Kula Curadoria

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Construção do valor em obras de arte: uma comparação entre os artigos trocados

no kula e peças em exposição.

Arte é uma palavra ou categoria européia, que está geralmente ausente na maioria das

línguas e das culturas não-ocidentais (FIRTH, Raymond 1992). Porém, a representação artística é universal e algo inerente ao ser humano (FISCHER, Ernst 1967), fazendo de todo

artista uma espécie de “antropólogo nativo” ao

materializar aquilo que a realidade lhe

significa (FOSTER, Hal 1985 ) . Uma outra característica básica, e de crucial importância

neste texto, é o fato da arte estar sempre representada num produto ou objeto, as obras de

arte, peça essa que invariavelmente ganha um valor, seja através da mão-de-obra do artista e

do(s) material(ais) empregado(s), como acontece em qualquer outro tipo de produção; ou através da singularidade e da autenticidade daquela obra, o que constitui a característica

própria desse mercado.

A minha proposta com este texto é utilizar de dois exemplos muito distantes para falar sobre a construção do valor em “obras de arte” , e enxergar as reais trocas que são feitas 1

quando uma peça artística entra numa economia de mercado, ou mesmo enquanto dádiva. O

primeiro exemplo é o sistema do kula

, descrito por Bronislaw Malinowski nos anos 1920,

onde através de colares e braceletes são feitas trocas que vão além da cultura material. Em

comparação com o sistema de trocas das ilhas Trobriand, coloco o nosso mercado de arte

institucionalizado, os espaços reservados a ele, e um ator social importante nesse processo, o

curador, profissional capacitado não só para autenticar a veracidade de uma obra de arte

como determinar o seu valor, seja ele em forma de dinheiro ou prestígio.

Se algumas aproximações, ou mesmo semelhanças, poderão ser vistas entre os dois sistemas, todas as incongruências que fazem com que um universo jamais se encaixe no

outro, são explicadas pelas duas diferentes maneiras que são feitas essas trocas. Enquanto que

a arte ocidental existe dentro de uma economia de mercado, os objetos trocados dentro do

kula são ofertados enquanto dádiva, o que torna completamente diferente o modus operandi

dos atores sociais participantes de cada processo. Diferença essa que, amparada nas

características que Chris Gregory aponta em Gifts and Commodities (1982) sobre os dois

sistemas de troca, constituirá uma terceira parte do texto e uma comparação entre os dois

exemplos.

Um dos grandes percalços que tive durante a pesquisa foi se poderia ou não tratar os

artigos trocados no

kula enquanto peças de arte. A palavra “arte” é escassa no decorrer de Argonautas do Pacifico Ocidental

, e sem dúvida muito menos presente que o termo

“economia” ou simplesmente “troca”. Assim, quando os mwali e os soulava são citados

genericamente durante o livro recebem o nome de “peças” ou “artigos”, ou mesmo “artefatos”, ou seja, um objeto criado artificialmente, feito pelo homem, sem nenhuma

conotação transcendental que uma peça de arte por vezes possui.

1

Adotei as aspas por não achar o termo ideal para as peças encontradas no primeiro exemplo, o kula.Não pelos vaygu’a não atenderem a requisitos estéticos de uma arte institucionalizada (o que, aliás,

não ocorre), mas por, obviamente, não possuírem esta nomenclatura internamente.

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[DESENVOLVER DEBATE CONTIDO NO LIVRO DE TIM INGOLD SOBRE A

ESTETICA SER OU NAO UMA CATEGORIA TRANSCULTURAL]

Kula [PENSAR SUBTITULO]

Na descrição pioneira do

kula feita por Malinowski, os artigos principais trocados são

dois: os

mwali (braceletes feitos com conchas brancas) e os

soulava (colares de discos feitos

de conchas vermelhas). As duas peças são transportadas através das ilhas em direções

opostas, até por ventura se encontrarem e serem trocadas uma pela outra, como ilustrado no

mapa contido no livro de Malinowski:

Fonte: “Argonautas do Pacifico Ocidental”. Malinowski, B. 1922.

O kula pode ser definido como uma “espécie de comércio”, mas o que o diferencia de

um comércio usual é o fato dos objetos trocados não possuírem uma utilidade prática, nem

mesmo como adorno, exceto em raras exceções . Sendo os artigos permutados muito mais 2

veículos para outros valores não materiais do que produtos em si.

