Kwasi Wiredu. Democracia e consenso na política...

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    DEMOCRACIA E CONSENSO NA POLTICA TRADICIONAL AFRICANA:

    Um apelo para uma poltica apartidria

    Kwasi Wiredu

    Kwasi Wiredu. Democracia e consenso na poltica tradicional africana. Traduo para uso didtico de: WIREDU, Kwasi. Democracy and Consensus in African Tradicional Politics. A Plea for a Non-party Polity. Polylog: Forum for Intercultural Philosophy. 2 (2000). , por Mrcio Moreira Viotti. Reviso de wanderson flor do nascimento.

    Resumo

    Wiredu discute o uso do princpio do consenso para a teoria e prtica poltica no continente africano. O princpio do consenso costumava ser generalizado na poltica africana e Wiredu o elabora a partir do exemplo do sistema poltico tradicional dos Ashantis em Gana, como uma possvel linha de ao para um caminho recomendvel para a poltica africana. Os dados empricos so desenhados a partir de material histrico publicado por antroplogos britnicos (Evans-Pritchard & Fortes et al.) e intelectuais Ganenses (Busia et al.). De acordo com Wiredu, um sistema apartidrio baseado no consenso, como um princpio central de organizao poltica no continente africano, poderia evitar problemas evidentes tanto de um sistema de partido nico como de um sistema multipartidrio, ambos impostos pelo ocidente.

    A tomada de deciso por consenso

    Observu-se muitas vezes que a tomada de deciso na governana e na vida tradicional

    africanas foi regida pelo consenso. Como todas as generalizaes sobre assuntos complexos,

    seria legtimo ter com este assunto uma dose de prudncia. Porm, h evidncias considerveis

    de que a deciso por consenso era muitas vezes a ordem do dia nas deliberaes africanas, e

    constitua um princpio. Ento, no foi apenas um exerccio de exagero quando Kaunda,

    presidente (democraticamente) afastado da Zmbia, disse Em nossas sociedades originais operamos

    por consenso, uma questo tratada em um conclave solene at o momento que o acordo seja alcanado1, ou

    como quando o presidente aposentado da Tanznia, Nyerere tambm disse: na sociedade africana

    o mtodo tradicional de conduo de assuntos de livre discusso e citou, concordando com Guy Clutton-

    Brock, que Os mais velhos se sentam sob as rvores grandes e falam at concordarem2.

    Ironicamente, os dois pronunciamentos foram feitos no curso de uma defesa do

    sistema de partido nico. Sobre isso falarei adiante. Mas, por agora, observemos um fato

    importante sobre o papel do consenso na vida africana. que a confiana no consenso no

    um fenmeno poltico peculiar. No continente africano, o consenso caracteriza a tomada de

    deciso poltica nos locais onde este uma manifestao de uma abordagem imanente

    interao social. Geralmente, nas relaes interpessoais entre os adultos, o consenso como base

    http://them.polylog.org/2/fwk-en.htm

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    da ao conjunta foi tomado como axiomtico. Isso no significa dizer que sempre foi

    alcanado. Em nenhum lugar, a sociedade africana foi um reino de harmonia ininterrupta; pelo

    contrrio, os conflitos (incluindo os mortais) entre linhagens e grupos tnicos, e dentro deles,

    no foram raros. A coisa notvel, no entanto, que se, e quando, a resoluo das questes for

    negociada, o cerne do litgio consta da obteno da reconciliao, em vez de meras abstenes

    a recriminaes ou discordncias posteriores. importante observar que os litgios podem ser

    decididos sem a realizao da reconciliao.

