LABIRINTO DE LABIRINTOS: O AR EM ROSA DOS VENTOS · inconsciente coletivo, sincronicidade, cura...

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2015 ISSN: 2358-5269 Ano II - Nº 1 - Maio de 2015 "LABIRINTO DE LABIRINTOS": O AR EM ROSA DOS VENTOS "Labirynth of labirynths": the Ar in Rosa dos Ventos Paula de Lima Baraldi (Mestranda em Artes Cênica; ECA – USP) [email protected] 1 Resumo: No presente artigo analisamos o traje de cena do bloco Ar, em Rosa dos Ventos: o show encantado (1971) com foco no processo de expressão artístico-política. Através de fragmentos do roteiro do espetáculo musical de protesto de Maria Bethânia, dirigido por Fauzi Arap com cenografia e figurinos de Flávio Império, verticalizamos nossa investigação sobre o traje no contexto do espetáculo, do período e dos artistas envolvidos, em conjunto com a cenografia e a interpretação, buscando assim atingir seu núcleo. Palavras-chave: Teatro Brasileiro; Traje de cena; Flávio Império Abstract: This study analyses the theatre costume Ar, part of Rosa dos Ventos: o show encantado (1971), as an artistic-politic expression. Through excerpts of Maria Bethânia's protest musical show, directed by Fauzi Arap, with set design and costumes by Flávio Império, we deepened our investigation of the costume in the context of the show, the time and the artists involved, and also the scenography and the interpretation, thus seeking to achieve its core. Keywords: Brazilian Theatre; Costume; Flavio Império Penetrar no labirinto 2 Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver não é muito perigoso? [...] o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. (ROSA, 1994, p. 43-86). Rosa dos Ventos: o show encantado, de Maria Bethânia, com roteiro e direção de Fauzi Arap, cenografia e figurinos de Flávio Império, pode ser classificado como um espetáculo musical de protesto. No auge da ditadura, em 1971, após a promulgação do Ato Institucional 5, os artistas envolvidos apresentaram no espetáculo uma mensagem de resistência política, ainda que cifrada para transpor as barreiras da censura. À luz de Foucault, Eva Heller, Michel Pastoureau e Guimarães Rosa, analisamos 1 Figurinista e pesquisadora do 42 Coletivo Teatral. Artista visual. Desenvolve pesquisa sobre Teatro Brasileiro e Teatro político com ênfase em cenografia e figurino. Na área de artes visuais desenvolve pesquisa em aquarela, xilogravura e artes plásticas das décadas de 1960 e 1970. 2 Trecho de "Janelas Abertas nº2", de Caetano Veloso, fio componente do tecido do espetáculo, uma das canções mais cifradas e metafóricas do primeiro período da ditadura (1964-1971). Interpretamos a letra como o mergulho do indivíduo em seu mar interior junguiano, assim como a exposição do autor, mesmo que no exílio, como uma mensagem de resistência.

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ISSN: 2358-5269 Ano II - Nº 1 - Maio de 2015

"LABIRINTO DE LABIRINTOS": O AR EM ROSA DOS VENTOS

"Labirynth of labirynths": the Ar in Rosa dos Ventos

Paula de Lima Baraldi (Mestranda em Artes Cênica; ECA – USP) [email protected]

Resumo: No presente artigo analisamos o traje de cena do bloco Ar, em Rosa dos Ventos: o show encantado (1971) com foco no processo de expressão artístico-política. Através de fragmentos do roteiro do espetáculo musical de protesto de Maria Bethânia, dirigido por Fauzi Arap com cenografia e figurinos de Flávio Império, verticalizamos nossa investigação sobre o traje no contexto do espetáculo, do período e dos artistas envolvidos, em conjunto com a cenografia e a interpretação, buscando assim atingir seu núcleo. Palavras-chave: Teatro Brasileiro; Traje de cena; Flávio Império Abstract: This study analyses the theatre costume Ar, part of Rosa dos Ventos: o show encantado (1971), as an artistic-politic expression. Through excerpts of Maria Bethânia's protest musical show, directed by Fauzi Arap, with set design and costumes by Flávio Império, we deepened our investigation of the costume in the context of the show, the time and the artists involved, and also the scenography and the interpretation, thus seeking to achieve its core. Keywords: Brazilian Theatre; Costume; Flavio Império

Penetrar no labirinto2

Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver não é muito perigoso? [...] o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. (ROSA, 1994, p. 43-86).