2 “(...) a maioria dos braceletes (cerca de noventa por cento deles) são pequenos demais para serem

usados, até mesmo por crianças. Por outro lado, alguns deles são tão grandes e tão valiosos que não

são usados praticamente nunca, a não ser uma vez a cada dez anos, se tanto (...). Embora os colares

possam ser usados, alguns deles são de igual forma considerados valiosos e incômodos demais paraserem usados com muita frequência; ficam, desse modo, reservados para ocasiões muito especiais”

MALINOWSKI, B. Argonautas do Pacifico Ocidental. pp. 75

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A importância e finalidade desses objetos sem uso prático faz Malinowski indagar-se

se há em seu meio objetos que cumpram funções semelhantes, e compara os vaygu’a trocados

nas ilhas Trobriand às jóias da rainha expostas no Castelo de Edimburgo naquela época; que

vistosas demais, pesadas e extremamente valiosas, cumpriam funções próximas às dos

colares e braceletes.A analogia de Malinowski se estende de forma que o sentimentalismo histórico que

agrega valor a uma peça nossa, é o mesmo que torna valioso um bracelete dentro do kula :

“As forças psicológicas de uma e de outra cultura são as mesmas; é a mesma a atitude mental que nos leva a valorizar nossos objetos históricos ou tradicionais e faz com que os nativos de Nova Guiné tenham seus vaygu’a em grande apreço”

(MALINOWSKI. p. 77)

Uma vez dentro desse circuito, os

vaygu’a permanecem nele, e em constante

movimento, já que ninguém guarda consigo um objeto por longo espaço de tempo, exceto, novamente, em raras situações . Logo, a “posse” é uma relação econômica quase inexistente 3

no sistema do

kula , e qualquer sujeito que por ventura escolha guardar um objeto em seu

poder por mais de um ou dois anos, será censurado pela sua “cobiça” e excluído socialmente

de alguma maneira. A censura social cabe tanto a indivíduos quanto a distritos que ganham

má reputação por serem “lerdos” ou “duros de lidar” no kula (Malinowski, p. 79).

A posse temporária do objeto pelo nativo lhe atribui um certo “capital social”, “lhe permite adquirir grande renome, exibir sua aquisição, contar aos outros de que modo a obteve

e planejar a quem os destinar a seguir” (pág. 79). Como destaca Malinowski, a posse é o fator

diferencial na relação dos trobriandeses com os colares e braceletes, em relação à nossa com peças de arte e outras relíquias de valor, visto que no ocidente a posse permanente (compra)

de tais objetos é o que faz o sujeito possuir o capital social.

Como já dito, no kula a posse temporária do objeto já faz com que o possuidor

obtenha prestígio; relação semelhante que Malinowski só vê em outros tipos de objeto no

nosso caso: os troféus, as marcas de superioridade, as taças de campeonato. Objetos que são

de posse temporária, visto que o ganhador é renovado temporariamente, e que transferem os

mesmos elementos de orgulho e êxito pessoal ao sujeito que tem aquela peça em seu poder.

No momento que escrevo este texto, é transmitida a 88ª cerimônia da Academy

Awards, ou Oscar, premiação anual que contempla os profissionais de cinema em Hollywood e no resto do mundo. Colocadas as devidas diferenças - visto que um ganhador de um Oscar

não só permanece com a estatueta para si, como será sempre um vencedor do Oscar -, o

exemplo ainda é válido, já que a renovação do prêmio faz com que o ganhador atual possua

maior prestígio que o vencedor do ano anterior. Assim, é fácil constatar que uma ganhadora

do Oscar deste ano esteja mais cotada e mais valorizada em determinado campo do que

3 “Com efeito, em todo território de Trobriand existem talvez apenas um ou dois braceletes e colares

especialmente bem feitos, conservados permanentemente como bens de herança; constituem umaclasse especial de objetos que de uma vez por todas estão fora de circulação no Kula.” MALINOWSKI,

pp. 79

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vencedoras de anos anteriores. O que mostra uma co-relação no prestígio que ambas as peças

(estatueta do Oscar, e um bracelete do kula por exemplo) transferem ao seu atual possuidor.

Malinowski enfatiza também uma série de condutas controladoras entre os atores

sociais envolvidos nas cerimônias pertencentes ao

kula , tais como a equivalência ou não da

troca ser determinada por aquele quem primeiro faz a doação, ou um colar de alto valor ser obrigatoriamente trocado por um bracelete também muito valioso, não por vários braceletes

de valor menor.