    A reconciliao , na verdade, uma forma de consenso. uma restaurao da boa

    vontade atravs de uma reavaliao da importncia das questes essenciais da disputa. Ela no

    envolve necessariamente a identidade completa das opinies morais ou cognitivas. Basta que

    todas as partes sejam capazes de sentir que seus pontos de vista foram adequadamente levados

    em conta em qualquer esquema proposto de ao ou coexistncia futura. Da mesma forma, o

    consenso, no geral, no ocasiona uma concordncia total. Para comear, o consenso

    normalmente pressupe uma posio original de diversidade. Como as questes nem sempre se

    polarizam em linhas de contraditoriedade estrita, o dilogo pode funcionar, por exemplo, por

    meio da suavizao de arestas, para produzir compromissos que sejam aceitveis para todos ou,

    pelo menos, no desagradvel para algum. Alm disso, onde h a vontade de consenso, o

    dilogo pode levar a uma suspenso voluntria do desacordo, possibilitando aes acordadas,

    sem ideias necessariamente em acordo.

    Isto importante porque certas situaes precipitam, de fato, desacordos persistentes

    de difcil mediao e acomodao pelo dilogo. Por exemplo, se vamos guerra ou no. O

    problema ento : como um grupo sem unanimidade pode estabelecer uma opo em vez de

    outra, sem alienar uma das partes. Este o desafio mais srio do consenso e s pode ser satisfeito

    pela suspenso voluntria da descrena na opo prevalente por parte da minoria residual. A

    viabilidade desta opo depende no apenas de pacincia e poder de persuaso das pessoas

    certas, mas tambm do fato de que os sistemas africanos tradicionais de tipo consensual no

    so susceptveis de colocar qualquer grupo de pessoas, de forma consistente, na posio de uma

    minoria. Sobre isso, mais informaes mais adiante.

    Mas, primeiro, vamos ver como a f no consenso funcionou em um exemplo concreto

    de um sistema tradicional africano de poltica. importante notar, preliminarmente, que os

    sistemas polticos africanos do passado exibiam uma considervel variedade. H uma distino

    bsica entre esses sistemas: aqueles com a autoridade centralizada, exercida atravs da mquina

    do governo e aqueles sem qualquer autoridade, em que a vida social no foi regulamentada em

    qualquer nvel, por qualquer tipo de mquina que pudesse ser chamada de governo. Fortes e

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    Evans-Pritchard classificam os Zulu (frica do Sul), os Ngwato (tambm da frica do Sul), os

    Bemba (da Zmbia), os Banyankole (de Uganda), e os Kede (do norte da Nigria) sob a primeira

    categoria; e os Logoli (de oeste do Qunia), os Tallensi (do norte de Gana), e os Nuer (do sul

    do Sudo) sob a segunda3.

    , ou deveria ser, um assunto de interesse substancial para pensadores polticos que

    sociedades da segunda descrio isto , sociedades anarquistas tenham existido e funcionado

    de maneira ordenada ou, pelo menos, no com menos ordem que as sociedades mais

    centralizadas. Tambm seja talvez mais fcil, no contexto de ordens sociais menos centralizadas,

    apreciar a necessidade do consenso. Quando o exerccio da autoridade (como, por exemplo, na

    resoluo de litgios) repousa somente no prestgio moral e talvez metafsico, bvio que a

    deciso pela preponderncia numrica seria susceptvel de ser disfuncional. Porm, mais

    interessante observar que o hbito de deciso por consenso na poltica foi cuidadosamente

    cultivado em alguns dos grupos mais centralizados e at mesmo nos grupos tnicos belicosos

    do continente africano, como os Zulu e os Ashantis. Por contraste, um tanto paradoxal, as

    autoridades de algumas das sociedades centralizadas e comparativamente menos militaristas

    como os Bemba ou os Banyankole, parecem ter manifestado menos entusiasmo pelo consenso

    na tomada de deciso poltica que os Ashantis ou Zulus.4 No que se segue imediatamente,

    proponho aproveitar a descrio elaborada e a anlise do sistema tradicional Ashanti de poltica

    em The Position of the Chief in the Modern Political System of Ashanti de K.A Busia5 e minha prpria

    experincia pessoal para traar o curso do consenso no exemplo poltico Ashanti.

