Kant Metafisica Costumes (1)
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1
IMMANUEL KANT
Fundamentao
da Metafsica
dos Costumes
TEXTOS FILOSFICOS
70
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3
Pr o leitor directamente em contacto
com textos marcantes da histria da filosofia
atravs de tradues feitas
a partir dos respectivos originais,
por tradutores responsveis,
acompanhadas de introdues
e notas explicativas
foi o ponto de partida
para esta coleco.
O seu mbito estender-se-
a todas as pocas e a todos os tipos
e estilos de filosofia,
procurando incluir os textos
mais significativos do pensamento filosfico
na sua multiplicidade e riqueza.
Ser assim um reflexo da vibratilidade
do esprito filosfico perante o seu tempo,
perante a cincia
e o problema do homem
e do mundo.
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Textos filosficos
Director da Coleco: Artur Moro
1. Crtica da Razo Prtica, Immanuel Kant
2. Investigao sobre o Entendimento Humano, David Hume
3. Crepsculo dos dolos, Friedrich Nietzsche
4. Discurso de Metafsica, Gottfricd Wilhelm Leibniz
5. Os Processos da Metafsica, Immanuel Kant
6. Regras para a Direco do Espirito, Ren Descartes
7. Fundamentao da Metafsica dos Costumes, Immanuel Kant
8. A Ideia da Fenomenologia, Edmund Husserl
9. Discurso do Mtodo, Ren Descartes
10. Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra de Escritor, Sren Kierkegaard
11. A Filosofia na Idade Trgica dos Gregos, Friedrich Nietzsche
12. Carta sobre a Tolerncia. John Locke
13. Prolegmenos a Toda a Metafsica Futura, Immanuel Kant
14. Tratado da Reforma do Entendimento, Bento de Espinosa
15. Simbolismo: Seu Significado e Efeito, Alfred North Whitehead
16. Ensaio Sobre os Dados /mediatos da Conscincia, Henri Bergson
17. Enciclopdia das Cincias Filosficas em Epitome (vol. I), Georg Wilhelm Friedrich Hegel
18. A Paz Perptua e Outros Opsculos, Immanuel Kant
19. Dilogo sobre a Felicidade, Santo Agostinho
20. Princpios da Filosofa do Futuro, Ludwig Feuerbach
21. Enciclopdia das Cincias Filosficas em Epitome (vol. //) Georg Wilhelm Friedrich Hegel
22. Manuscritos Econmicos-Filosficos, Karl Marx
23. Propedutica Filosfica, Georg Wilhelm Friedrich Hegel
24. O Anticristo, Friedrich Nietzsche
25. Discurso sobre a Dignidade do Homem, Giovanni Pico della Mirandola
26. Ecce Homo, Friedrich Nietzsche
27. O Materialismo Racional, Gaston Bachelard
28. Princpios Metafsicos da Cincia da Natureza, Friedrich Nietzsche
29. Dilogo de um Filsofo Cristo e de um Filosofo Chins, Nicolas Malebranche
30. O Sistema da Vida tica, Georg Wilhelm Friedrich Hegel
31. Introduo Histria da Filosofia, Georg Wilhelm Friedrich Hegel
32. As Conferncias de Paris, Edmund Husserl
33. Teoria das Concepes do Mundo, Wilhelm Dilthey
34. A Religio nos Limites da Simples Razo, Immanuel Kant
35. Enciclopdia das Cincias Filosficas em Epitome (vol III), Georg Wilhelm Friedrich Hegel
36. Investigaes Filosficas Sobre a Essncia da Liberdade Humana, F.W.J. Schelling
37. O Conflito das Faculdades, Immanuel Kant
38. Morte e Sobrevivncia, Max Scheler
39. A Razo na Histria, Georg Whilhelm Friedrich Hegel
40. O Novo Esprito Cientfico, Gaston Bachelard
41. Sobre a Metafsica do Ser no Tempo, Henrique de Gand
42. Princpios da Filosofa, Ren Descartes
43. Tratado do Primeiro Princpio, Joo Duns Escoto
44. Ensaio sobre a Verdadeira Origem, Extenso e Fim do Governo Civil, John Locke
45. A Unidade do Intelecto contra os Averrostas, So Toms de Aquino
46. A Guerra e Queixa da Paz, Erasmo de Roterdo
47. Lies sobre a Vocao do Sbio, Johann Gottlieb Fichte
48. Dos Deveres (De Officiis), Ccero
49. Da Alma (De Anima), Aristteles
50. A Evoluo Criadora, Henri Bergson
51. Psicologia e Compreenso, Wilhelm Dilthey
52. Deus e a Filosofa, tienne Gilson
53. Metafsica dos Costumes. Parte I, Princpios Metafsicos da Doutrina do Direito, Immanuel Kant
54. Metafsica dos Costumes. Parte //, Princpios Metafsicos da Doutrina da Virtude, Immanuel Kant
55. Leis. Vol. I, Plato
denilsonInserted Textdsdasdasdasdas
denilsonHighlight
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Immanuel Kant
Fundamentao
da Metafsica
dos Costumes
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Ttulo original: Grundlegung zur Metaphysic der Sitten desta traduo Edies 70, Lda.
