Labirinto Literário _Nº 26 (2)

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ISSN 2237-1141

Labirinto Literrio

Labirinto LiterrioRio de Janeiro Ano 6 N 26 Jan/Fev/Mar 2012

Todos os direitos reservados

Edio/Diagramao/Projeto Grfico Mozileide Neri

Comisso Editorial Aime Lejeune Brbara Shenader Joana Brito Julia Hernndez Juliana Amaral Luana Colaneri Mozileide Neri Sandro Ramos Rodrigo Amaral Luisa Beltoise

Reviso Tatiana L. da Costa

Leitores Oficiais BRASIL (Acre Amazonas Amap Par Maranho Bahia Paraba Pernambuco Recife Rio Grande do Norte Distrito Federal Minas Gerais Esprito Santo Rio de Janeiro So Paulo Paran Santa Catarina Rio Grande do Sul). CHILE (Regin Metropolitana de Santiago Regin Del Maule Regin Del Biobo). VENEZUELA (Caracas Cojedes Gurico Lara). URUGUAI (Montevidu San Jus Rivera Soriano). ARGENTINA (Mendoza Santa F Crdova Buenos Aires). REPBLICA DOMINICANA (Puerto Plata). EUA (California). MXICO (Baja California). PORTUGAL (Lisboa Porto Coimbra). FRANA (Lyon). ESPANHA (Barcelona . Crdova) . ANGOLA (Luanda Huambo Benguela). MOAMBIQUE (Nampula Maputo). CABO VERDE (Ilha de Santiago So Domingos Ribeira Grande de Santiago So Salvador do Mundo). MARROCOS (Essaouira)

Arte da capaLUCIA SO THIAGO

http://www.catadoradecarambolas.blogspot.com/

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SUMRIO

04 Editorial 05 Leonardo Boff 07 Fausto Brignol 10 Thiago Hackner 12 Mozilene Neri 15 Raul Longo 17 Urda Alice Klueger 19 Raquel Moyss 21 Andr Albuquerque 23 Rodrigo da Costa Araujo 26 Isabelle Saint Martin 28 Fotografia 38 Poesia 49 Poltica de acesso Livre

EDITORIALSandro Ramos

Caros leitores, Damos incio a mais uma produo editorial do Labirinto Literrio. J adianto que teremos novidades estticas por aqui. Mas no irei mencionar as mudanas para cada edio de 2012. Todo esse mistrio e suspense faz parte da curiosidade, afinal estamos ou no estamos dentro de um labirinto? Quem for atento, certamente desvender todo o enigma. Ento, olhos bem atentos e bem-vindos a 26 edio do LL (edio em preto e branco). Boa leitura a todos.

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FACE A FACE: QUATRO PRINCPIOS E QUATRO VIRTUDES | Leonardo Boff

A frase de Einstein goza de plena atualidade: o pensamento que criou a crise no pode ser o mesmo que vai super-la. tarde demais para fazer s reformas. Estas no mudam o pensamento. Precisamos partir de outro, fundado em princpios e valores que possam sustentar um novo ensaio civilizatrio. Ou ento temos que aceitar um caminho que nos leva a um precipcio. Os dinossauros j o percorreram. Meu sentimento do mundo me diz que quatro princpios e quatro virtudes sero capazes de garantir um futuro bom para a Terra e vida. Aqui apenas os enuncio sem poder aprofund-los, coisa que fiz em vrias publicaes nos ltimos anos. O primeiro o cuidado. uma relao de no agresso e de amor Terra e a qualquer outro ser. O cuidado se ope dominao que caracterizou o velho paradigma. O cuidado regenera as feridas passadas e evita as futuras. Ele retarda a fora irrefrevel da entropia e permite que tudo possa viver e perdurar mais. Para os orientais o equivalente ao cuidado a compaixo; por ela nunca se deixa o outro que sofre abandonado, mas se caminha, se solidariza e se alegra com ele. O segundo o respeito. Cada ser possui um valor intrnseco, independentemente de seu uso humano. Expressa alguma potencialidade do universo, tem algo a nos revelar e merece existir e viver. O respeito reconhece e acolhe o outro como outro e se prope a conviver pacificamente com ele. tico respeitar ilimitadamente tudo o que existe e vive. O terceiro a responsabilidade universal. Por ela, o ser humano e a sociedade se do conta das consequncias benficas ou funestas de suas aes. Ambos precisam cuidar da qualidade das relaes com os outros e com a natureza para que no seja hostil, porm amigvel vida. Com os meios de destruio j construdos, a humanidade pode, por falta de responsabilidade, se autoeliminar e danificar a biosfera. O quarto princpio a cooperao incondicional. A lei universal da evoluo no a competio com a vitria do mais forte, mas a

interdependncia de todos com todos. Todos cooperam entre si para coevoluir e para assegurar a biodiversidade. Foi pela cooperao de uns com os outros que nossos ancestrais se tornaram humanos. O mercado globalizado se rege pela mais rgida competio, sem espao para a cooperao. Por isso, campeiam o individualismo e o egosmo que subjazem crise atual e que impediram at agora qualquer consenso possvel face s mudanas climticas. Os quatro princpios devem vir acolitados por quatro virtudes, imprescindveis para a consolidao da nova ordem. A primeira a hospitalidade, virtude primacial, segundo Kant, para a repblica mundial. Todos tem o direito de serem acolhidos, o que corresponde ao dever de acolher os outros. Esta virtude ser fundamental face ao fluxo dos povos e aos milhes de refugiados climticos que surgiro nos prximos anos. No deve haver, como h, extra-comunitrios. A segunda a convivncia com os diferentes. A globalizao do experimento homem no anula as diferenas culturais com as quais devemos aprender a conviver, a trocar, a nos complementar e a nos enriquecer com os intercmbios mtuos. A terceira a tolerncia. Nem todos os valores e costumes culturais so convergentes e de fcil aceitao. Dai impe-se a tolerncia ativa de reconhecer o direito do outro de existir como diferente e garantir-lhe sua plena expresso. A quarta a comensalidade. Todos os seres humanos devem ter acesso solidrio e suficiente aos meios de vida e seguridade alimentar. Devem poder se sentir membros da mesma famlia que comem e bebem juntos. Mais que a nutrio necessria, trata-se de um rito de confraternizao. Todos os esforos sero em balde se a Rio+20 de 2012 se limitar discusso apenas de medidas prticas para mitigar o aquecimento global, sem discutir outros princpios e valores que podem gerar um consenso mnimo entre todos e assim conferir sustentabilidade nossa civilizao. Caso contrrio, a crise continuar sua corroso at se transformar num tragdia. Temos meios e cincia para isso. S nos faltam vontade e amor vida, nossa, e a de nossos filhos e netos. Que o Esprito que preside histria, no nos falte!