    A organizao poltica dos Ashantis

    A linhagem a unidade poltica bsica entre os Ashantis. Como so um grupo

    matrilinear, esta unidade constituda por todas as pessoas em uma cidade ou aldeia, que tm

    uma ancestral em comum o que, em regra, um corpo considervel de pessoas. Cada unidade

    deste tipo tem um chefe, e cada chefe automaticamente um membro do conselho, que o

    rgo de gesto da cidade ou aldeia. As qualificaes para o chefe de linhagem so: antiguidade

    em idade, sabedoria, senso de responsabilidade cvica e poder de persuaso lgica. Todas essas

    qualidades esto frequentemente reunidas no mais antigo e no senil membro da linhagem. Sob

    esses requisitos, a escolha quase uma rotina. Porm, quando essas qualidades no parecem

    convergir em uma pessoa, a escolha pode implicar em um processo prolongado e meticuloso

    de consultas e discusses visando o consenso. Nunca h uma votao formal. De fato, no h

    nenhuma palavra para "votao" na lngua dos Ashantis. A expresso que correntemente

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    utilizada para esse processo (aba to) uma cunhagem moderna bvia para uma importao ou,

    digamos, imposio cultural.

    O momento, ento, em que o chefe de uma linhagem escolhido o ponto em que o

    primeiro consenso se faz sentir no processo poltico Ashanti. Esta atribuio, quando conferida

    a uma pessoa, vitalcia, a menos que esta sofra alguma degenerao moral, intelectual ou fsica.

    Como representante da linhagem no conselho governante de uma cidade, ele ou, em raros casos,

    ela tem o dever de realizar consultas aos membros adultos da linhagem sobre assuntos

    municipais. Em qualquer assunto de particular importncia, o consenso sempre a palavra de

    ordem. Tambm a palavra de ordem no nvel do conselho municipal, que, conforme indicado,

    consiste em chefes de linhagem.

    Esse conselho conduzido pelo "regente natural" da cidade, chamado chefe. Esta

    palavra, embora contaminada pela condescendncia colonial, permaneceu em uso geral, mesmo

    na era ps-independncia por fora de inrcia terminolgica. O aspecto "natural" desta posio

    encontra-se em seu status hereditrio bsico: normalmente um chefe s pode vir da linhagem

    real. Mas apenas primariamente hereditrio: para uma linhagem ser um grupo bastante

    substancial de parentesco, h, a qualquer momento, um nmero no desprezvel de candidatos

    qualificados. A escolha, que proposta pela rainha-me (a me ou tia ou irm materna ou

    prima do chefe), tem de ser aprovada pelo conselho e pela populao atravs de uma

    organizao chamada, em traduo literal, a associao dos jovens, a fim de tornar-se

    definitiva.

    Ao contrrio de sua aparncia deliberadamente inflada, a palavra pessoal do chefe no

    lei. Sua palavra oficial o consenso de seu conselho; e somente por essa caracterstica que

    pode ser lei; razo pela qual os Akans costumam dizer que no h reis ruins, apenas conselheiros

    ruins. bvio que um chefe especialmente opinativo, se tambm tiver ousadia, pode tentar, por

    vezes com sucesso, impor sua vontade sobre um conselho. Mas um chefe com tais hbitos

    to provvel quanto o risco de este ser eventualmente deposto. Na verdade, como Abraham,

    tambm falando dos Akans, pontua em The Mind of Africa, a realeza era mais um oficio sagrado que

    poltico6. O ofcio era sagrado, porque um chefe era considerado o elo entre a populao que

    vive e os seus antepassados falecidos, que deveriam supervisionar os interesses humanos a partir

    de seu ponto privilegiado do ps-morte. Na medida em que era poltico, trazia analogias

    importantes para o status de um monarca constitucional. O chefe era o smbolo da unidade do

    seu reino e, no curso normal das suas funes, cumpria uma variedade de funes cerimoniais.

    Mas ele era diferente de um monarca constitucional por ser um membro (pelo menos como

    pessoa importante da linhagem) do conselho governante e por estar em uma posio de exercer

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    influncia legtima nas deliberaes em virtude, no de uma suposta inspirao divina, mas sim

    de algum poder de persuaso intrnseco s suas ideias.

