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Artigo de Leandro Terra Adriano e Leonardo César Souza Ramos em E-civitas Revista Científica do Departamento de Ciências Jurídicas, Políticas e Gerenciais do UNI-BH, Belo Horizonte, vol. V, n. 2, dez-2012.

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  • E-civitas Revista Cientfica do Departamento de Cincias Jurdicas, Polticas e Gerenciais do UNI-BH

    Belo Horizonte, vol. V, n. 2, dez-2012. ISSN: 1984-2716. Disponvel em: www.unibh.br/revistas/ecivitas/ e.mail

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    Keohane e o institucionalismo liberal: conflitos ontolgicos na construo terica das Relaes Internacionais

    Leandro Terra Adriano1

    Professor Leonardo Csar Souza Ramos2

    SUMRIO

    1 INTRODUO .............................................................................................................. 5

    2 A FUNO DA DISCIPLINA DE RELAES INTERNACIONAIS .............................. 6

    2.1 O perodo entre guerras e a gnese da disciplina ................................................... 6

    2.2 A dicotomia idealismo/ realismo e o alcance da maturidade intelectual .................... 7

    3 O REALISMO E O EMPIRICISMO COMO VCIOS DA DISCIPLINA ........................... 9

    3.1 Estado, anarquia e poder .......................................................................................... 11

    3.2 Empiricismo, positivismo e estruturalismo ................................................................. 12

    4 A NECESSIDADE DE TEORIAS NORMATIVAS ......................................................... 14

    4.1 Teoria crtica e movimentos contra status quo .......................................................... 15

    4.2 tica: sua possibilidade e limites no pensamento internacional ................................ 17 1 Graduando em Relaes Internacionais pelo Centro Universitrio de Belo Horizonte. E-mail:

    [email protected] 2 Doutor em Relaes Internacionais pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro,

    professor dos cursos de Relaes Internacionais do Centro Universitrio de Belo Horizonte e da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais. E-mail: [email protected]

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    4.3 Introduzindo Keohane: sua relevncia e o caminho teoria institucionalista ........... 19

    4.3.1 Transnacionalismo e a interdependncia complexa .............................................. 21

    4.3.2 Teoria dos regimes ................................................................................................ 22

    5 INSTITUCIONALISMO LIBERAL COMO TEORIA NORMATIVA ................................ 24

    5.1 A escolha racional de cooperar e o papel das instituies ....................................... 26

    5.2 Arranjo institucional cosmopolita para regular as guerras preventivas ..................... 34

    6 ELEMENTOS ONTOLGICOS PRESENTES NO PENSAMENTO DE KEOHANE .... 35

    6.1 Sobre o oportunismo epistemolgico em Relaes Internacionais ............................ 32

    6.2 As razes das escolhas ontolgicas de Keohane ....................................................... 36

    7 CONCLUSO ............................................................................................................... 38

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................................ 40

  • RESUMO

    O objetivo desse artigo revisitar as origens e desenvolvimento das teorias das Relaes Internacionais na busca de inspirao sobre o propsito e contribuio dessa disciplina comunidade internacional. A partir do entendimento de Edward Carr sobre os requisitos para a maturidade da disciplina, identificamos que o mainstream anglo-americano entrou em uma espiral de pessimismo (realismo) e empiricismo (estruturalismo), eclipsando as teorias normativas na direo de melhores prticas internacionais. Encontramos na obra de Robert Keohane uma curiosa coexistncia de dois mindsets dicotmicos: o estruturalismo e a normativisao, o que reproduz o dilema do primeira debate entre ser e dever ser, ou realismo e idealismo. Atravs de um estudo conceitual sobre as teorias crticas, as escolhas ontolgicas e ticas no cenrio da poltica internacional e o conflito entre elas, revelaremos as origens da viso cosmopolita de Keohane e a sua contribuio para o progresso nas relaes internacionais. Apresentamos um estudo de caso sobre a teoria institucionalista liberal e a habilidade com a qual o autor sugere uma reforma institucional na agenda da segurana coletiva de forma progressista, porm ciente dos constrangimentos sistmicos histricos e do paradigma da constante disputa pelo poder.

    Palavras-chave: Teoria das Relaes Internacionais, Institucionalismo liberal, Teoria crtica, Ontologia, Edward Carr, Robert Keohane

    Keohane and liberal institutionalism: ontological conflicts in the theoretical construction of International Relations

    ABSTRACT

    The aim of this paper is to revisit the origins and development of the theories of International Relations in search of inspiration on the purpose and contribution of this discipline to the international community. From the understanding of Edward Carr on the requirements for the

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    maturity of the discipline, we identified that the Anglo-American mainstream entered a spiral of pessimism (realism) and empiricism (structuralism), eclipsing the normative theories heading to best international practices. We have found in the work of Robert Keohane a curious coexistence of two dichotomous mindsets: structuralism and normativisation, which reproduces the "first debate" dilemma between "is" and "ought to be", or realism and idealism. Through a conceptual study on the critical theories, ontological and ethical choices in international politics and the conflicts among them, we aim to reveal the origins of the cosmopolitan vision of Keohane and its contribution to progress in international relations. We present a case study of the liberal institutionalist theory and the ability with which the author suggests an institutional reform of the collective security agenda in a feasible way and aware of the systemic historical constraints and the constant struggle for power paradigm.

    Key-words: Theory of International Relations, Liberal institutionalism, Critical theory, Ontology, Edward Carr, Robert Keohane

    1 INTRODUO

    As teorias de RI desenvolvidas nos Estados Unidos, Reino Unido, Canad, Austrlia e outros da comunidade anglo-saxnica ao longo do sculo XX criaram uma auto imagem de debates ao descrever a histria da disciplina. Animados pela necessidade urgente de propor melhores prticas diplomticas ao triste contexto das guerras mundiais, vrios autores se engajaram em projetos considerados concorrentes. A diviso clssica feita na disciplina entre o realismo e o idealismo. Aps o fracasso da Liga das Naes e a tragdia da Segunda Guerra Mundial, as teorias utpicas sobre a cooperao e paz internacionais foram relegadas a distores irresponsveis da realidade por aqueles crentes na negra tendncia das naes em guerrear constantemente pela sobrevivncia, prestgio e poder, os autodenominados realistas. A partir desse ponto, fazemos a nossa primeira pergunta: qual a funo das RI? Se a disciplina surgiu para trazer melhores prticas internacionais, por que no sculo XX foi estabelecido um paradigma terico ctico em relao possibilidade de progresso e mudana?

    Para responder a essa pergunta, questionamos a evoluo da disciplina desde a crtica de Edward Carr a Norman Angell no perodo entre guerras at as abordagens contemporneas

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    que criticam o paradigma positivista que dominou a disciplina a partir dos anos 1950. Quais so as alternativas ao realismo? possvel construir um mundo com base em pressupostos ticos? Quais so os limites da tica? Ao responder essas questes, nos aproximamos do trabalho do autor americano Robert Keohane, que curiosamente compartilha dos preceitos positivistas erguidos pelos realistas, mas ainda assim capaz de propor solues aos problemas da poltica internacional de forma plausvel e consciente dos fatos. Quais so as inspiraes de Keohane? Como ele enxerga o mundo atual ao defender uma viso cosmopolita para a mudana? realmente possvel que um autor dividido entre o positivismo e a normativisao possa gerar conhecimento vlido? Atravs do estudo conceitual da possibilidade de mudana do ponto de vista terico e ao analisar uma das propostas institucionais de Keohane (sobre a guerra preventiva), desenvolveremos uma opinio slida e referenciada sobre o seu legado.

    2 A FUNO DA DISCIPLINA DE RELAES INTERNACIONAIS

    Partiremos de um dos primeiros trabalhos e talvez o mais destacado da literatura anglo americana de RI a desenvolver uma proposta sobre o futuro e os fins da disciplina: The Twenty Years Crisis, de Edward Hallet Carr. Compreendido o contexto histrico em que surgiu, suas premissas serviro de guia normativo para a anlise das obras que seguiram ao longo do sculo XX e incio do sculo XXI. Carr nos ajuda a responder primeira questo desse artigo: qual a funo da disciplina de RI e com o que ela contribui ao mundo?

    Normalmente The Twenty Years Crisis ensinado como o marco zero do realismo, mas grande parte de sua preciosidade est no reconhecimento de Carr que a disciplina de RI deve se tornar uma cincia capaz de operar mudanas no mundo. Considera-se, portanto, o pensamento de Carr como concomitante s teorias crticas que sero discutidas nas prximas sesses (REUS-SMIT, 2008).

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    2.1 O perodo entre guerras e a gnese da disciplina

    As RI constituem uma disciplina com quase um sculo de existncia, desde sua primeira ctedra no Pas de Gales em 19193. Tal iniciativa acadmica no foi por caso, e sim uma resposta aos acontecimentos que levaram Primeira Guerra Mundial e modificaram o sistema eurocntrico para sempre. Segundo a auto-imagem da disciplina, os professores questionaram a diplomacia oculta e a tendncia cortes a manter as questes de Estado reservadas aos homens de Estado, fora do crivo de sua maior vtima, a sociedade civil. A guerra, como instituio, passava por um afunilamento em direo ilegalidade4 e altura do Tratado de Versalhes e a criao da Liga das Naes em 1919 surgia uma Europa arruinada e disposta a confiar novamente no modelo diplomtico do final do sculo XIX (CARR, 2001).

    A problemtica participao dos Estados Unidos em Versalhes foi fruto da recusa do Congresso Americano a ratificar a participao dos Estados Unidos na Liga das Naes, preconizada pelos Quatorze Pontos do seu prprio presidente Woodrow Wilson. O discurso feito em junho 1918 sugeria as principais providncias ps guerra para a reestruturao poltica da Europa de forma solidria e idealista. Alm de solicitar a evacuao de territrios por foras estrangeiras, a restaurao de fronteiras e a diminuio das barreiras comerciais no continente, os pontos tambm priorizavam o desarmamento gradual, fim da diplomacia secreta e que todas as alianas fossem feitas publicamente, alm da constituio da Liga das Naes e a participao da Rssia na mesma.

