KAWAUCHE_Nem Tão Livres, Nem Tão Iguais - Revista de História

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2/8/2014 Nem tão livres, nem tão iguais - Revista de História http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/nem-tao-livres-nem-tao-iguais 1/4 Nem tão livres, nem tão iguais Palavras-chave da Revolução Francesa, “liberdade” e “igualdade” ainda eram conceitos bastante relativos no século do Iluminismo Thomaz Kawauche 1/5/2014 Luís XVI, o rei que seria executado pelos revolucionários franceses, faz caridade aos pobres no inverno de 1788. Para os filósofos das Luzes, a ideia de igualdade não era absoluta. (Reprodução / Original do Palácio de Versailles) “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”. O Artigo Primeiro da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão cairia bem em qualquer discurso da classe política atual. Mas foi escrito há mais de dois séculos pelos revolucionários franceses de 1789. E, naquela época, os conceitos de liberdade e igualdade não eram compreendidos da mesma forma que hoje. Muito antes do Liberté, Egalité, Fraternité – um lema a serviço da retórica política do momento – os filósofos iluministas se dedicavam a complexas discussões para dar novos sentidos à humanidade em suas relações sociais. Em seu monumental tratado Do espírito das leis (1748), o Barão de Montesquieu (1689-1755) explica que, numa sociedade regida por leis, ser livre não significa fazer tudo o que poderíamos desejar. A liberdade “só pode consistir em fazer o que se deve querer” e em “nunca ser constrangido a fazer o que não se deve querer”. Ou seja, ser “livre” diz respeito não apenas à vontade, mas também ao dever. O arbítrio – isto é, a decisão sobre o que deve ser feito – jamais se manifesta fora da alçada do direito. Em sua definição lapidar: “A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem”. É diferente do que pensava Aristóteles (384-322 a.C.) ao tratar da liberdade na Ética a Nicômaco: uma capacidade encontrada na alma do indivíduo. Na França do Iluminismo, o que está em questão é o estatuto político e social do homem, cuja existência depende das relações estabelecidas com os outros homens. Ser livre, nesse sentido, é ser livre relativamente aos outros, de acordo com as leis da sociedade. Ideia que permanece na sabedoria popular: “Minha liberdade termina onde começa a do outro”. Eis uma noção elementar de justiça. Em termos históricos, a referência remonta aos primórdios da Grécia. No século V a.C., havia a distinção entre homens livres e escravos, e a divisão social da pólis determinava que somente os livres poderiam decidir acerca das leis justas. No século XVIII francês, a transição do Antigo Regime para a Primeira República foi pautada por uma releitura dessa virtude cívica dos antigos. “A liberdade reside no poder que um ser inteligente possui para fazer o que quer, em conformidade com sua própria determinação”, afirma o verbete “Liberdade” da Enciclopédia de Diderot e D’Alembert (o volume da letra “L” foi publicado em 1765). A sutileza da definição está nas palavras finais: a ação do ser livre está submetida a uma regra, mesmo que esta seja a sua própria determinação. Condição que parece nos remeter ao livre-arbítrio dos cristãos (uma

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Nem tão livres, nem tão iguais

Palavras-chave da Revolução Francesa, “liberdade” e “igualdade” ainda

eram conceitos bastante relativos no século do Iluminismo

Thomaz Kawauche

1/5/2014

Luís XVI, o rei que seria executado pelos revolucionáriosfranceses, faz caridade aos pobres no inverno de 1788.Para os filósofos das Luzes, a ideia de igualdade não eraabsoluta. (Reprodução / Original do Palácio de Versailles)

“Os homens nascem e permanecemlivres e iguais em direitos”. OArtigo Primeiro da Declaração dosDireitos do Homem e do Cidadãocairia bem em qualquer discurso daclasse política atual. Mas foi escritohá mais de dois séculos pelosrevolucionários franceses de 1789.E, naquela época, os conceitos deliberdade e igualdade não eramcompreendidos da mesma formaque hoje.