    Se estes fatos esto presentes em mente, torna-se evidente que o conselho altamente

    representativo, tanto no que diz respeito natureza da sua composio, quanto ao teor das suas

    decises. Esta representatividade foi replicada em todos os nveis de autoridade do Estado

    Ashanti. A cidade, ou os conselhos da cidade, so o palco bsico da autoridade poltica. Os

    representantes desses conselhos formavam conselhos divisionais presididos por chefes

    soberanos. Estes conselhos ltimos tambm enviam representantes ao conselho nacional

    presidido pelo Asantehene, o rei dos Ashantis, no mais alto nvel do governo tradicional.

    desnecessrio dizer que, nesta fase, a deciso foi tomada por consenso em todos esses nveis.

    Esta adeso ao princpio de consenso era uma opo premeditada. Era feita com base

    na crena de que, em ltima anlise, os interesses de todos os membros da sociedade so os

    mesmos, embora suas percepes imediatas daqueles interesses pudessem ser diferentes. Este

    pensamento expresso em um artefato artstico retratando um crocodilo1com um estmago e

    duas cabeas, inseridas em uma luta por comida. Se elas pudessem ver que a comida era, em

    qualquer caso, destinada ao mesmo estmago, a irracionalidade do conflito estaria manifesta a

    elas. Mas h uma chance para isto? A resposta Ashanti

    : Sim, os seres humanos tm a capacidade de eventualmente

    atirar suas diferenas para o fundo do poo da identidade de

    interesses. E, nessa viso, os meios para esse objetivo

    so, simplesmente, discusso racional. Sobre a

    capacidade deste entendimento, os Ashantis so

    explcitos. No h, dizem eles, problemas de

    relaes humanas que no possam ser resolvidos por

    meio do dilogo. Dilogo, naturalmente, pressupe

    no apenas duas partes (pelo menos), mas tambm duas posies conflitantes: Uma cabea

    comanda o conselho. Tampouco h qualquer sugesto de que uma voz possa ter o direito a ser

    ouvida, por um momento, s custas da excluso de outras perspectivas: Duas cabeas so

    melhores que uma, diz outra mxima. De fato, tanto fizeram os Ashantis (e os Akans em geral)

    prezando a discusso racional como um largo caminho para o consenso entre os adultos, que a

    1 Figura Adinkra Funtummireku denkyemmireku, que significa compartilham um s estmago, porm brigam pela comida. Smbolo da unidade na diversidade e advertncia contra as brigas internas quando existe um destino em comum. NASCIMENTO, Elisa Larkin; G, Luiz Carlos. Adinkra: Sabedoria em smbolos africanos. Rio de Janeiro: Pallas/IPEAFRO, 2009, p. 52-3. (N. da R).

    Funtummireku denkyemmireku

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    capacidade para o discurso elegante e persuasivo era considerada uma das qualificaes mais

    cruciais para um alto cargo.

    Representao e Democracia

    Eu gostaria de enfatizar que a busca do consenso era um esforo deliberado para ir

    alm da deciso pela opinio da maioria. mais fcil obter o acordo da maioria que chegar a

    um consenso. E os Ashantis eram conscientes disso. Mas eles rejeitavam esse caminho de menor

    resistncia. Para eles, a opinio da maioria no em si uma base boa o suficiente para a tomada

    de deciso, pois priva a minoria do direito de que sua vontade esteja refletida na deciso

    proferida. Ou, para colocar em termos do conceito de representao, priva a minoria do direito

    de representao na deciso em pauta.

    Dois conceitos de representao esto envolvidos nestas consideraes. H a

    representao de um certo eleitorado no conselho e h a representao da vontade de um

    representante na confeco de uma determinada deciso. Chamemos a primeira por

    representao formal e a segunda de representao substantiva. Ento, bvio que se pode ter

    a representao formal sem sua correlata substantiva. No entanto, a formal causada pela

    substantiva. Na viso Ashanti, a representao substantiva uma questo de direito humano

    fundamental. Cada ser humano tem o direito de ser representado no s no conselho, mas

    tambm em qualquer assunto relevante para os seus interesses ou os de seu grupo. por isso

    que o consenso to importante.