Traduo: Paulo Quintela Capa: FBA
Depsito Legal n 264507/07 Impresso, paginao e acabamento:
CASAGRAF para
EDIES 70, LDA. Setembro de 2007
ISBN: 978-972-44-1439-3 ISBN da 1 edio: 972-44-0306-8
EDIES 70, Lda. Rua Luciano Cordeiro, 123- 1 Esq-1069-157 Lisboa / Portugal
Telefs.:213190240-Fax: 213190249 e-mail: [email protected]
www.edicoes70.pt
Esta obra est protegida pela lei. No pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,
incluindo fotocpia e xerocopia, sem prvia autorizao do Editor. Qualquer transgresso lei dos Direitos de Autor ser passvel
de procedimento judicial.
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Immanuel Kant
Fundamentao
da Metafsica
dos Costumes
TRADUZIDA DO ALEMO POR
PAULO QUINTELA
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RECONHECIMENTO
A coleco Textos Filosficos fica deveras enriquecida
com a introduo, entre os seus ttulos, da Fundamentao da
Metafsica dos Costumes, na verso do Prof. Dr. Paulo Quintela,
verso que se tornou j um bem comum nosso pela sua qualidade
nunca desmentida, pela confiana que inspira e deve inspirar ao
leitor que se embrenha por este clssico texto kantiano e se
entrega sua fruio filosfica.
Aqui fica expresso ao ilustre germanista o nosso reco-
nhecimento por to prontamente ter acedido ao nosso desejo de
publicar este texto j esgotado e sempre objecto de incessante
procura pelo pblico estudioso.
O Editor
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NOTA PRVIA DO TRADUTOR
A presente verso portuguesa da Grundlegung zur
Metaphysik der Sitten de Immanuel Kant foi feita sobre o texto da
edio de Immanuel Kants Werke preparada por Artur Buchenau
e Ernst Cassirer e publicada pela casa de Bruno Cassirer,
Berlim, 1922, vol. IV, pgs. 241-324. a reproduo da segunda
edio, de Riga, 1786.
Ao rever a nossa traduo, demo-nos ao trabalho de a
confrontar com as francesas de Victor Delbos (Kant, Fondements de
la Mtaphysique des Moeurs, Paris, 1934) e de H. Lachelier (E.
Kant, Fondements de la Mtaphysique des Moeurs, 6.3 edio,
Paris, Hachette) e com a espanhola de Manuel G. Morente (M.
Kant, Fundamentacin de la metafsica de las costumbres,
Madrid, 1942). Nos passos de interpretao difcil ou duvidosa,
tivemos o cuidado de indicar, em notas assinadas P.Q., o
resultado da colao. O leitor ter assim a possibilidade de
preferir nossa qualquer das outras interpretaes.
Coimbra, Agosto de 1948.
PAULO QUINTELA
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*
* *
Imprime-se finalmente a traduo feita h quase doze anos
por incumbncia do Prof. Joaquim de Carvalho que
repetidamente anunciou a sua incluso nesta coleco por ele
lanada e dirigida. Deveria sair com prefcio e notas de sua
autoria. Como nada, porm, parece ter-se achado no seu esplio
para este propsito, houve-se por bem public-la agora, na
certeza de que o texto, sem mais, cumprir a sua obrigao
perante o pblico interessado de lngua portuguesa.
Coimbra, Maro de 1960.
P.Q.
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// PREFCIO
A velha filosofia grega dividia-se em trs cincias: a Fsica,
a tica e a Lgica. Esta diviso est perfeitamente conforme com
a natureza das coisas, e nada h a corrigir nela a no ser apenas
acrescentar o princpio em que se baseia, para deste modo, por
um lado, nos assegurarmos da sua perfeio, e, por outro,
podermos determinar exactamente as necessrias subdivises.
Todo conhecimento racional : ou material e considera
qualquer objecto, ou formal e ocupa-se apenas da forma do
entendimento e da razo em si mesmas e das regras universais do
pensar em geral, sem distino dos objectos. A filosofia formal
chama-se Lgica; a material porm, // que se ocupa de
determinados objectos e das leis a que eles esto submetidos,
por sua vez dupla, pois que estas leis ou so leis da natureza ou
leis da liberdade. A cincia da primeira chama-se Fsica, a da
outra a tica; aquela chama-se tambm Teoria da Natureza,
esta Teoria dos Costumes.
A Lgica no pode ter parte emprica, isto parte em que as
leis universais e necessrias do pensar assentassem em
__________________________
// BA III, IV
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14
princpios tirados da experincia, pois que ento no seria
Lgica, isto um cnone para o entendimento ou para a razo
que vlido para todo o pensar e que tem de ser demonstrado.
Em contraposio, tanto a Filosofia natural como a Filosofia
moral podem cada uma ter a sua parte emprica, porque aquela
tem de determinar as leis da natureza como objecto da experincia,
esta porm as da vontade do homem enquanto ela afectada pela
natureza; quer dizer, as primeiras como leis segundo as quais tudo
acontece, as // segundas como leis segundo as quais tudo deve
acontecer, mas ponderando tambm as condies sob as quais
muitas vezes no acontece o que devia acontecer.
Pode-se chamar emprica a toda a filosofia que se baseie em
princpios da experincia, quela porm cujas doutrinas se
apoiam em princpios a priori chama-se filosofia pura. Esta
ltima, quando simplesmente formal, chama-se Lgica; mas
quando se limita a determinados objectos do entendimento
chama-se Metafsica.
Desta maneira surge a ideia duma dupla metafsica, uma
Metafsica da Natureza e uma Metafsica dos Costumes. A Fsica
ter portanto a sua parte emprica, mas tambm uma parte
racional; igualmente a tica, se bem que nesta a parte emprica
se poderia chamar especialmente Antropologia prtica, enquanto
a racional seria a Moral propriamente dita.