    Investidas intelectuais idealistas demonstravam o saudosismo pela Belle poche, um perodo franco-britnico de estabilidade poltica e grande avano cultural e cientfico interrompido bruscamente pela Primeira Guerra (CARR, 2001). Alguns pensadores defenderam essa estabilidade em detrimento da poltica de poder iminente, como o jornalista, escritor e membro do Parlamento Britnico Sir Ralph Norman Angell. Em A Grande Iluso, publicado em 1910, Angell acusa o militarismo de obsolncia devido grande integrao econmica alcanada pela Europa. O membro do Labour Party

    3 O Departamento de Poltica Internacional da Universidade de Aberystwyth foi fundado em 1919 logo

    aps o trmino da Primeira Guerra Mundial. Seus fundadores apoiavam o conceito cosmopolita da Liga das Naes, sendo Woodrow Wilson o nome homenageado na ctedra. Mais informaes em: < www.aber.ac.uk>. Acessado em 26 nov. 2012. 4 Posteriormente, em 1928, foi firmado em Paris o Pacto Kellog-Briand. O tratado firmado pelos

    membros da Liga das Naes e pelos Estados Unidos proibia o recurso a guerra por qualquer razo, exceto pela legtima defesa.

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    acreditava que a guerra vindoura traria prejuzos econmicos e consequemente polticos a todas as naes envolvidas (ANGELL, 2002). No perodo entre guerras a obra foi revisitada pelo jornalista, historiador e diplomata britnico E. H. Carr trazendo uma imensa crtica.

    Em The Twenty Years Crisis (1939), Carr faz a primeira anlise sobre o trabalho acadmico das RI desenvolvido at ento e o pensamento corrente dos bastidores polticos entre guerras, dividindo seus interlocutores entre idealistas e realistas.

    2.2 A dicotomia idealismo/ realismo e o alcance da maturidade intelectual

    A confiana na restaurao e manuteno das instituies polticas e financeiras do Atlntico Norte, como por exemplo, o padro ouro, e o projeto de maior integrao pacfica foram defendidos de diferentes formas por Wilson, Angell e outros. Carr acusou todos esses projetos de utpicos e ingnuos, e que uma anlise sria e responsvel da poltica internacional e das possibilidades de guerra e paz deveriam conter um entendimento mais ctico e emprico, iniciando o que comumente chamado de primeiro debate das RI. Tal ceticismo, no dado contexto, colocava em questo do estado de natureza humana5 e a tendncia do homem ao egosmo e auto-ajuda. Entender que a cooperao improvvel devido a necessidade dos Estados de garantirem suas riquezas, territrios e soberania atravs da guerra foi rotulado de realismo (CARR, 2001).

    O primeiro debate foi, na verdade, o discurso dos auto denominados realistas em suas crticas ao idealismo vigente. Apesar de ser conhecido como um realista pioneiro, Carr desenvolveu em The Twenty Years Crisis uma anlise abrangente sobre os vcios e as virtudes das duas posturas intelectuais e a sua contribuio para o pensamento da poltica internacional. Para tanto, o historiador utiliza a metfora dos espritos jovens e velhos. O esprito jovem, caracterstica dos idealistas, possui mais vontade do que experincia e, portanto, comete o erro de tentar praticar ideais pouco ou nada factveis. No mbito da poltica internacional so aqueles que vislumbraram um projeto de paz e cooperao entre 5 O estado de natureza humana uma abstrao filosfica sobre o padro de comportamento

    humano antes do seu primeiro contato com a sociedade. Tal abstrao comum ao primeiro debate das Relaes Internacionais, sendo os estados de natureza sugeridos pelos autores clssicos Rousseau, Hobbes e Locke a raiz da divergncia terica sobre como explicar as relaes polticas dos homens e consequentemente, dos Estados.

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    as naes, baseado em acordos e na expectativa do cumprimento dos mesmos. O idealismo prioriza o dever ser ao ser, e acaba ignorando as contingncias que impossibilitaro o alcance do ideal. O esprito velho, pelo contrrio, constitudo do ceticismo construdo pelas experincias negativas do passado e o conhecimento categrico sobre como o estado atual das coisas, o ser, portanto no abre possibilidades para qualquer tentativa de mudana. Na mesma obra em que introduz o realismo como viso necessria, Carr tambm aponta os seus defeitos: enquanto o esprito jovem dos idealistas so ingnuos e fadados ao no cumprimento de seus ideais, o esprito velho dos realistas incapaz de operar mudanas, e portanto, infrtil e intil ao poltica significativa (CARR, 2001).

    Para Carr, a disciplina de RI deve constituir um projeto que alcance a maturidade no meio termo entre o idealismo e o realismo. The Twenty Years Crisis apresenta a ambio de seu autor em participar da construo de uma cincia que gerasse sound political thought6, no somente no sentido de guiar o processo de tomada de deciso dos homens de Estado, mas de operar ativamente na reconstruo da ordem internacional. O realismo por si s no capaz de animar essa cincia e muito menos de apresentar um discurso significativo. A dicotomia idealismo/ realismo no um dilema sem sada, e sim um exerccio intelectual necessrio: o estudioso deve vislumbrar o mundo que queremos com esprito jovem e disposto a defender o ideal, imediatamente, devemos analisar o estado atual do objeto de mudana e aprofundar o nosso conhecimento nas causas do status quo, verificando at que ponto a instaurao do plano ideal factvel. O domnio das duas virtudes caracteriza uma cincia madura de RI (REUS-SMIT,2008).

    Recentemente, Andrew Linklater estabeleceu uma trinca ao pensamento crtico, que muito assemelha-se ao conceito de maturidade de Carr: a tica, a sociologia e a praxeologia. No h postura crtica sem um objetivo normativo definido que se deseja alcanar (tica), e intil buscar operar qualquer mudana sem um profundo conhecimento da sociedade e as contingncias histricas, culturais, econmicas e polticas que a constituem (sociologia). Por fim, devemos estudar quais as ferramentas e meios disponveis para operar as mudanas plausveis para realizar a tica no meio social (praxeologia) (LINKLATER, 1998 apud REUS-SMIT, 2008). Tais consideraes so fundamentais para compreender o que de fato esperava-se das RI em seus primeiros movimentos, e a partir do conceito de maturidade desenhado por Carr, analisaremos o desenvolvimento terico posterior.

    6 Traduo livre: pensamento poltico sonoro.

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    3 O REALISMO E O EMPIRICISMO COMO VCIOS DA DISCIPLINA

    O desenvolvimento da disciplina de RI desenvolveu-se da forma sugerida por Carr ao longo do sculo XX? A transformao do realismo em um paradigma sugere uma resposta negativa. Alm do ceticismo do realismo, a disciplina tomou contornos empiricistas a partir dos anos 1950, com o advento do behaviorismo nas cincias sociais. Dessa forma, o espao intelectual necessrio ao progresso normativo foi excludo (REUS-SMIT, 2008).

    A falha da Liga das Naes e a ecloso da Segunda Guerra Mundial (preconizada por Carr em The Twenty Years Crisis, publicado meses antes, em junho) evidenciaram a ingenuidade dos idealistas e confirmaram as premissas em desenvolvimento pelos realistas. Ao menos, essa a auto imagem terica construda no ps guerra pelos realistas que a partir de ento se estabeleciam como o mainstream da disciplina. Duas guerras de proporo indita que arruinaram a Europa, a utilizao de artefatos nucleares na derrota do Japo e o estabelecimento de uma ordem mundial bipolar entre os Estados Unidos e a Unio Sovitica desenharam o contexto histrico perfeito para a cultura da poltica de poder nas teorias de RI. Em 1948, o professor alemo Hans J. Morgenthau, erradicado nos Estados Unidos publicou Politics Among Nations, clssico considerado seminal da tradio realista.

    Entende-se que o esprito velho de Carr ocupou um espao predominante na literatura anglo americana que seguiu at o final da Guerra Fria, mesmo com a existncia de vozes dissonantes. A escola realista marcou a disciplina com paradigmas aceitos inclusive por outras tradies, como o estadocentrismo, a anarquia internacional e a poltica de interesses. Vrios autores da primeira metade do sculo XX relacionaram a disciplina de RI a pensadores clssicos da antiguidade e da modernidade. Tucdides e a Guerra do Peloponeso, Maquiavel e O Prncipe e Thomas Hobbes e Leviat so os principais exemplos. Esses trs autores basearam seus trabalhos na disputa pelo poder e por isso foram adotados pelos realistas como tradio filosfica das RI, de modo que seus pressupostos sobre a natureza do homem, do Estado e da poltica precediam as premissas realistas. Por outro lado, o idealismo foi atrelado tradio de Immanuel Kant e a Paz

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    Perptua devido ao seu tom normativo e utpico, e permaneceu como inspirao para a escola liberalista dos anos 1960 que herdou os estudos sobre a Paz Democrtica7.

    A diferena entre Hobbes, Jean-Jacques Rousseau e John Locke reside no estado de natureza do homem. A idia de um tipo humano primitivo e imaculado pela hierarquia foi lugar comum da filosofia sobre a verdadeira inclinao humana. Hobbes acreditava que esse homem era egosta e desconfiado, sendo capaz de agredir seus iguais para garantir a sua sobrevivncia. Rousseau trabalhou com a idia de que o homem bom e pacfico por natureza, mas o contato com a sociedade o corrompe. Locke defendia um meio termo onde o homem era naturalmente similar ao descrito por Hobbes, mas ainda conservava a capacidade de cooperar e estabelecer laos de confiana. O proto realismo de Tucdides e Maquiavel espelhavam na poltica a noo pessimista do homem auto interessado, e portanto, as polticas entre cidades estado ou principados seria definida pela necessidade primordial de sobrevivncia e a busca por um poder maior do que os seus inimigos.