    Tambm no faltam razes pragmticas para o mesmo propsito. Representao

    formal sem substncia capaz de induzir desafeto. Se o sistema em uso for capaz de colocar

    alguns grupos periodicamente em minorias substancialmente no representadas, ento a

    desavena ocasional torna-se institucionalizada. Os resultados so as inclemncias bem

    conhecidas da poltica entre adversrios. Do ponto de vista Ashanti, o consenso o antdoto.

    Mas, novamente, o consenso sempre pode ser obtido? Como j mencionado, os Ashantis

    parecem ter pensado que sim, pelo menos em princpio. Mas suponhamos que este no seja o

    caso. Mesmo assim, ele sempre pode ser o ponto visado; o ponto que qualquer sistema poltico

    seriamente dedicado a esse objetivo, deve ser institucionalmente diferente de um sistema

    baseado na influncia da maioria, no entanto, cercado de restries e equilbrios.

    Quais os desdobramentos destas consideraes sobre a democracia? Formas atuais de

    democracia so geralmente sistemas baseados no princpio da maioria. O partido que ganha a

    maioria dos assentos ou a maior proporo dos votos se o sistema em vigor o da

    representao proporcional investido com o poder governamental. Partidos, ao abrigo deste

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    regime de coisas polticas, so organizaes de pessoas de tendncias semelhantes e aspiraes

    com o nico objetivo de ganhar o poder para a implementao de suas polticas. Chamemos

    tais sistemas democracias majoritrias. Assim, aqueles baseados em consenso podem ser

    chamados democracias consensuais. O sistema Ashanti era uma democracia consensual. Era

    uma democracia porque o governo era pelo consentimento e sujeito ao controle do povo, como

    expresso atravs dos seus representantes. Foi consensual porque, pelo menos como regra, o

    consentimento era negociado por meio do princpio do consenso (Por contraste, do sistema

    majoritrio pode-se dizer que, em princpio, se baseia em consentimento sem consenso).

    Um sistema sem partido

    O sistema dos Ashantis, alm disso, no era um sistema partidrio no sentido da

    palavra partido, observada no ltimo pargrafo, que fundamental para a democracia

    majoritria. Mas, em um sentido lexical amplo, havia partidos. As linhagens eram partidos no

    projeto de um bom governo. Alm disso, em cada cidade Ashanti a juventude constitua-se em

    um partido organizado sob um lder reconhecido que tinha o direito de fazer representaes

    diretamente (embora no como um membro) ao conselho pertinente sobre todos os assuntos

    de interesse pblico. O sentido pelo qual o sistema em questo no caracteriza partidos que

    nenhum dos grupos mencionados se organiza com o objetivo de ganhar o poder de uma forma

    que implique aos outros no estarem no poder ou, pior ainda, estarem fora dele. O sistema foi

    criado para a participao, no poder, de todos os interessados, e no a sua apropriao, e a

    filosofia subjacente aquela da cooperao, no da confrontao.

    Este o aspecto do sistema tradicional para o qual os advogados do sistema de partido

    nico apelam em suas tentativas de provar a sua ascendncia e autenticidade africana. Esta foi a

    analogia ilusria. Em um sistema de partido nico no h conflito de partidos. Nenhum partido

    perde porque o partido ganha. A comparao tem defeito pelo seguinte motivo: No arranjo

    tradicional, nenhum partido perdeu porque todos os partidos eram parceiros naturais no poder

    ou, mais estritamente, porque no havia partidos. Na situao de partido nico, a razo pela

    qual nenhum partido perde porque os partidos vencidos no competem (Se essas ltimas

    observaes ocasionarem qualquer sentimento de inconsistncia, uma elucidao cuidadosa do

    termo partido neste contexto deve dissip-lo).

    O desaparecimento do sistema de partido nico da cena africana , e deve permanecer,

    no lamentado. Mas minha razo para falar assim no a de aoitar um cavalo morto; ela , de

    fato, para mostrar as boas partes de um caso ruim. Um ponto vlido que foi colocado

    repetidamente pelos defensores do partido nico que no h nenhuma conexo necessria

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    entre democracia e o sistema multipartidrio. Uma viso associada foi que os sistemas nativos

    africanos de poltica, pelo menos em alguns casos bem conhecidos, ofereceram exemplos de

    democracia sem um mecanismo multipartidrio.

