretende estudar possíveis caminhos da Pedagogia teatral

que tem sua origem na Pedagogia do Ator. Entende-se como Pedagogia do Ator as

possíveis metodologias utilizadas no processo criativo do artista para a construção de

uma linguagem cênica. Como esse processo criativo se dilatou e se tornou importante

também na formação do cidadão dentro do currículo escolar ou em processos

experimentais em comunidades?

Ao longo da minha formação na Escola de Teatro da UNIRIO tive a

oportunidade, através da bolsa de pesquisa do Núcleo de Performances Afro-

Ameríndias (Nepaa), de ter acesso ao projeto Laboratório Madalena - ocorrido na

África, Brasil, Europa e Índia. Este laboratório foi idealizado e executado pela coringa do

Centro de Teatro do Oprimido, Barbara Santos, e pela diretora teatral e coringa,

Alessandra Vannucci. Ao me debruçar sobre as características desse projeto percebi

que ele poderia ser um ponto de partida fundamental para refletir de forma mais

consistente minhas indagações sobre a pedagogia teatral, entender metodologias e

perceber, através de uma prática, as possíveis funções políticas da experiência teatral.

Nesta escrita, portanto, delimito a experiência do processo criativo em uma

comunidade.

Em uma conversa por telefone com Alessandra Vannucci, (eu ainda não a

conhecia pessoalmente), ela me perguntou como eu soube do projeto e como sabia

que tinha acontecido em tantos lugares. Eu respondi e comentei que queria relacionar

todos os lugares. Ela me revelou que tinha os materiais, mas que era melhor pensar em

um laboratório apenas e foi me contando como foram todos, para uma possível

escolha.

Todos eles tinham características muito diferentes e resultados também

bastante distintos, o que eu pensei ser muito bom, pois me dava o ensejo de

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relacionar, discutir as diferenças das mulheres e dessas expressões femininas. Até que

ela começou a contar o “Laboratório Madalena” na Estrutural1 de Brasília com

mulheres catadoras de lixo reciclável, que foi a experiência onde tinha sido possível

reunir mais material. Isso foi importante. As relações que eu pensava em fazer com as

diferentes culturas, as expressões artísticas femininas nos continentes, se encontravam

todas, a meu ver, lá no Laboratório feito na Estrutural.

Tive minha primeira noção e base do projeto ao conversar com Alessandra e

também no release escrito pela diretora em 2010.

bRazILHA é um laboratório estético dedicado ao tema do corpo feminino e do trabalho, desenvolvido com mulheres catadoras de lixo da cidade de Brasília. No laboratório, queremos recolher e devolver ferramentas artísticas às mulheres trabalhadoras, “atrizes” em seu cotidiano contemporâneo, entre a necessidade de repetir todo dia o mesmo papel e o desejo de ser outra. Mulheres que cumprem gestos antigos e vivenciam em seus corpos a memória ancestral de gerações de trabalhadoras engajadas na luta para a sobrevivência no campo, no rio, no cerrado e no sertão. Seu corpo é território marcado pelo trabalho e pela opressão. Seu desejo, sua luta, seus cantos são transformadores. Focamos especialmente uma comunidade engajada em um gesto de trabalho tradicionalmente feminino: o de catar. O gesto de recolher e reutilizar dejetos da natureza assim como urbanos ou industriais, faz parte do cotidiano das mulheres desde os tempos mais antigos. Catar, o que hoje chamamos reciclar, é uma pratica de auto-sustentabilidade característica de uma economia ecológica e comunitária, tradicionalmente feminina. Este modelo de sociedade se diferencia do sistema patriarcal, fundado na propriedade particular, na divisão do trabalho por gêneros e na exclusão dos dejetos (objetos ou indivíduos). Ela se diferencia pelo fato de fundar o consumo no direito natural (por necessidade e não por possessão) e a convivência na comunidade dos bens e na cooperativação do trabalho. Esta possível sociedade resgataria uma mentalidade pré-histórica matrilinear, muito bem sucedida na história da civilização humana antes do patriarcado. Por isso, o projeto acontece com catadoras de lixo reciclável que participam da Central de Cooperativas de Brasília. Escrevemos o nome da cidade bRazILHA por entendê-la cidade sem raízes, constituída por pessoas em trânsito, fundada na mitologia da conquista do futuro, representativa do sonho do Brasil e móvel como um navio sem amarras, lançado no horizonte. bRazILHA. (VANNUCCI, 2010)

1 A Vila Estrutural de Brasília pertence à região administrativa do Guará e é uma área de invasão,

lá está um grande lixão de objetos recicláveis formado logo após a construção da Capital Federal. Pouco

tempo depois, os barracos construídos pelos catadores de lixo começaram a formar o que hoje é a Vila

Estrutural.

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Mulheres. Trabalhadoras de uma atividade, que além de ser tipicamente

feminina como citado acima, é uma ação que tem um lugar político dentro da

sociedade brasileira. O lixo da grande capital que se refaz todos os dias vai para as

mãos dessas catadoras, as casas onde elas vivem são construídas em função desse

trabalho, nas margens da nova capital brasileira, onde o transporte é escasso e viver

perto do trabalho é a única opção.

As suas casas são construídas aproveitando do que se tem, sendo o terreno do

governo. Com o lixo reciclável, restos do consumo dos moradores de Brasília que chega

às mãos delas, muitas vezes montam as suas casas. As mulheres catadoras decoram

seus barracos transformando o que é encontrado de resto e gratuito.

Para a construção da cidade de Brasília sabemos que chegaram caminhões

cheios de trabalhadores vindos de todas as partes do Brasil com a esperança de um

futuro melhor. Futuro desenhado como quase perfeito pelo Presidente modernista

Juscelino Kubitschek (1956-1961). O sonho era integrar e tornar o país independente, e

para os trabalhadores a construção da cidade se mostrava um momento importante

onde eles seriam os responsáveis pela existência da Capital de seu país. Em 21 de abril

de 1960, JK inaugura o grande sonho recitando o famoso discurso de esperança e

vitória:

Cabe-me a honra de içar neste momento a Bandeira Nacional. Faço-o com emoção que dificilmente poderia exprimir. Esta e todas quantas agora se hasteiam, não importa em que sitio de nosso imenso território, ostentam uma estrela a mais. Porque o país cresceu, se animou do espírito criador, e este espírito criador produziu mais uma entidade na Federação. Ai está a estrela do Estado da Guanabara que se vem juntar aos vinte Estados que giram harmoniosamente em torno de Brasília, Capital Federal da pátria brasileira, centro das futuras decisões políticas, cidade da esperança, torre de comando da batalha pelo aproveitamento do deserto interior. A bandeira que vai tremular nos céus do Brasil simbolizará um país que se tornou maior. Sinto agora a mesma vibração, o mesmo entusiasmo, o mesmo tremor que sentem todos aqueles que estão praticando o mesmo gesto nos quatro cantos da Pátria. Meu pensamento volta-se, neste instante, para as novas gerações que hão de recolher o fruto de nossos trabalhos e encontrar um Brasil diferente daquele que encontramos, um Brasil integrado no seu verdadeiro destino. Diante da Bandeira Nacional, com suas vinte e

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duas estrelas, saúdo os pioneiros, os que lutaram para que chegássemos ao que somos, e saúdo os filhos dos nossos filhos para os quais, sem medir esforços e sacrifícios, erguemos as bases da nossa grandeza futura. (KUBITSCHEK. Trecho do discurso de inauguração de Brasília, em 21/04/1960.)

Olhar para esta chamada cidade satélite à beira da capital nos faz perguntar

qual é a função de Brasília. Para quem é Brasília? O que ela integra? Essa estrutura que

abrigou o projeto artístico de Alessandra Vannucci é uma denúncia de vários fatores

sociais que são falhas, brechas e contradições dos desejos políticos afamados pela

mídia e principalmente do plano de integração e de colheita de frutos. Quais são os

frutos colhidos em Brasília hoje? Quem colhe esses frutos? O que significa ser

trabalhador no Brasil?