Todas as indstrias, ofcios e artes ganharam pela diviso
do trabalho, // com a experincia de que no um s homem que
faz tudo, limitando-se cada um a certo trabalho, que pela sua
tcnica se distingue de outros, para o poder fazer com a maior
perfeio e com mais facilidade. Onde o trabalho no est assim
diferenciado e repartido, onde cada qual homem de mil ofcios,
reina ainda nas indstrias a maior das barbarias. Mas, em face
deste objecto que em si no parece indigno de ponderao,
perguntar-se- se a filosofia pura,
__________________________
// BA V, VI
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em todas as suas partes, no exige um homem especial; e se no seria
mais satisfatrio o estado total da indstria da cincia se aqueles que
esto habituados a vender o emprico misturado com o racional,
conforme o gosto do pblico, em propores desconhecidas deles
mesmos, que a si prprios se chamam pensadores independentes e
chamam sonhadores a outros que apenas preparam a parte racional,
fossem advertidos de no exercerem ao mesmo tempo dois ofcios to
diferentes nas suas tcnicas, para cada um dos quais se exige talvez
um talento especial // e cuja reunio numa s pessoa produz apenas
remendes. Mas aqui limito-me a perguntar se a natureza da cincia
no exige que se distinga sempre cuidadosamente a parte emprica da
parte racional e que se anteponha Fsica propriamente dita
(emprica) uma Metafsica da Natureza, e a Antropologia prtica uma
Metafsica dos Costumes, que deveria ser cuidadosamente depurada
de todos os elementos empricos, para se chegar a saber de quanto
capaz em ambos os casos a razo pura e de que fontes ela prpria tira
o seu ensino a priori. Esta ltima tarefa poderia, alis, ser levada a
cabo por todos os moralistas (cujo nome legio), ou s por alguns
deles que se sentissem com vocao para isso.
No tendo propriamente em vista por agora seno a filosofia
moral, restrinjo a questo posta ao ponto seguinte: No verdade
que da mais extrema necessidade elaborar um dia uma pura
Filosofia Moral que seja completamente depurada de tudo o que
possa ser // somente emprico e pertena a Antropologia? Que tenha
de haver uma tal filosofia, ressalta com evidncia da ideia comum do
dever e das leis morais. Toda a gente tem de confessar que uma lei
que tenha de valer moralmente, isto como fundamento duma
obrigao, tem de ter em si uma necessidade absoluta; que o
mandamento: no deves mentir, no vlido somente para os
homens e que outros seres racionais se no teriam que importar com
ele, e assim todas as restantes leis propriamente morais; que, por con-
seguinte, o princpio da obrigao no se h-de buscar aqui
__________________________
// BA VII, VIII
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na natureza do homem ou nas circunstncias do mundo em que o
homem est posto, mas sim a priori exclusivamente nos conceitos da
razo pura, e que qualquer outro preceito baseado em princpios da
simples experincia, e mesmo um preceito em certa medida
universal, se ele se apoiar em princpios empricos, num mnimo
que seja, talvez apenas por um s mbil, poder chamar-se na
verdade uma regra prtica, mas nunca uma lei moral.
// As leis morais com seus princpios, em todo conhecimento
prtico, distinguem-se portanto de tudo o mais em que exista
qualquer coisa de emprico, e no s se distinguem essencialmente,
como tambm toda a Filosofia moral assenta inteiramente na sua
parte pura, e, aplicada ao homem, no recebe um mnimo que seja
do conhecimento do homem (Antropologia), mas fornece-lhe como
ser racional leis a priori. E verdade que estas exigem ainda uma
faculdade de julgar apurada pela experincia, para, por um lado,
distinguir em que caso elas tm aplicao, e, por outro, assegurar-
lhes entrada na vontade do homem e eficcia na sua prtica. O
homem, com efeito, afectado por tantas inclinaes, na verdade
capaz de conceber a ideia de uma razo pura prtica, mas no
to facilmente dotado da fora necessria para a tornar eficaz in
concreto no seu comportamento.
Uma Metafsica dos Costumes, , pois, indispensavel-mente
necessria, no s por motivos de ordem especulativa para investigar
a fonte dos princpios prticos que residem // a priori na nossa razo,
mas tambm porque os prprios costumes ficam sujeitos a toda a
sorte de perverso enquanto lhes faltar aquele fio condutor e norma
suprema do seu exacto julgamento. Pois que aquilo que deve ser
moralmente bom no basta que seja conforme a lei moral, mas tem
tambm que cumprir-se por amor dessa mesma lei; caso contrrio,
aquela conformidade ser apenas muito contingente e incerta, porque
o princpio imoral produzir na verdade de vez em quando aces
conformes lei moral, mas mais vezes ainda aces
__________________________
// BA IX, X
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contrrias a essa lei. Ora a lei moral, na sua pureza e autenticidade
(e exactamente isto que mais importa na prtica), no se deve
buscar em nenhuma outra parte seno numa filosofia pura, e esta
(Metafsica) tem que vir portanto em primeiro lugar, e sem ela no
pode haver em parte alguma uma Filosofia moral; e aquela que
mistura os princpios puros com os empricos no merece mesmo o
nome de filosofia (pois esta distingue-se do conhecimento racional
comum exactamente por expor em cincia parte aquilo que este
conhecimento s concebe misturado); merece ainda // muito menos o
nome de Filosofia moral, porque, exactamente por este amlgama de
princpios, vem prejudicar at a pureza dos costumes e age contra a
sua prpria finalidade.