    Mas, embora os sistemas tradicionais em questo evitem esse mecanismo, deve se ter

    sempre em mente que, como j mencionamos, ele tinha espao para os partidos em sentido

    amplo. Isto importante porque esses partidos oferecem centros de pensamento independente

    pressuposto pela prpria ideia de um dilogo significativo no processo de tomada de deciso

    poltica Estas condies de interao racional que o sistema de partido nico foi to eficiente

    em destruir.

    A Presso Ocidental para o Multipartidarismo um beco sem sada?

    No caminho para a democracia que ocorreu no continente africano na ltima meia

    dcada7, ditadores africanos, civis e militares, estavam sob presso ocidental constante para

    adotar o modo de vida multipartidrio. Isto provou ser politicamente fatal para alguns deles,

    embora outros tenham eventualmente descoberto truques para sobreviver a eleies

    multipartidrias. No h como negar, claro, que alguns ganhos em liberdade foram obtidos

    para as populaes africanas. Mas o quo substancial tem sido este ganho e em que medida estes

    desenvolvimentos tm sido construdos sobre os pontos fortes das instituies nativas da

    poltica no continente africano? difcil estar convencido de que esta questo tenha chegado a

    atrair ateno suficiente.

    A causa da relativa negligncia para com esta questo pode concebivelmente ser

    conectada com a sua dificuldade. As condies de vida poltica tradicional foram certamente

    menos complicadas que as do presente. As redes de parentesco que forneceram o esteio das

    polticas consensuais de tempos tradicionais so simplesmente incapazes de servir mesma

    finalidade no continente africano moderno. Isso especialmente verdade nas reas urbanas,

    onde a industrializao, embora insignificante em muitas partes do continente africano, criou

    condies tais como clivagens socioeconmicas agudas, que carregam todos ou muitos dos

    ingredientes da poltica ideolgica. Nestas circunstncias, pode muito bem parecer um pouco

    utpico prever a possibilidade de uma abordagem apartidria para a poltica.

    Pode parecer, ainda, que viso da poltica tradicional abordada acima envolve

    essencialmente exageros de harmonia na vida tradicional. Na verdade, mesmo que o consenso

    tenha prevalecido na poltica de certos grupos tnicos no continente africano, historicamente,

    as relaes inter-tnicas envolvendo esses mesmos grupos tm sido, por natureza, marcadas, ou

    mais estritamente, desfiguradas por guerras frequentes as negaes mais extremas de

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    consenso. A questo no apenas que tenha havido guerras tnicas de tempos em tempos,

    como foi concedido no incio, mas de modo srio, que a orientao tnica dos vrios grupos,

    por suas prprias fixaes internas, tende a gerar conflitos nas suas relaes externas.

    Esse mundo contemporneo traz ilustraes trgicas indizveis. Pode parecer,

    portanto, que nem no passado, nem no presente, nem no futuro previsvel qualquer consenso

    possa ser visto como tendo sido, ou como promessa de ser, uma base realista para a poltica em

    qualquer Estado africano composto de unidades tnicas distintas. Pelo contrrio, para que ele

    possa parecer uma abordagem mais pluralista de um sistema multipartidrio, a incluso

    salvaguardas razoveis contra a tirania da maioria oferece a opo mais prtica.

    As premissas em ambas as objees podem ser concedidas, muito prontamente, no

    primeiro caso e com uma restrio no segundo. Mas as concluses a favor do sistema

    multipartidrio em ambos os casos no so inferidas. No que respeita s premissas, verdade

    que qualquer sugesto de que a base de parentesco da poltica tradicional poderia ser um modelo

    para a poltica africana contempornea pode ser descartada como um saudosismo anacrnico.

    Mas, em matria de conflito entre os grupos tnicos, deve notar-se que a histria africana

    fornece exemplos no s de conflito, mas tambm da cooperao entre tais grupos. Ainda assim,

    a histria do conflito inter-tnico e o problema de suas reverberaes contemporneas no deve

    ser minimizado. Curiosamente, esta exatamente uma das razes pelas quais a ideia de um

    sistema partidrio no consensual deve ser levada a srio, especialmente no continente africano.