A construção da capital já era planejada desde a época do Império e foram

pensados vários nomes como Nova Lisboa e Petrópolis, nomes nos quais podemos ver

claramente uma homenagem ao nosso país colonizador ou diretamente a Dom Pedro

II. Conceitos como integração, independência eram ditos pelos políticos idealizadores,

assim como desenvolvimento na época de JK e modernismo eram também conceitos

muito presentes na propaganda da nova capital. A partir de Brasília se pensava em

reconstruir a sociedade brasileira, em mudar e transformar essa sociedade, uma utopia

que precisava virar realidade. Na dissertação de mestrado em sociologia de Adilson

José Paulo Barbosa, jurista que participou do projeto de Alessandra Vannucci na

Estrutural, ele cita um trecho de documento histórico de Brasília:

Os blocos de apartamentos de uma super quadra são todos

iguais: a mesma fachada, a mesma altura, as mesmas facilidades, todos construídos sobre pilotis, todos dotados de garagem e construídos com o mesmo material, o que evita odiosa diferenciação de classes sociais, isto é, todas as famílias vivem em comum, o alto funcionário público, o médio e o pequeno. Quantos aos apartamentos há uns menores e outros maiores em número de cômodos, que são distribuídos, respectivamente, para famílias conforme o número de dependentes. E por causa de sua distribuição e inexistência de discriminação de classes sociais, os moradores de uma super quadra são forçados a viver como que no âmbito de uma grande família, em perfeita coexistência social, o que redunda em benefício das crianças que vivem, crescem, brincam e estudam num mesmo ambiente de franca camaradagem, amizade e saudável formação. […] e assim é educada, no Planalto, a infância que

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construirá o Brasil de amanhã, já que Brasília é o glorioso berço de uma nova civilização. (BARBOSA, 1963: 65-81)

Construir mais um Estado que abrigaria a Capital Federal e nela investir todos os

ímpetos de desenvolvimento e utopia da sociedade é não pensar diretamente em

transformar a sociedade no que ela já tem que são os outros estados brasileiros. Ali em

um novo solo, teria um simbolismo de mudança? Uma ilha transformada?

Voltamos ao nome do projeto bRazILHA. Uma ilha utópica construída por

braços brasileiros vindos de todas as partes. A possibilidade de Brasília ser um futuro

de esperança para esses trabalhadores significa que em cada parte do Brasil a odiosa

diferença de classes existia e bastante. Andando por Brasília podemos perceber que

são raros os nascidos lá. A cidade é habitada por pessoas de todas as partes que vieram

em busca de um sonho. A estrutura de moradia, pensada em sua construção, sabemos

que não existe, nem mesmo os políticos, trabalhadores do Palácio da Alvorada vivem

no âmbito de uma grande família.

A cidade foi construída em quatro anos (1956-1960), e como Brasília outros

projetos de integração foram realizados. Na década de setenta a estrada

Transamazônica foi construída pelo presidente militar Emílio Garrastazu Médici (1969-

1974) no intuito também de integrar o Brasil à Amazônia. Essa estrada nasce na Paraíba

até chegar ao estado do Pará onde entra pelo Acre e chega à fronteira com o Peru, sem

mostrar uma divisa final.

O jargão da época era dar uma terra sem homens para homens sem terras. O

marco da inauguração da estrada não foi pela pedra fundamental e sim pela derrubada

de uma grande castanheira, até hoje conhecida vulgarmente como pau do presidente.

Observa-se uma política de construções imediatas e de invasão, uma transamazônica

realizada por colonizadores do sul e nordeste do país com a mesma esperança de um

futuro melhor. Evasão sobre evasão, promessas e uma destruição nas relações

humanas que se estabelecem no abismo das diferenças de recursos sociais. O

colonizador europeu se torna colonizador brasileiro. Dentro do grande território corre-

se de um lado para o outro, invadindo, conquistando e progredindo.

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Antes de Brasília, a Capital Federal era a cidade do Rio de Janeiro, hoje não mais

Capital Federal, porém ainda Cidade Maravilhosa, eleita pela UNESCO em julho de

2012 “Patrimônio Mundial da Humanidade”. Em foco internacional receberá a

Olimpíada de 2016, a Copa do Mundo de 2014 e constrói apressadamente um Porto

Maravilha. A favelização da Cidade Maravilhosa é de grande impacto ambiental e

social, recebendo imigrantes do todo o Brasil, principalmente nordestinos que

acreditam nela haver esperança de um mundo melhor. Os remanescentes negros

também são vítimas das condições precárias da moradia nas favelas do Rio,

completando ou reabrindo o ciclo odioso das diferenças sociais.

Qual é a relação do teatro e da arte com tudo isso? Ao pensar no mundo, África,

Europa, Ásia e Brasil, eu desejava discutir as diferentes opressões denunciadas pelos

laboratórios artísticos das mulheres. No entanto, as catadoras de lixo já são geradoras

de uma denúncia social que dilata o espaço de Brasília e nos faz levantar os olhos às

relações sociais estabelecidas no mundo, o desejo do sistema capitalista, o que emerge

e o que resta. Na verdade as opressões não foram só denunciadas a partir de um

processo teatral. O grupo de artistas que planejou estar nesse local já começou a

evidenciar o contexto problemático simplesmente ao pensar em estar lá. Ao chegar ao

lugar, um laboratório que tem como material principal a condição humana dos seus

participantes, já são detectadas as relações de poder estabelecidas e se começa a ver

necessidade de saber como estar neste local. Como o teatro se coloca nesse contexto?

Como trabalhar como essas mulheres? O que o teatro nos evidencia e em que lugar

político ele coloca os artistas?

Ao ler o release do projeto Laboratório Madalena na Estrutural percebe-se o

compromisso histórico e estético da arte nesse local. Distancia-se, assim, a ação do

artista de um propósito imediato, de uma construção concreta de alguma estrutura

social, arquitetônica e principalmente de uma mensagem ou catequização do que quer

fosse. O artista entra, mas não é colonizador. O gesto de catar das mulheres, recolher e

reutilizar os dejetos e os restos recicláveis de uma parte da sociedade é o gestus

denunciador de seu papel naquele lugar e ao mesmo tempo deflagrador do próprio

local e sua realidade. Em seu estudo sobre a bufonaria – figura grotesca, denunciadora

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que nasceu na Idade Média e circulava pelo palácio do Rei – a professora e diretora

Beth Lopes fala sobre o teatro de Brecht e sua possibilidade política dialética2.

O teatro não-aristotélico de Brecht, além de colocar o homem comum no centro da dramaturgia, não deve propiciar a catarse nem a empatia diante do herói trágico. Ao contrário, o espectador não se identifica com as personagens, mas as reconhece em suas contradições. Como na técnica do cinema, a cena de Brecht, corta, recorta, monta, cola, edita, em processo descontínuo. E o ator, por sua vez, conta, narra e expõe diretamente ao público, combinando acontecimentos em tempos diferentes. O lugar das emoções é reservado ao espectador que, sem os recursos da ilusão cênica, é levado a refletir ativamente sobre o que assiste. A realidade é analisada pelo confronto de ideias opostas, na direção de um teatro dialético.

A redescoberta de Brecht dos valores do velho teatro popular se traduz na produção de uma atuação e dramaturgia “vaudevillenesca” fragmentada e viva como os “números” circenses. O trabalho do ator consiste em contar uma história (fábula) por meio de atitudes gestuais. O gestus, guardada a sua dimensão assaz complexa, indica uma conduta ou atitude social. Ligada ao conteúdo histórico e ideológico marxista, a escritura corporal (feita também de palavras) se constrói a partir de diferentes níveis miméticos, desde um detalhe de movimento de um personagem a um comportamento característico de um grupo. Mais do que isto, o gestus deve revelar as ideias subentendidas nas palavras e acontecimentos. Ações que contradizem os textos produzem fissuras na representação, provocando o efeito de estranhamento e distanciamento essenciais para o teatro épico. (LOPES, 2005: 16)

Esse trecho do estudo de Lopes (2005) fala claramente de um processo de ator

e de possibilidades para construção de um espetáculo, porém ao destacar a entrada

dos artistas nessa comunidade e ao saber que esse projeto pretende um laboratório

artístico seguido de espetáculo, podemos nos perguntar: quem são os atores desse

trabalho? Ela diz que além de colocar o homem comum no centro da ação a

dramaturgia não deve propiciar a catarse, podemos dizer que os atores nesse

momento são as catadoras e elas são ao mesmo tempo o homem comum e

personagem colocado na dramaturgia.

2 LOPES, Beth. A blasfêmia, o prazer, o incorreto, IN, Revista Sala Preta, nº 5, São Paulo: USP,

2005.

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O trabalho do Laboratório Madalena tem grande inspiração na teoria da

Estética do Oprimido, um método aberto de Augusto Boal que permitiu a Alessandra

Vannucci introduzir, além das indicações e atividades já elaboradas pelo teatro do

Oprimido, muitas técnicas de dança, criação coreográfica, construção de máscaras e

escrita seguindo seu próprio currículo artístico de modo lúdico e empírico. O

Laboratório Madalena, portanto, se mostra um trabalho de caráter experimental.

No Capítulo 1, a metodologia utilizada para a construção da dramaturgia do

espetáculo dessas mulheres é revisitada para uma reflexão em torno do que revelamos

através do teatro e principalmente como o sonho e as ferramentas artísticas do ser

humano se afloram para o desenvolvimento da potência própria.

No Capítulo 2 escrevo sobre a dramaturgia propriamente dita do espetáculo das

catadoras: os textos selecionados, quais falas do cotidiano estão em cena e quais foram

os resultados das técnicas de Teatro Fórum e de Teatro Legislativo nessa montagem.