No se v pensar, porm, que aquilo que aqui pedimos exista j
na propedutica que o clebre Wolff anteps a sua Filosofia moral a
que chamou Filosofia prtica universal, c que se no haja de entrar
portanto em campo inteiramente novo. Precisamente porque ela devia
ser uma filosofia prtica universal, no tomou em considerao
nenhuma vontade de qualquer espcie particular digamos uma
vontade que fosse determinada completamente por princpios a priori
e sem quaisquer mbiles empricos, e a que se poderia chamar uma
vontade pura , mas considerou o querer em geral com todas as
aces e condies que lhe cabem nesta acepo geral, e por a se
distingue ela de uma Metafsica dos Costumes exactamente como a
Lgica geral se distingue da Filosofia transcendental, // a primeira
das quais expe as operaes e regras do pensar em geral, enquanto
que a segunda expe somente as operaes e regras especiais do
pensar puro, isto daquele pensar pelo qual os objectos so
conhecidos totalmente a priori. Com efeito, a Metafsica dos Costumes
deve investigar a ideia e os princpios duma possvel vontade pura, e
no as aces e condies do querer humano em geral, as quais so
tiradas na maior parte da Psicologia. O facto de na Filosofia prtica
universal (sem alis ter o direito de o fazer) se falar tambm de leis
__________________________
// BA XI, XII
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morais e de dever, no constitui objeco alguma ao que eu afirmo.
Porque os autores daquela cincia tambm nisto continuam fiis
ideia que dela fazem; no distinguem os motivos de determinao
que, como tais, se apresentam totalmente a priori s pela razo (1) e
so propriamente morais, dos motivos empricos, que o
entendimento eleva a conceitos universais s por confronto das
experincias. Consideram-nos, pelo contrrio, sem atender
diferena // das suas fontes, s pela sua maior ou menor soma
(tomando-os a todos como de igual espcief e formam assim o seu
conceito de obrigao; em verdade este conceito no nada menos
que moral, mas o nico que se pode exigir de uma filosofia que
no atende origem de todos os conceitos prticos possveis, sejam
eles a priori ou simplesmente a posteriori.
No propsito, pois, de publicar um dia uma Metafsica dos
Costumes, fao-a preceder desta Fundamentao. Em verdade no
h propriamente nada que lhe possa servir de base alm da Crtica
duma razo pura prtica, assim como para a Metafsica o a Crtica
da razo pura especulativa j publicada. Mas, por um lado, aquela
no como esta de extrema necessidade, porque a razo humana no
campo moral, mesmo no caso do mais vulgar entendimento, pode
ser facilmente levada a um alto grau de justeza e desenvolvimento,
enquanto que, pelo contrrio, no uso terico, mas puro, ela
exclusivamente // dialctica; por outro lado, eu exijo, para que a
Crtica de uma razo pura prtica possa ser acabada, que se possa
demonstrar simultaneamente a sua unidade com a razo
especulativa num princpio comum; pois no fim de contas trata-se
sempre de uma s e mesma razo, que s na aplicao se deve dife-
renar. A tal perfeio no podia eu chegar ainda agora, sem
recorrer a consideraes de natureza totalmente diversa que
provocariam confuso no. esprito do leitor. Eis por que, em vez
__________________________
(1) Morente (pg. 17) traduz inadvertidamente slo por el
entendimiento; o original diz bloss durch Vernunft. (P.Q.)
// BA XIII, XIV
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de lhe chamar Crtica da razo pura prtica, eu me sirvo do ttulo de
Fundamentao da Metafsica dos Costumes (1).
Como, porm, em terceiro lugar, uma Metafsica dos
Costumes, a despeito do ttulo repulsivo, susceptvel de um alto
grau de popularidade e acomodamento ao entendimento vulgar,
acho til separar dela este trabalho preparatrio de
fundamentao, para de futuro no ter de juntar a teorias mais
fceis as subtilezas inevitveis em tal matria.
// A presente Fundamentao nada mais , porm, do que a
busca e fixao do princpio supremo da moralidade, o que constitui
s por si no seu propsito uma tareja completa e bem distinta de
qualquer outra investigao moral. verdade que as minhas
afirmaes sobre esta questo capital to importante e que at
agora no foi, nem de longe, suficientemente discutida, receberiam
muita clareza pela aplicao do mesmo princpio a todo o sistema e
grande confirmao pelo jacto da suficincia que ele mostraria por
toda a parte; mas tive que renunciar a esta vantagem, que no fundo
seria tambm mais de amor prprio do que de utilidade geral,
porque a facilidade de aplicao e a aparente suficincia dum
princpio no do nenhuma prova segura da sua exactido, pelo
contrrio, despertam em ns uma certa parcialidade para o no
examinarmos e ponderarmos em toda a severidade por si mesmo,
sem qualquer considerao pelas consequncias.
// O mtodo que adoptei neste escrito o que creio mais
conveniente, uma vez que se queira percorrer o caminho ana-
liticamente do conhecimento vulgar para a determinao do
princpio supremo desse conhecimento, e em seguida e. em sentido
inverso, sinteticamente, do exame deste princpio e das
__________________________
(1) Fundamentao, e no Fundamentos como geralmente se diz seguindo os
franceses, que a boa traduo do alemo Grundlegung. Fica assim posto em
evidncia o esforo demonstrativo e construtivo que o original implica. Morente
tambm traduz como ns. (P.Q.)