    Segundo Arnold Wolfers (apud WVER, 2005), mais sensato eleger como literatura seminal aquela produzida por contemporneos do Estado moderno, o que exclui Tucdides e as cidades Estado da Guerra do Peloponeso, e os principados italianos de Maquiavel. Hobbes permanece vivel por ser um dos idealizadores do tipo de Estado europeu que culminou em Vestiflia e o Concerto Europeu, mas justamente esse Concerto que entrou em questo com o advento do nacional-socialismo, as guerras mundiais e o surgimento das organizaes internacionais. mais til, portanto, respeitar a influncia da literatura histrica e poltica dos sculos anteriores, mas reservar o status de literatura clssica das RI s obras que de fato foram produzidas para fundar a disciplina, como o trabalho de Carr e Morgenthau .

    3.1 Estado, anarquia e poder

    Assim como o idealismo, o realismo tambm no era uma teoria, mas um conjunto de teorias singulares com ontologias em comum, o que podemos chamar de escola. 7 A partir de sua obra A Paz Perptua: Um Projeto Filosfico (1795), Kant considerado o precursor

    do liberalismo por sugerir que a paz (mundial) perptua s ser alcanada se os Estados engajarem-se com uma diplomacia transparente, abolio dos exrcitos, proibio da ingerncia e subordinao de uma nao pela outra, entre outros. Para o iluminista, tais condies s poderiam ser alcanadas se todos os Estados envolvidos fossem repblicas e que a cidadania de suas populaes fossem globais, cosmopolitas.

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    Morgenthau explorou conceitos fundamentais ao realismo, como a anarquia internacional, a natureza egosta e belicosa do homem e a ausncia de valores na esfera de tomada de deciso da poltica externa dos Estados soberanos (MORGENTHAU, 2003). Das trs premissas citadas, a primeira era compartilhada com os idealistas, sendo o estadocentrismo comum s duas escolas. O entendimento que variava entre os realistas e idealistas era a possibilidade ou no de cooperao e paz, fazendo com o que o principal ponto de disputa fosse a natureza do homem.

    Nessa obra, o autor definiu os Seis Princpios do Realismo Poltico8. O interesse definido em termos de poder considerado uma lei material e opera paralelamente a qualquer outra instituio humana como a economia, a justia e a religio. No caso da poltica internacional, o interesse pelo poder prioritrio e condena as naes a um ambiente de anarquia constante. No ambiente anrquico, h possibilidade de alianas ocasionais, mas provvel que os Estados entrem em conflitos na disputa pelo poder. Perodos de paz no passam de reestruturaes econmicas para ampliar as capacidades militares e incorrer novamente em guerra. O poder , portanto, definido em termos de capacidade militar do Estado, levando concluso que o nico objeto importante no estudo das RI a iminncia do uso da fora para a resoluo de qualquer conflito, seja de natureza econmica, social, estratgica ou religiosa (MORGENTHAU, 2003). Nesses termos, tpicos como a criao de organizaes internacionais, tratados de integrao regional e comrcio e a preservao do meio ambiente ficam obscuros e submetidos segunda importncia perante agenda militar.

    O realismo de Morgenthau, mais tarde renomeado de realismo clssico foi uma proposta terica original em comparao aos estudos anteriores sobre a estratgia militar e a geografia poltica. Hedley Bull (1972) constatou que o realismo do sculo XX pouco tem em comum com a Realpolitik dos sculos anteriores e fundamentou-se na negao de tudo o que no era realista, ou seja, toda terico que acreditava no progresso da poltica internacional (apud WVER, 1997). Em suma, o realismo uma teoria que no admite mudanas no mundo. Em uma crtica mais recente, o realismo foi inclusive negado como 8 De forma resumida: i) A poltica internacional reproduz o mesmo mecanismo da natureza social do

    homem, imutvel e reafirmada pelos filsofos antigos da Grcia, China e ndia. A razo deve ser utilizada para compreender as consequncias dessa natureza, mas tentar alter-la intil; ii) Os interesses dos atores que participam da poltica internacional so definidos em termos de poder. O interesse pelo poder o que diferencia um fato poltico de um fato econmico, religioso e etc; iii) A definio de poder diferente de acordo com o local e poca, mas o interesse pelo poder atemporal; iv) Valores morais presentes no mbito domstico das naes so diferentes dos valores morais que regem a poltica internacional; v) Nenhum valor moral de determinada nao pode almejar a alcanar o status de lei moral universal; vi) O realismo poltico reconhece que outras esferas do fenmeno social, como a econmica e a jurdica, so importantes, mas o objeto de estudo da poltica de interesse definido em poder o seu nico objeto (MORGENTHAU, 2003).

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    paradigma da disciplina por ser uma escola que nega a existncia das RI, enxergando somente a presena de um conjunto de polticas externas e razes de Estado (WALKER, 1992)9.

    3.2 Empiricismo, positivismo e estruturalismo

    A partir dos anos 1950 a academia estadunidense experimentou o advento do behaviorismo e sua influncia nas Cincias Humanas. Basicamente, as Cincias Sociais foram acusadas de serem meramente filosficas e carentes dos mtodos cartesianos que conferiam matemtica e s cincias naturais o status de cincia (WVER, 1997).

    Apesar do esforo realista em estabelecer-se como o corpo terico predominante nas RI, seus mtodos eram de fato pouco cientficos e prximos literatura histrica diplomtica. Tcnicas como a Teoria dos Jogos10 foram absorvidas pelos estudos de segurana, estudos estratgicos e pelo realismo, assim como a coleta de dados quantitativos em pesquisas sobre a incidncia de guerra e paz. Tal debate foi protagonizado por Hedley Bull (advogando a forma clssica de produzir conhecimento em RI) e Kaplan (defensor das ferramentas cientficas) durante o ano de 1966 no peridico World Politics. Podemos dizer que tal debate terminou em empate e ajudou a profissionalizar o campo de estudos. Apesar do paradigma realista permanecer com um ncleo tradicionalista, as marcas do cientificismo mantiveram-se e foram decisivas para o sucesso do realismo nos anos 1980 atravs de Kenneth Waltz e sua principal obra Theory of International Politics (WVER, 1997).

    9 Em Inside/ Outside (1997), R.B.J. Walker discute a predominncia do pensamento estadocntrico

    nas teorias das RI e suas complicaes. A princpio, as fronteiras so uma abstrao que levam os cidados de um Estado a considerarem os cidados de outros Estados como diferentes e muitas vezes, inimigos pelo simples fato de estarem do outro lado. As ideologias e polticas pblicas dos governantes domsticos justificam-se pela necessidade de diferenciar-se cada vez mais dos estrangeiros, tornando o ambiente internacional incuo, pois no h a construo de uma sociedade internacional de fato, e sim o choque entre diversas realidades nacionais. Para Walker, o realismo corrobora com esse pensamento e isso o desqualifica como tradio terica das RI. Segundo o autor canadense, a escola (grotiana) de Martin Wight, que acredita na sociedade internacional e no compartilhamento de valores e normas entre fronteiras est mais apta a assumir o papel de tradio seminal. 10

    A Teoria dos Jogos um advento da matemtica do sculo XX que verifica o comportamento de atores inseridos em um contexto simulado onde so confrontados por um dilema e escolhem racionalmente a melhor forma de maximizarem seus benefcios entre opes pr definidas. Os modelos so aplicados tanto em teorias evolucionrias da biologia quanto na teoria das firmas e na anlise de tomadas de deciso polticas (FUDENBERG; TIROLE, 1991).

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    Em 1959, Waltz havia interpretado o realismo de forma mais cientfica e estratificada, reconhecendo a diferena entre a natureza do homem e a do Estado. A tese de doutorado Man, State and War foi multiplicada e aperfeioada pelo professor americano em Theory of International Politics, publicado em 1979. Nesse livro, Waltz abandonou o realismo reducionista que encontra o nexo causal das RI no homem e fundou uma nova teoria realista de enfoque sistmico as relaes entre os Estados representa uma estrutura social maior do que a soma das partes. O sistema internacional coage os atores que dele participam - os Estados - a agirem de forma egosta e similar para garantirem a sua sobrevivncia. Nesse ambiente, at a nao com a menor vocao blica obrigada a se armar e a desenvolver uma economia capaz de suprir s necessidades militares (WALTZ, 1979).

    Conceitos do realismo clssico como anarquia e equilbrio de poder permaneceram incontestes e formaram o trio de classificaes sobre o sistema internacional, com a adio do conceito de distribuio de capacidades. Richard Ashley (1984) nomeou o realismo de Waltz de neorealismo. A novidade era justamente o abandono da natureza humana e a adoo da anarquia internacional como realidade objetiva a ser estudada (WVER, 1997).

    A essa altura, teorias concorrentes ao realismo, como o liberalismo (que ser estudado em detalhe posteriormente nesse artigo) e as teorias de economia poltica internacional como a teoria da dependncia tambm demonstravam preocupao metodolgica e epistemolgica na construo dos pressupostos. Identificamos aqui, o segundo abandono do processo de maturidade preconizado por Carr, ao focar na cincia por cincia e no empiricismo em contraste da anlise crtica e posterior sugesto normativa aos problemas da agenda internacional (REUS-SMIT, 2008).

    em Waltz que encontramos o casamento entre o paradigma realista e a influncia behaviorista na dsciplina de RI. O realismo clssico, apesar de todas as suas premissas pessimistas, ainda abria espao para discusses sobre a Paz11. O estruturalismo do neorealismo (que as vezes tambm chamado de realismo estrutural) confere tendncia ao conflito uma dimenso metafsica, um complexo sociolgico que envolve os atores em um ciclo de necessidades e desconfianas acima de suas aspiraes individuais. Essa estrutura, chamada de sistema internacional ganha persona prpria e interage com os atores com possibilidade de modific-los, o que lembra a mo invisvel da teoria

    11

    No ltimo captulo de Politics Among Nations, Morgenthau discute as possibilidades do alcance da Paz como uma realidade futura desejada, mesmo que os meios para tal estivessem obstrudos e desacreditados pelo realismo (MORGENTHAU, 2003).