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Capítulo I – PEDAGOGIA TEATRAL, PROCESSO CRIATIVO E CONSTRUÇÃO DA

DRAMATURGIA

La Loba Existe uma velha que vive num lugar oculto de que todos

sabem, mas que poucos já viram. Como nos contos de fadas da E uropa oriental, ela parece esperar que cheguem até ali pessoas que se perderam, que estão vagueando ou à procura de algo.

Ela é circunspecta, quase sempre cabeluda e invariavelmente gorda, e demonstra especialmente querer evitar a maioria das pessoas. Ela sabe crocitar e cacarejar, apresentando geralmente mais sons animais do que humanos.

Dizem que ela vive entre os declives de granito decomposto no território dos índios tarahumara. Dizem que está enterrada na periferia de Phoenix perto de um poço. Dizem que foi vista viajando para o sul, para o Monte Alban num carro incendiado com a janela traseira arrancada. Dizem que fica parada na estrada perto de El Paso, que pega carona aleatoriamente com caminhoneiros até Morelia, México, ou que foi vista indo para a feira acima de Oaxaca, com galhos de lenha de estranhos formatos nas costas. Ela é conhecida por muitos nomes: La Huesera, a Mulher dos Ossos; La Trapera, a Trapeira; e La Loba, a Mulher-lobo.

O único trabalho de La Loba é o de recolher ossos. Sabe-se que ela recolhe e conserva especialmente o que corre o risco de se perder para o mundo. Sua caverna é cheia dos ossos de todos os tipos de criaturas do deserto: o veado, a cascavel, o corvo. Dizem, porém, que sua especialidade reside nos lobos.

Ela se arrasta sorrateira e esquadrinha as montanhas e os arroyos, leitos secos de rios, à procura de ossos de lobos e, quando consegue reunir um esqueleto inteiro, quando o último osso está no lugar e a bela escultura branca da criatura está disposta à sua frente, ela senta junto ao fogo e pensa na canção que irá cantar.

Quando se decide, ela se levanta e aproxima-se da criatura, ergue seus braços sobre o esqueleto e começa a cantar. É aí que os ossos das costelas e das pernas do lobo começam a se forrar de carne, e que a criatura começa a se cobrir de pelos. La Loba canta um pouco mais, e uma proporção maior da criatura ganha vida. Seu rabo forma uma curva para cima, forte e desgrenhado.

La Loba canta mais, e a criatura-lobo começa a respirar. E La Loba ainda canta, com tanta intensidade que o chão do

deserto estremece, e enquanto canta, o lobo abre os olhos, dá um salto e sai correndo pelo desfiladeiro.

Em algum ponto da corrida, quer pela velocidade, por atravessar um rio respingando água, quer pela incidência de um raio de sol ou de luar sobre seu flanco, o lobo de repente é transformado numa mulher que ri e corre livre na direção do horizonte.

Por isso, diz-se que, se você estiver perambulando pelo deserto, por volta do pôr-do-sol, e quem sabe esteja um pouco perdido, cansado, sem dúvida você tem sorte, porque La Loba pode

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simpatizar com você e lhe ensinar algo — algo da alma. (ESTÉS, 1994: 43-44)

La Loba é a primeira história do livro Mulheres que Correm com os Lobos de

Clarice Pinkola Estés (1994). Quando decidi estudar sobre um projeto que trabalha

especificamente com mulheres, o primeiro livro que me veio à mente foi este de

Pinkola. Mais do que artigos de antropologia, o conto de fadas para mim era o que se

relacionava mais diretamente com esta questão. Como provar cientificamente que

catar é um gesto tipicamente feminino, se não pela tradição oral? Será que a literatura

dos contos de fada não é também um argumento de autoridade para tal questão? A

mitologia, as lendas nos acompanham desde sempre e com códigos mais simbólicos

do que racionais que nos levam a refletir sobre problemas concretos e características

sociais. Como conta Clarice Pinkola Estés (1994: 43) esta velha existe: “O único trabalho

de La Loba é o de recolher ossos. Sabe-se que ela recolhe e conserva especialmente o

que corre o risco de se perder para o mundo. Sua caverna é cheia dos ossos de todos

os tipos de criaturas do deserto: o veado, a cascavel, o corvo. Dizem, porém, que sua

especialidade reside nos lobos”.

A característica que une todos os Laboratórios Madalena que foram realizados

em diversas partes do mundo é a realidade feminina, a ideia do corpo feminino como

território de trabalho e poder, não sendo somente um corpo reprodutor e sim

produtor. No projeto dentro da Estrutural de Brasília o trabalho foi feito com as

catadoras de lixo como já dito e o gesto de trabalho é o de catar.

O lixo jogado na Estrutural é um lixo reciclável, não se sabe por que, mas é o

tipo de material que é despejado naquele lugar, onde as mulheres participantes da

oficina trabalham. E é nesse lugar onde elas construíram seus barracos e onde vivem

todo o tempo. Como a mulher Lobo elas catam objetos específicos, separam o que

podemos chamar o joio do trigo, não diferenciando entre bom ou mal como

conhecemos o provérbio, mas diferenciando, qual coisa é cada coisa. A loba recolhe

ossos. As mulheres aqui diferenciam cada objeto para uma possível reciclagem, para

que voltem ao mundo. Ao mundo do uso, ou até mesmo dando outra função para os

objetos, transferindo afetos e necessidades.

Ao redor do lixo, elas moram como podem e do lixo encontram os meios de

vida. Entrevistando a diretora Alessandra Vannucci descobri como foi feito um dos

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barracos da grande favela onde moram os catadores da Estrutural, homens e mulheres.

Relata a diretora:

O barraco da Marilúcia? (...) tudo feito com lixo, agora na primeira chuva aquilo cai tudo abaixo, ela fez com papelão e mora com as quatro filhas. Só ela, fez o barraco com o papelão, agora tem tudo, tem liquidificador, tem pia, tudo ela catou. Ela diz que o shopping dela é o lixão, flores na mesa, eu disse: isso aqui você comprou? Não! Achei lá! ela falou. Aí eu vi dois reais pendurados na parede, eu fotografei. Era uma lembrança e ela não gastou, lavou e guardou. (VANNUCCI)

Quando a Alessandra foi narrando a casa desta mulher, ela foi nomeando os

objetos: liquidificador, pia. A dona do barraco conhece um shopping, mas afirma que o

dela é aquele ali, o lixão. Ela sabe quais são os valores das mercadorias que estão em

um shopping e os motivos que todos nós temos de comprar artefatos úteis. Ela, no

entanto, cata, recupera, reutiliza. Por que foi jogado fora? Não se sabe, pode ser por

qualquer motivo, vontade de trocar por outra cor, algum rachado que possa ter, algum

desafeto com quem lhe presenteou, não se sabe o porquê foi parar no lixão. O que

sabemos é que estava perdido, em uma tentativa de se perder do mundo. Infelizmente

ou felizmente para certos objetos é difícil se perder do mundo, se decompor na terra,

ser engolido pelo olho do furacão. Simplesmente alguns materiais não se decompõem

assim, pois a terra não digere. E ficam em algum lugar como em um lixão, ou entupindo

um bueiro, ou sendo queimado e agredindo o ar, invisível. Para alguns eles se perdem

sim, mas a gente aqui agora vê que é só a tentativa de se perder.

No final da fala de Vannucci sobre o barraco de Marilúcia, é narrado o

aparecimento de flores e de uma nota de dois reais pendurada na parede. O dinheiro

achado no lixão dentro dos valores da sociedade confirma a hipótese que estava lá por

descuido, ninguém joga dinheiro fora e quando se acha no chão ou no lixo geralmente

se gasta. A Marilúcia lavou primeiramente e pendurou na sua casa como um adorno,

uma lembrança.

Na orelha do livro “A Estética do Oprimido” de Augusto Boal (2009), Maria Rita

Kehl fala sobre a proposta de teoria de pensamento sensível para uso prático:

Pensar não é apenas simbolizar o que está dado diante de nós: é também imaginar o mundo para além dos limites do presente e do

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possível. Como as crianças, tão caras à observação de nosso autor, também o artista – que pode ser qualquer um - descobre-se capaz de remontar qualquer imagem dada, desafiar sua aparência concreta e imperativa e recriá-la sob outros ângulos de modo a revelar o que se escondia ou se recalcava, sob a aparência da normalidade.

A nota de dois reais pendurada na parede de Marilúcia não está neste discurso

como um exemplo de obra de arte, mas sim como uma imagem remontada, que

constitui em si um desafio à sua aparência concreta e imperativa. Mostra-se também

um desafio não só à aparência, desse desconcerto de se colocar pendurado em uma

parede uma nota ainda corrente no mercado, mas ao valor econômico, moral, ético e

político dado àquela nota. Em relação à infra-estrutura de um barraco de papelão

percebe-se uma precariedade de recursos financeiros para a construção de um lar

seguro às intempéries da natureza e para o conforto do cidadão, porém ao ver o

dinheiro no lixo a catadora desviou ou desafiou suas necessidades econômicas, não

gastou, lavou e decorou sua casa.