// BA XV, XVI
-
20
suas fontes para o conhecimento vulgar onde se encontra a sua
aplicao. A diviso da matria , pois, a seguinte:
1. Primeira Seco: Transio do conhecimento moral da
razo vulgar para o conhecimento filosfico.
2. Segunda Seco: Transio da filosofia moral popular
para a Metafsica dos costumes.
3. Terceira Seco: ltimo passo da Metafsica dos costumes
para a Crtica da Razo pura prtica.
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// PRIMEIRA SECO
TRANSIO DO CONHECIMENTO MORAL DA RAZO
VULGAR PARA O CONHECIMENTO FILOSFICO
Neste mundo, e at tambm fora dele, nada possvel pensar
que possa ser considerado como bom sem limitao a no ser uma
s coisa: uma boa vontade. Discernimento (1), argcia de esprito
(2), capacidade de julgar (
3) e como quer que possam chamar-se os
demais talentos do
__________________________
(1) Verstand no original, parece-me dever ser aqui excepcionalmente
traduzido por discernimento e no por entendimento. Os dois
tradutores franceses propem intelligence; Morente entendimiento.
(P.Q.)
(2) Witz no original, tem o sentido especial da palavra no alemo do sc.
XVIII. Delbos traduz parafrasticamente: le don de saisir les ressemblances
des choses; Lachelier simplesmente Lesprit; Morente d expresso o
seu sentido actual e traduz gracejo! (P.Q.)
(3) Urteilskraft, na parfrase de Delbos: la facult de discerner le
particulier pour en juger. (P.Q.)
// BA 1
-
22
esprito, ou ainda coragem, deciso, constncia de propsito,
como qualidades do temperamento, so sem dvida a muitos
respeitos coisas boas e desejveis; mas tambm podem tornar-se
extremamente ms e prejudiciais se a vontade, que haja de fazer
uso destes dons naturais e cuja constituio particular por isso se
chama carcter, no for boa. O mesmo acontece com os dons da
fortuna. Poder, riqueza, honra, mesmo a sade, e todo o bem-
estar e contentamento com a sua sorte, sob // o nome de
felicidade, do nimo que muitas vezes por isso mesmo desanda
em soberba, se no existir tambm a boa vontade que corrija a
sua influncia sobre a alma e juntamente todo o princpio de agir
e lhe d utilidade geral; isto sem mencionar o facto de que um
espectador razovel e imparcial em face da prosperidade
ininterrupta duma pessoa a quem no adorna nenhum trao duma
pura e boa vontade, nunca poder sentir satisfao, e assim a boa
vontade parece constituir a condio indispensvel do prprio
facto de sermos dignos da felicidade.
Algumas qualidades so mesmo favorveis a esta boa
vontade e podem facilitar muito a sua obra, mas no tm todavia
nenhum valor ntimo absoluto, pelo contrrio pressupem ainda e
sempre uma boa vontade, a qual restringe a alta estima que, alis
com razo, por elas se nutre, e no permite que as consideremos
absolutamente boas. Moderao nas emoes e paixes,
autodomnio e calma reflexo so no somente boas a muitos
respeitos, mas parecem constituir at parte do valor ntimo da
pessoa; mas falta ainda muito para as podermos declarar boas sem
reserva (ainda que os antigos as louvassem incondicionalmente).
Com efeito, sem os princpios duma boa vontade, podem elas
tornar-se muitssimo ms, e o sangue--frio dum facnora no s //
o torna muito mais perigoso como o faz tambm imediatamente
mais abominvel ainda a nossos olhos do que o julgaramos sem
isso.
__________________________
// BA 2, 3
-
23
A boa vontade no boa por aquilo que promove ou realiza,
pela aptido para alcanar qualquer finalidade proposta, mas to-
somente pelo querer, isto em si mesma, e, considerada em si
mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o
que por seu intermdio possa ser alcanado em proveito de qualquer
inclinao, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinaes.
Ainda mesmo que por um desfavor especial do destino, ou pelo
apetrechamento avaro duma natureza madrasta, faltasse totalmente
a esta boa vontade o poder de fazer vencer as suas intenes,
mesmo que nada pudesse alcanar a despeito dos seus maiores
esforos, e s afinal restasse a boa vontade ( claro que no se trata
aqui de um simples desejo, mas sim do emprego de todos os meios
de que as nossas foras disponham), ela ficaria brilhando por si
mesma como um jia, como alguma coisa que em si mesma tem o
seu pleno valor. A utilidade ou a inutilidade nada podem acrescentar
ou tirar a este valor. A utilidade (1) seria apenas como que o engaste
para essa jia poder ser manejada mais facilmente na circulao
corrente ou para atrair sobre ela a ateno daqueles que no so
ainda bastante conhecedores, mas no // para a recomendar aos
conhecedores e determinar o seu valor.
H contudo nesta ideia do valor absoluto da simples vontade,
sem entrar em linha de conta para a sua avaliao com qualquer
utihdade, algo de to estranho que, a despeito mesmo de toda a
concordncia da razo vulgar com ela, pode surgir a suspeita de que
no fundo haja talvez oculta apenas uma quimera area e que a
natureza tenha sido mal compreendida na sua inteno ao dar-nos a
razo
__________________________
(1) evidente que o pronome singular que Kant emprega se refere a utilidade.
Morente (pg. 23), traduzindo no plural, refere-o a utilidade e inutilidade, o que
no faz sentido. (P.Q.)
// BA 4
-
24
por governante da nossa vontade. Vamos por isso, deste ponto
de vista, pr prova esta ideia.