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    econmica clssica de Adam Smith. Enquanto a mo invisvel opera ajustes constantes na demanda e oferta dos mercados, o sistema internacional obriga os Estados a reproduzir a anarquia internacional e o discurso de competio constante, salvo alianas militares destitudas de perenidade.

    O j consagrado pessimismo do realismo, coroado pela Guerra Fria, encontrou no empiricismo de Waltz a profissionalizao tcnica da disciplina. A distribuio de capacidades entre os Estados um pressuposto terico quantificvel, pois possvel medir os recursos militares de cada Estado e compar-los em sua desigualdade. Isso fez com o que neorealismo projetasse as RI em direo cincia cartesiana, moderna e positivista. Por esse motivo, o programa de pesquisa neorealista foi ostensivamente valorizado, discutido e criticado. A importncia de Waltz notvel pelo nmero de crticos e por apresentar um ncleo duro to consistente que teorias dspares como o institucionalismo liberal de Robert Keohane e a teoria social das relaes internacionais de Alexander Wendt12 no buscam falsificar a estrutura do sistema internacional, e sim utiliz-la como pano de fundo para outras explicaes e possibilidades da poltica internacional.

    inadequado dizer que a predominncia do realismo no sculo XX significa estagnao da disciplina. Pelo contrrio, a escola realista trouxe prestgio e profissionalizao s RI, especialmente a partir de Waltz nos anos 1950. O realismo foi e necessrio, inclusive, para provocar teorias alternativas. Ainda assim, se mantivermos o foco na busca da maturidade intelectual descrita por Carr, precisamos dar um passo alm das conquistas do realismo.

    4 A NECESSIDADE DE TEORIAS NORMATIVAS

    Visto que os rumos tomados pela disciplina de RI convergiram na grande valorizao do realismo como paradigma e do empiricismo como mtodo, e vigente a necessidade de esforo intelectual para sugerir solues s dicotomias internacionais, quais alternativas temos em relao ao mainstream e como eles foram construdos? Inicialmente, 12

    Em Social Theory of International Politics, o construtivista Alexander Wendt prope trs imagens identitrias que um Estado pode projetor sobre o outro: amizade, rivalidade e inimizade. Cada uma refere-se s possibilidades de Rousseau (comunidade, cooperao), Locke (sociedade, cooperao limitada, competio com tolerncia existncia do rival) e Hobbes (anarquia, intolerncia existncia dos inimigos). Nota-se que o ncleo duro do neorealismo waltiziano (algo entre a rivalidade e a inimizade) no contestado, e sim inserido em um contexto mais amplo.

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    encontramos no estudioso das perspectivas neogramscianas, Robert Cox, a possibilidade e conceituao de um arranjo terico capaz de identificar padres empricos e sugerir mudanas, as teorias crticas. O professor canadense nos alerta para a ntima relao entre o status quo poltico e as teorias que o explicam de forma validadora. O papel da teoria crtica seria providenciar a contra cultura acadmica que dever por fim desaguar em contra cultura poltica (COX, 1981). Conscientes do papel acadmico no progresso poltico prtico, prticas internacionais comprometidas com a tica surgem como objetivo de estudo e, seguindo a linha de raciocnio de Cox, esse seria um passo para que elas de fato alcancem a formao dos tomadores de deciso do sistema internacional.

    Atravs de Price e Reus-Smit (2008) ser contextualizado o papel da tica no cenrio internacional e como o liberalismo de Keohane dos anos 1960 caminhou para um programa de pesquisa cada vez mais normativo e engajado com uma viso de mundo tica em particular, a cosmopolita.

    4.1 Teoria crtica e movimentos contra status quo

    O conjunto de teorias crticas (desconstrutivismo, marxismo, feminismo, etc.) tem como alvo os mtodos das teorias mainstream na mesma medida que questes ontolgicas. A preocupao com o mtodo, presente nas RI desde o advento do behaviorismo nas Cincias Sociais nos anos 1950, refletiu na crtica ao positivismo ostentado pelo realismo e liberalismo estruturais. Tal positivismo uma herana iluminista que enxerga a realidade social como algo material, externo ao indivduo e passvel de conhecimento verificvel. Essa postura acadmica busca assemelhar o grau de assertividade das Cincias Humanas aos sistemas cartesianos das Cincias Exatas.

    O filsofo poltico Max Horkheimer dedicou-se ao entendimento do conflito entre a cincia tradicional (de Descartes) e as teorias crticas, das quais foi defensor, ao diferenciar teorias tradicionais das teorias crticas.

    Gramsci tambm se dedicou funo poltica da produo acadmica e falcia da cincia neutra e imparcial. O autor italiano correlacionou as teorias tradicionais como aliadas manuteno do status quo das hegemonias polticas, cunhando o termo intelectual orgnico aos autores que defendiam grupos de interesse polticos em suas obras, implcita

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    ou explicitamente. Nessa mesma linhagem, o autor Robert Cox escreveu um ensaio em 1981 entitulado Social Forces, States and World Orders: Beyond International Relations Theory.

    Para Cox, existe uma conveno acadmica em dividir o mundo social em esferas para facilitar o raciocnio e os estudos. RI uma exceo, pois tem que lidar com mbitos internos e externos dos Estados, alm de agendas multidisciplinares. Estudos empricos vm demonstrando a influncia de atores no estatais nas decises internacionais (COX, 1981).

    Tocando novamente na questo da ontologia, o autor defende que toda teoria parte de uma perspectiva e propsito especficos. Quanto mais sofisticada uma teoria, mais ela capaz de transcender sua perspectiva original. A partir dessa constatao, Cox retoma o debate proposto por Horkheimer e define dois tipos de teoria (COX, 1981):

    a) Problem-solving theory13: aquelas articuladas exclusivamente para resolver determinado problema;

    b) Teoria crtica: o exerccio de escolha entre vrias teorias e perspectivas para explicar melhor determinado problema.

    O realismo de E.H. Carr uma anlise historicista e crtica, mas aps a Segunda Guerra Mundial, o paradigma cristalizou-se como uma problem-solving theory. O problema que Morgenthau e Waltz buscavam resolver o dilema de segurana dos Estados Unidos no contexto da Guerra Fria. As trs imagens de Waltz so fielmente responsivas ao perodo histrico em questo, trazendo escolhas ontolgicas como o pecado original agostiniano e a sede de poder hobbesiana na primeira imagem (o homem), a raison dtat comum a todos os Estados da segunda imagem e o Equilbrio de Poder possvel na terceira imagem, o Sistema Internacional (COX, 1981).

    Sobre a primeira imagem, Cox discorda da perspectiva viquiana14 de que esse mundo de naes foi feito por homens e suas mudanas precisam ser encontradas dentro das modificaes de nossa prpria mente humana. Nas RI, e nas demais instituies humanas, a histria no pode ser abstrada e substituda por termos essencialistas (como no neorealismo) ou teleolgicos (como no funcionalismo) (COX, 1981).

    13

    Traduo livre: teoria de resoluo de problemas. 14

    Referncia ao filsofo napolitano Giambattista Vico (1668-1744), que foi um dos precursores do pensamento crtico e construtivista em detrimento da anlise cartesiana e reducionista.

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    Encontramos as primeiras teorias crticas no materialismo histrico que se ocupou da luta de classes, como a obra de Hobsbawn e Gramsci. O marxismo estrutural dO Capital de Marx no possui o mesmo status pois confere luta de classes uma caracterstica atemporal. A ontologia do imperialismo mais sofisticada historicamente, indo alm da viso limitada do neorealismo sobre a estrutura internacional (COX, 1981).

    Alm disso, o sistema de produo executado pela sociedade civil tem papel fundamental na execuo do interesse nacional. Em suma, a sociedade civil capaz de coagir a poltica externa (COX, 1981).

    Aps apontar as vantagens da teoria crtica praticada pelo materialismo histrico sobre o neorealismo e sua caracterstica problem-solving, Cox faz algumas concluses pontuais sobre as teorias crticas (COX, 1981):

    a) Toda ao e toda teoria que orienta a ao partem do mesmo bero histrico; b) Teoria e ao so fruto da mesma problemtica e podem ser igualmente

    relativizadas; c) O contexto do problema muda com o tempo e papel da teoria crtica entender

    essas mudanas; d) O contexto formado por uma estrutura histrica que consiste de padres de

    pensamento, condies materiais e instituies humanas; e) O contexto deve ser encarado como passvel de transformao, e no com a

    inteno de reproduzi-lo.

    Cox exemplifica a questo da mudana dos contextos com a transio da Pax Britannica do sculo XIX para a Pax Americana do sculo XX. Na primeira, o padro de pensamento era o liberalismo econmico, as capacidades materiais eram o domnio martimo e as instituies baseadas no prestgio ingls. Na segunda, tais caractersticas deram lugar, respectivamente, ao protecionismo, vitria nas Guerras Mundiais e o poder nuclear, e o sistema ONU/ Bretton Woods (COX, 1981).

    interessante a presena de instituies nas afirmaes de Cox sobre o sistema internacional, o que nos prepara para analisar criticamente o objeto desse artigo, a obra do professor Robert Keohane e sua trajetria como um dos principais defensores do pluralismo frente ao realismo.