    Uma das causas mais persistentes da instabilidade poltica no continente africano

    deriva do fato de que, nos muitos estados africanos contemporneos, certos grupos tnicos

    encontraram-se em minoria numrica e politicamente. Sob um sistema de democracia

    majoritria, isto significa que, mesmo com todas as garantias, eles estaro sempre fora dos

    corredores do poder. As frustraes e desafetos, com as suas consequncias negativas para a

    poltica, no deveriam surpreender ningum.

    Poltica de Consenso Apartidrio: Uma sada?

    Consideremos a alternativa apartidria. Imaginemos uma ordem na qual os governos

    no so formados por partidos, mas pelo consenso dos representantes eleitos. O governo, em

    outras palavras, torna-se uma espcie de coalizo - uma coalizo no de partidos, como na

    aceitao comum, mas de cidados. No h impedimento algum para a formao de associaes

    polticas propagando suas ideologias preferidas. Mas em conselhos de Estado, a afiliao com

    qualquer tipo de associao no determina necessariamente as chances de seleo de algum

    grupo para uma posio de responsabilidade.

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    Duas coisas podem ser esperadas. Em primeiro lugar, as associaes polticas sero

    caminhos para canalizar todos os pluralismos desejveis, mas estes sero sem as inclinaes de

    partidos polticos hobbesianos, como so conhecidos sob polticas majoritrias. E em segundo

    lugar, sem as limitaes de filiao em partidos incansavelmente dedicados luta pelo poder ou

    sua manuteno. Os representantes sero mais propensos a serem acionados pelos mritos

    objetivos de determinadas propostas que por consideraes ulteriores. Em tal ambiente, a

    vontade de compromisso e, com ela, as perspectivas de consenso, sero reforadas.

    O consenso no apenas um bnus opcional. Como pode ser inferida a partir de

    minhas observaes anteriores, essencial para uma garantia substantiva, ou o que tambm

    pode ser chamada de decisional, a delegao por representantes e, atravs deles, para os cidados

    em geral. Esta nada menos do que uma questo de direitos humanos fundamentais. Consenso

    como um procedimento de deciso poltica requer, em princpio, que cada representante deve

    ser persuadido, se no pela qualidade de cada deciso, pelo menos, por sua necessidade prtica,

    levando em conta todos os aspectos. Se a discusso tiver sido mesmo moderadamente racional

    e o esprito for de acomodao respeitosa em todos os lados, as reservas restantes por parte de

    uma minoria momentnea no impediro o reconhecimento de que, se a comunidade deve

    avanar, uma determinada linha de ao deve ser tomada.

    Isso no deve ser confundido com tomada de deciso sobre o princpio do direito

    supremo da maioria. No caso em discusso, a maioria no prevalece sobre, mas acima da minoria.

    Devem aceitar a proposta em questo e no apenas viver com ela. O que no fim a situao

    bsica de minorias sob o sistema de democracia majoritria. Em um sistema consensual, a

    aquiescncia voluntria da minoria em relao a um determinado assunto seria, normalmente,

    necessria para a adoo de uma deciso. No caso raro de uma diviso intratvel, uma maioria

    de votos pode ser usada para quebrar o impasse. Mas o sucesso do sistema deve ser julgado pela

    raridade de tais impasses no funcionamento dos rgos de deciso do Estado. A utilizao

    menos indesejvel de maiorias ocorre na eleio dos representantes. Aqui a escolha pode ter que

    ser determinada por nmeros superiores em termos de votos. Mas, mesmo aqui, os

    representantes estaro sob a obrigao de consultar todas as tendncias de opinio nos seus

    crculos eleitorais e trabalhar, tanto quanto possvel, numa base consensual de representao.