Rosa dos Ventos: o show encantado, de Maria Bethânia, com roteiro e direção de Fauzi Arap,

cenografia e figurinos de Flávio Império, pode ser classificado como um espetáculo musical de protesto.

No auge da ditadura, em 1971, após a promulgação do Ato Institucional 5, os artistas envolvidos

apresentaram no espetáculo uma mensagem de resistência política, ainda que cifrada para transpor as

barreiras da censura. À luz de Foucault, Eva Heller, Michel Pastoureau e Guimarães Rosa, analisamos

1 Figurinista e pesquisadora do 42 Coletivo Teatral. Artista visual. Desenvolve pesquisa sobre Teatro Brasileiro e Teatro político com ênfase em cenografia e figurino. Na área de artes visuais desenvolve pesquisa em aquarela, xilogravura e artes plásticas das décadas de 1960 e 1970. 2 Trecho de "Janelas Abertas nº2", de Caetano Veloso, fio componente do tecido do espetáculo, uma das canções mais cifradas e metafóricas do primeiro período da ditadura (1964-1971). Interpretamos a letra como o mergulho do indivíduo em seu mar interior junguiano, assim como a exposição do autor, mesmo que no exílio, como uma mensagem de resistência.

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os elementos que compõem o bloco Ar, parte do segundo ato do espetáculo, através do traje de cena e

do excerto de Água Viva, de Clarice Lispector, declamado pela intérprete.

O show encantado foi dividido inicialmente em quatro partes, como declara Arap (1998). A ideia

de tal divisão surgiu a partir de sua leitura de Jung, que observa que o número quatro organiza.

A exemplo dos pontos cardeais que conseguem nos situar geograficamente, Jung havia observado que, no processo de recuperação, seus pacientes costumavam sonhar com símbolos que iam se estruturando numa forma mandálica, que quase sempre incluía o número quatro. Também observara que eram quatro as funções principais da existência humana - pensamento, sentimento, sensação e intuição. [...] Resolvi dar às quatro partes do espetáculo o nome dos quatro elementos: Terra, Água, Ar e Fogo. (ARAP, 1998, p. 152)

Entretanto, ao longo do processo criativo uma quinta parte foi incorporada. Fauzi justifica que "o

número cinco sempre arremata a existência dos outros quatro e, por significar o centro da mandala

formada pelos outros, realiza a inteireza da proposta" (Ibdem). No quinto "inevitável" elemento, o diretor

colocou o homem no centro, o bloco foi chamado de Eu-difícil. O espetáculo era ramificado em dois atos,

"o 1º ato contava com um prólogo, seguido dos blocos Terra, Água e Eu-difícil. O 2º Ato era composto

de Fogo e Ar, encerrando com um Finale" (FORIN JUNIOR, 2006:131).

O percurso proposto por Fauzi, qual travessia labiríntica rosiana propõe uma imersão no homem:

Eu, Eu-difícil, Edifício central, como ponto de referência e resistência. Arap, Império e Maria Bethânia

têm em comum - além dos maravilhosos espetáculos-obras de arte - Rosa dos Ventos: o show

encantado, 1971; A Cena Muda, 1974; Pássaro da Manhã, 1977; Maria Bethânia, 1979 e Estranha Forma

de Vida, 1981 - suas origens em grupos e montagens antológicas. A intérprete estreou profissionalmente

em 13 de fevereiro de 1965 no show-protesto Opinião, direção de Augusto Boal, com sua "garganta

rascante-metálica" (SALOMÃO, 2010) substituindo Nara Leão, ao lado de João do Vale e Zé Keti. O