O fato de um nativo não querer sair perdendo numa troca pode nos levar a crença de

um homo economicus universal, que tem paixão pela posse e ódio pela perda. Raciocínio que

Malinowski desmente e explica em poucas linhas, dizendo que o desejo natural pela posse,

que obviamente existe no nativo, é suplantado pelo código social de leis que regulam o dar e receber. Em síntese, para o nativo do kula

, possuir é dar; cálculo difícil de fazermos na ponta

do lápis, mas de fácil percepção se levarmos em conta os ganhos pessoais que um nativo

recebe a cada novo parceiro de troca e a cada presente doado.Por fim, é fácil concluir que o valor contido em cada artigo trocado no kula

, provém

do histórico daquele objeto e das diferentes mãos pelas quais passou. Se formos seguir a

mesma lógica num cenário ocidental - e aqui aparecem as diferenças entre dádiva e

mercadoria -, surgiriam várias incongruências, como um carro semi-novo ser mais caro que

um recém saído da concessionária. No kula

, o valor das peças não está contido na sua

concepção material, logo o seu desgaste não acarreta numa desvalorização, pelo contrário, a

sua trajetória é o que valoriza a peça.

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Se no kula temos um agente participante do sistema definindo se o presente retribuído

é válido ou não, no cenário artístico ocidental há muito tempo se estende uma disputa sobre

quem seria o detentor de uma atividade legitimadora da arte.

Em boa parte do séc XX, o crítico de arte possuía todo o reconhecimento para não só

mensurar o valor de mercado de uma peça, como definir se aquilo tratava-se de arte ou não . 4

Essa posição de um profissional que fala “sobre a arte” foi aos poucos substituída pelo

curador, que fala “com a arte”, que opera como interlocutor entre artista e público, buscando privilegiar as duas partes .5

O artista cria a arte, e o curador a torna visível, cria conexões, a coloca num contexto,

num espaço, cria diálogo entre a arte e o espaço público. A autoridade que o curador exerce

numa exposição, criando novos cenários e fazendo conexões com obras sem relação natural

4 Importante destacar que mesmo a atividade de critico da arte sofreu grandes mudanças, deixando em

desuso essa função de “juiz da arte”; sobre isto ver tese de Mauro Trindade (2008), onde o autor mostra

a alteração do papel da critica da arte, através de artigos de crítica artística publicadas em jornais do

Rio de Janeiro nos anos 1990.5

Um paralelo a isso pode ser feito com a escrita etnográfica, que sofreu o mesmo tipo de mudança.Deixando obsoleta uma forma antiga de abordagem em privilégio a uma outra que atende melhor as

necessidades.

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ou não contemporâneas, faz profissionais do meio indagarem-se se não seria o curador

também um artista, que usa obras de arte como ingredientes para criar a sua própria, com

objetivos diferentes.

É função do curador, em conjunto com outros profissionais, ornamentar o ambiente,

dispor as obras de uma determinada maneira, escolher as cores das paredes, etc. Todas as escolhas estéticas visam um benefício prático, que é no caso destacar as obras e melhorar a

experiência do público.

No

kula , os artigos são transportados através das ilhas por canoas super decoradas.

Decoração que serve a um fim prático. Uma canoa bem construída e bem decorada mostra-se

poderosa e eficaz; deixando clara a função econômica que a magia possui entre os

trobriandeses. Assim como a arte, a estética e o design são muitas vezes responsáveis por empreitadas de sucesso em uma economia de mercado.

Sopakarina , canoa cerimonial usada no kula , exposta no Museu Pré Histórico Etnográfico Luigi Pigorini, em Roma na Itália.

Panorama atual do artista e diferenças entre dádiva e mercadoria

- FOSTER, Hal, 1985, “The ‘Primitive’ Unconscious of Modern Art”, October, 34

- FIRTH, Raymond, 1992, “Art and Anthropology”, COOTE, J., e A. SHELTON (orgs.), Anthropology, Art, and Aesthetics, Oxford, Clarendon Press.

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- FISCHER, Ernst, 2007 [1967], “A Necessidade da Arte”, Editora LTC, São Paulo.- MALINOWSKI, Bronislaw, 1978 “Argonautas do Pacífico Ocidental”. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural.- GREGORY, Chris, 1982. “Gifts and Commodities”. Academic Press: London- DIAS, José Antonio, 2001. “Arte e Antropologia no século XX: modos de relação” in Etnografica Vol.

V(1), 2001, pp. 103-129.