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ARTIGO BRAO FORTE, MO AMIGA | Fausto Brignol

Se voc necessitar de internao no Hospital Militar de Bag (RS) dever preparar-se para acampar. O hospital fornece o bsico, mas no mais que isso. Leve cobertores e travesseiros, caso contrrio poder passar frio ou sofrer um torcicolo. A teoria de que soldado dorme em cima da prpria mochila e que travesseiros e cobertores so adereos desnecessrios. No esquea o celular, pois ser indispensvel. O hospital no tem telefone. Ou, por outra, o telefone do hospital no disponibilizado para os pacientes ou acompanhantes. Se voc tiver algum familiar naquele hospital, no se esquea de levar a comida. Se optar pelo rancho, prepare-se para usar talheres de plstico. Haver um pouco de arroz e um caldo negro lembrando feijo. Talvez uma verdura. Uma comida espartana. Tente comer o tijolinho que lhe do de sobremesa para diminuir o ardor da forte comida militar. E depois use o nico palito que lhe foi ofertado. Leve gua, apenas por garantia de no passar sede. Se desejar tomar um chimarro, leve gua quente de casa. No esquea tambm, de levar papel higinico, sabonetes, toalhas... Acredito que devemos fazer uma campanha cvica para salvar o Hospital Militar de Bag. Por uma questo de sade. Sade e civismo. Observe que se o paciente estiver sozinho, desacompanhado e necessitar de atendimento de urgncia, no ter como acionar a campainha, porque no existe campainha nos quartos e apartamentos. Em substituio, h um telefone ligado diretamente com a enfermaria. Somente com a enfermaria. Se o paciente estiver sozinho e necessitar de algum atendimento de urgncia, poder ou no ter tempo de tirar o fone do gancho. Caso consiga, deve contar com a sorte para ser atendido rapidamente. Em caso de muita preocupao a respeito de uma pessoa querida que se encontre baixada naquele hospital e voc desejar telefonar para saber a respeito, prepare-se para obter uma resposta depois de um tempo no inferior a dez minutos. Os rapazes da recepo, muito solcitos, encaminharo a sua ligao para a enfermaria e isso significa demora. Mas no se preocupe em demasia, porque ficar ouvindo uma msica, que poder ser interpretada como

uma calma marcha marcial. Enfim, quando uma enfermeira atender e der as informaes solicitadas voc se sentir mais feliz, mas talvez reste alguma dvida, momento em que voc poder pedir que retornem a ligao. No pea, ou ficar sabendo que o telefone do hospital no tem bina, o seu nmero no ficou gravado e no adiantar informar o nmero, porque no permitido telefonar do hospital para meras informaes. Urge uma campanha da sociedade civil bajeense para salvar o Hospital Militar. Talvez uma campanha de doaes, como tantas que so feitas. Uma campanha assistencialista, com chamadas em rdios, jornais e televiso. Quanto ao atendimento, bom. Daquele jeito militar, entenda-se, mas, dadas as extremas dificuldades do hospital, devemos ser compreensivos. Enfermeiras e mdicos so muito compreensivos com os pacientes. Perguntam a toda hora se desejam ter alta. No brincadeira. Aconteceu com minha esposa. Teve que ser internada devido a uma infeco estomacal. No sabemos ainda se de origem viral ou bacteriana. No sabemos se (era?) realmente somente uma infeco estomacal. O diagnstico no nos foi revelado. O mdico que assinou a baixa apenas disse que era uma infeco. Mais nada. Militares so lacnicos, economizam palavras. O mdico viu os exames e disse que ela teria que tomar soro contnuo e depois fazer novos exames para ver se deveria ou no ter alta. Isso foi na sexta-feira passada, dia 21 de outubro. Ela foi encaminhada enfermaria e uma enfermeira a levou para um apartamento muito bonito. Depois, pediu que ela deitasse e administrou o soro. Ela deitou com a roupa que estava vestindo. No quartel tudo muito rpido. Ficamos esperando o mdico para nos inteirarmos do diagnstico, e provveis maiores orientaes. O mdico no apareceu. At agora. No dia seguinte, o almoo estava salgado. Em um papel pendurado por fita durex na bandeja estava escrita a palavra Livre. No mesmo dia, de tarde, uma mdica muito simptica perguntou se ela sentia dores no estmago, se estava bem e se desejava tirar o soro e ter alta. Expliquei que o mdico que tinha assinado a baixa que teria que assinar a alta da paciente, mas depois dos exames conforme ele mesmo tinha dito. Quase brigamos, mas a mdica condescendeu que talvez eu tivesse alguma razo e Lidia continuou com o soro. Por mais alguns minutos. Procedimentos mdicos em hospitais militares so procedimentos militares. Pouco depois, uma enfermeira forte, falando alto, quase aos gritos, disse que tinha ordem para tirar o soro da paciente. E tirou. Deixou-a com uma agulha presa no brao para o caso de futuras injees na veia. Injees que no aconteceram. No dia seguinte, de tarde, Lidia estava tomando os seus remdios porque sofre de outras doenas que no cabe aqui serem relatadas quando foi

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surpreendida por uma enfermeira, que perguntou por que ela estava se medicando. Lidia respondeu que estava se medicando por que sofre de outras doenas. Ningum naquele hospital muito militar sabia disso. O mdico no tinha perguntado. Nem o mdico nem nenhuma enfermeira. Lidia ainda perguntou para a enfermeira se sabia o que significava interao medicamentosa. Vejam na Wikipdia: As interaces entre frmacos so alteraes que se produzem nos efeitos de um frmaco devido ingesto simultnea de outro frmaco (interaco frmaco-frmaco ou interaces medicamentosas) ou aos alimentos consumidos (interaces frmaco-alimento). Esta interao pode reduzir o efeito de um dos frmacos ou potencializ-lo, o que pode causar efeitos imprevisveis no tratamento. Ela teve sorte, mas poderia ter sido vtima de danos ou at de perigo de morte, devido ignorncia militar do mdico e das enfermeiras. Pouco depois, Lidia, sentindo-se totalmente desprotegida, perguntou se poderia ir embora. E lhe foi dito que sim! Ela chamou um txi e veio para casa. Antes, retirou a ociosa agulha que pendia do seu brao. Minha esposa pensionista militar e paga mais de oitenta reais por ms para o FUSEX (Fundo de Sade do Exrcito) para ser atendida, quando necessrio. O pai dela foi um oficial que serviu a vida inteira ao Exrcito Brasileiro. Ela esperava ser atendida decentemente. Somente isso, nada mais.