Uma questão bastante presente nos textos e pensamentos de Augusto Boal é

que artista pode ser qualquer um. Nessa monografia o que está sendo colocado em

evidência de forma prioritária é a estética encontrada em cidadãos que não tem como

ofício a arte e, principalmente, como um processo criativo desencadeado por artistas

(propositores que tem como profissão a arte) pode detonar situações de opressão e

denunciar as relações de poder massificantes da sociedade.

Os aspectos estéticos da realidade dessas mulheres influenciaram de forma

contundente a proposta de uma metodologia e principalmente na pesquisa de uma

linguagem para o produto artístico a ser construído pelas catadoras.

Conceitos dos movimentos de vanguarda, como ready made, proposto por

Marcel Duchamp e colagem, vieram à tona no processo de construção do laboratório.

Em meio à realidade de uma guerra mundial na Europa, a contemplação estética foi

problematizada, iniciando um movimento de pesquisa onde os objetos do cotidiano,

ready made - já pronto – são ressignificados, ganhando um estatuto de objeto

artístico, o espectador reflete sobre o que vê, não contempla o belo.

Restos utilizados pela sociedade, além de objetos da própria biografia, também

foram transfigurados no Manto de Apresentação de Bispo do Rosário, por exemplo.

Vendo a imagem do manto, pode-se perceber um trabalho de constante elaboração e

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19

decisão de Rosário que compôs cores, tecidos, nomes, definiu posições e

principalmente contextualizou o seu manto, que tinha a função de vesti-lo no dia de

seu juízo final, no dia de sua morte.

A pesquisa do Laboratório Madalena está voltada para o tema do corpo

feminino como território de poder e trabalho, delimitando o gesto de catar como

deflagrador de uma reflexão. A partir de inquietações sobre gênero e opressão, o corpo

se torna a fonte mais importante da elaboração artística. Aqui, além dos objetos do

cotidiano, os próprios hábitos e corpos dessas mulheres se colocam como

protagonistas no processo criativo. Nota-se a importância de uma análise cuidadosa da

metodologia que foi base para a construção de uma dramaturgia e também como a

poética já existente em tal realidade foi sendo percebida e revelada no Laboratório.

Em um artigo sobre a Pedagogia teatral, Gilberto Icle (2007)3 reflete sobre como

e em que momento o processo criativo começa a se instalar em diversas realidades

fora do mercado do espetáculo. O surgimento do encenador no século XX e

consequentemente uma transformação no processo de formação do ator e de

construção de um personagem é início do pensamento de uma possível pedagogia

teatral. Deste momento até os processos contemporâneos de escrita cênica, muitas

mudanças ocorreram neste campo de pensamento e procedimentos metodológicos

vem sendo experimentados, um entendimento de pedagogia começa a interferir

também no ofício do diretor teatral e conceitos como autonomia, potência e processo

transitam na formação do artista e na formação do cidadão.

Vemos, assim, a passagem da Pedagogia do Ator - como intenção e prática melhorar a eficiência da atuação no seio dos espaços criativos e inventivos do teatro do século XX – para a pedagogia teatral como urgência de humanização dos sujeitos na ida contemporânea, por intermédio das práticas teatrais. Cabe por isso indagar: como foi possível a pedagogia do ator, tal qual a idealizada por Stanislavski, Copeau, Decroux e outros “reformadores do teatro”, se tornar uma pedagogia teatral, amplamente difundida e generalizada em espaços diferentes e com propósitos distintos e para além do teatro? (ICLE: 2007)

3 ICLE, Gilberto. Da Pedagogia do Ator à Pedagogia Teatral: verdade, urgência e movimento.

http://www.seer.unirio.br/index.php/opercevejoonline/article/viewFile/525/461, consultado em 22 set.12.

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20

Não será possível e nem é um propósito dessa pesquisa responder a essa

pergunta, porém analisar a experiência na Estrutural, a fim de entender possíveis

caminhos concretos de metodologia. Para esta reflexão, é preciso voltar muitas vezes à

pergunta de Icle com o intuito de perceber as transformações da pedagogia no

processo criativo durante os anos.

Como já dito, em lugares com distintos objetivos, a pedagogia teatral é aplicada.

Uma questão importante é – se o artista não entra no espaço comunitário como

colonizador e como consequência de seu trabalho detona questões sociais, seja de

opressão ou não – como servir a todos os propósitos do sistema político com a

pedagogia teatral?

No processo de laboratório, as mulheres catadoras de lixo começaram a sua

participação com a esperança de uma oportunidade na mídia, porém a própria

atividade teatral foi se revelando deflagradora e poética, e a vontade de algo imediato

e financeiro foi se transformando em reflexão sobre o próprio lugar de cada ser

humano ali presente. Um espetáculo no final do processo foi apresentado no principal

teatro da capital. Neste momento, o teatro trazia sua existência espetacular e com

importância e sutileza a cena teatral coexiste no cotidiano e no sistema.

Augusto Boal participou em 1973 do projeto Alfin (Operação Alfabetização

Integral) que tinha como objetivo trazer o conhecimento da língua castelhana a

comunidades do Peru que se comunicavam em diversas línguas. Em observação ao

trabalho de Estela Liñares, orientadora do setor de fotografia de Alfin, ele conta que a

alfabetização através da fotografia não se deu através de fotos trazidas para os

participantes contemplarem. No processo eram feitas perguntas em castelhano e eles

respondiam em foto. As máquinas foram disponibilizadas para eles, assim como

instruções técnicas de manuseio do equipamento.

A partir desta experiência não podemos afirmar que os participantes deste

projeto detêm a linguagem da fotografia e são artistas. O que se evidencia aqui é a

possibilidade de conhecimento e de manuseio de meios de produção seja para que fim

for e de que origem venha: seja algum meio relacionado à tecnologia ou à arte. Os

meios devem ser disponibilizados como canais de descobertas do potencial do ser

humano e ao estar em contato com as linguagens, o cidadão se desenvolverá ou não

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como artista, partindo do ponto de vista de que artista é aquele que tem como ofício a

arte.

É também em relação afetiva com as participantes do projeto que se constitui o

“Laboratório Madalena” e a partir da realidade do espaço, dos materiais estéticos ou

não que surgem dentro daquele contexto, a metodologia baseada nas teorias do Teatro

do Oprimido de Augusto Boal vai se mostrando. No release do projeto, Vannucci diz

pretender “devolver as ferramentas artísticas às mulheres trabalhadoras, atrizes do

cotidiano”. Percebe-se que o laboratório estabelece um lugar entre o que se propõe

para elas e o que se necessita delas para que a proposta exista. Quando ela fala em

devolver, pressupõe-se que elas já tinham ou têm ferramenta artística. Segundo

Vannucci “sua integração pelo teatro se dá pelos caminhos da criatividade, da

inteligência emocional e da auto-estima e não pelo seu pertencimento à sociedade

como última rodela do mecanismo do consumo”.

O que se vê no laboratório é uma busca estética que parte do corpo daquelas

mulheres participantes que estão em um lugar de busca pela sobrevivência, porém

encontrando os respiros do cotidiano desde as flores, a nota pendurada, até o que se

descobriu para a montagem da dramaturgia do espetáculo apresentado na Caixa

Cultural de Brasília pelas catadoras.

As Oficinas

No dia 1 de fevereiro de 2012 começou a primeira oficina com o grupo de

catadoras de lixo reciclável na sede do Ponto de Cultura ESTEC instalado na Casa d`Italia

na cidade de Brasília. As oficinas foram executadas durante duas semanas antes do

começo da construção de uma dramaturgia. Nas oficinas, a diretora Alessandra

trabalhou com outros artistas para complementar a pesquisa artística das catadoras:

Luciano Porto (músico e palhaço), Delei (artista plástico) e Maria Carmen de Souza

(cenógrafa). Por fim, Carolina Machado (coringa do Teatro do Oprimido) veio dar sua

atenção e apoio para a construção do roteiro. Nas últimas duas semanas, se realizou a

construção do cenário e dos figurinos com participação das mulheres, o cenário foi

feito com lixo reciclável e as roupas costuradas pelas próprias catadoras.

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As oficinas foram elaboradas em cinco etapas que se estruturavam da seguinte

forma:

1. RITMO/DANÇA/SOM: ancestrais

2. DANÇA/SOM/NARRATIVA: habitat

3. DANÇA/SOM/DRAMA/TECIDO DE RETALHOS: pelotão e sereias,

declarações de identidade

4. FIGURAS/NARRATIVAS: inferno/paraíso e pinturas com lixo

5. FIGURAS/NARRATIVA: cidade invisível

Na primeira etapa da oficina4, foram praticados ritmos de origem tribal, foram

utilizados sons vocais das mulheres com as vogais de seus nomes, o círculo, o ritmo

uno estavam presentes nessa etapa do desenvolvimento do projeto.