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    4.2 tica: sua possibilidade e limites no pensamento internacional

    Apresentamos duas possibilidades exploradas ao longo da histria da disciplina de RI: o estudo filosfico e normativo das questes internacionais e empiricismo ctico e explicativo sob a forma predominante do realismo. fato que o pensamento estruturante de Kenneth Waltz transbordou para o liberalismo e produziu uma espcie de teoria liberalista alheia ao idealismo e comprometida cientificamente com os seus pressupostos explicativos, sem traos normativos.15 A teoria crtica parte do pressuposto que toda teoria que se limita a explicar o mundo como ele est fatalmente colaborando para a manuteno do status quo. H a possibilidade de teorias engajadas em apresentar uma nova ordem internacional atravs de um srio comprometimento com o que plausvel e factvel, mas sem perder o foco no objetivo de apresentar alternativas para a mudana. uma questo entre ser e dever ser, conforme nos ensinou Carr. Walker (1992) defendeu que uma verdadeira teoria de RI no poderia deixar de conter o elemento tico. dever da disciplina colaborar para o progresso da poltica internacional, e para tanto, certas ontologias precisariam ser assumidas na direo da mudana, e no da explicao estacionria.

    Entre os construtivistas16 a questo da tica j foi amplamente discutida, e uma das concluses de Richard Price diz que as escolhas ticas feitas no cenrio internacional e tambm na poltica domstica so limitadas por dilemas e incoerncias. recurso da Corte Criminal Internacional oferecer anistia aos governantes responsveis por violaes aos direitos humanos em larga escala para que eles interrompam as transgresses. A preocupao com as vtimas acaba levando uma Corte estandarte de normas jurdicas 15

    Andrew Moravcsik se dedicou defesa de uma teoria liberalista de RI com contornos empricos cientificistas com a proposta de desligar a escola kantiana do idealismo e tentativas de normativisao, se opondo s escolhas de Keohane (REUS-SMIT, 2008). Em Taking Preferences Seriously, o autor expe a relevncia de atores sub estatais na definio da poltica externa dos Estados (considerado uma mquina institucional operada por sucessivos grupos sociais) em uma rede transnacional de cooperao ou conflito entre grupos de interesses afins ou divergentes (MORAVCSIK, 1997). 16

    Apesar de no ser o objetivo desse artigo, importante comentar sobre a colaborao das teorias construtivistas de RI questo da tica e normativisao da disciplina pois as consideraes de Richard Price e Christian Reus-Smit foram cruciais para a argumentao do presente artigo. Reus-Smit (2008) apresenta um modelo de estrutura do raciocnio tico, enriquecendo a anlise das contradies ticas da poltica. A estrutura consiste de seis etapas de raciocnio subsequente que dever ser aplicado ao caso de necessidade escolha tica por atores internacionais. As etapas so: a) quem so os atores responsveis?, b) como esses atores fazem o diagnstico da situao?, c) quais so as consequencias da ao ou passividade apresentada por esse diagnstico?, d) quais foram os princpios ticos eleitos para nortear a deciso?, e) qual contexto histrico e social construiu a preferncia por esses princpios?, f) e por fim, sero os atores responsveis capazes de operar com chances razoveis de sucesso, se decidirem agir?

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    que deveria aplicar penas a perpetuadores de crimes contra a humanidade, a fazer o papel de negociadora e conceder a impunidade a criminosos como resultado de um processo de barganha. Em outro exemplo, uma interveno humanitria pode acabar causando tanto dano populao civil local quanto a situao domstica presente, devido aos riscos inerentes operao militar ttica. Alm disso, polticas em nome de fins ticos podem encobrir fins diversos e por vezes egostas de seus praticantes, o que pode ser chamado de arrogncia do poder.17 Essa arrogncia tambm identificvel quando aes em nome de um fim tico so executadas em determinadas situaes e locais, mas no em outros de contexto similar, mas com menor apelo aos interesses particulares dos interventores potenciais. Os governos ocidentais, por exemplo, se engajaram em Kosovo mas ignoraram conflitos domsticos e transnacionais de igual carncia em relao a interveno do Atlntico Norte como o Tibete, a Colmbia e a Chechnia (PRICE, 2008).

    As consideraes acima nos fazem confrontar, novamente, o mesmo ceticismo deflagrado pelo realismo sobre a onipresena do interesse em termos de poder por baixo do tapete de qualquer agenda poltica domstica e internacional. Adotar uma ontologia pessimista a respeito no significa, porm, abandonar a possibilidade de teorizao tica e normativa. No campo das RI, encontramos um autor dito liberalista que jamais negou premissas realistas como a anarquia internacional e o sistema de atores auto interessados - Robert Keohane e mesmo assim considerou empiricamente a existncia de cooperao e progresso institucional coordenado (REUS-SMIT, 2008). Seguimos com a anlise de sua obra.

    4.3 Introduzindo Keohane: sua relevncia e o caminho teoria institucionalista

    No consenso chamar o debate metodolgico de segundo debate, justamente por no trazer nenhuma inovao especfica ontologia estadocntrica do primeiro debate. A crtica natureza slida dos Estados e seus efeitos na poltica internacional tomou espao nos anos 1960 com os conceitos de transnacionalismo e sociedade global. Tal inovao apontou para outro clssico do Iluminismo: Immanuel Kant, a possibilidade cosmopolita e a paz democrtica. Basicamente, os atores sub-estatais (partidos polticos, empresas multinacionais e demais organizaes civis, alm de grupos errticos ou paramilitares, organizaes intergovernamentais) tambm so capazes de provocar mudanas no cenrio 17

    Temo utilizado pelo Senador J. William Fullbright (EUA), em 1966 ao publicar uma crtica s motivaes Guerra do Vietn entitulada The Arrogancy of Power (apud PRICE, 2008).

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    internacional. A idia de que existem outros atores relevantes alm do Estado chamada de pluralismo. Grande foi a influncia da economia nessa escola de pensamento, e como outros fatores alm do poder militar estavam em jogo, novas explicaes poderiam emergir. Essa crtica direta ao paradigma realista fez com o que o pluralismo assumisse o posto do idealismo como escola progressista, e por terem afinidades em relao crena do poder do indivduo como ator poltico, tambm foram chamados de liberalistas.

    A essa altura encontramos o objeto desse artigo, a obra do professor estadunidense Robert Keohane. Em parceria com seu professor Joseph Nye, Keohane trouxe a complexidade dos mltiplos atores da economia para as RI. Na tentativa de criticar o realismo, uma viso de mundo prpria foi formulada. O Estado no o Estado, e sim um conjunto de atores com interesses prprios que cooperavam ou disputavam para manobrar a mquina estatal de acordo com a poltica externa que consideravam conveniente aos seus objetivos.Da mesma forma que variam os atores, tambm variam as formas de poder possveis, extrapolando a esfera militar e militar-econmica (WVER, 1997).

    Segundo Rothstein (1972 apud WVER, 1997), mesmo com a forma contundente e bem sucedida como o transnacionalismo surgiu, os tomadores de deciso da poltica internacional continuaram a agir como se estivessem em um sistema de Estados, o que contribui para a reproduo dessa condio. Percebe-se uma progressiva perseverana do pluralismo sob a liderana de Keohane. Em 1977 o autor publica em parceria com Nye Power and Interdependence: World Politics in Transition, onde explora o transnacionalismo e a forma como os Estados so sensveis e vulnerveis por mltiplos canais de influncia. Essa, e as duas campanhas posteriores do autor sero aprofundadas em sesso posterior.

    Enquanto isso, o liberalismo tambm evoluiu para debates diferentes dos anos 1960 e 1970. Aps as tentativas de dar explicaes gerais sobre a natureza das RI com o transnacionalismo, autores como Keohane comearam a fazer perguntas mais precisas sobre como as instituies afetam os incentivos encarados pelos Estados. (KEOHANE, 1989 apud WVER, 1997).

    Mesmo na anarquia do neorealismo, instituies polticas internacionais mais e menos formais poderiam ser identificadas como agentes se relacionando com outros agentes e a estrutura. Tal grupo de instituies foi chamado de regimes. Esse programa de pesquisa18 18

    Nesse artigo, utiliza-se os termos programa de pesquisa e ncleo duro nos termos descritos por Imre Lakatos. O matemtico estadunidense elaborou um estudo meta terico a respeito da construo de paradigmas cientficos que pode ser utilizado nas cincias sociais. O ncleo duro uma premissa terica fundamental para uma teoria, diferenciando um programa de pesquisa dos

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    ganhou o nome de institucionalismo neoliberal e tornou-se compatvel em alguns pontos com o neorealismo. Ambos eram demasiado americanos: pragmticos e positivistas. Seus preceitos no eram incomensurveis, apenas preocupados com fenmenos distintos produzidos pela mesma anarquia internacional (WVER, 1997).

    Ao lado de Stephen Krasner e Joseph Nye, Robert Keohane o acadmico americano a frente a frente do programa de pesquisa do liberalismo e institucionalismo neoliberal nas RI. Keohane tornou-se bacharel em RI pelo Shimer College e com apenas 24 anos tornou-se doutor pela Harvard University em 1966. Orientado por Stanley Hoffman, dissertou sobre a poltica na Assemblia Geral da ONU, mais especificamente sobre o peso institucional desse frum e seu poder de influenciar as aes dos Estados que o compem (SUHR, 1997). interessante observar que Keohane foi aluno de Hoffman, um acadmico que dedicou alguns textos ao fato de que RI uma disciplina quase que exclusivamente americana (HOFFMANN, 1977). De fato, Keohane no se dedicou somente ao pluralismo da poltica internacional e suas instituies, tendo participado ativa e ostensivamente na leitura e crtica do paradigma (neo)realista. Suas publicaes balizam h trs dcadas o debate acadmico anglo-americano das RI.