Opinião foi a primeira resposta da classe artística à Censura imposta pelo golpe de 1964, e passou a ser

símbolo de posicionamento político e questionamento sobre as condições do país e das classes

populares, com firmeza e mensagem clara de resistência, como nos mostra a canção-tema:

Podem me prender Podem me bater Podem até deixar-me sem comer Que eu não mudo de opinião3

Além da arquifamosa Carcará 4 que evidencia a temática do sertão nordestino e

concomitantemente denuncia os abusos da ave de rapina, carnívora, que "pega, mata e come" - e em

3 Letra-protesto, "Opinião" de Zé Keti, 1964. 4 Música de João do Vale e Zé Cândido, uma das principais do espetáculo, que rendeu a Maria Bethânia o título de cantora de protesto.

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nada difere do regime militar - utilizando os procedimentos de distanciamento brechtianos, em voga no

período, seguida dos dados de migração do Nordeste, em tom de denúncia: "em 1950, mais de dois

milhões de nordestinos viviam fora de seus estados natais. 10% da população do Ceará emigrou, 13%

do Piauí! 15% da Bahia! 17% de Alagoas!".

Em total sintonia com o quadro acima estava Flávio Império, que iniciou sua carreira como

diretor, cenógrafo e figurinista no grupo amador do Teatro da Comunidade Cristo Operário. Sua primeira

peça profissional foi Morte de Vida Severina, em 1961, dirigida por Clemente Portella, que apresentava

na cenografia projeções 5 com informações sobre a chegada de emigrantes sertanejos às cidades

metropolitanas e as causas do êxodo. Ainda que em uma espécie de montagem premonitória do que

viria a ser abordado no Opinião, há clara consonância entre os propósitos. Flávio, ao lado de Sérgio

Ferro e Rodrigo Lefèvre formou o Grupo Arquitetura Nova, considerado a primeira geração de arquitetos

modernos brasileiros pós Niemeyer e Artigas. Entre as obras de maior expressão de sua carreira estão

os espetáculos em parceria com os Teatros de Arena e Oficina, dirigidos por Augusto Boal e José Celso

Martinez Corrêa, respectivamente.

Fauzi Arap, diretor e idealizador de Rosa dos Ventos, assim como Maria Bethânia e Império,

iniciou sua carreira no teatro também pelas mãos de Augusto Boal e Zé Celso, e deixou de atuar no auge

do sucesso - principalmente por seu posicionamento firme em não ser "garoto-propaganda de si

mesmo"6, na total contramão do que está em voga atualmente - para se tornar diretor e autor.

O labirinto de labirintos7

Fauzi Arap, em sua autobiografia Mare Nostrum: sonhos, viagens e outros caminhos8, cita

Clarice Lispector como alguém que conseguiu compreender e expressar o indizível, especialmente na

década de 1970, período em que predominava o medo - sete anos após o golpe de 1964, três após o AI-

5. O diretor justifica a escolha de formas poéticas de expressão não exatamente como opção mas, no

contexto, como alternativa para burlar a ditadura. Rosa dos Ventos seria considerado censurável não

fosse seu caráter vanguardista. O espetáculo composto de forma fragmentária, com trechos de músicas,

poemas, textos e depoimento da própria cantora, ao levantar questões de seu microuniverso, aborda

temas comuns a grande parte da classe artística, como o exílio, a repressão e o desejo de resposta:

5 Como boa parte das criações de Flávio Império, a cenografia vanguardista com projeções de slides, foi um dos primeiros registros de uso do recurso em cena no Brasil. 6 Fauzi Arap em entrevista à revista Istoé. Fauzi Arap: aprendiz de feiticeiro. 7 de abril de 1999. 7 Vide nota 2. 8 Editora SENAC, 1998.