Acredita-se que é pertinente à formação daquele novo coletivo, exercícios que

revelem seus nomes, a forma de círculo que permitia o olhar entre todas e jogos como

Batizado Mineiro retirado do sistema de “Jogos para atores e não atores” de Boal onde

cada mulher entrava no centro da roda, dizia seu nome e uma característica sua com a

primeira letra do nome. Aparentemente simples é um jogo que propõe uma primeira

exposição pessoal diante do coletivo: qual característica escolher nessa primeira

apresentação a um grupo? Nesta experiência, as mulheres atribuíam a si características

suaves e muito femininas, até um pouco contraditório com a dureza de suas vidas.

Outro acontecimento gerado nessa etapa é uma pesquisa sobre os movimentos

cotidianos de cada catadora. Elas repetiam cinco gestos utilizados em seus cotidianos,

construíam respirações e sons para cada gesto até chegarem a uma dança do cotidiano.

Um trabalho de busca, através da memória da respiração, de uma certa realidade física

das mulheres ancestrais de cada uma das participantes, memória de corpos femininos

progenitores, embutidos no corpo vivo e presente, foi realizado a partir de uma ideia

experimental da diretora. Percebe-se, portanto, a necessidade do encontro consigo

mesma e da externalização dessas descobertas individuais.

4 Essas informações foram colhidas no programa de atividades do projeto escrito em tópicos pela

diretora Alessandra Vannucci.

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Na segunda etapa a partir da sequencia de gestos cotidianos, as participantes

constroem uma partitura coreográfica única, que elas executam em coro, loop e com

variações de intensidade, dimensão gestual e rítmicas. Nesta etapa também se inicia

uma pesquisa com objetos próprios e trazidos pelas catadoras. Que objetos podem

contar a cidade que você vive? A informação é passada de maneira silenciosa, sem

explicação verbal. A disposição coletiva no espaço dos objetos particulares demonstra

a cidade, chamada habitat. A narrativa é recuperada também em uma história contada

por cada participante com o seu objeto, em seguida essa história é contada por outra

participante. O pertencimento de cada corpo narrador a uma narrativa do outro

acontece, revelando identidades e diferenças.

No terceiro momento foram feitas atividades que já começaram a trabalhar

com emoções, através da pesquisa de movimentos deformados, ruídos expressões e

caminhadas tipicamente femininas. Dois trabalhos realizados nessa oficina que serão

destacados nessa pesquisa são a construção da declaração de identidade (p.17) e a

construção de tecidos e retalhos (p.19). O ser humano do lixo foi um trabalho

construído no quarto momento da vivência, partindo da mesma linha de

desenvolvimento anterior, onde se valoriza o recolhimento de objetos pessoais, do

espaço da cidade e principalmente o lixo limpo que essas mulheres trabalham, foram

construídas figuras imaginárias, monstro, mulher, personagem, boneca.

Em um último momento da vivência foi apresentada a narrativa da cidade de

Leônia, lugar fictício que se encontra no livro “As Cidades Invisíveis”, do escritor Ítalo

Calvino (1990). Esse momento é uma inserção de um trabalho exterior ao mundo

delas, porém com forte relação ao que se vive na estrutural de Brasília. Outras obras de

arte foram mostradas para as catadoras como estudo e influência para o que elas

mesmas estavam desenvolvendo, como pinturas do artista Jeronimus Bosch (Jardim

das delícias), por exemplo, foram contempladas ao longo da vivência e inspiraram o

trabalho criativo das catadoras/artistas.

Ao estudar a construção da dramaturgia do espetáculo analisamos a

importância da expressão particular dessas mulheres e como o trabalho se

desenvolveu até se transformar em objeto artístico. Em que momento se reconheceu

como objeto de arte o que se construía na oficina? Tudo era arte? O poeta Ferreira

Gullar (exilado na mesma época que Augusto Boal) compartilha opiniões políticas com

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Boal. Os dois foram companheiros intelectuais na época da ditadura, porém em seus

ensaios e poemas há uma preocupação evidente na discussão do que se pode chamar

de arte, e claro ele não responde essa pergunta.

TRADUZIR-SE5 Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém: fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão. Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira. Uma parte de mim almoça e janta: outra parte se espanta. Uma parte de mim é permanente: outra parte se sabe de repente. Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem. Traduzir uma parte na outra parte - que é uma questão de vida ou morte - será arte?

O espetáculo que é criado como fruto deste laboratório tem como ponto de

partida uma reflexão sobre o corpo da mulher, as relações de poder estabelecidas na

5 GULLAR, Ferreira, Na Vertigem do Dia, 1980 retirado do site:

http://www.revista.agulha.nom.br/gula.html)

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sociedade patriarcal e as ações produtoras desse corpo além da função reprodutora,

portanto o material humano e as histórias de vida dessas mulheres são os geradores

dessa dramaturgia, porém quando esse material se transforma em arte? Onde o outro,

o espectador, vê e escuta não como um desabafo íntimo, mas como poesia

desconcertante?

Um trabalho proposto por Alessandra em oficina foi a escrita de uma

DECLARAÇÃO DE IDENTIDADE anônima, mas dirigida a alguém em especial, feita por

elas. Considera-se que esteja neste documento uma síntese de quem são, o que

pensaram, o que escrevem e principalmente que palavras elegeram para a construção

de sua declaração de mulher em um espaço tão curto de papel. Ao ver as declarações,

percebi que a maioria ao se declarar e falar de si, falava de seus maridos e filhos:

Eu declaro que amo minha família meus filhos e meu marido e meus amigos de paixão.

Eu acho todos nos somos capazes. Eu declaro que amo muito a minha filha e os meus filhos,

marido, e eu gostei muito foi dos professores. Que estão me ensinando as coisas e as outras pessoas que tiram fotos.

Um beijo amo você Eu declaro que estes mundo que nos Vivemos não e Como eu

queria Cheio de drogas Cheio de criança nas Ruas Cheio de Violencia mas Seu poder munda este mundo e eu mudaria Colocando paz e Amor e tiraria todos As Criança da Rua e Colocava na escola

O projeto tem guardado um total de vinte e seis declarações de identidade. A

proposta inicial era começar a declaração com a fórmula “eu me declaro como..., eu

sou...” e nenhuma tem isso. O principal desafio é saber quem são elas tanto para a

construção de uma dramaturgia quanto para elas entenderem o que estão fazendo ali.

Muitas mulheres foram atraídas por uma oportunidade de estar na televisão, sem

nenhum juízo de valor disso, porém a medida foram percebendo a roupagem que a

vivência estava tomando, algumas mulheres não compareceram mais, entretanto

enviaram suas filhas adolescentes.

A última declaração, fala de uma vontade de mudar o mundo, porém existe

uma distância e uma esperança longínqua no real poder da mudança, inclusive quando

se fala de colocar todas as crianças na escola. Quando ela fala em todas, está

evidenciando como algo impossível, primeiro porque ela se coloca sozinha nessa

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almejada função e segundo porque não se pode saber quem são todas as crianças. A

mulher que escreveu tem nove filhos, porém um deles ela nunca viu, foi tirado dela

neném. Destaco aqui:

Vivemos – Como – Cheio – Cheio – Ruas – Cheio – Violencia – Seu – Colocando – Amor – As – Criança – Rua – Colocava.

Percebe-se uma estrutura na escrita desta mulher, com algumas palavras em

caixa alta, não se identifica um código para tal escolha, porém retiro elas da poesia,

ambientando um outro ângulo de contemplação do que ela escreve. Uma hipótese que

se pode afirmar é que uma palavra com letra maiúscula adquire uma importância no

texto, seja de significado ou de aparência.

Nesse momento de declaração de identidade era dito que as mulheres

poderiam pensar em uma poesia sobre elas. Abaixo podemos ver o escrito de

Marilúcia, catadora que foi citada na introdução deste trabalho.

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Queria ser poenta mais poenta não posso ser poenta pensa muita coisa Ass. Marilucia

Além de falar de uma vontade, ela revela uma fraqueza, uma crença em não

poder ser alguma coisa, fala também do que ela imagina ser uma poenta, explicitando

o porquê ela não pode ser. Quando fala do que não pode, evidencia-se uma falta,

porém ao longo do processo criativo de Marilúcia pode-se considerar que o

reconhecimento de uma falta é o começo de um movimento que se inicia dentro de si

e de suas impossibilidades para uma busca e uma exposição geradora da expressão

artística. Percebe-se um primeiro momento de exposição individual de uma

participante que já tinha aberto sua casa à diretora do projeto e como vamos ver no

Capítulo 2 é da sua biografia que vem grande parte da dramaturgia a ser construída.

Após esse exercício, foi proposto um trabalho com tinta e tecidos de retalhos.

Alessandra declara que no início os desenhos eram bastante figurativos, como corações

e casas. Percebeu-se uma necessidade de oferecer uma metodologia que facilitasse a

entrega delas no trabalho, portanto, em conjunto com o artista plástico Delei, foi

proposto que as mulheres dançassem com olhos vendados na frente dos panos, com o

pincel na mão e sem sapato, sobre os panos e as tintas e experimentassem a mistura

das cores relacionando diretamente o movimento de seus corpos.