    O fato do institucionalismo neoliberal ser to compatvel e complementar ao neorealismo pode ter como motivo o grande interesse de Keohane em aperfeioar o programa de pesquisa de Waltz, mesmo desferindo duras crticas. O objetivo dessa sesso explicar de forma resumida o trabalho terico desenvolvido por Keohane, de acordo com a diviso de Michael Suhr (1997): transnacionalismo/ interdependncia, regimes internacionais e institucionalismo internacional.

    4.3.1 Transnacionalismo e a interdependncia complexa

    Nos anos 1960, a poltica externa dos Estados Unidos estava preocupada com a aparente vulnerabilidade econmica que possua em relao ao mundo. O governo era incapaz de controlar sua prpria economia interna a parte das demais economias mundiais e seus

    outros, enquanto premissas so desenvolvidas posteriormente (hipteses auxiliares) para explicar fenmenos e crticas no previstos pelo ncleo duro (LAKATOS, 1980). No caso das RI, podemos identificar no realismo o seguinte ncleo duro: o Estado como nico agente relevante e o interesse definidos em termos de poder. As hipteses auxiliares seriam o equilbrio de poder, a conversibilidade da economia em poder militar, etc.

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    relacionamentos comerciais e polticos. Eventos como a criao de instituies financeiras e comerciais em Bretton Woods, a crise do petrleo e a derrota no Vietn abriram espao para que a academia apresentasse novas dinmicas e pontos de vista. Keohane e Nye aproveitaram esse contexto para desenvolver e publicar Power and Interdependence, texto em que contestam o modernismo estadocntrico e introduzem o conceito de poltica mundial: atores sub estatais como empresas multinacionais e movimentos da sociedade civil criaram um mundo sem fronteiras e diminuram a importncia do Estado (KEOHANE; NYE, 2011).

    Isso no significa que tais atores so desprovidos de nacionalidade e transitam livres pelas fronteiras perseguindo seus interesses. A cultura e o interesse poltico dos Estados de origem desses atores importavam e o fato da transnacionalidade poderia ser utilizado como ferramenta pelo Estado. Uma empresa multinacional de origem estadunidense provavelmente operar em outros Estados gerando benefcios para os Estados Unidos, onde a matriz est instalada. Keohane e Nye chamaram isso de lealdade (1977).

    Apesar da grande riqueza terica, os autores no se propuseram a criar um novo paradigma dentro da disciplina (SUHR, 1997). A interdependncia complexa uma transfuso terica da economia para as RI, colaborando na explicao de contextos especficos (como o comrcio e a economia poltica internacional), mas sem refutar o realismo e criar um debate interparadigmtico.

    A interdependncia poderia ser utilizada de acordo com quatro modelos propostos por Nye e Keohane (1977) de acordo com a situao estudada (apud SUHR, 1997).

    a) Se os recursos necessrios para operar mudanas no mundo, ou seja, poder, puderem ser convertidos a baixo custo (por exemplo, de poder industrial para poder militar), o realismo o suficiente como marco terico;

    b) Se essa conversibilidade tiver altos custos, a estrutura proposta pela teoria da interdependncia complexa comea a ser relevante;

    c) Se o poder for traduzido em instituies como as eleies democrticas, coalizes da sociedade civil e elites de influncia, ento o modelo das organizaes internacionais pode ser utilizado para explicar os mecanismos de mudana no mundo;

    d) No caso ltimo em que o custo poltico para interromper a interdependncia econmica entre os Estados extremamente alto ou impraticvel, a prpria economia assume o posto de disciplina responsvel pelo contexto.

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    4.3.2 Teoria dos regimes

    O fim da bipolaridade e outros eventos de natureza poltica (escndalo de Watergate), econmica (crise do petrleo) e militar (Vietn) revelaram um mundo menos hegemnico do que aquele liderado pelos Estados Unidos no imediato ps-guerra. Mesmo antes da queda do Muro de Berlim, a corrente liberalista de RI j adotava um enfoque emprico onde os Estados Unidos eram uma potncia em decadncia e consequentemente mais vulnervel aos acontecimentos externos (SUHR, 1997).

    Quanto mais vulnervel, maior a disposio da superpotncia a cooperar com os outros pases industrializados. Cooperar significa criar e ajudar a perpetuar instituies, o que no mbito internacional tem o nome de regime. O termo foi utilizado pela primeira vez por John Ruggie em 1975, ao analisar como o estudo das organizaes internacionais poderia e deveria ser estendido ao escopo das instituies como um todo, mais ou menos formais (SUHR, 1997).

    Keohane e Nye incorporaram o conceito de regimes, mas de uma forma mais funcional. Ruggie conceituou regime como um fenmeno cognitivo e coletivo de compartilhamento de regras, seguindo as escolas de Grotius e Foucault. Keohane e Nye no abandonaram o realismo como explicao do ambiente internacional. Os Estados continuavam com suas naturezas egostas e o ato de cooperar e compartilhar regras era um ferramenta de auto ajuda (SUHR, 1997).

    Em After Hegemony (1984), Keohane estudou os efeitos do relativo declnio dos Estados Unidos na manuteno dos regimes existentes, ora chamada de ordem mundial e anteriormente, Pax Americana. O autor chega a concluso que o declnio de uma hegemonia no elimina o padro de cooperao compartilhados pelos demais Estados. Mudanas podem ocorrer dentro dos regimes, e at novos regimes podem surgir, mas no h motivo para acreditar que o ato de estabelecer regimes declinasse como prtica intergovernamental. Estados menores tambm se beneficiavam de certos regimes e o declnio de uma superpotncia figurava como uma chance de introduzir mudanas nos regimes para torn-los mais favorveis. Sendo assim, o regime, como fenmeno internacional, permanece como aspecto relevante nas anlises feitas atravs da disciplina (KEOHANE, 2005).

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    O funcionalismo dessa teoria tornou-a prxima da economia e suas instituies e organizaes industriais. Com isso em mente, as funes dos regimes com o fim de estimular a cooperao e coordenao internacionais seriam (SUHR, 1997):

    a) Criar padres dentro de cada objeto de regime que fizessem com que as instituies desejadas possussem aspecto legal e jurdico dentro de cada Estado envolvido, criando sanes para os detratores dos acordos;

    b) Tornar as informaes claras para reduzir as incertezas e promover tomadas de decises simtricas entre as partes, reforando a responsabilidade de cada um;

    c) Reduzir os custos das transaes legtimas e dificultar as transaes paralelas, aumentando o grau de transparncia e previsibilidade.

    Esse entendimento revela uma viso de mundo de Keohane, a de que a poltica mundial similar ao mercado imperfeito: deficiente em promover benefcios mtuos naturalmente, necessitando de ajustes intencionais. Dessa forma, instituies so necessrias para reduzir os prejuzos desordenados e maximizar os ganhos na medida do possvel (KEOHANE, 2005). Em termos de teoria, o funcionalismo de Keohane parece defender o status quo dos regimes estabelecidos nas dcadas de 1950 a 1970 atravs do interesse ativo dos Estados Unidos. Isso no verdade, pois a teoria prev a mudana e alternncia de velhos e novos regimes como uma possibilidade aceitvel. Atravs da teoria de Keohane, qualquer estudioso pode defender/ atacar a permanncia/ declnio de um regime, de acordo com a inteno do autor (SUHR, 1997).

    5 INSTITUCIONALISMO LIBERAL COMO TEORIA NORMATIVA

    A partir de Power and Governance in a Partially Globalized World, publicado em 2002, Keohane demonstrou comprometimento com um programa de pesquisa cada vez mais normativo (REUS-SMIT, 2008). O institucionalismo liberal mescla habilmente a viso cosmopolita de Kant (com a adio da preocupao com os direitos humanos, marca contempornea) com o paradigma realista a respeito da natureza das relaes polticas e a inescapabilidade da busca pelo poder e pelos interesses egosticos. O que chamam de neoliberalismo nada mais do que a aplicao do modelo de escolha racional no ambiente

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    anrquico de Waltz, abrindo novas possibilidades uma vez que os benefcios egicos nem sempre so alcanados atravs da agresso, mas tambm atravs da cooperao.

    Nessa sesso explora-se mais a fundo o corpo terico institucionalista e a apresentao do primeiro ensaio definitivamente normativo e dirigido ao governo dos Estados Unidos na poca de grande controvrsia da opinio pblica sobre a legitimidade da guerra contra o terror e as intervenes humanitrias. Em The Preventive Use of Force: A Cosmopolitan Institutional Proposal, Keohane e Allen Buchanan propem um novo modelo ao regime de segurana coletiva, sugerindo a reforma do CSNU e avaliando o tanto que essa possibilidade factvel

    5.1 A escolha racional de cooperar e o papel das instituies

    Nos anos 1990, Keohane alterou seu foco para a Europa e as velhas instituies que dela surgiram e espalharam-se pelo globo. Seu objetivo era compreender como essas instituies poderiam remodelar as RI e a poltica domstica dos Estados aps a Guerra Fria. O autor pretendia iniciar um programa de pesquisa diferente do realismo e liberalismo, apesar de ergu-lo sobre premissas de ambos, conforme j demonstrava nos anos 1980 (SUHR, 1997).

    Nesse ponto, j estava claro que ao sugerir uma alternativa ao neorealismo, Keohane havia sido bem sucedido em expandi-lo e complement-lo, ao invs de refut-lo (KEOHANE; NYE, 1989 apud SUHR, 1997). O institucionalismo neoliberal diz que a cooperao possvel na anarquia internacional se os atores compartilhassem interesses mtuos, se relacionassem h bastante tempo e mantiverem a coeso de um pequeno grupo durante esse perodo (KEOHANE, 1993 apud SUHR, 1997).

    Para avaliar a probabilidade de cooperao entre atores de dado grupo, Keohane introduziu o conceito de graus de institucionalizao (1989 apud SUHR, 1997), sendo eles, do mais ao menos formal:

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    a) Organizaes intergovernamentais e organizaes transnacionais no governamentais;

    b) Regimes internacionais, conforme apresentados anteriormente; c) Convenes ou regras implcitas (por exemplo, o princpio de reciprocidade na

    diplomacia).