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"essa chama que não vai passar/ é mais forte que eu/ e eu não quero dela me afastar."9.

A temática das peças de Arap, assim como dos shows de Música Popular Brasileira dirigidos por

ele, exercem fascínio por abordarem conceitos sob o prisma junguiano de individuação, inconsciente,

inconsciente coletivo, sincronicidade, cura através da arte/ arte como salvação, verdade/ verossimilhança

e a busca pessoal do indivíduo através da compreensão de seu semelhante. As obras delineiam o retrato

de um período e, para além disso, mantêm-se atuais. Fauzi adaptou e dirigiu em 1965 o texto Perto do

Coração Selvagem, de Clarice Lispector, para o teatro e, por sua proximidade com a autora, utilizou

diversos fragmentos de sua obra em shows e peças teatrais. Dentre os textos de Rosa dos Ventos, há

um excerto de Água Viva, cedido pela autora especialmente antes do lançamento do livro.

O espírito inventivo de Dédalo ergueu o labirinto, uma construção cheia de sinuosidades serpeadas, que desconcertavam olhos e pés daquele que nele penetrava. Os inúmeros corredores emaranhavam-se como Maíandros, que em seu correr incerto, ora para frente, ora para trás, acabavam por ir de encontro às suas próprias ondas. Quando a construção ficou pronta e Dédalo a examinou, o próprio inventor quase não conseguiu retornar à sua soleira, tal a esquisitice enganadora do que criara. (SCHWAB Apud STEWART, 2007, p. 34)

No início, o palco vazio, preto sobre preto, e então começa o show encantado, labiríntico. No

entanto, como veremos, todos os caminhos levam ao centro, ao indivíduo pensante e questionador da

ordem, atingindo desta maneira o principal propósito da obra de arte de protesto: preconizar a reflexão

do espectador necessariamente transcendendo a censura através das mensagens cifradas. O propósito

oculto do espetáculo era o de evocar a volta dos exilados, especialmente Caetano Veloso e Gilberto

Gil10 . O roteiro de Arap funciona como mote principal do show, criado através da sobreposição e

fragmentação de músicas e textos, e a mensagem de resistência é seu fio condutor.

O fio, como o novelo, a espiral e o círculo, compartilham do motivo da fecundidade/fertilidade/continuidade da vida. A correlação estabelecida entre o fio/novelo e a vida é anterior mesmo ao ato de fiar e tecer; ela encontra sua origem na teia e sua senhora, a aranha. Fiando seu mundo a partir de si mesma, a aranha e seu fazer são a prefiguração de uma das divindades mais antigas: as fiandeiras. Elas alimentam a inesgotável compreensão do desenrolar de toda a existência, enquadrada pelo nascimento e pela morte. O labirinto como o novelo, partilha a simbologia da teia; ele é um entrelaçar de caminhos [...] Tanto faz que os corredores de um labirinto sejam curtos ou compridos. Atingir o centro é encontrar a origem da vida, ligar-se novamente à Terra Mãe; sair do labirinto, em contrapartida, é renascer,

9 "Resposta" de Maysa, música muito conhecida na voz de Maria Bethânia. 10 "O exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil, desde 1969, funcionou como uma das forças motrizes de Rosa dos Ventos. 'Cantávamos a volta dos dois, sem ser explícitos e isso acabou por acontecer. Após uma longa negociação, Caetano veio ver o show', conta Arap". (SANCHES, Pedro Alexandre. Rosa dos Ventos. Folha de São Paulo, São Paulo, 3 de julho de 1997. Ilustrada).