CONTO MADRUGADA INSONE | Thiago Hackner

IVH muitos anos atrs, Roberto foi uma pessoa curiosa. Quando criana, nutria com o mais sincero interesse os pequenos mistrios que se apresentam queles que h pouco foram apresentados vida. Se o cu trovejava, logo queria saber o motivo. Tambm muito lhe intrigava por que seu pai tinha plos no peito e sua me no. O problema era que seus questionamentos no encontravam o mesmo entusiasmo em uma famlia ausente que lhe sonegava estas e tantas outras respostas. Com o passar dos anos, a frustrao que isso lhe causava foi amainando a vontade de saber o que o inquietava sempre. Ainda assim, nutria a esperana de que a escola que seus irmos mais velhos frequentavam o ajudasse a ter algumas respostas para a sua curiosidade latente. Aos seis anos de idade, sentado em uma cadeira meio quebrada de uma escola estadual, percebeu que, ao contrrio do que imaginara, sua curiosidade no era bem-vinda em sua classe. A cada pergunta que fazia a sua professora, notava nesta um ar cada vez maior de enfado e impacincia. Ora, tudo que Roberto fazia era obedecer ao que a mestra havia enfatizado no primeiro dia de aula, que ningum voltasse para casa com dvidas. No entanto, como pode perceber, havia muito mais de protocolo do que de sinceridade nessa solicitao. E embora no soubesse o que significava protocolo, foi sendo aprovado, ainda que sob a pecha de aluno inconveniente e hiperativo. Chegada adolescncia, a curiosidade que um dia preencheu Roberto de excitao pelo desconhecido se transformou em estranhamento. Tambm mudou seu sentimento em relao a aquilo que no conhecia e que agora trazia medo ao invs de prazer. Ano a ano, sua vontade de entender o mundo vinha sendo solapada e esta sofreu o golpe final no dia em que algum manda-chuva poltico apareceu em sua escola para distribuir promessas e apertos de mo no ano em que completaria o ensino fundamental. Movido pelo nimo que restara,

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Roberto perguntou ao maioral qual era a importncia de ir escola, posto que esta no tinha conseguido tornar o mundo mais claro para si e, pelo que podia perceber, tambm para os seu colegas. No lugar da resposta que acreditava que lhe seria dada de acordo com o to divulgado esprito democrtico da escola, recebeu uma suspenso de trs dias e uma bela coa com a fivela do cinto do seu pai, que fora obrigado a comparecer ao gabinete do diretor para prestar esclarecimentos. Desde ento, Roberto decidiu abandonar a curiosidade. Frequentando agora muito mais a rua do que a escola percebeu que poderia viver sem fazer perguntas. Mais do que isso, quem faria perguntas agora seriam os outros e ele traria as solues. Claro que no foi difcil encontrar algum que lhe daria a ateno tantas vezes negada antes em troca do seu silncio. Assim, pouco a pouco, Roberto foi trocando o ttulo de "inconveniente" pelo de "extremamente conveniente". Aos dezessete anos abandonou a famlia sem que esta transparecesse muito pesar, comeou a agir mais e questionar menos em benefcio prprio, enfim, se tornou um homem resoluto. E foi esta resoluo que colocou Roberto ao volante de uma Kombi velha descendo uma ladeira estreita a toda velocidade na Favela A. Depois de trabalhar bem o vagabundo que tinha armado a palhaada de um protesto contra a violncia do trfico de drogas na favela e de surrar tambm sua esposa e o filho mais velho deles, foi dar um recado explcito a todos que ousassem questionar quem tinha a autoridade ali. Colocou o palhao na parte de trs do furgo e o largou ao lado de uma vala de esgoto, no corao daquela comunidade. Sem o menor vestgio do garoto curioso que fora um dia, Roberto subiu novamente a ladeira estreita com toda a certeza de que o esperava a aprovao do chefe e uma cerveja gelada.

RESENHAELOGIO DA LITERATURA | Mozilene Neri

Resenha crtica do livro Literatura para qu?, de Antoine Compagnon.

O livro a conferncia proferida na inaugurao dos cursos da nova ctedra de literatura do Collge de France, no ano de 2006. Por meio de inmeras citaes e recordaes de leituras, Antoine Compagnon explana e pontua a importncia da literatura, tanto seu estudo, quanto sua vivncia como leitor. E foi justamente por tais percepes que o autor deixou o curso de engenharia, com suas mtricas objetivas, pela rea das letras, com suas confluncias imaginrias. Compagnon confessa, com humildade, uma sugestiva prtica no ensino da literatura: [...] sempre ensinei o que no sabia e tive como pretexto as aulas que eu dava para ler o que ainda no havia lido; e para aprender, enfim, o que eu ignorava. (COMPAGNON, A.: 2009 11). Adentrando o tema, o autor elabora duas perguntas: por que e como falar da literatura francesa moderna e contempornea no sculo XXI? (e aqui podemos estend-las literatura mundial, sem fronteiras de nacionalidade). Primeiramente, Compagnon responde ao como apontando, nos estudos literrios, duas maneiras da crtica (a terica e a histrica). A primeira, terica, considera a literatura como uma e prpria, presena imediata, valor eterno e universal, enquanto a segunda, histrica, encara a obra como outro, na distncia de seu tempo e lugar. Ambas, por sculos, alternaram-se nos estudos literrios, representando uma querela tpica da nossa insistncia em pensar dicotomicamente. S no final do sculo XX, Roland Barthes conciliou essas duas grandes tradies dentro da perspectiva dos estudos crticos da literatura. Partindo dessa observao, Compagnon revela serem as duas maneiras acima descritas tambm as suas. Conciliando, assim como Barthes, suas

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indispensveis contribuies. Para isso, o autor v a teoria como ateno s noes elementares da disciplina, elucidao dos preconceitos de toda pesquisa ou, ainda, perplexidade metodolgica; e histria como como preocupao com o contexto, ateno para com o outro e, consequentemente, prudncia deontolgica. (ib., 18). O autor constata que a literatura e a modernidade sempre passaram por conflitos entre si, deste pensamento advm a segunda questo: por que falar da literatura?. Ilustrando a questo, com citaes de Calvino e Proust, Compagnon chega concluso de que h pouco espao hoje para a literatura; quando h, sua beleza corroda pelos livros didticos ou o tempo voltil e fluido (lquido, como bem definiu Zygmunt Bauman) no sustenta a prtica dialgica e atenta entre o leitor e o livro. A literatura, nesse cenrio digital, vista com olhos desconfiados e temerosos. Contudo, a resposta da questo acima vem logo depois: Exerccio de reflexo e experincia de escrita, a literatura responde a um projeto de conhecimento do homem e do mundo. (ib., 26). Compagnon visita novamente algumas citaes de autores que refletiram e refletem sobre a leitura literria para, assim, fundamentar sua resposta. Apresenta, tambm, quatro explicaes do poder que a literatura recebeu no decorrer da histria: a primeira clssica, dada por Aristteles, em que h deleite e instruo; a segunda surgiu no Sculo das Luzes e se aprofundou no Romantismo, em que fez da literatura um remdio, antdoto; a terceira um projeto moderno, em que ultrapassa os limites da linguagem ordinria, transformando-a em uma contrafilosofia; a quarta representa uma variante extrema da terceira, moderna, em que se v uma afirmao de sua neutralidade absoluta. (ib., 41). Talvez devido recusa de perceber algum poder subentendido da literatura, ela tenha recebido um rtulo demasiado injusto de prazer ldico, sendo diminuda a algo suprfluo e sem resultados prticos imediatos. tempo de se fazer novamente o elogio da literatura, de proteg-la da depreciao na escola e no mundo. (ib., 45). Para isso, ela deve ser lida, estudada, agregada ao cotidiano como conhecimento vivo de experincias nossas e do Outro, em qualquer espao-tempo vivenciado, longnquo ou no. Tal espao vivo nos envolve, nos estimula, nos desperta. um experimentar abrangente, no qual revela o todo sem verdades absolutas, todavia com exemplos lmpidos.