Qual são seus movimentos? O que surge diante de uma pesquisa onde não

necessariamente precisamos definir o que vamos mostrar? Que tenha uma lógica de

entendimento, como mostrar uma casa, uma árvore e um coração? Essa experiência foi

responsável pela construção do primeiro trabalho que tinha uma grande possibilidade

de estar no espetáculo e a partir deste material e do universo de vida delas a estética

do espetáculo foi se construindo.

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Capítulo II - mArias & maDaLenAS

Após as semanas de vivência foi construído o espetáculo mArias & maDaLenAS

em que as catadoras atuam como atrizes. O público entra no teatro da Caixa Econômica

Federal de Brasília e é recebido pelas catadoras atrizes. No centro do espaço tem uma

ILHA onde uma mulher está ocupando com vendas nos olhos. As vendas caem sobre o

seu rosto e tapetes estão espalhados pelos quatro cantos do palco. O público é levado

pelas atrizes aos cantos do espaço e cada espectador, seguindo a sua vontade, senta

em um dos tapetes nomeados como Estrutural, Samambaia etc. Cada tapete tem

nomes das cidades satélites de Brasília. No teto há tapetes com pinceladas e colagem

de objetos, tecidos, roupas. O palco é todo preenchido por objetos recolhidos nas

semanas de vivência, cada peça tem um valor pessoal e faz parte do lugar de onde

vêem as catadoras, lugar este que é geral e também particular a cada uma daquelas

mulheres. Os seus figurinos foram cuidadosamente costurados por elas.

Os quatro elementos da natureza estão presentes nesse momento de chegada

do público. Após esse primeiro contato com aquele ambiente poético e com as

anfitriãs, desce de um urdimento a palavra BRAZILHA.

A dramaturgia se utiliza de textos do livro “Cidades Invisíveis” do escritor Ítalo

Calvino e também de notícias fictícias e reais da cidade de Brasília. São seis cenas que

se sucedem em uma estética artesanal. Artesanal, por terem sido costuradas e

elaboradas ao longo do laboratório, pelas atrizes – mulheres catadoras. Muitos

elementos foram retirados diretamente de seus habitat e transfigurados nessa

realidade chamada BRAZILHA.

Todos estão sobre o palco (atrizes e público). Na primeira cena algumas atrizes

se voltam para a plateia vazia e descrevem o que vêem, como debruçadas em uma

janela. Através de uma narrativa aparentemente absurda ambienta-se a realidade de

uma cidade:

- Engraçado aqueles homens trabalhando na fundação daquele prédio, de patins! - É lá! - Onde é lá? - Lá no sétimo bloco da superquadra 305. Aquele gato preto nadando no esgoto? Tão vendo? Como é que pode???? Que nojo.

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- Acabou de passar um meteorito pela Praça dos 3 Poderes! Tem galinha voando!

O espaço é ocupado, como já dito, pelos cantos, no centro e no teto. Palavras

descem do teto na primeira cena:

OLHOS CERRADOS ABERTOS PARA VER CERTOS CERRADOS E CERTOS DESERTOS ERRADOS (O DESERTO CERTO CHORA AREIA).

Atrás do palco há uma elevação que, em alguns momentos, uma atriz sobe e

fala no microfone, lendo uma notícia sobre Brasília. São estatísticas, são dados políticos

que deslocam a sensação e o olhar do público do aspecto artesanal para uma

ambientação informativa. Ao lado, uma instrumentista toca um violoncelo em

momentos marcados como na primeira mudança de cena.

Na cena dois, a cidade de Ítalo Calvino Eudóxia é narrada no microfone por uma

mulher, cada palavra da cidade invisível do escritor cubano/italiano preenche a

realidade da capital Brasília e da cidade Brazilha. Que cidade invisível tem por trás da

capital do Brasil? Quais cidades invisíveis podem existir nas cidades que vivemos ou

visitamos? É possível compartilhar uma memória de uma cidade através das vertigens

que ela causa? E das consequências nas nossas vidas que ela exerce? Seria tão

verdadeiro como em uma discrição cronológica e geográfica? O que se pode dizer é

que os textos literários de Calvino são como narrações próprias das catadoras. Ou pelo

menos parecem. A cidade de Brasília deve existir em algum outro lugar do mundo, ou

pelo menos os nossos corpos e nossos espíritos devem se comportar de maneiras

parecidas em cidades do mundo.

(...) À primeira vista, nada é tão pouco parecido com Eudóxia quanto o desenho do tapete, ordenado em figuras simétricas que repetem os próprios motivos com linhas retas e circulares, entrelaçado por agulhadas de cores resplandecentes, cujo alternar de tramas pode ser acompanhado ao longo de toda a urdidura. (...) mas o tapete prova que existe um ponto no qual a cidade mostra as suas verdadeiras proporções, o esquema geométrico implícito nos mínimos detalhes. (CALVINO, 1990: 91)

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Na sequencia seguinte, diálogos do livro são utilizados novamente com

pertencimento pelas atrizes. Percebe-se que as cenas comentadas até aqui nesse

trabalho, possuem elementos como a música, textos literários intercalados por

notícias e principalmente objetos visuais construídos pelas mulheres com elaboração

cuidadosa de cortes e cores. Só a partir da cena cinco que a dramaturgia começa a se

inclinar para um recorte mais narrativo da vida das catadoras de lixo reciclável da

estrutural de Brasília. A realidade de catar, o ambiente particular de moradia, suas

vidas como mulheres e a urgência da sobrevivência que cai sobre suas cabeças no

cotidiano começa a ter uma roupagem mais crua nesse momento do espetáculo.

Já na cena quatro as atrizes dizem em poucas palavras para os espectadores de

onde vieram. Desce do urdimento seis PARANGOLÉS feitos por elas no processo com a

Alessandra. De acordo com relatos da experiência, nem a cenógrafa Maria Carmen de

Souza e nem Alessandra Vannucci ensinaram para elas como se faz um parangolé. Foi

feita uma visita com as catadoras à exposição de Helio Oiticica na Biblioteca Nacional

de Brasília. Elas se identificaram muito com o trabalho e encontraram a técnica de

maneira quase intuitiva. É interessante de notar que o primeiro momento em que

todas falam de onde vieram para o público, seus figurinos sejam parangolés e é nesse

momento que começa uma passagem, uma transição para a parte da dramaturgia que

vai tratar com diálogos próprios de seus cotidianos uma situação íntima da vida delas.

Em seu livro Corpo a Corpo (2011) o pesquisador Zeca Ligiéro fala sobre a

experiência de Helio Oiticica e seu trabalho com os parangolés que são principalmente

capas, mas podem ser também tendas e estandartes. No livro, Ligiéro apresenta uma

citação importante de Paola Berenstein Jacques em seu estudo Estética da Ginga, a

arquitetura das favelas através da obra de Helio Oiticica, onde o artista explica como

surgiu o termo PARANGOLÉ:

Um dia eu estava indo de ônibus e na praça da bandeira havia um mendigo que fez assim uma espécie de coisa mais linda do mundo: uma espécie de construção. No dia seguinte já havia desaparecido. (…) Era terreno baldio, com um matinho, e tinha essa clareira que o cara estacou e botou as paredes feitas de um fio de barbante de cima a baixo. Bem feitíssimo. E havia pedaço de aniagem pregado num desses barbantes que dizia “aqui é...” e a única coisa que eu entendi, que estava escrito, foi a palavra

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“parangolé”. Aí eu disse: é essa a palavra. (Jacques, 2001, p.29 In: LIGIÈRO, 2011, p.209)

As mulheres catadoras construíram seus “parangolés” com os próprios

elementos que encontravam em seus caminhos, no lixo reciclável com que

trabalhavam. Elas construíram os “Parangolés” com vários tipos de tecido, tem um que

tinha até pluma misturada com tecido de chita, plástico, tachinhas... Em cena, elas os

retiram dos cabides vestem e rodam. Enquanto rodam, quatro mulheres tocam um

instrumento de sopro nos quatro cantos do palco.

A relação espacial sempre volta à mesma estrutura nesse fazer artesanal do

espetáculo, os cantos e a ilha. Essa mesma maneira de construção do figurino se

relaciona bastante com a da construção de suas casas. Como dito no início do trabalho,

podemos lembrar da maneira como a Marilúcia construiu seu barraco, como

selecionou os objetos retirados do lixo.

Novamente o texto de Cidades Invisíveis entra na dramaturgia, agora a cidade

de Leônia (Calvino: 1990, 105) é narrada e com essa cidade o universo particular das

catadoras vai se desenhando ainda mais, para que na cena seis elas escancarem uma

situação íntima.