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daí seu uso iniciático em diversas culturas e religiões. (ROSA apud FURTADO, 2014, p. 94-95)

Na abertura, há o elemento Terra, com canções que soam a denúncia e lamento, como "Último

pau de arara"11; "Pau de Arara"12, "Carcará" entre outras. Seguido pela Água, que permeia todo o show

em forma de Mar e Rio; águas doce e salgada; Oxum e Iemanjá; Maria Bethânia, Flávio Império, Fauzi

Ara e TERRA Trio. A canção O tempo e o Rio está presente nos dois atos, correndo solta, costurando e

unindo todas as partes. Encerra o primeiro ato o Eu-difícil, cerne do roteiro. No segundo ato, a presença

do Fogo, o vermelho vivo em cena, seguido pelo Ar, denso, retorno ao vácuo, vazio inicial, preto sobre

preto, nosso objeto de estudo no presente artigo.

C - CO2

E eis que depois de uma tarde de "quem sou eu" e de acordar à uma hora da madrugada em desespero - eis que às três horas da madrugada acordei e me encontrei. Fui ao encontro de mim. Calma, alegre, plenitude sem fulminação. Simplesmente eu sou eu. e você é você. É lindo, É vasto, vai durar. Eu não sei muito bem o que vou fazer em seguida mas por enquanto olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo. (Clarice Lispector)

Na última parte do espetáculo, antes do encerramento, Maria Bethânia declama Clarice

Lispector. Analisamos o texto no contexto do espetáculo, do período e do conjunto da obra, para que

possamos dessa maneira, alcançar o "ponto de furo" (BRANCO, 1988) do texto-tecido, atingindo assim

a menor unidade de medida - o ponto - como esgotamento de possibilidades: o âmago da questão.

No início do trecho de Água Viva - o fim do espetáculo sincronicamente está atrelado ao fim do

livro de Lispector - observamos o "Eu" em questionamento. Após uma tarde inteira de dúvidas, a insônia

se apresenta duplamente. A personagem dorme, acorda "à uma hora da madrugada", dorme novamente

e enfim "às três horas da madrugada" acorda e "se encontra". O que teria sido a força motriz para o

caminho de iluminação? A longa tarde de reflexão - longa no sentido em que quando buscamos algo as

horas passam mais devagar? O curto período de sono? Teria a personagem sonhado com algo que a

11 "A vida aqui só é ruim quando não chove no chão/ mas se chover dá de tudo fartura tem de porção/ tomara que chova logo tomara meu Deus tomara/ só deixo o meu cariri no último pau-de-arara", letra de Palmeira Guimarães e Rosil Cavalcanti. 12 "Quando eu vim do sertão seu moço/ do meu bodocó/ a maleta era um saco/ e o cadeado era um nó/ Só trazia coragem e a cara/ viajando num pau de arara/ Eu penei, mas aqui cheguei" canção de Luiz Gonzaga e Guido Moraes.

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fez despertar duas vezes? Há no começo do texto a dualidade entre caos e ordem; desespero e encontro;

pulsão de vida e pulsão de morte.

Uma possibilidade de interpretação é a de que no período da madrugada, a personagem acessa

o seu caminho, em uma trajetória que vai do desconhecido à luz, "ao encontro de si", ao mergulho no

inconsciente, que tem sua lógica própria em constante comunicação com o consciente. No entanto, o

escuro nem sempre é associado à ausência de luz, pois o mar profundo, interior é negro, mas é o

caminho para seu labirinto interno.

Só a visão estreita do comum dos mortais costuma atribuir ao isolamento e à morte uma cor escura ou ausência de luz. Mas talvez seja essa mesma coisa tão escura, sem que saibamos que nos conduza, e seja ela mesma nosso guia em nossa procura incansável de uma possível luz absoluta. (ARAP, 1998, p.226)

A personagem "Calma, alegre, plenitude sem fulminação", apresenta dados da pulsão de vida,

com o desejo de que a beleza dure - "É lindo, é vasto, vai durar" - simultaneamente evoca a finitude na

vida, a certeza da morte em contraponto com as incertezas da vida, do "não saber o que fazer", dúvida

que permanece. A percepção elementar: "Eu sou eu e você é você" está carregada de significados,

primeiramente enquanto desejo de individualidade, assim como da descoberta de si, mas também há

nisso a angústia permanente humana da noção de que "só se vê inteiro no outro ou a partir de uma

deformação de si: o espelho"13. Interpretamos tal confusão como deslocamento quando a personagem

pede, ainda que não saiba o que fazer, "olha pra mim e me ama", seguida da negação conclusiva: "Não:

tu olhas para ti e te amas. é o que está certo", desta maneira, o amor se desloca entre o "Eu" e o "outro".