Notas 1. Antoine Compagnon professor da Universidade de Columbia (Nova Iorque) e do Collge de France. Publicou, entre outros, La troisime republique des lettres, Chat en poche Montaigne et lallgorie, e, pela Editora UFMG, O trabalho da citao, Os cinco paradoxos da modernidade e O demnio da teoria literatura e senso comum. 2. Em vrias obras de Zygmunt Bauman, o autor polons desenvolve e aplica o adjetivo lquido como caracterstica da modernidade e de suas manifestaes.

Bibliografia COMPAGNON, Antoine. Literatura para qu? Traduo de Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

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ARTIGO

OS ESCRAVOS DO SCULO 21 | RAUL LONGOPara Edson Braga, o Anjo Provocador.

O racismo tem pai e me: o Medo e a Ignorncia. No filho nico, mas irmo gmeo de todos os demais preconceitos. A cara de um o focinho do outro. Isso das vaidades dos conhecimentos adquiridos bobagem. Se leu mil livros, no leu uma biblioteca. Se leu uma biblioteca, no leu nada perto de todas as bibliotecas do mundo. De tudo o que se sabe, o certo que muito mais se ignora. Ignorar inevitvel. Mas ignorncia outra coisa. Ignorncia a prepotncia pelo que no se nem se tem, e ainda menos se compreende. Ningum ignorante por desconhecer seja o que for. O sujeito pode no saber ler e ser dotado de inteligncia extraordinria, enquanto outros que leram muito no superam a estupidez seja em quantos idiomas se expressem. Ignorante o que acusa, marginaliza, despreza o que sequer conhece e, por total ausncia de qualquer resqucio de inteligncia, no capaz de enxergar o valor que h alm da cor, da forma, do suprfluo, do desnecessrio, da eventualidade. Omitir a informao, negar a realidade, evitar as evidncias so formas de promover a Ignorncia. De estimular suas prepotncias. E para qu? Por qu? Porque o ignorante fcil de ser manobrado, de ser conduzido, controlado. s estimular seu medo. Todo ignorante amante do medo. E quando emprenhado de medo, o ignorante se torna preconceituoso contra aquilo que ignora. Atravs desse medo ele se deixa escravizar, permite que se o induza a agir contra si prprio.

Na tragicomdia O Lado Negro da Histria, finalizo a fala de um personagem que se nega s propostas de hipcrita irmandade de outro, com este verso: Branco estpido e sem memria... Dizendo no, aguardo tua abolio do ridculo de se querer branco em mestia nao. Branco estpido e sem memria... Aguardo o dia da glria de tua abolio pra poder dizer: - branco... Sou teu irmo! Na Amrica o ltimo pas a abolir a escravatura foi o Brasil em maio de 1888. Mas atravs da ignorncia imposta pelas empresas de produo cultural e do medo difundido por nossos meios de comunicao e formao de opinio pblica, a grande maioria branca desse pas continua escrava.

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CRNICA MODERNIDADES | Urda Alice Klueger Criei-me no tempo do rdio, grandes rdios com o interior cheio de vlvulas que apagavam e acendiam, que precisavam esquentar, e que, no meio de muita esttica, traziam at nossas casas a Rdio Clube de Blumenau e a Rdio Nacional do Rio de Janeiro, entre outras. Os rdios eram enormes, contidos dentro de grandes caixas de decorao rebuscada, e, apesar de serem popularmente chamados de caixo-de-abelha, eram, sem dvida, a principal pea que compunha a sala-de-visitas de uma casa. L por volta de 1960, porm, os rdios comearam a mudar. Foi uma verdadeira revoluo nas comunicaes e nos hbitos das pessoas, s comparvel, creio, ao surgimento do telefone celular, 30 anos depois. O que aconteceu foi que surgiu o rdio a pilha. Ter um rdio a pilha, na poca, era questo de status, bem como foi o telefone celular nos seus primeiros dias. Gente bem tinha, obrigatoriamente, de andar com o seu rdio a pilha, quanto menor, mais chique, radinhos a pilha dentro de capinhas de couro marrom cheia de furinhos, com alas de couro que permitiam que fossem usados pendurados ao ombro. Era o comeo dos tempos do consumismo no Brasil, e ter um rdio a pilha passou a ser ponto de honra, bem como aconteceu com o telefone celular nos seus primeiros tempos. Muita coisa aconteceu no alvorecer da era dos rdios a pilha. Ouviam-se, na poca, os jogos de futebol nos velhos rdios cheios de esttica. Ou ouvia-se no rdio, ou ia-se ao estdio. Como se ter certeza se o locutor do futebol estava transmitindo o jogo fielmente? Com o rdio a pilha, foi possvel conferir. E quem tinha um rdio a pilha, ia ao estdio com ele, e ouvia e via o jogo ao mesmo tempo, e depois podia apontar todas as falhas dos locutores. Esses conferentes viraram os donos da razo, com todo um crculo de pessoas a ouvi-los, boquiabertas por terem de desacreditar nos seus locutores de confiana. O Brasil tinha sido campeo do mundo em futebol em 1958 coincidindo com a chegada do rdio a pilha, esteve em Blumenau, para jogar com o Olmpico, nada mais nada menos que o Santos de Pel. Com Pel e tudo. Pel,