    Dentro desses arranjos, os Estados avaliam se de fato vale a pena buscar ganhos relativos. Eles somente o faro se tiverem a certeza que as alteraes de poder no presente momento concedero vantagens no momento futuro, se for constatado que dado ganho pode ser utilizado contra um possvel obstculo e se outros Estados, em pequeno nmero, tambm esto alinhados. As instituies so o mecanismo que distribui informaes o suficiente para balizar essas escolhas. interessante notar que Keohane tambm inclui as firmas no mesmo processo de escolha racional (KEOHANE, 1993a apud SUHR, 1997)

    Da mesma forma que Keohane alertou seus alunos nos anos 1970 sobre a importncia das presses domsticas sobre as RI, ele agora faz o caminho inverso com o institucionalismo neoliberal. As instituies internacionais so capazes de influenciar eventos internacionais e domsticos, na medida em que alteram as seguintes condies para os Estados: o fluxo de informaes e oportunidades, a habilidade dos governos em monitorar os demais, expectativas sobre a solidez dos acordos internacionais (SUHR, 1997).

    Ao lado de Nye e Hoffmann, Keohane chegou conceituao de seu programa de pesquisa sobre as instituies internacionais e fez afirmaes categricas sobre o fenmeno. papel das instituies servir de ferramenta para que os Estados exeram a sua influncia e sinalizem os seus interesses futuros. No caso de interesses conflitantes, mas no mutuamente excludentes, papel da instituio fornecer o ambiente para barganha e acordo entre as partes. Uma instituio tambm tem o poder de eliminar ou substituir outro arranjo institucional paralelo. Em contrapartida, os Estados contrairo obrigaes e o risco de terem seus interesses e mais alm, suas preferncias fundamentais modificadas (KEOHANE; HOFFMAN, 1993 apud SUHR, 1997).

    Para retratar os tipos de instituies que existem contemporaneamente, Keohane (1993b apud SUHR, 1997) cita trs tipos:

    a) Instituies restritas, como a OTAN e a Unio Europia; b) Instituies condicionalmente abertas, como a OMC; c) Instituies abertas, como a ONU.

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    Quanto mais restrita uma instituio, maiores os laos comunitrios e busca por ganhos relativos. Quanto mais aberta, maiores os efeitos simblicos para criar o mnimo de coordenao internacional (SUHR, 1997).

    Michael Suhr (1997) observa que por mais que o corpo tcnico de Keohane tenha forte influncia das teorias econmicas, seus trabalhos empricos tornaram-se cada vez mais estadocntricos e sem grandes contribuies para a atuao das empresas multinacionais. Essa constatao muito importante para o presente artigo pois antecipa a escolha do artigo de Keohane e Buchanan sobre as guerras preventivas, na prxima sesso. Nosso objetivo identificar as escolhas ontolgicas de Keohane em temas atuais, como a Guerra do Iraque, aps trs dcadas de trabalho acadmico no mainstream anglo-amaericano e refinamento intelectual.

    5.2 Arranjo institucional cosmopolita para regular as guerras preventivas

    Entendemos que desde as teorias da interdependncia e regimes, Robert Keohane dedicou-se a identificar fenmenos internacionais e sua importncia explicativa. A campanha do institucionalismo neoliberal e sua manobra em direo poltica ao invs de permanecer com a economia, deu fruto a textos de carter normativo da autoria de Keohane.

    Estudaremos a seguir o ensaio que o autor escreveu em parceria com Allen Buchanan em 2003 a respeito de um possvel arranjo institucional para controlar o uso preventivo de fora militar entre naes. A apresentao desse ensaio nas universidades estadunidenses foi uma reao s iniciativas do governo dos Estados Unidos no Oriente Mdio, ao agredir o Iraque sem o consenso do Conselho de Segurana da ONU (CSNU), alegando que possveis movimentaes blicas do governo iraquiano ameaavam a segurana americana. fato que questes de segurana voltaram tona nas RI aps o 11/9, e segundo os autores do ensaio estudado, ...an issue of urgent practical importance19 (BUCHANAN; KEOHANE, 2003, p.2)

    Segundo os autores (BUCHANAN; KEOHANE, 2003): Preventive use of force may be defined as the initiation of military action in anticipation of harmful actions that are neither

    19

    Traduo livre: ...uma questo de urgente importncia prtica.

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    presently occurring nor imminent20. O conceito de iminncia bastante vago e sujeito predisposio do possvel alvo em enfrentar riscos e postergar a sua defesa. A iminncia de um ataque pode ser alertada quando msseis intercontinentais forem disparados mas ainda no se aproximaram do alvo, ou quando tropas movimentam-se de forma pouco usual ao redor de uma fronteira.

    Os autores defendem que, de fato, alguns riscos no devem ser ignorados de forma passiva por um chefe de Estado, ao mesmo tempo, um ataque preventivo possui grande probabilidade de terminar em um ato injusto contra civis e inocentes. Os autores revelam uma escolha ontolgica de ordem tica e moral: a deciso de atacar preventivamente deve ser feita atravs de uma perspectiva normativa cosmopolita. Isso significa que os direitos humanos de todas as populaes envolvidas devem ser levados em conta, e no somente a segurana de um ou outro povo especfico. A sada que Buchanan e Keohane encontram para a melhor tomada de deciso um arranjo institucional internacional que distribua a responsividade entre o Estado que pleiteia o ataque e os Estados eleitos a permitir ou no a operao. A distribuio de responsabilidade acontece antes (ex ante) e depois (ex post) do ataque preventivo ou da sua proibio e devidas consequncias (BUCHANAN; KEOHANE, 2003).

    O ambiente ideal para a apreciao do fato e tomada de deciso conjunta seria, naturalmente, CSNU. No caso de uma ao militar preventiva aprovada e executada, e provada a sua injustia ex post, o agressor sofreria sanes em conjunto com os Estados que apoiaram a ao. No caso inverso, se uma ao preventiva executada demonstrar a sua necessidade e for claramente justificada, os Estados que votaram contra a operao seriam sancionados (BUCHANAN; KEOHANE, 2003).

    Antes de especificar esse arranjo institucional no CSNU e suas alternativas, vamos estudar as quatro vises vigentes sobre o assunto identificados por Keohane e Buchanan.

    a) Just War Blanket Prohibition21: o corpo de tratados e convenes do Direito Internacional Pblico que probem a guerra preventiva em qualquer circunstncia. Essa viso tradicional da guerra justa s admite a ao preventiva se a iminncia da agresso for ntida ou j em curso;

    20

    Idem: (O) uso preventivo da fora pode ser definido como o incio de uma ao militar em antecipao a aes prejudiciais que no esto ocorrendo atualmente e nem so iminentes. 21

    Traduo livre: Proibio Geral (pelos princpios da) Guerra Justa.

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    b) O Status Quo Legal: a ao preventiva ilegal a no ser que receba autorizao do CSNU. Alguns acordos internacionais como a Conveno sobre Genocdio probem terminantemente o uso preventivo da fora, mas de acordo com o Artigo 103 da Carta das Naes Unidas, a Carta sobrepe qualquer outro tratado firmado no passado;

    c) O Interesse Nacional: a viso realista de que o governante tem o poder e o direito de fazer o que for preciso para assegurar a integridade da nao e do territrio sobre a sua governana. Leis e princpios internacionais so inferiores ao interesse nacional e qualquer proibio ao uso preventivo da fora ser vazia;

    d) O Direito Auto-Defesa estendido: a mesma viso do Interesse Nacional, mas incluindo formalmente a possibilidade de ao preventiva. Essa posio foi articulada pela administrao George W. Bush enquanto presidente dos Estados Unidos, na publicao da National Security Strategy em 2002. Segundo a publicao: ...we will not hesitate to act alone, if necessary, to exercise our right of self-defense by acting preemptively against such terrorists, to prevent them from doing harm against our people and our country22 (UNITED STATES OF AMERICA, 2002, p. 6).

    Os autores sugerem uma quinta viso, uma vez que consideram todas as quatro anteriores inadequadas. A Viso Cosmopolita Institucional no aceita os riscos da no-ao preconizada pela Blanket Prohibition, mas tambm no concordam com a desconsiderao dos direitos humanos das demais naes praticada pelos Estados Unidos e seu Direito Auto Defesa estendido. Em suma, um regime de responsabilidade entre as partes, que ser discutido a seguir.

    O argumento inicial da viso proposta o pressuposto moral de que aceitvel utilizar a fora para interromper violaes aos direitos humanos em massa que j esto ocorrendo. Os autores estendem esse pressuposto, assumindo que tambm moralmente justificvel que a fora seja utilizada para prevenir as violaes. Se o objetivo central proteger os direitos humanos, o mesmo justificvel em qualquer circunstncia, mesmo que na forma de um ato antecipado e preventivo. Essa concepo moral justifica tanto a Viso

    22

    Idem: ns no hesitaremos em agir sozinhos, se necessrio, para exercer nosso direito de autodefesa, agindo preventivamente contra tais terroristas, para impedi-los de fazer o mal contra o nosso povo e nosso pas.

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    Cosmopolita quanto o Status Quo Legal, e ignorada pela Blanket Prohibition (BUCHANAN; KEOHANE, 2003).