No momento em que a intérprete declama, a cor preta domina a cena. Retomando a ideia de

caos, não podemos deixar de citar o primeiro relato da Criação: no princípio era o céu e a terra, sem

forma e vazia, o escuro, o breu e então: Fiat Lux! O traje criado por Flávio Império para a quinta parte do

espetáculo (Figura 1) é inteiro preto, assim como a cenografia na caixa preta. O efeito de tal

sobreposição da cor é o de flutuação, noção amplificada pelo piso preto subindo às paredes, criando

uma espécie de vazio, destacando ainda mais Maria Bethânia, como se estivesse suspensa no ar, no

vácuo. Justamente o ar, "fluído gasoso que forma a atmosfera", invisível e vital, relacionado à cor remete

também ao espaço, o universo, percepção reforçada pela presença da lua na barra do vestido de

modelagem ampla, e da fumaça de nuvens, que seria a própria metonímia do ar condensado.

13 Anotação da aula de "Crítica literária e Psicanálise", ministrada pela Prof. Dra. Cleusa R. P. Passos no dia 19 de março de 2013.

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Figura 1 - Desenho de figurino de Flávio Império para Maria Bethânia, representando o elemento Ar. Hidrográfica e grafite sobre papel. Fonte: Acervo Flávio Império. Ao centro fotografia de cena do espetáculo, de autoria desconhecida. À direita, Fotografia de cena. Fonte: Jornal Folha de São Paulo, 2 de maio de 1972.

Além do efeito ótico em cena, buscamos também outras possibilidades de associação do uso do

preto associado ao elemento da transparência por excelência, uma vez que tanto para Flávio quanto

para Fauzi, o teatro é uma arte iniciática, portanto, tudo o que está em cena o faz com objetivos claros,

seja transmitir pelos signos implícitos - observando que em distintos períodos e sociedades a

interpretação das cores varia - ou conduzir o espectador a decifrar a mensagem do espetáculo.

Buscamos, por sugestão de Bodstein14, a fórmula de composição do Ar e encontramos apontamentos

de que o dióxido de carbono, popularmente conhecido como gás carbônico contêm em sua fórmula

fuligem - de cor preta - quando há grande concentração de carbono, dado que cremos não ter sido

ignorado por Arap, engenheiro formado pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.

O universo não é uma ideia minha. A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha. A noite não anoitece pelos meus olhos, A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos. Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos A noite anoitece concretamente

14 Érika Bodstein, diretora, pesquisadora e professora de teatro, por nós entrevistada em junho de 2014.

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(Alberto Caeiro)

Segundo Heller, "o preto mais profundo do mundo é o do veludo preto" (2013, p. 129), cor e

matéria escolhidas por Flávio pra o traje, que contém em si a lua, com nuvens bordadas e "queimadas",

feitas de cinzas, com uma ponta em brasa diretamente sobre o tecido, formando o desenho. O croqui de

Império aponta para um decote profundo o suficiente para alongar a figura que

canta como uma jovem árvore que queima numa crepitação de madeira que se extingue para o alto. Tudo é combustão nessa extraordinária cantora cuja voz nos veio da Bahia, para transmitir uma mensagem de amor e poesia como raramente acontece. Seu canto é livre e puro, mas não de uma pureza casta e desumana: é o encontro do céu com a terra, um casamento do mundo com o infinito. Nela o timbre crestado, com uma realidade de juta, é um dos componentes mais humanos; mas seu canto se eleva mais alto, lírico, embriagado de espaço, cravejado de estrelas. Maria Bethânia canta com a liberdade dos pássaros para fora e para cima, mas sem perda dessa intimidade fundamental à comunicação. A bênção Maria Bethânia. (Vinícius de Moraes, em 3 de dezembro de 1965)