na poca, s perdia para Deus em popularidade, e creio que isto no mudou muito ao longo de quase quatro dcadas. Ver Pel jogar no nosso campinho sujeito a enchentes tornou-se quase questo de vida ou morte para os blumenauenses de antanho e, quem pde, foi ver o jogo. O Santos surrou o Olmpico por 8x0. E na manh seguinte a fofoca corria solta na nossa rua. O problema no era ter perdido de goleada do Santos, claro que no, era quase uma honra perder-se por muitos gols para o time de Pel. A grande discusso era a respeito dos donos dos rdios a pilha, que diziam que tinham estado no campo vendo o jogo, ao mesmo tempo em que ouviam a transmisso radiofnica nos seus radinhos, e que apontavam os muitos erros dos locutores esportivos emocionados com a presena de Pel. At hoje no sei qual foi a verdade, mas alguns dos nossos vizinhos foram taxados de mentirosos. Dizia-se que fulano e sicrano tinham ficado era bem em casa, ouvindo o jogo pelo rdio, e que s para aparecer, para deixarem bem claro que possuam rdios a pilha, tinham inventado aquela histria de que tinham estado no campo conferindo o trabalho dos reprteres. Penso, hoje, que provavelmente toda essa encrenca derivou da inveja de moradores que morriam de vontade de ter ido ver Pel e no o puderam fazer, coisa mesquinha em qualquer dos casos. Nos seus primrdios, o rdio de pilha movimentou energias e opinies. Mais tarde, quando j estava popular, virou companheiro e amigo. Meu pai deume um quando eu j era uma mocinha, moderno rdio com linda capa de couro preta e longa e flexvel antena embutida, sofisticado rdio com trs faixas de ondas. Eu dormia e acordava com ele, e nele ouvia os Beatles e todos os sucessos da Jovem Guarda, e nele ouvi todas as notcias do Projeto Gemini, e, afinal, a chegada do homem a lua, em noite esquecida l na minha adolescncia. Usei aquele rdio em todos os momentos, at ele no prestar mais, e tenho certeza de que ele foi coisa mais chocante que o meu pai podia ter me dado, depois da vida, claro. Essas modernidades do passado hoje so coisas sem valor, mas como alegraram e movimentaram a nossa vida na poca!

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CRNICA

AOS CAMINHANTES | Raquel Moyss

O gurizinho avana o sinal. Est verde para os carros, mas ele segue, sem vacilar, pela faixa de pedestres, enquanto me lana um olhar de quem confia. Parece saber que pode contar com o meu cuidado. Apreensiva, fico vigiando, com medo de que o motorista que vem pelo outro lado da faixa no pare. Isso acontece com frequncia, sendo um dos motivos de atropelamento nas ruas povoadas de gente e atoladas de carros. Assim que o menino passa, sigo adiante, mas algo me mantm ligada figurinha que segue, com passos firmes, em meio s estranhas colunas erguidas no centro da cidade para homenagear o extinto Miramar, inaugurado em 1928 e demolido em 1974, quando estava em andamento as obras de aterro da Baa Sul. Sempre me intrigam aqueles pilares, fincados na Praa Fernando Machado para lembrar o trapiche municipal e o pavilho anexo, onde existia o pitoresco caf Miramar, ponto de encontro da elite intelectual de Desterro. O que dizem agora para a populao de Florianpolis essas pilastras escurecidas de fuligem e mofo? Pensamento imerso na vida da cidade desaparecida, minha vista ainda enquadra a imagem do gurizinho que caminha, a passo de moleque, pleno da fora dos seus verdes anos, que parecem somar, no mximo, uns oito. Mochila pesada s costas, bonezinho na cabea, vestido com agasalho escolar, ele percebe minha insistncia em segui-lo e me devolve um ltimo olhar, esperto, vivaz. Ao dobrar a esquina, j sem conseguir focar sua imagem, sigo em frente, ainda tomada pela presena daquele ser que me despertou poderoso sentido de cuidado. Atenta, pelas ruas trafegadas e encharcadas, rumo ao campus da UFSC, sinto-me vigiada por seu olhar de infncia, curioso, irrequieto, sobretudo confiante. Reflito sobre o dilogo silencioso que travamos na geografia das ruas do centro, j superando, a essa altura, o tnel da Via Expressa Sul. A galeria, que corta o bairro Saco dos Limes, leva o nome de Antonieta de Barros, jornalista e poltica brasileira, primeira mulher eleita deputada estadual em Santa Catarina. Quem se lembra? Ao descer, no campus da Trindade, a manh gelada e mida parece penetrar nos ossos, mas me aquece a lembrana do gurizinho. E logo sua imagem se entrelaa com a

recordao de outra que, dias atrs, dominava o cenrio da Praa da Cidadania, na UFSC. Pneus empilhados entrada do prdio da reitoria assinalavam a ocupao levada a cabo por estudantes que tambm avanaram o sinal, em luta por condies dignas de estudo e permanncia na universidade pblica. Transformado em trincheira de luta, o saguo do prdio reitoral vestiu-se da ousadia juvenil: barracas, cobertas, toalhas estendidas, faixas, cartazes, cronogramas da agenda de organizao dos insurgentes, que exigiam reajuste das bolsas de estudo, moradia estudantil, restaurante universitrio, bibliotecas atualizadas, condies de ensino, concursos pblicos e salrios dignos para os trabalhadores em educao. Ento, as imagens mescladas que dominam minhas emoes nesta manh, me fazem lembrar a epgrafe que abre o belo O livro dos abraos, do escritor uruguaio Eduardo Galeano: Recordar, do latim re-cordis), tornar a passar pelo corao. Recordando as duas cenas que voltam a passar pelo meu corao, ponho-me a refletir sobre lutas que moveram estudantes e trabalhadores na universidade. Ser que os meninos e meninas que avanaram o sinal e ocuparam a reitoria da UFSC tambm tomaram a deciso com a segurana de quem confia? Afinal, sabiam que poderiam ficar sozinhos, como aconteceu com estudantes que, em 2005, tambm batalharam pela mudana nas regras e pelo reajuste das bolsas de estudo? Vrios deles (assim como alguns trabalhadores) sofreram processos administrativos na UFSC, e ainda enfrentam processos criminais na justia federal. Como aquele gurizinho, que atravessou a rua com o sinal aberto para os carros, os estudantes de ontem e os de hoje seguiram adiante. Contando apenas em eles mesmos, fazendo caminho ao andar. A eles, e a todos os caminhantes que sopram brisa fresca e banham de orvalho o cho duro da vida, ofereo o canto do poeta sevilhano Antonio Machado:Caminante, son tus huellas el camino, y nada ms; caminante, no hay camino, se hace camino al andar. Al andar se hace camino, y al volver la vista atrs se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar. Caminante, no hay camino, sino estelas en la mar.

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CONTO O PACIFICADOR | Andr AlbuquerqueEm nome de Cipriano e suas sete candeias, em nome de seu co preto, e suas sete moedas de ouro, em nome de Cipriano e sua montanha sagrada, em nome da rvore dos zfiros e do grande carvalho - eu peo e serei atendido, pelas sete igrejas de Roma, pelas sete lmpadas de Jerusalm, pelas sete candeias douradas do Egito, eu sairei vencedor. Orao para fechar o corpo, atribuda a Cipriano de Antioquia.