Quando consideramos as disposies naturais dum ser
organizado, isto , dum ser constitudo em ordem a um fim que
a vida, aceitamos como princpio que nele se no encontra
nenhum rgo que no seja o mais conveniente e adequado
finalidade a que se destina. Ora, se num ser dotado de razo e
vontade a verdadeira finalidade da natureza fosse a sua
conservao, o seu bem-estar, numa palavra a sua felicidade,
muito mal teria ela tomado as suas disposies ao escolher a
razo da criatura para executora destas suas intenes. Pois todas
as aces que esse ser tem de realizar nesse // propsito, bem
como toda a regra do seu comportamento, lhe seriam indicadas
com muito maior exactido pelo instinto, e aquela finalidade
obteria por meio dele muito maior segurana do que pela razo; e
se, ainda por cima, essa razo tivesse sido atribuda criatura
como um favor, ela s lhe poderia ter servido para se entregar a
consideraes sobre a feliz disposio da sua natureza, para a
admirar, alegrar-se com ela e mostrar-se por ela agradecida
Causa benfazeja, mas no para submeter sua direco fraca e
enganadora a sua faculdade de desejar, achavascando assim a
inteno da natureza; numa palavra, a natureza teria evitado que a
razo casse no uso prtico e se atrevesse a engendrar com as
suas fracas luzes o plano da felicidade e dos meios de a alcanar;
a natureza teria no-somente chamado a si a escolha dos fins, mas
tambm a dos meios, e teria com sbia prudncia confiado ambas
as coisas simplesmente ao instinto.
Observamos de facto que, quanto mais uma razo cultivada
se consagra ao gozo da vida e da felicidade, tanto mais o homem
se afasta do verdadeiro contentamento; e da provm que em
muitas pessoas, e nomeadamente nas mais experimentadas no
uso da razo, se elas quiserem ter
__________________________
// BA 5
AdmInserted Text
AdmHighlight
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a sinceridade de o // confessar, surja um certo grau de misologia,
quer dizer de dio razo. E isto porque, uma vez feito o balano de
todas as vantagens que elas tiram, no digo j da inveno de todas
as artes do luxo vulgar, mas ainda das cincias (que a elas lhes
parecem no fim e ao cabo serem tambm um luxo do entendimento),
descobrem contudo que mais se sobrecarregaram de fadigas do que
ganharam em felicidade, e que por isso finalmente invejam mais do
que desprezam os homens de condio inferior que esto mais
prximos do puro instinto natural e no permitem razo grande
influncia sobre o que fazem ou deixam de fazer. E at aqui temos de
confessar que o juzo daqueles que diminuem e mesmo reduzem a
menos de zero os louvores pomposos das vantagens que a razo nos
teria trazido no tocante felicidade e ao contentamento da vida, no
de forma alguma mal-humorado ou ingrato para com a vontade do
governo do mundo, mas que na base de juzos desta ordem est
oculta a ideia de uma outra e mais. digna inteno da existncia,
qual, e no felicidade, a razo muito especialmente se destina, e
qual por isso, como condio suprema, se deve subordinar em
grandssima parte a inteno privada do homem. Portanto, se a razo
no apta bastante para guiar com segurana a vontade no que
respeita aos seus objectos // e satisfao de todas as nossas
necessidades (que ela mesma a razo em parte multiplica),
visto que um instinto natural inato levaria com muito maior certeza a
este fim, e se, no entanto, a razo nos foi dada como faculdade
prtica, isto , como faculdade que deve exercer influncia sobre a
vontade, ento o seu verdadeiro destino dever ser produzir uma
vontade, no s boa qui como meio para outra inteno, mas uma
vontade boa em si mesma, para o que a razo era absolutamente
necessria, uma vez que a natureza de resto agiu em tudo com acerto
na repartio das suas faculdades e talentos. Esta vontade no ser na
verdade o nico bem nem o bem total, mas
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26
ter de ser contudo o bem supremo e a condio de tudo o mais,
mesmo de toda a aspirao de felicidade. E neste caso fcil de
conciliar com a sabedoria da natureza o facto de observarmos
que a cultura da razo, que necessria para a primeira e
incondicional inteno, de muitas maneiras restringe, pelo menos
nesta vida, a consecuo da segunda que sempre condicionada,
quer dizer da felicidade, e pode mesmo reduzi-la a menos de
nada (1), sem que com isto a natureza falte sua finalidade,
porque a razo, que reconhece o seu supremo destino prtico na
fundao duma boa vontade, ao alcanar esta inteno capaz
duma s satisfao conforme sua prpria ndole, isto a que
pode achar ao atingir um fim que s ela (a razo) // determina,
ainda que isto possa estar ligado a muito dano causado aos fins
da inclinao.
Para desenvolver, porm, conceito de uma boa vontade
altamente estimvel em si mesma e sem qualquer inteno
ulterior, conceito que reside j no bom senso natural (2) e que
mais precisa de ser esclarecido do que ensinado, este conceito que
est sempre no cume da apreciao de todo o valor das nossas
aces e que constitui a condio de todo o resto, vamos encarar
o conceito do Dever que contm em si o de boa vontade, posto
que sob certas limitaes e obstculos subjectivos, limitaes e
obstculos esses que, muito longe de ocultarem e tornarem
irreconhecvel a boa vontade, a fazem antes ressaltar por
contraste e brilhar com luz mais clara.
__________________________
(1) Morente (pg. 26) no traduz esta orao. (P.Q.).
(2) Parece-nos ser esta a melhor traduo a propor para a expresso
alem neste contexto: der naturlkhe gesunde Verstand. Morente (pg.