O preto indicado no desenho não é puro, contém em sua composição a cor azul. Na barra do

vestido há uma Lua minguante. O símbolo da Lua, frequentemente associado a elementos místicos,

realça nossa percepção sobre a escolha da cor, seu pano de fundo. O astro lunar é colocado em oposição

ao solar por refletí-lo e ser inconstante. O Sol e a Lua estão também presentes na obra de Império criada

para a fachada do teatro, capa do programa e disco do espetáculo, em que Maria Bethânia aparece

como a Lua, enquanto Caetano Veloso, seu irmão, está dentro do Sol (Figura 2), como opostos

complementares.

A Lua, cujo disco aparente é do mesmo tamanho do Sol, tem na astrologia um papel especialmente importante. Simboliza o princípio passivo, mas fecundo, a noite, a umidade, o subconsciente, a imaginação, o psiquismo, o sonho, a receptividade, a mulher e tudo que é instável, transitório e influenciável, por analogia com seu papel de refletor da luz solar. [...]É a parte do primitivo que dormita em nós, vivaz ainda no sono, nos sonhos, nas fantasias, na imaginação, e que modela nossa sensibilidade profunda. [...] A Lua é também o símbolo do sonho e do inconsciente, bem como dos valores noturnos. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2006, p. 561 et passim)

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Figura 2 - Desenho de Flávio Império, Maria Bethânia como a Lua e Caetano Veloso como o Sol e, simultaneamente, um olho. Fonte: Acervo Flávio Império.

Michel Pastoureau afirma que "como qualquer fator social uma cor só tem significado na relação

que estebelece com as outras. Só assim transparece seu sentido completo, seja do ponto de vista social,

artístico ou simbólico." (2011, p. 10). A cor preta é associado ao luto, desde o século II antes de Cristo,

quando "o preto começa a aparecer nas roupas dos magistrados que participam dos funerais, usando

uma toga de cor escura na ocasião. É o início da prática de usar roupas em sinal de luto" (Ibidem, p. 33)

e, como sabemos, a ditadura fez muitas vítimas e calou muitas vozes. É importante ressaltar também

que Maria Bethânia usou, pela última vez a cor em cena, por motivos religiosos15. O preto é ambíguo.

No Egito Antigo assim como na África do Norte, a cor é originalmente o símbolo da fecundidade, a cor

da terra fértil e das nuvens inchadas de chuva (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2006, p. 741). Aponta

para a vida, na "busca da luz infinita", ao mesmo tempo em que é luto, a renúncia da vaidade.

15 "[...] Sabe como eu conheci a Mãe Menininha? Através do Vinícius de Moraes. Foi ele que me apresentou a ela, uma das maiores alegrias da minha vida. Paixão, paixão, paixão! Eu, baiana, não sabia de nada, tanto que encerrava Rosa dos Ventos vestida de preto da cabeça aos pés. Foi a primeira coisa que o candomblé me proibiu. O preto não combina com os meus orixás." Trecho de entrevista de Maria Bethânia concedida à Revista Playboy em 1996.

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A Lua é também o primeiro morto. Durante três noites, em cada mês lunar, ela está como morta, desapareceu... Depois reaparece e cresce em brilho. Da mesma forma, considera-se que os mortos adquirem uma nova modalidade de existência. A Lua é para o homem o símbolo desta passagem da vida à morte e da morte à vida. (Ibidem, p.561)

Tens a vontade e ela é livre16

Acreditamos que o espetáculo percorre em sua trajetória, um caminho cíclico, em forma de

mandala, com seu início no caos, vazio, retomado no último ato, com o traje negro. Através da

compreensão da sobreposição de signos e símbolos, o espetáculo se revela iniciático para os artistas -

consequentemente catártico para os espectadores. O preto é "a cor da Substância universal, Prakriti da

prima matéria, da indiferenciação primordial, do caos original" (Ibidem, p. 742) na escola oriental,

estudada por Fauzi Arap através das teorias de I-ching e Tao.