Chuto a porta, entramos os dois no barraco, no olho do furaco: Vado na cama, pra l de chapado, mas o cano da 9 milmetros clareia a conscincia rapidinho, o pilantra j est sentado na cama, meio grogue, olhar injetado de cachorro doido; entre o vcio e a surpresa, um banho de cuspe na prpria cara, saliva palavres assustados e mungangas. Todos do uma de doido, inocente ultrajado, bons cidados, s faltam dizer que pagam os impostos em dia, mas pra tudo tem limite: uma pulga entre cachorres no conta, mas na falta de cachorres, as pulgas incomodam demais. Jeremias esquentalhe o ouvido, a bofetada estala feito chicote, no muquifo imundo; Vado mora num duplex em Boa Viagem, mas esconde-se aqui no morro da Conceio, quem sabe, ficar perto da Santa mais seguro; a cabea tomba para um lado, o corpo sarado e musculoso oscila, mas no cai feito um Joo teimoso; a gente bate, ele vira e retorna, vislumbro um olhar arrogante naquela cara cheirada e cuspida, que j despachou tanta gente pro inferno, tanto p e crack distribudos, que contornaria esta cidade perdida umas trs vezes; chutolhe o peito com vontade, na camiseta de grife surge uma nova estampa; no, nunca vendi nada, droga a vida que eu levo; o cara um artista da misria, um soco no meio dos cornos, esse ele sentiu, comea a estranhar a pegada diferente, ningum falou em grana; implora ajoelhado, por um alvio, diz que j apanhou bastante, Jeremias arrebentalhe os testculos com a coronha do fuzil,Vado cai gemendo baixinho, segurando os preciosos, comea a amarelar, mas duro na queda - caiu a ficha que algo vai errado. Dinheiro? Vinte mil para cada um e boa noite; l se vo dois dentes no meu soco-ingls, segura o cagao, o rosto j uma poa de sangue em p;

pattico, comea a recuar, olhos arregalados de espanto: oferecer grana e perder dois dentes? Encurralado, braos abertos contra a parede: um inseto no papel pega moscas. Tira o Rolex de ouro novinho do pulso e me estende, em silenciosa oferenda; encerro o expediente: um tiro entre os olhos de co danado, samos do barraco, encapuzados como entramos. Rua quase deserta, um velho bbado nos aplaude, entre um tombo e outro: enfim, a paz.

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23ARTIGO

A PAIXO DE LER A CIDADE | Rodrigo da Costa Araujo

As cidades tambm acreditam ser obra do esprito ou do acaso, mas nem um nem o outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma cidade, no aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que d s nossas perguntas. TALO CALVINO, As Cidades Invisveis. p.44

Como em Le plaisir du texte , de Roland Barthes, As Cidades Invisveis, de talo Calvino constroe-se em fragmentos. Fragmentos de cidades, recortes do olhar. Tais recortes e fragmentos equivalem a viajar pelo territrio da literatura, por itinerrios que foram o olho a procurar, dilatando as pupilas, assumindo perspectivas intertextuais. O fragmento como aponta Barthes um fantasma de discurso, uma abertura de desejo (1975, p.98) e a cidade, nesse vis, reduze-se ao aspecto do olho sensvel para as coisas descritas, para as paisagens desejadas. O olhar desejante, transbordante da noo de escritura barthesiana e de seus efeitos de textualidade (Prazer do Texto), confirmam a concepo sinuosa e insinuante de uma cidade que pulsa e, sob significantes, a cidade-texto, deseja. Nesse fabuloso e labirntico texto-cidade, a narrao fica por conta do famoso viajante veneziano Marco Polo, e o ouvinte Kublai Klan, imperador dos trtaros. Nada se passa no real, mas em espaos fictcios. Feito fragmentos de um discurso amoroso, Marco Polo descreve as cidades que supostamente visitou - utilizando nomes de mulheres sedutoras: Dionira, Isidora, Dorotia, Zara e tantas outras. Todas elas assumem metforas que dispensam comentrios, servem de recurso alegrico para o processo de seduo, envolvimento. O discurso sobre a cidade confirma que o olhar percorre as ruas como se fossem pginas escritas: a cidade diz tudo o que voc deve pensar, faz voc repetir o discurso (1990, p.18).

Nessas descries, todavia, vai-se insinuando um discurso de puro envolvimento, consciente da fico dos fatos. As cidades e suas histrias reveladas por fragmentos e como textos de gozo - isolam-se do contexto maior conferindo-lhe uma qualidade flutuante e incorprea de cidade. O viajante anda de um lado para o outro e enche-se de dvidas: incapaz de distinguir os pontos da cidade, os pontos que ele conserva distintos na mente se confundem (CALVINO,1990, p.34) O narrador ps-moderno, envolvente e preso s imagens da cidade, confessa em As Cidades Invisveis que os olhos no veem coisas, mas figuras de coisas que significam outras coisas (CALVINO, 1990, p.17).- confirma, assim, seu discurso semiolgico e impossibilitado de perceber todos os signos dessa rede complexa que chamamos de cidade. E, logo adiante, diz: uma cidade igual a um sonho: tudo o que pode ser imaginado pode ser sonhado, mas mesmo o mais inesperado dos sonhos um quebra-cabea que esconde um desejo, ou ento o seu oposto, um medo. As cidades, como os sonhos, so construdas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam obscuras, as duas coisas escondem uma outra. (CALVINO, 1990, p.44) Neste fragmento possvel perceber que para apreender as cidades devese, primeiramente, segundo o discurso de Marco Polo, detectar o fio condutor de seu discurso, seus cdigos e suas regras. Assim, gradativamente, nas histrias circulam elementos semiolgicos das cidades e do mundo moderno e suas imagens comeam a ganhar, atravs da linguagem, cor, conforme os olhos do viajante se movem no tempo e no espao. Por isso, alm de continente das experincias humanas, a cidade tambm um registro, uma escrita, materializao de sua prpria histria. (ROLNIK, 1988, p.9) No fim, o imperador levado a acreditar em cidades que ainda no existem, mas que existiro no futuro. As Cidades Invisveis (1990) so divididas em temas: as cidades e a memria, as cidades e as trocas, as cidades e os desejos etc, intertextos, redes, histrias, encontros e desencontros. Uma leitura semiolgica mostrar ao leitor que impossvel no se perder nessas cidades. Em resumo, em quaisquer dos nveis do livro, desde a enunciao at a frase mais simples, todos os elementos concorrem para a realizao de uma dialtica sugestiva, provocando tambm, os sentidos do leitor.