    A culpabilidade de um agressor surge quando ele executa uma ao que cause dano aos demais. A primeira vista, atacar um possvel agressor que ainda no cometeu um crime injusto, mas esse pensamento est sujeito ao que de fato agir em determinada situao. Segundo os autores, conspirar, ou planejar a causar dano, objetivamente, j agir e incide culpa sobre o conspirador (BUCHANAN; KEOHANE, 2003).

    reconhecido e levado em conta que a ao militar preventiva sempre ocasiona riscos a inocentes. Infelizmente, o ato de prevenir violaes massivas de direitos humanos provavelmente ir viol-los da mesma forma, dada a natureza da realidade militar ttica e a impossibilidade de poupar garantidamente a segurana de civis. Esse o argumento mais forte da Blanket Prohibition, mas mesmo ele no o suficiente. Proibir a ao preventiva tambm amputa outros recursos necessrios ao equilbrio de poder e manuteno da paz, a diplomacia coercitiva. Atravs da ameaa em ambiente diplomtico, agresses e danos futuros podem ser evitados, o que foi chamado de compelance23 por Thomas Schelling. Se o uso preventivo da fora for proibido, a diplomacia coercitiva perder a sua credibilidade e os Estados interessados em impedir agresses tero uma ferramenta a menos (BUCHANAN; KEOHANE, 2003).

    Nesses termos, a Viso Cosmopolita idntica ao Status Quo Legal. Ambas entendem que a proibio completa do uso preventivo da fora mais prejudicial do que a sua permissibilidade controlada, mesmo que nenhum caso seja isento de riscos e efeitos colaterais. As divergncias tornam-se imensas ao identificar o ambiente institucional em que a legalidade das aes preventivas so julgadas atualmente: o CSNU. Segundo Buchanan e Keohane, o CSNU no o frum apropriado para ser o rbitro dessas questes, por trs motivos (2003):

    a) H grande falha moral ao delegar tal deciso a membros permanentes com poder de veto. Os Estados que ocupam as cadeiras permanentes do Conselho podem decidir por permitir ou impedir uma ao arbitrariamente, sem justificativa ou obrigao moral.

    b) A existncia do veto pode coibir requerimentos de ao preventiva ao Conselho. A Comisso Internacional Independente do Kosovo argumentou que, por saber que

    23

    Traduo livre: compelncia.

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    a Rssia vetaria o seu pedido de ao preventiva para impedir a limpeza tnica dos albaneses, no solicitou a ajuda do CSNU.

    c) No h preocupao com os direitos humanos no desenho institucional do Conselho. As consequncias da aprovao ou proibio de determinada ao preventiva no responsabiliza os Estados que a aprovaram. Mais uma vez, um regime arbitrrio, e no guiado por princpios especficos, como os direitos humanos.

    Os autores concluem que, se o modelo atual vier a ser substitudo, que o seja por uma instituio que distribua mais responsabilidades e envolvimento dos rbitros (BUCHANAN; KEOHANE, 2003).

    impossvel reduzir os riscos da ao preventiva a zero. Alm dos riscos inerentes a qualquer ao militar, a ao preventiva fere vrias normas internacionais j existentes e pode ser utilizada para fins particulares, ou de puro interesse nacional, sob a mscara da defesa do bem comum e dos direitos humanos. A sada para minimizar os riscos construir um arranjo institucional sofisticado que responsabilize os membros do sistema internacional pelas decises sobre o uso ou no da preveno militar em cada caso. A seguir, Buchanan e Keohane fundamentaro essa instituio (BUCHANAN; KEOHANE, 2003).

    Alguns princpios foram elencados pelos autores como essenciais instituio em questo. O primeiro a efetividade, que sinaliza a ausncia de passividade frente a cada caso analisado, sendo para permitir ou proibir o uso da fora preventivamente. Em seguida, est o respeito mtuo por todas as pessoas. Cada deciso tomada pela instituio deve levar em conta que os seus membros observam e respeitam a opinio de todas as naes e permitem-se ser questionados e expostos quanto ao uso do poder que detm. Por fim, a instituio deve ser inclusiva e factvel, permitindo a voz de todos, respeitando a igualdade e prestando contas sobre quais fatos e informaes levaram tomada de deciso, que deve ser a melhor possvel (BUCHANAN; KEOHANE, 2003)..

    Objetivamente, essa instituio seria uma coalizo democrtica para suplementar os processos de deciso do CSNU. Alm dos princpios fundamentais citados acima, alguns componentes so elencados como preferenciais. O ato de arbitrar sobre a necessidade do uso da fora deve ser guiado por padres reconhecidos, no caso, os princpios da guerra justa jus in bello. Princpios como a proteo de civis e equipes mdicas e a proporcionalidade so essenciais em aes preventivas. O dano causado deve ser somente o necessrio para eliminar o risco identificado pelos Estados que decidiram pela preveno. Outra pea importante, presente nas teorias liberalistas o compartilhamento de

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    informaes. Informaes claras sobre os motivos da ao preventiva devem ser distribudas e abertas sabatina do rgo autorizador. Esse recurso uma importante arma contra o uso da instituio para mascarar interesses secundrios. Os autores tambm introduzem um recurso ausente pelo Status Quo Legal vigente, a aplicao de sanes aos Estados que executarem ou apoiarem o uso preventivo da fora indevidamente (BUCHANAN; KEOHANE, 2003).

    Esses recursos estaro nas mos de todas as partes interessadas, todos os povos que so alvo do respeito mtuo praticado pelos Estados. Sendo assim, o poder de deciso ser depositado nas mos de atores moralmente confiveis e que sejam exemplo no respeito aos direitos humanos e no uso responsvel da fora (BUCHANAN; KEOHANE, 2003).

    Cada caso dever ser investigado e estudado ex ante e ex post. A responsabilidade ex post obriga o Estado proponente da operao militar a fornecer informaes claras, confiveis e convincentes sobre a necessidade da ao preventiva. Isso significa informar com antecedncia e respeitar a argumentao das demais partes. Aps a operao militar, os Estados atuantes devem permitir que os Estados que compartilham a responsabilidade institucional pela ao avaliem se os motivos para a interveno eram de fatos reais e relevantes, e se a operao em si respeitou os compromissos assumidos ex ante em relao guerra justa e aos direitos humanos. A responsabilizao ex post deve ser to presente quanto a ex ante, e deve sancionar os Estados envolvidos caso irregularidades sejam encontradas. Todo esse processo de responsabilizao, tanto do Estado interventor quanto os seus apoiadores reduzem drasticamente o oportunismo nesse frum institucional. Vale ressaltar, ainda, que as avaliaes ex ante e ex post tambm aplicam-se a casos onde a ao preventiva for vetada. Se danos humanidade ocorrerem por falta de ao, os Estados responsveis por essa deciso sero sancionados contundentemente (BUCHANAN; KEOHANE, 2003).

    Finalmente, Buchanan e Keohane apresentam trs modelos institucionais que atenderiam aos princpios da responsabilidade cosmopolita. Os autores alertam, antes de tudo, que os modelos no so possveis somente em um mundo idealizado, mas levam em conta a perspectiva realista de uma anarquia internacional habitada por atores auto-interessados. Mesmo assim, no acreditam que essas instituies possam ser erguidas imediatamente,

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    sendo o objetivo do artigo simplesmente inspirar people of goodwill and sophistication24 a construir algo semelhante em um futuro prximo.

    a) Responsabilidade sem o Veto: a deciso sobre o uso preventivo da fora permanece sob a gide do CSNU, porm, com o acrscimo do mecanismo de responsabilidade ex ante e ex post e a excluso do poder de veto dos membros permanentes para esse escopo. O poder de veto permanece para os demais escopos tratados pelo Conselho. Para aprovao da ao preventiva, nove dos quinze membros do Conselho devem concordar com a escolha. Caso algum Estado incorra em ao preventiva sem aprovao do Conselho, os demais membros devero realizar a avaliao ex post para decidir se o Estado em questo deve ser sancionado ou se de fato a sua atitude justificvel e sem possibilidade de aguardar pela deciso formal do Conselho ex ante. A existncia do veto, atualmente, fere todos os princpios da Viso Cosmopolita, como a moralidade, o respeito mtuo e a responsabilidade de no ignorar a necessidade de aes preventivas. Os autores reconhecem que esse o arranjo menos possvel, uma vez que as barreiras polticas para convencer as potncias detentoras dos assentos permanentes do Conselho so praticamente intransponveis. Eles identificam, tambm, que a remoo do poder de veto poderia facilitar alguma ao agressiva contra os Estados Unidos, o que seria um desastre.

    b) Responsabilidade apesar do Veto: essa segunda proposta prev a permanncia do veto mas inclui a distribuio de responsabilidades ex ante e ex post entre os membros envolvidos. Nesse cenrio, o Estado ou coalizo de Estados que pretendem a ao preventiva devem ser confrontados, ex ante, com os custos da operao militar e da reparao de danos/ reconstruo do territrio atacado. O Conselho no deve, obrigatoriamente, patrocinar uma ao preventiva aprovada, o que faz com que os Estados interessados tenham mais responsabilidade em seu posicionamento. Diferente do primeiro, o segundo modelo factvel, mas ainda no satisfatrio. A possibilidade de veto por um dos membros permanentes mantm a deciso em um nvel poltico, arbitrrio e auto-interessado. O argumento do risco em assumir custos tenta aliviar essa questo, mas no o suficiente.

    24

    Traduo livre: pessoas de boa vontade e sofisticao.

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    c) O papel para uma Coalizao Democrtica: uma instituio externa ao sistema ONU, formada por uma coalizo de democracias o modelo mais vivel e factvel proposto por Buchanan e Keohane. Os Estados-membros devem ser, obrigatoriamente, democracias com o mnimo de solidez institucional e capacidade de assegurar o cumprimento das leis e dos direitos civis e humanos em seus territrios25. A mirade de democracias possveis no mundo no entra em questo, o objetivo simplesmente excluir a participao de Estados notadamente tiranos e institucionalmente fracos. muito importante, tambm, que exista uma diversidade geogrfica entre os membros, evitando o monoplio de naes da Amrica do Norte e Europa. Essa coalizo aplicaria todos os princpios e recursos da Viso Cosmopolita, principalmente