Durante um período bastante longo, o negro matricial das origens permanece associado à simbólica de certos lugares, como as cavernas e todos os lugares naturais que parecem comunicar-se com as entranhas da terra: antros, grutas, abismos, galerias subterrâneas ou rupestres. Esses lugares, se bem que privados de luz, são cadinhos férteis, locais de nascimento ou de metamorfose, receptáculos de energia, e por essa mesma razão são espaços sagrados que provavelmente constituíram os locais mais antigos de culto da humanidade. Do período Paleolítico até as épocas históricas, elas abrigaram quase todas as cerimônias mágicas ou religiosas. Mais tarde, as grutas e cavernas tornaram-se os locais favoritos de nascimento dos deuses e dos heróis, em seguida os locais de refúgio ou de metamorfose: as pessoas dirigem-se para lá a fim de esconder-se, de retomar energias, realizar este ou aquele rito de passagem. Posteriormente, talvez sob influência das mitologias nórdicas, as florestas se sucederam às cavernas, mas as pessoas continuaram a fazer dos espaços escuros, ou privados de luz, lugares sagrados. (PASTOUREAU, 2011, p. 20)

A análise, seja de trajes de cena, roteiro ou fragmentos de texto, pode e deve se apoiar em todos

os pilares que sustentam o objeto e não serem feitas de forma isolada. O alcance proporcionado pela

ampliação da observação analítica em conjunto com a psicanálise é para nós fundamental,

principalmente porque acreditamos que a única forma de haver aproximação verdadeira com a obra dos

criadores, é a compreesão de suas crenças, motivações e referências já que, segundo Arap, cada

homem acaba cercado pelo que acredita; é senhor absoluto do que cria (1998).

16 "Tens algo do fogo/ tens algo do ar/ tens algo da terra/ tens algo dos animais/ tens a vontade e ela é livre" Poema de autor desconhecido, utilizado por Flávio Império em 1973 como mote do espetáculo Labirinto: o balanço da vida, e para sua obra O Homem nu.

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ISSN: 2358-5269 Ano II - Nº 1 - Maio de 2015

Ainda que quarenta e quatro anos separem a estréia de Rosa dos Ventos do presente estudo,

pedimos passagem a Chronos, para transpor as barreiras temporais e nos cercar das crenças e,

consequentemente, das criações de Lispector, Império, Arap e Maria Bethânia. Queremos "ver o que os

não iniciados não veêm" (COLLI Apud AZEVEDO, 2010), assim como aqueles que são possuídos por

Dioniso, o deus estrangeiro, que conduz à desordem, à embriaguez, ao mesmo tempo em que liberta e

faz vibrar; o estranho familiar - Das Unheimlich.

Clarice Lispector questiona e mostra o caminho do aprofundamento quando afirma "quero pintar

uma tela branca. Como se faz? É a coisa mais difícil do mundo. A nudez. O número zero. Como atingí-

los? Só chegando, suponho, ao núcleo último da pessoa". Em sincronia, Manoel de Barros diz que

"ninguém é pai de um poema sem morrer" e "poesia designa também a armação de objetos lúdicos com

emprego de palavras, imagens, cores, sons etc. Geralmente feitos por crianças, pessoas esquisitas,

loucos e bêbados". Caminho esse que procuramos trilhar na compreensão do espetáculo através da

profícua união de saberes.

É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta e como doido compreendo o que é perigoso compreender. (Clarice Lispector)

Referências Bibliográficas

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