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No fundo, esses fragmentos revelam uma extrema polifonia com a poca, lembram cidades semelhantes ao Jardim das Delcias, uma forma de montar textualmente o que Barthes apontou como a encenao de uma escritura repetida, a todo transe, ou ao contrrio se for inesperada, suculenta por sua novidade. (BARTHES, 1973, p.58). Imaginemos que a cidade-texto de talo Calvino, como labirinto se concretize em outras cidades, como A Biblioteca de Babel, de Jorge Luiz Borges. Que essas viagens pelas cidades, acompanhadas de Marco Polo, seja desenvolvida em citaes embaralhadas, passveis, portanto, de mltiplas entradas e mltiplas sadas. Essas cidades, como nossa cidade tambm, estariam abertas a uma multiplicidade de vozes e a combinaes ilimitadas de percursos. Esse leitor seria, tambm, um autor e esses fragmentos de um discurso amoro catrticos e ironicamente mgicos, chamado Babel de Calvino seria um romance de escolhas. O desejo seria uma das leituras indispensveis. Com ele a paixo dos encontros inesperados em caminhos virtuosos. Tudo sem uma leitura linear- como em Le plaisir du texte. Nesses fragmentos de cidades hipertextuais, o prazer de atingir o clmax preterido em favor da navegao e no termina na ltima cidade. isso que o leitor experimentar ao ler o famoso, fantstico e indefinvel As Cidades Invisveis, de talo Calvino.

REFERNCIAS: BARTHES, Roland. Le Plaisir du Texte. Paris: Seuil, 1973. ____. Roland Barthes par Roland Barthes. Paris: Seuil, 1975. ____. Fragments dun discours amoureaux. Paris: Seiul, 1977. ____. Semiologia e urbanismo.In: A Aventura Semiolgica. Trad. Maria de Santa Cruz. Lisboa: Edies 70, 1987. BORGES, Jorge Luis. Fices. Trad. Carlos Nejar. 3 ed. So Paulo: Globo, 2001. CALVINO, talo. As Cidades Invisveis. Tard.Diogo Mainardi. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. GOMES, Renato C. Todas as cidades, a cidade: literatura e experincia urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. FERRARA, Lucrcia D. Alessio. A Estratgia dos signos. So Paulo, Perspectiva, 1981. ROLNIK, Raquel. O que cidade. 3 ed. So Paulo. Brasiliense, 1988.

CRNICA DESPREZO ALHEIO | Isabelle Saint Martin

Estava eu, sentada, assistindo a minha aula de Fotojornalismo, no qual uma aluna estava apresentando o seu trabalho final turma. O tema era sobre as obras em todo o Rio de Janeiro e suas consequncias. A aluna mostrava para turma que havia escolhido o subrbio do Rio, quando ouo a seguinte conversa, atrs de mim, de duas meninas moradoras da Zona Sul: - Nossa, ela no tinha um tema melhor para escolher no? - comenta uma das meninas. - Olha! O nibus indo para Realengo. Onde fica isso? - pergunta amiga. - Realengo muito longe, que nem Bangu! Fica depois de Caxias. Perto de Nova Iguau! - diz a menina, com um ar de desprezo e com convico do que estava falando. - Nossa, deve ser longe mesmo... No fao ideia de como faria para chegar l! - diz a amiga, dando uma risada, em um tom de deboche. - Muito longe mesmo! Voc passa por Caxias e vai embora, sem fim. Lugares desprezveis... Bom, desprezvel ver alunas da graduao de Jornalismo, falarem algo do tipo, onde o foco principal do curso a informao. Alm disso, acho mais desprezvel, pessoas que falam com orgulho, que no conhecem os outros lugares diferentes daqueles onde esto habituadas a frequentar. O mnimo que se pode fazer conhecer a prpria cidade aonde mora e/ou nasceu, concordam? Sinto vergonha e tristeza ao ouvir de pessoas que dizem: No fao a menor ideia de onde fica o tal lugar. S sei que longe!. Isso no motivo de orgulho, mas sim, de um pensamento ignorante. No precisa ir ao local para saber se existe ou no. H apenas o interesse e a inteligncia de pesquisar e conhecer, geograficamente, a prpria cidade. Afirmo que no um trabalho difcil.

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Para quem ainda no sabe, Realengo e Bangu ficam na Zona Oeste da cidade. J Caxias e Nova Iguau esto localizadas na Baixada Fluminense. Sentidos opostos, meu (minha) caro (a) amigo (a) desinformado (a). E se caso siga sem fim por Caxias, voc poder escolher a rodovia Washington Luiz que segue para a Regio Serrana e no para Realengo -, ou seguir pela rodovia Presidente Dutra aquela famosinha que vai para So Paulo, sabe? H pessoas que acham graa quando eu digo que sei como faz para chegar a um bairro/rua especfico (a). Sim, sei. s vezes por j ter ido algo que no vejo problema ou por apenas saber. Sim, por ser carioca, acho que era o mnimo que eu poderia fazer. Para aqueles que sabem onde fica a Torre Eiffel, a Esttua da Liberdade, a Torre de Pisa ou at mesmo os points da Barra da Tijuca, Lapa e Zona Sul, queria dar um recado: No conhecer a sua terra natal muito feio. Isso fazer papel de burro. Se no sabe, no diga besteiras. Desculpem-me a sinceridade.

FotografiaSeleo: Joana Brito e Luana ColaneriPreto&branco

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Brasileira Monica Osrio

Brasileira

Sarai de Oliveira

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Americana

Janine L. Brown

Espanhola

Aislara Rodrguez

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Brasileira

Isabelle Saint Martin

Marroquina

Najma Bensad

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Brasileiro

Gabriel Wasnink

Francesa

Annick Lauret

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Brasileiro

Renato Freire

PoesiaSeleo: Juliana Amaral

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Leveza | Antonio LadeiraRio de Janeiro, BR.

O tempo corre Estala em compassos de gotas calibradas. (som da morte) Prope o sino O momento certo de entrar H quem no o atenda - hesitante Promulga o direito a julgar O vento est furioso - e no sempre Como em todas as originalidades latentes, Deu a ignio, contente Dever de um dia acordar. Pontuaes badalam sncopes Em nossos coraes (engolidos) A tragdia de existir pequeno luz do espao infinito. O tempo corre - denso: o que me faz lamentar... O som da morte outra vez Assombra o meu caminhar.

As Palavras | Rodrigo DiasRio de Janeiro, BRA.

(E tento perfazer o duro Caminho das palavras) Mas no sei de onde partir, No sei se sei dizer Tudo o que voc quer ouvir. Tenho medo de no agradar, Tenho medo de te perder, Tenho medo de falar E no te dizer nada. Quem sabe se no vivemos Em galxias diferentes? Falo muito do meu mundo E nada sei do universo. So as estrelas que me consolam Pois sei que um punhado delas Tambm est sobre sua cabea (E se elas fossem espelhos, Poderamos nos ver?) Me desculpa se eu no souber Ou se no conseguir Dizer as palavras certas; s vezes elas se perdem Entre o meu pensamento E os teus ouvidos Mas eu juro, mesmo assim eu tento Enfeitar com flores E alegres adornos As palavras que te digo. E tento perfazer o duro Caminho das palavras.

(in: Expresses Impressas & Impresses Expressas; Usina de Letras, Rio de Janeiro, 2009).