Muito antes do Liberté, Egalité,Fraternité – um lema a serviço daretórica política do momento – osfilósofos iluministas se dedicavam acomplexas discussões para darnovos sentidos à humanidade emsuas relações sociais. Em seu monumental tratado Do espírito das leis (1748), o Barão deMontesquieu (1689-1755) explica que, numa sociedade regida por leis, ser livre não significafazer tudo o que poderíamos desejar. A liberdade “só pode consistir em fazer o que se devequerer” e em “nunca ser constrangido a fazer o que não se deve querer”. Ou seja, ser “livre”diz respeito não apenas à vontade, mas também ao dever. O arbítrio – isto é, a decisão sobre oque deve ser feito – jamais se manifesta fora da alçada do direito. Em sua definição lapidar: “Aliberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem”.

É diferente do que pensava Aristóteles (384-322 a.C.) ao tratar da liberdade na Ética aNicômaco: uma capacidade encontrada na alma do indivíduo. Na França do Iluminismo, o queestá em questão é o estatuto político e social do homem, cuja existência depende das relaçõesestabelecidas com os outros homens. Ser livre, nesse sentido, é ser livre relativamente aosoutros, de acordo com as leis da sociedade. Ideia que permanece na sabedoria popular: “Minhaliberdade termina onde começa a do outro”. Eis uma noção elementar de justiça.

Em termos históricos, a referência remonta aos primórdios da Grécia. No século V a.C., havia adistinção entre homens livres e escravos, e a divisão social da pólis determinava que somente oslivres poderiam decidir acerca das leis justas. No século XVIII francês, a transição do AntigoRegime para a Primeira República foi pautada por uma releitura dessa virtude cívica dos antigos.

“A liberdade reside no poder que um ser inteligente possui para fazer o que quer, emconformidade com sua própria determinação”, afirma o verbete “Liberdade” da Enciclopédia deDiderot e D’Alembert (o volume da letra “L” foi publicado em 1765). A sutileza da definição estánas palavras finais: a ação do ser livre está submetida a uma regra, mesmo que esta seja a suaprópria determinação. Condição que parece nos remeter ao livre-arbítrio dos cristãos (uma

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autodeterminação incondicional), mas tal leitura seria uma simplificação do problema. Atéporque os filósofos iluministas criticavam o conceito de livre-arbítrio justamente pelo absurdo daescolha feita sem qualquer condição prévia. Seria um efeito sem causa.

Este foi o motivo pelo qual tantos pensadores preferiram adotar a perspectiva do chamado“direito natural”, defendida por teóricos desde Cícero (106-43 a.C.) na Roma antiga até Locke(1632-1704) na modernidade. Para eles, a sociedade deve ser determinada não apenas pelas leiscivis (feitas pelos homens), mas também pela “lei natural”: as noções de certo e errado que jáestariam inscritas na natureza antes mesmo do surgimento das sociedades. Por causa das leisnaturais, na época, uma afirmação como “o homem nasce e permanece livre” não era tãoincondicional como a entendemos atualmente.

Se o conceito de liberdade não exclui o de necessidade, quais leis – civis ou naturais –determinam as escolhas dos agentes livres? Para ilustrar esta questão, Voltaire, no Dicionáriofilosófico (1764), apresenta um curioso diálogo no verbete “Liberdade”:

“A – Uma bateria de canhões atira junto às nossas orelhas; sois livre de a ouvir ou não ouvir?

B – Sem dúvida que não posso deixar de a ouvir.

A – Desejais que esse canhão arranque vossa cabeça e a da vossa mulher e do vosso filho, quepasseiam convosco?

B – Que proposta me fazeis? Não posso, enquanto estiver em perfeito juízo, desejar tal coisa; eiso que me é impossível.

A – Bom; vós ouvis necessariamente este canhão e necessariamente desejais não morrer, vós e avossa família, de um tiro de canhão durante o passeio; não tendes o poder de não ouvir nem opoder de querer permanecer aqui.

B – É evidente.”

A conclusão do personagem A é também evidente: “Em que consiste pois a vossa liberdade”,explica para B, “senão no poder que a vossa individualidade exerceu ao fazer o que a vossavontade exigia com absoluta necessidade?”.