27) traduz literalmente: el sano entendimiento natural. Delbos (pg.
94): lintelligence naturelle saine. Lachelier (pg. 16): naturellement
contenu dans tout entendement sain. (P.Q.)
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27
Deixo aqui de parte todas as aces que so logo reconhecidas
como contrrias ao dever, posto possam ser teis sob este ou aquele
aspecto; pois nelas nem sequer se pe a questo de saber se foram
praticadas por dever, visto estarem at em contradio com ele.
Ponho de lado tambm as aces que so verdadeiramente
conformes ao dever, mas para as quais os homens no sentem
imediatamente nenhuma inclinao, embora as pratiquem porque a
isso so levados por outra tendncia. Pois // fcil ento distinguir se
a aco conforme ao dever foi praticada por dever ou com inteno
egosta. Muito mais difcil esta distino quando a aco
conforme ao dever e o sujeito alm disso levado a ela por
inclinao imediata. Por exemplo: Ena verdade conforme ao
dever que o merceeiro no suba os preos ao comprador
inexperiente, e, quando o movimento do negcio grande, o
comerciante esperto tambm no faz semelhante coisa, mas mantm
um preo fixo geral para toda a gente, de forma que uma criana
pode comprar em sua casa to bem como qualquer outra pessoa. -
se, pois, servido honradamente; mas isso ainda no bastante para
acreditar que o comerciante tenha assim procedido por dever e
princpios de honradez; o seu interesse assim o exigia; mas no de
aceitar que ele alm disso tenha tido uma inclinao imediata para os
seus fregueses, de maneira a no fazer, por amor deles, preo mais
vantajoso a um do que a outro. A aco no foi, portanto, praticada
nem por dever nem por inclinao imediata, mas somente com
inteno egosta.
Pelo contrrio, conservar cada qual a sua vida um dever, e
alm disso uma coisa para que toda a gente tem inclinao imediata.
Mas por isso mesmo que o cuidado, por vezes ansioso, que a
maioria dos homens lhe dedicam no tem nenhum valor intrnseco e
a mxima que o exprime nenhum contedo moral. Os homens
conservam a sua vida conforme // ao dever, sem dvida, mas no por
dever. Em contraposio, quando as contrariedades e o
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28
desgosto sem esperana roubaram totalmente o gosto de viver;
quando o infeliz, com fortaleza de alma, mais enfadado do que
desalentado ou abatido, deseja a morte, e conserva contudo a vida
sem a amar, no por inclinao ou medo, mas por dever, ento a sua
mxima tem um contedo moral.
Ser caritativo quando se pode s-lo um dever, e h alm disso
muitas almas de disposio to compassiva que, mesmo sem
nenhum outro motivo de vaidade ou interesse, acham ntimo prazer
em espalhar alegria sua volta e se podem alegrar com o
contentamento dos outros, enquanto este obra sua. Eu afirmo
porm que neste caso uma tal aco, por conforme ao dever, por
amvel que ela seja, no tem contudo nenhum verdadeiro valor
moral, mas vai emparelhar com outras inclinaes, por exemplo o
amor das honras que, quando por feliz acaso topa aquilo que
efectivamente de interesse geral e conforme ao dever,
consequentemente honroso e merece louvor e estmulo, mas no
estima; pois sua mxima falta o contedo moral que manda que
tais aces se pratiquem, no por inclinao, mas por dever.
Admitindo pois que o nimo desse filantropo estivesse velado pelo
desgosto pessoal que apaga toda // a compaixo pela sorte alheia, e
que ele continuasse a ter a possibilidade de fazer bem aos
desgraados, mas que a desgraa alheia o no tocava porque estava
bastante ocupado com a sua prpria; se agora, que nenhuma
inclinao o estimula j, ele se arrancasse a esta mortal
insensibilidade e praticasse a aco sem qualquer inclinao,
simplesmente por dever, s ento que ela teria o seu autntico valor
moral. Mais ainda: Se a natureza tivesse posto no corao deste
ou daquele homem pouca simpatia, se ele (homem honrado de resto)
fosse por temperamento frio e indiferente s dores dos outros por ser
ele mesmo dotado especialmente de pacincia e capacidade de
resistncia s suas prprias dores e por isso pressupor e exigir as
mesmas qualidades dos
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outros; se a natureza no tivesse feito de um tal homem (que em boa
verdade no seria o seu pior produto) propriamente um filantropo,
no poderia ele encontrar ainda dentro de si um manancial que
lhe pudesse dar um valor muito mais elevado do que o dum
temperamento bondoso? Sem dvida! e exactamente a que
comea o valor do carcter, que moralmente sem qualquer
comparao o mais alto, e que consiste em fazer o bem, no por
inclinao, mas por dever.