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Noz Moscada | Andri CarvoSo Paulo, BRA.

n de gravata n na garganta n de marinheiro n em pingo d'gua [pingo d'gua pouco d'gua copo d'gua cobra d'gua] n cego n no servio n bem dado n apertado n no peito n no n

Resultado | Pedro Du BoisRio Grande do Sul, BRA.

Certos jogos gritam resultados trancados em gargantas afogadas em lquidos reaparecem em esbirros espirros no acordo desacordado em regras: ao vencedor cabe o barulho infernal do nada quantificado no instante. Depois a vida segue o trajeto previamente decorado: ao vencedor resta a tnue lembrana do que esquece.

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pico da alma nua | Vnia LopezMinas Gerais, BRA.

tontos relgios vivem para consumir os momentos do que ainda no vivi... sinto o cheiro de sangue de cada segundo estendido no tempo verdes so as horas longos ais das noites criam calos dentro de mim cada hora parte do corpo como um dedo como um dente o passado escuta a voz das horas que tirou das almas (como uma flauta triste sem assinatura)

Par | Jos Felipe Mendona da ConceioRio Grande do Sul, BRA.

Duas vidas to diferentes, Perfeitas em solido de astro, Conjugando-se, agora, em rota irregular De meteorito errante, sem destino. Essas vidas embevecidas No lao breve dos dias e noites, E s noite, madrugadas De lua ensolarada, Iluminando-te o rosto lhano Sem sonho ou mistrio, Sem quimera ou segredo. Em tua vida, Todos tm pele, sabor, carcias, O sonho insonhado, antes vivido, Quimera transida de medo e desejo, Segredo rasgado por leitos e veios, Ideal feito De seio e regao, De promessa e abrao Qual rvore de pomos pendidos, Quase todos colhidos, Iguarias comuns de raro quotidiano. Quo diferentes nossas vidas! Ainda assim se uniram, Encararam-se e, aps o fascnio, Sobreveio o estranhamento. Uma que pura invento, Teoria sem experimento, Inveno jamais provada Pelo vento, pelo mar e os homens, Conservada como relquia, dor No fundo de gavetas esquecidas. E a tua: (invejo-a!) A vida sem reticncias, A interrogar vetustas exclamaes. Texto bem acabado, Muitas vezes revisto, Escrito na tnue folha marinha das guas. Tua vida: queimadura, cicatriz, Gozo e generosidade. Belo 14 Bis, Zepelin, Mais uma vez, Alando-se aos ares.

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Haicais | Teresa CristinaPiau, BRA.

VI Cheiro de caf Passa um gato mastigando Um pedao de po VII Noite de luar Os vaga-lumes aproveitam Para dormir cedo VIII No largo do cu Nuvens escuras se arrastam Por dentro da noite IX Flores na janela Passa uma borboleta Bem devagar X Fundo do quintal Na lama da chuva fina Uma minhoca XI Rio inquieto O vento passa nas guas Ao tempo da chuva XII Sol do meio dia Uma borboleta para Em cima da flor XIII Noite de calor Como visitas antigas Tantas muriocas

Desvio | Tatiana L. CostaRio de Janeiro, BR.

Saio lentamente do sol Entro numa onda invisvel Brincadeira do vento comigo, Abrigada na sombra de uma rvore. Volto rapidamente para o calor meigo Deixo as ondas das folhas que solitrias se divertem Entro nas mars dos teus olhos.

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Ganchos | Brian KibuukaSo Paulo, BRA.

No quero versos: d-me o lado certo de voc, voc ao inverso em versos rpidos como nossos passos em direo ao ns impessoal. No quero nada, exceto versos e verses de ti mesma indiferentes ao caos que se levanta quando descansas para depois despertar. No acorde: levante sua melhor metfora da cama em que ela repousa, feita de reticncias... Quero em suas verdades ver: nenhuma outra herdade me interessa, exceto o seu poder de reunir um exrcito de interrogaes sem pontos: ganchos. Inverta-os e pesque palavras, pesque-me enquanto pisco os olhos para algo que no tem nome nem lugar: ainda terceira pessoa. Deixe-me agora dormir neste leito de pontos finais, infinitos e insistentes: por isso, mais uma vez, reticentes... Sou sono do seu instinto de fazer-se poeta oculta em mistrios que no escondem nada de mim: sou todo olhos e frases cheias deles.

Imanncia | Emanuel Medeiros Vieira*Rio Grande do Sul, BRA.

Deve-se aprender a viver por toda a vida, e, por mais que tu talvez te espantes, a vida toda um aprender a morrer. (Sneca: 4aC - 65 dC)

Galos na madrugada Galos no corao em nuestra Amrica. Solar manh: me contamina com os teus raios. Garimpeiro ainda sou. De barras de ouro? No: da perdida emoo, do sonho escondido no sto. Parablicas afetivas o menino e o velho, sou um rio cheio de afluentes, migrando sempre, to longe, to perto. Esse estatuto de misria no o nosso. Famlicos de infinito: mapas tortos, bssolas quebradas. E meu pai aparece na luminosa manh e ele j se foi h tanto tempo. Pais, nossas oraes esto cheias de sujeitos ocultos, predicados mesquinhos, verbos frgeis. Ele s escuta terno preto, aliana, colete, chapu, relgio de algibeira. Tudo descartvel, pai, nada fica. Ele sorri, vai embora. E o subcutneo domingo irrompe alm da pele. E me lembro de um circo mambembe que ficou no subrbio, O mar j no me alcana e a juventude longe. Do dia, quero o sumo, no s o travo e um piano corta a tarde.

*Olhos azuis ao sul do efmero (Thesaurus Editora/FAC, Braslia, 2009). Em 2010 o Romance de Emanuel Medeiros Vieira, recebeu o prmio internacional de literatura, promovido pela Unio Brasileira de Escritores/UBE. Em 2009 foi contemplado com o prestigiado prmio Lcio Cardoso para o melhor romance na avaliao da entidade publicado no Brasil.

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POLTICA DE ACESSO LIVRE

Todas as edies anteriores do LL esto disponveis no 4SHARED: http://www.4shared.com/dir/8976368/c571270d/Labirinto_Literrio.html

COMO SUBMETER Texto Poesia: tema livre, mximo de 2 pginas. Responsvel pela seleo Juliana Amaral. Conto, crnica, artigo, ensaio, resenha: tema livre. Os textos submetidos comisso editorial devero ser digitados em Winword, fonte verdana 10, espao 1,5, justificado, formato de pgina A4. Nesse padro, o limite dos textos ser de no mximo 03 pginas (incluindo as notas e referncias bibliogrficas, se houver). Fotografia Fotografia: tema livre, tipo JPEG, tamanho at 1MG (resoluo vertical/horizontal 300 dpi), mximo de 4 fotos. Responsveis pela seleo: Luana Colaneri e Joana Brito.

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Resumo da edio atual do LL

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