Cena Cinco - O Lixão

MULHER COM MICROFONE diz: - Esta cidade se refaz todos os dias. A população acorda em lençóis frescos, lava-se com sabonetes que acabaram de sair da embalagem, veste roupas na moda, escuta pelo radio a mais nova melodia. Na calçada, os restos da cidade de ontem aguardam a passagem dos catadores. Tubos retorcidos de pasta de dente, lâmpadas queimadas, jornais, aquecedores, enciclopédias, louças de porcelana. Mais do que pelas coisas que todos os dias são fabricadas vendidas compradas, a riqueza desta cidade se mede pelas coisas que todo dia são jogadas fora. (PERGUNTANDO) - Sua verdadeira paixão é o prazer dos objetos novos? - Ou então o ato de expulsar, afastar, expurgar o lixo recorrente? (AS CATADORAS ENTRAM E COMECAM A LIMPAR, LENTAMENTE) - Certo é que as catadoras são recebidas como anjos e sua tarefa de remover os restos da existência de ontem é envolvida por silencioso respeito, como um ritual. (...)

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A última cena que antecede o conflito familiar de uma das mulheres termina

com um coro de uma cantiga infantil: “Se essa rua fosse minha”.

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Se essa rua se essa rua fosse minha,

Eu mandava, eu mandava ladrilhar,

Com pedrinhas com pedrinhas de brilhante

Para o meu para o meu amor passar.

O principal tema do conflito particular apresentado é o pertencimento. Como se

define de quem pertence a terra? É de quem cuida? É de quem compra? A terra que é

intitulada do governo é de quem?

Uma mãe fica sabendo que sua filha, menor de idade, está grávida, a menina

quer morar com o pai de seu filho. A mãe se opõe e alerta à filha dos perigos de uma

mulher morar sozinha na Estrutural, pede para que a filha continue em sua casa. A filha

quer ter um lar, construir uma família. Ela consegue um lote na estrutural e tem quatro

filhas com o marido. Durante a construção da casa a mulher se vê construindo,

trabalhando e cuidando das filhas sozinha. O marido bebe e não ajuda na construção,

vendendo materiais da casa. Um dia, um oficial de justiça chega com ordem de despejo

e toda a relação com a polícia é apresentada na cena. O marido tinha vendido o lote

sem falar com a mulher. A polícia alega que aquela região é de invasão. Depois de toda

explanação em detalhes da vida da mulher e dos motivos de sua resistência em sair da

casa, a atriz vira para o público e cantando pergunta:

E vocês, espectadores que ouviram a minha historia, me ajudem a entender a moral: a posse é de quem compra? Ou tem mais direito é quem cuida? Eu penso assim: terra é do bom camponês que tira frutos dela, carroça é do bom condutor, criança é das mulheres boas, que os crescem e educam, lar é de quem cuida. Então, como é que eu, que tanto lutei, fiquei sem o meu lar? O que eu posso fazer agora?

Teatro Fórum

O espetáculo mArias & maDaLenAS se utiliza, no final da apresentação, da

técnica de Teatro Fórum desenvolvida por Augusto Boal e o Teatro do Oprimido. Nessa

técnica o espetáculo apresenta um problema do qual os atores querem buscar a

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solução, trabalha-se com um conflito real que acontece na vida de uma das pessoas da

equipe, neste caso de uma das mulheres que estavam no elenco.

No início do desenvolvimento desta técnica os atores apresentavam o problema

e perguntavam sobre possíveis soluções, depois de algumas experiências percebeu-se a

importância de pedir para que o espectador saia do banco da plateia e vá para a cena

exercer a sua opinião. Como diz Boal é um ensaio para a revolução. Pensamento e

corpo se confluem no exercício de opinião da plateia.

Quando é o próprio espectador que entra em cena e realiza a ação que imagina, ele o fará de uma maneira pessoal, única e intransferível, como só ele poderá fazê-lo e nenhum artista em seu lugar. Em cena, o ator é um intérprete que, traduzindo, trai. Impossível não fazê-lo. (BOAL: 1996, 22)

Nesse momento um curinga de Teatro do Oprimido sobe no palco, chama as

atrizes e começa uma mediação com a plateia sobre a situação que as mulheres

acabaram de encenar. O exercício de mediação feito por Carolina Machado é de

bastante importância, por vários motivos dentre os quais, ser o primeiro momento em

que se trava um diálogo direto com a platéia. A Coringa não estava em cena, podendo

assim construir uma ponte entre as atrizes e o público. Ela, além de interrogar sobre o

entendimento da plateia sobre a situação, explica as noções básicas da técnica de

fórum para que o público possa participar. Alguém da plateia, que tiver uma solução

para o problema, irá substituir o protagonista e improvisar uma cena com os atores,

expondo sua sugestão.

O termo Coringa começou a ser utilizado por Boal na época do Teatro de Arena

em que ele elaborou um sistema Coringa de interpretação, quatro técnicas baseavam

esse sistema: a primeira era desvincular ator de personagem, os atores trabalhavam

com um conjunto de ações mecanizadas; os atores faziam todos os personagens,

construindo assim uma interpretação coletiva em que cada ator desenvolvia uma

propriedade narrativa; trabalhava-se com um ecletismo de gênero e estilo, em um

mesmo espetáculo poderia haver momentos em que era utilizado um melodrama

simples e uma chanchada vaudevillesca, por exemplo e uma última técnica era a

maneira de se utilizar da música, preparando ludicamente a escuta da platéia para

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textos que apresentam ideias de forma sintética, por exemplo “como dizer que é um

tempo de guerra?”

Esse sistema foi aplicado primeiramente no espetáculo Arena conta Zumbi

(1965). No espetáculo Arena conta Tiradentes (1967), a figura do Coringa aparece, os

atores no espetáculo são distribuídos em funções e não em papéis. Segundo Boal

(2005: 207) “A consciência de um ator-coringa deve ser a de autor ou adaptador que se

supõe acima e além, no espaço e no tempo, da dos personagens”. Boal trabalhou

muito com a ideia de coro e corifeu nesta época, sendo o Coringa uma espécie de

Corifeu.

Hoje, a figura do Coringa aparece no final do espetáculo, depois de uma

encenação que pode ser de muitos estilos e linguagens possíveis. A técnica de Teatro

Fórum é aplicada em países de todos os continentes, trazendo por essa realidade uma

liberdade na maneira de fazer. Porém é necessário que um problema seja apresentado

de forma clara para que se possa interrogar a platéia e abrir a discussão e as tentativas

de solução que o público presente irá exercitar. A pergunta, ou as perguntas são diretas

e o problema precisa ser bem apresentado em algum momento do espetáculo:

situação – problema – tentativa de solução pelos atores – pergunta para o público –

tentativa prática de alguém da platéia com alguma possível solução - discussão.

Pelo que se percebe essas são etapas básicas para que um fórum possa

acontecer. O fórum não é um espetáculo, ele é um debate. Opta-se, às vezes, por

demonstrar a cena e ir para o debate. Porém, nessa experiência com a Alessandra não

foi assim: desenvolveu-se um trabalho estético, artesanal e depois a demonstração da

situação, também de maneira bastante teatral para que se possa depois fazer o fórum.

Não foram em todos os Laboratórios Madalena que houve fórum.

Uma premissa importante é que alguém da plateia precisa sempre substituir o

protagonista. É ele que é intitulado como o “oprimido” da situação. Entende-se por

oprimido aquele que está em uma situação injusta, repressora mas que tem condições

e quer mudar a realidade opressora, diferente da vítima que não tem como mudar a

situação. Não se consegue fazer um fórum sobre histórias de pessoas que foram

vítimas: uma pessoa sequestrada e abusada sexualmente por exemplo, como fazer um

fórum sobre isso? Que tentativas de solução existe para essa pessoa? Como ela poderia

ter agido? Impossível pensar.

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Em uma entrevista com Alessandra ela conta que a busca era por histórias que

revelassem a potência e a força daquelas mulheres e não histórias de vitimização. Um

jogo foi proposto por ela no laboratório com o intuito de entender a diferença entre

oprimido e vítima. Uma pessoa deita no chão e um grupo tenta levantá-la: o oprimido

resiste e a vítima não resiste. Na experiência feita com as mulheres nenhum grupo

conseguiu levantar o oprimido, aquele que resiste e tem condições de resistir a uma

situação opressora. A pergunta que faço é se queremos em algumas situações que

efetivamente nos tire do lugar, que nos levante. Como lutamos para não sermos

manipulados? Essas mulheres estavam em situação de vítima ou de opressão?

A vida amorosa era um tema bastante contado pelas mulheres, os problemas

estavam sempre mais voltados para seus fracassos com os maridos. Depois desse jogo

é que a situação da casa apareceu, por exemplo, a história da perda do lote é da

Marilúcia que ainda estava em luta. Outras mulheres que tinham esse problema

perderam a casa. As insatisfações foram tendo um tom mais social e político no que diz

respeito à realidade das necessidades básicas que elas sofrem em seus cotidianos, até

chegar a uma externalização da consciência que elas têm sobre os seus lugares no país.