Para o filósofo materialista Claude-Adrien Helvétius (1715-1771), o conceito de liberdade erabaseado na crença iluminista do progresso da razão. Na obra Do espírito (1755), Helvétius expõeque, muito embora o homem seja uma máquina movida pelo interesse calcado em necessidadesfísicas (busca do prazer e fuga da dor), ainda assim poderemos falar em virtude se definirmos aliberdade como um interesse bem compreendido: um objeto escolhido pela razão e não apenaspor impulso ou instinto. Decorre daí a sua máxima: “Livre não passa de um sinônimo deesclarecido”. Dito de outra forma, o interesse pode ser educado para buscar, para além dasatisfação imediata do corpo, um prazer mais duradouro, que incluiria até mesmo o bem detodos com quem nos relacionamos, chamado “felicidade”.

No fim das contas, o que se desejava era a “autonomia”: o governo de si mesmo mediante leisestabelecidas pelo bom uso da razão. Este conceito aparecia tanto nos filósofos materialistasquanto nos “espiritualistas”. Rousseau, que se considerava cristão, não admitia o princípioteológico do livre-arbítrio e afirmava que “o impulso do puro apetite é escravidão, e aobediência à lei que se estatuiu a si mesma é liberdade”. Nesse ponto, inspirou o alemãoImmanuel Kant (1724-1804), para quem a autonomia condicionava a liberdade a uma lei moraluniversal: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela setorne uma lei universal”.

Se nem mesmo a liberdade pode ser plena, já dá para imaginar que a igualdade, para os

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iluministas, também era relativa. Basta saber que o artigo citado da Declaração de 1789 é umareferência clara a Montesquieu e a Rousseau. O primeiro explica que a liberdade republicanaconsiste num amor à condição em que todos são iguais perante a Constituição: “O amor àrepública, numa democracia, é o amor à democracia; o amor à democracia é o amor àigualdade”. E seu contraponto é a monarquia, regime no qual não é possível falar em igualdade,onde cada um busca a superioridade em detrimento da felicidade alheia. Na monarquia não podehaver autonomia pelo fato de a lei beneficiar mais a classe que detém o poder. Isto leva a umquadro social instável, no qual as pessoas pertencentes a condições inferiores desejam se tornarsenhoras das que se encontram em condições superiores.

Nem por isso Montesquieu considera que a igualdade seja ausência de hierarquias. Uma repúblicatem a igualdade como princípio na medida em que cada um possui as mesmas vantagens pararealizar seus interesses, ou ainda, sua liberdade individual. A despeito da classe social, todospodem ter as mesmas esperanças. A busca da felicidade particular leva, do ponto de vistapolítico, à felicidade geral. O fato de haver hierarquias não é tão grave, pois há colaboraçãoentre os “desiguais”.

Rousseau não acreditava que o império das leis era o bastante para que se instaurasse aigualdade. Para ele, a lei dos homens pode ser um instrumento de dominação por parte degovernantes corruptos: “Tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis que deramnovos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdadenatural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpaçãosagaz um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos, daí por diante sujeitaram todo ogênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria”.

Como se vê, o quadro ideológico na França pré-revolucionária era bastante complexo. E talvezfosse de fato necessário que a revolta dos pobres infelizes eclodisse com violência para mudar osentido das palavras liberdade e igualdade. E, com elas, a própria história.

Thomaz Kawaucheé professor da Universidade Federal de Sergipe e autor de Religião e políticaem Rousseau: o conceito de religião civil (Humanitas, 2013).

Saiba mais - Bibliografia

CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Campinas: Ed. Unicamp, 1992.

DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. São Paulo:Barcarolla, 2009.

NASCIMENTO, Milton Meira do & NASCIMENTO, Maria das Graças de Souza. Iluminismo: arevolução das Luzes. São Paulo: Ática, 2002.

SALINAS FORTES, Luiz Roberto. O Iluminismo e os reis filósofos. São Paulo: Brasiliense, 1981.

SOUZA, Maria das Graças de. Ilustração e história: o pensamento sobre a história no Iluminismofrancês. São Paulo: Discurso Editorial, 2001.

TODOROV, Tzvetan. O espírito das Luzes. São Paulo: Barcarolla, 2008.

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