    Pontos adicionais mais detalhados, mesmo sobre princpios, permanecem sem ser

    explicitadas, mas as indicaes tornam plausvel supor que, no sistema consensual apartidrio,

    nenhum grupo tnico ou ideolgico ficar com a sensao de estar continuamente afastado de

    uma participao no poder do Estado. Isso por si s deveria ser suficiente para evitar, pelo

    menos, alguns dos conflitos infelizes que tm atormentado a vida africana em nosso prprio

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    tempo. Assim, fazendo o consenso longe das complexidades da vida africana contempornea,

    os precedentes apartidrios das polticas tradicionais africanas, agora inutilizados, tornam-se

    indispensveis. Por esta razo, se no por outras, a explorao dessa alternativa para a poltica

    multipartidria deveria receber a ateno urgente dos filsofos africanos e cientistas polticos

    contemporneos. De fato, no h nada particularmente africano nesta ideia em si. Se for vlida,

    especialmente no que diz respeito sua dimenso de direitos humanos, deveria ser uma

    referncia para toda a nossa espcie.

    Kwasi Wiredu professor de Filosofia na Universidade do Sul da Flrida em Tampa, e

    atualmente ensina na Universidade de Duke.

    Notas 1 Gideon-Cyrus M. MUTISO / S.W. ROHIO (ed.) (1975): Readings in African Political Thought.

    London: Heinemann, 476.

    2 Ibid., 478. K.A. Busia tambm comenta sobre a mesma busca pelo consenso de pensamento nico como o obtido entre os Akans tradicionais de Gana em seu (1967) Africa in Search of Democracy (London: Routledge & Kegan Paul). A passagem comporta uma longa citao: Quando um conselho, com cada membro representado uma linhagem, se reuniu para discutir questes que afetando toda a comunidade, teve sempre de lidar com o problema da conciliao de interesses setoriais e comuns. A fim de fazer isso, os membros precisam falar bastante. Eles tiveram que ouvir todos os diferentes pontos de vista. To forte era o valor da solidariedade que o principal objetivo dos vereadores era alcanar a unanimidade, e falaram at que este objetivo foi alcanado. "(28)

    3 M. FORTES / E.E. EVANS-PRITCHARD (ed.) (1940): African Political Systems. Oxford: Oxford University Press, 5.

    4 Ver, para exemplo , Max GLUCKMAN: "The Kingdom of the Zulu of South Africa"; I. SHAPERA: "The political organisation of the Ngwato of Bechuanaland Protectorate" (present-day Botswana); e AudreyRICHARDS: "The political system of the Bemba tribe north-eastern Rhodesia" (in present-day Zambia); all in FORTES / EVANS-PRITCHARD, Note 3.

    5 K.A. BUSIA (1951): The Position of the Chief in the Modern Political System of the Ashanti. London: Frank Cass.Os Ashantis so um subgrupo dos Akans. Outros subgrupos so os akims, Akuapims, Denkyiras, Fantes, Kwahus, Brongs, Wassas, e Nzimas. O Akans, como um todo, constituem quase a metade da populao de Gana, ocupando partes das regies mdia e sul do pas. A Costa do Marfim tambm lar de alguns grupos Akan. A explicao dada para o sistema de Ashanti verdadeira em todos os fundamentos dos Akans em geral.

    6 W.E. ABRAHAM (1962): The Mind of Africa. Chicago: University of Chicago Press. Porque o rei estava cercado por conselheiros cujos escritrios eram polticos, e era ele mesmo apenas uma

    http://them.polylog.org/2/fwk-en.htm#r1http://them.polylog.org/2/fwk-en.htm#r2http://them.polylog.org/2/fwk-en.htm#r3http://them.polylog.org/2/fwk-en.htm#r4http://them.polylog.org/2/fwk-en.htm#r5http://them.polylog.org/2/fwk-en.htm#r6http://them.polylog.org/2/fwk-en.htm#r1http://them.polylog.org/2/fwk-en.htm#r3http://them.polylog.org/2/fwk-en.htm#r4http://them.polylog.org/2/fwk-en.htm#r4

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    representate da unidade do povo, era bem possvel remov-lo do cargo; o catlogo dos possveis motivos de remoo j fora providenciado com antecedncia. (77).

    7 O texto foi escrito em 1995. (nota do Editor)

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