Uma pergunta foi disparada no laboratório sobre o que elas teriam vontade de

fazer com uma pessoa que tirasse a casa delas: odiariam, lutariam, não perdoariam... e

então se essa pessoa fosse o seu marido? Também! A história do marido que vende o

lote é de outra mulher que dizia que ainda amava o marido. Ao falar e trabalhar a

história da sua vida, ela percebeu pelo o que ela lutava realmente. Ela lutava pela casa.

Isso foi crucial para o desenvolvimento da dramaturgia. A situação é sobre a

propriedade, sobre o direito de moradia.

A dramaturgia une duas histórias verdadeiras, uma história é a do marido que

vende o lote, essa mulher foi transferida para Goiânia, ela colocou uma porta para não

perder o lote em Goiânia e voltou para casa da qual ela tinha sido despejada, correndo

o risco de ser retirada pela polícia de novo. A outra história é a da Marilúcia que o

governo quer a terra de volta.

Algumas tentativas para solucionar o problema foram improvisadas pela plateia,

cada pessoa escolhia o momento da situação que gostaria de entrar, foram várias

tentativas: o momento de avisar para mãe que estava grávida, mas dizer que quer

abortar, essa situação fala de um momento do passado que não ajuda na solução

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concreta do problema; esganar o marido na frente do oficial de justiça, também não

ajuda a mulher a obter o lote de volta, procurar um grupo de mulheres foi uma solução

mais palpável... Enfim, várias tentativas, mas nenhuma solução concreta. O que

podemos observar é o movimento de afetos que gerou na plateia e nas atrizes, todos

expostos e agindo.

Teatro Legislativo

Após o fórum houve uma sessão de Teatro Legislativo, a decisão por fazer essa

sessão veio por conta da história da Marilúcia que estava decidida a não sair da casa e

enfrentava os oficiais com a ordem de despejo. O que ela precisava era de uma lei!

O Teatro Legislativo surgiu com o nome de Câmara na Praça na época que

Augusto Boal foi eleito vereador no Rio de Janeiro em 1992. Era feito um debate sobre

um problema real de uma comunidade, pessoas interessadas pelo tema se reúnem

com um Coringa do CTO (Centro de Teatro do Oprimido) e obrigatoriamente um

assessor legislativo e expõem o problema geralmente em forma de cena.

A pergunta feita pelo coringa deve ser clara para que a população possa pensar

em soluções e possíveis projetos de lei palpáveis. A presença do assessor é

imprescindível para poder traduzir em vocabulário jurídico as propostas da plateia e

ajudar a clarear o pensamento dos participantes quanto à realidade jurídica. Essa

técnica é exercida até hoje e muitas leis foram construídas através desse procedimento,

como providências no tratamento geriátrico, construção de lixeiras elevadas nos

logradouros públicos, entradas e saídas de acesso ao portador de deficiência no metrô

etc.

No trabalho com as Madalenas, a sessão foi feita após o espetáculo com a

participação da Coringa do Centro de Teatro do Oprimido Helen Sarapeck e o sociólogo

Adilson José Paulo Barbosa que escreveu uma dissertação de mestrado sobre o tema

da propriedade na Estrutural em Brasília. Ele fez uma consultoria pontual nas soluções

que a plateia escreveu no papel. Depois de lida as propostas, ele fez um parecer sobre

algumas ideias que porventura ficaram impossibilitadas nos termos de uma lei, e

conseguiu encontrar duas propostas que falava de alguma maneira da vontade da

maioria.

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Foram vinte e nove sugestões que tinham um sentido próximo. Adilson fez um

breve discurso sobre as leis existentes, as lutas que já foram feitas e colocou duas

propostas da plateia como possíveis para serem levadas adiante: a autorização de

usucapião em terra pública e o impedimento de venda do lote enquanto tiver criança

no local.

De acordo com notícias trazidas por Alessandra Vannucci, essas propostas foram

aprovadas recentemente, a partir desses pedidos apresentados pela plateia.

O Teatro Legislativo é um método que conseguiu penetrar na realidade das

mulheres com uma função de política pública. Conforme dito por Alessandra, esse foi o

primeiro contato que as mulheres fizeram com o governo. Ainda um contato indireto

no dia do espetáculo, mas hoje o que elas geraram ali, está aprovado para ser

implantado.

Da cidade satélite Estrutural, atrás de um grande monte de lixo reciclável, se vê

os arranha-céus do Distrito Federal. Na cidade dos grandes edifícios e do Palácio da

Alvorada as catadoras nunca tiveram um trabalho e nem aparente motivo para irem até

lá. Somente os lixos com possibilidade de reciclagem eram o contato entre elas e

aquele mundo de lá.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse trabalho teve o objetivo de refletir o processo de criação, percebendo os

aspectos pedagógicos que estão inseridos em suas etapas. Através de uma análise do

projeto Laboratório Madalena, debruçou-se em uma experiência que apresentou uma

metodologia bastante clara para detonar um processo criativo de mulheres que não

tem como ofício o teatro.

Ao concluir o curso de Licenciatura em Teatro, percebo que estou também

iniciando uma nova etapa de investigação que transborda a minha formação individual

de artista para pesquisar e descobrir possíveis metodologias que serão importantes no

processo com o outro. Que papel se descobre desse lado do jogo, onde o recém

formado como professor de teatro se coloca a frente de um processo criativo e

educacional através do teatro? Que projeto ele tem, para que lugar ele quer ir e o que

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a pedagogia teatral pode trazer para o trabalho? E o mais importante: com quem ele

está trabalhando?

Não se pretendeu aqui, trazer o Laboratório Madalena como exemplo do modo

de se fazer, como se essa experiência pudesse ser uma cartilha com uma metodologia

aplicável. O Projeto de Alessandra Vannucci tinha um propósito de trabalhar com o

tema do corpo feminino como produtor e não somente reprodutor, delimitando a

experiência com um grupo de mulheres catadoras de lixo reciclável em Brasília.

Pode-se notar que o laboratório teve inúmeras especificidades: um lugar que

tem uma história, um determinado tipo de comunidade e um gênero - o feminino.

Estas características trazem para a metodologia um caráter experimental e único,

intransferível. O que se almejou com a análise deste trabalho de Vannucci foi a preciosa

oportunidade de poder refletir sobre a ação do teatro. O que uma metodologia teatral

gera? Como podemos movimentar reflexões políticas nos lugares em que chegamos

com esse diamante?

Nas poucas experiências com educação que tive, onde se pretendia colaborar

para o desenvolvimento da criatividade e da reflexão sensível, percebi que o teatro é a

sua maneira de estar em um lugar e de entrar em conexão com o outro. A Alessandra e

a Bárbara Santos quando pensaram no Laboratório, queriam entrar em conexão com

esse universo feminino. Eu quis entrar em conexão com crianças em outros lugares que

não citei no trabalho. O que talvez importe mais seja a maneira como você pode

chegar perto do outro e desenvolver um trabalho.

Se queremos transformar o mundo e temos certos anseios é preciso entender a

maneira como podemos fazer isso e se o conhecimento pessoal é o teatro, a linguagem

teatral, como utilizá-la? Quais são os poderes do teatro e de que maneira ele se faz

poderoso? Quais são os segredos dessa linguagem que vai se construindo com o outro?

Esse trabalho monográfico apresenta duas técnicas desenvolvidas por Augusto

Boal e o Centro de Teatro do Oprimido que são Teatro fórum e Teatro Legislativo. Esses

são métodos transferíveis que podemos utilizar em diversos contextos e trazem,

principalmente o Legislativo, um caráter bem incisivo no que diz respeito a mudanças

concretas no cotidiano. No entanto, mesmo trabalhando com essas técnicas é preciso

identificar a maneira como vamos trazê-la para o trabalho. Será que o Fórum funciona

sempre? Será que vale a pena pedir soluções para a plateia em determinados assuntos

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ou é melhor pedir uma sugestão de proposta de lei? Como mostrar o problema para

que ele gere uma discussão mais profunda sobre um tema?

Esse trabalho gerou muitas perguntas ainda sem respostas, mas que são

responsáveis pelo começo do meu caminho pessoal de investigação e desenvolvimento

como artista e ser humano. Estudar a descoberta dessas mulheres nessa vivência do

Laboratório Madalena foi uma travessia importante para minha reflexão pessoal sobre

teatro, vida e ofício.

O conto La Loba inicia o primeiro capítulo do meu trabalho, agora recupero um

trecho dessa história:

[…] em algum ponto da corrida, quer pela velocidade, por atravessar um rio respingando água, quer pela incidência de um raio de sol ou de luar sobre seu flanco, o lobo de repente é transformado numa mulher que ri e corre livre na direção do horizonte.

Quais foram as derivações da experiência cênica? Penso no caminho da mulher que

era lobo, para lembrar sempre da trajetória e dos saltos que são necessários para as

descobertas da potência própria e principalmente da autoridade que se obtém

independente de cargos sociais, mas simplesmente por existir – sempre decidindo

como, com quem e para que.

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