Assegurar cada qual a sua prpria felicidade um dever
(pelo menos indirectamente); pois a ausncia de contentamento //
com o seu prprio estado num torvelinho de muitos cuidados e no
meio de necessidades insatisfeitas poderia facilmente tornar-se
numa grande tentao para transgresso dos deveres. Mas,
tambm sem considerar aqui o dever, todos os homens tm j por
si mesmos a mais forte e ntima inclinao para a felicidade,
porque exactamente nesta ideia que se renem numa soma todas
as inclinaes. Mas o que prescreve a felicidade geralmente
constitudo de tal maneira que vai causar grande dano a algumas
inclinaes, de forma que o homem no pode fazer ideia precisa e
segura da soma de satisfao de todas elas a que chama felicidade;
por isso no de admirar que uma nica inclinao determinada, em
vista daquilo que promete e do tempo em que se pode alcanar a sua
satisfao, possa sobrepor-se a uma ideia to vacilante. Assim um
homem, por exemplo um gotoso, pode escolher o regalo que lhe d
qualquer comida de que gosta e sofrer quanto pode, porque, pelo
menos segundo o seu clculo, no quis renunciar ao prazer do
momento presente em favor da esperana talvez infundada da
felicidade que possa haver na sade. Mas tambm neste caso, mesmo
que a inclinao universal para a felicidade no determinasse a sua
vontade, mesmo que a sade, pelo menos para ele, no entrasse to
necessariamente no clculo, ainda aqui, como em todos os outros
casos, continua a existir
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30
uma lei que lhe prescreve a promoo // da sua felicidade, no por
inclinao, mas pr dever e somente ento que o seu
comportamento tem propriamente valor moral.
E sem dvida tambm assim que se devem entender os passos
da Escritura em que se ordena que amemos o prximo, mesmo o
nosso inimigo. Pois que o amor enquanto inclinao no pode ser
ordenado, mas o bem-fazer por dever, mesmo que a isso no
sejamos levados por nenhuma inclinao e at se oponha a ele uma
averso natural e invencvel, amor prtico e no patolgico, que
reside na vontade e no na tendncia da sensibilidade, em princpios
de aco e no em compaixo lnguida. E s esse amor que pode
ser ordenado.
A segunda proposio : Uma aco praticada por dever tem
o seu valor moral, no no propsito que com ela se quer atingir, mas
na mxima que a determina; no depende portanto da realidade do
objecto da aco, mas somente do princpio do querer segundo o
qual a aco, abstraindo de todos os objectos da faculdade de
desejar, foi praticada. Que os propsitos que possamos ter ao praticar
certas aces e os seus efeitos, como fins e mbiles da vontade, no
podem dar s aces nenhum valor incondicionado, nenhum valor
moral, resulta claramente do que fica atrs. Em que que reside pois
este valor, se ele se no encontra na // vontade considerada em
relao com o efeito esperado dessas aces? No pode residir em
mais parte alguma seno no princpio da vontade, abstraindo dos
fins que possam ser realizados por uma tal aco; pois que a vontade
est colocada entre o seu princpio a priori, que formal, e o seu
mbil a posteriori, que material, por assim dizer numa
encruzilhada; e, uma vez que ela tem de ser determinada por
qualquer coisa, ter de ser determinada pelo princpio formal do
querer em geral quando a aco seja praticada por dever, pois lhe foi
tirado todo o princpio material.
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// BA 13, 14
-
31
A terceira proposio, consequncia das duas anteriores,
formul-la-ia eu assim: Dever a necessidade de uma aco
por respeito lei. Pelo objecto, como efeito da aco em vista,
posso eu sentir em verdade, inclinao, mas nunca respeito,
exactamente porque simplesmente um efeito e no a actividade
de uma vontade. De igual modo, no posso ter respeito por
qualquer inclinao em geral, seja ela minha ou de um outro;
posso quando muito, no primeiro caso, aprov-la, e, no segundo,
por vezes am-la mesmo, isto consider-la como favorvel ao
meu prprio interesse. S pode ser objecto de respeito e portanto
mandamento aquilo que est ligado minha vontade somente
como princpio e nunca como efeito, no aquilo que serve
minha inclinao mas o que a domina ou que, pelo menos, a
exclui do clculo // na escolha, quer dizer a simples lei por si
mesma. Ora, se uma aco realizada por dever deve eliminar
totalmente a influncia da inclinao e com ela todo o objecto da
vontade, nada mais resta vontade que a possa determinar do que
a lei objectivamente, e, subjectivamente, o puro respeito por esta
lei prtica, e por conseguinte a mxima (*) que manda obedecer a
essa lei, mesmo com prejuzo de todas as minhas inclinaes.
O valor moral da aco no reside, portanto, no efeito que
dela se espera; tambm no reside em qualquer princpio da aco
que precise de pedir o seu mbil a este efeito esperado. Pois todos
estes efeitos (a amenidade da nossa situao, e mesmo o fomento
da felicidade alheia) podiam tambm ser alcanados por outras
causas, e no se precisava portanto para tal da vontade de um ser
racional, na qual vontade e s nela se pode encontrar o
__________________________
(*) Mxima o princpio subjectivo do querer; o princpio objectivo (isto o
que serviria tambm subjectivamente de princpio prtico a todos os seres
racionais, se a razo fosse inteiramente senhora da faculdade de desejar) a lei
prtica. (Nota de Kant.)
// BA 15
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32
bem supremo e incondicionado. Por conseguinte, nada seno a
representao da lei em si mesma, que // em verdade s no ser
racional se realiza, enquanto ela, e no o esperado efeito, que
determina a vontade, pode constituir o bem excelente a que
chamamos moral, o qual se encontra j presente na prpria pessoa
que age segundo esta lei, mas se no deve esperar somente do
efeito da aco (*).
__________________________
(*) Poderiam objectar-me que eu, por trs da palavra respeito, busco apenas
refgio num sentimento obscuro, em vez de dar informao clara sobre esta
questo por meio de um conceito da razo. Porm, embora o respeito seja um
sentimento, no um sentimento recebido por influncia; , pelo contrrio, um
sentimento que se produz por si mesmo atravs dum conceito da razo, e assim
especificamente distinto de todos os sentimentos do primeiro gnero que se
podem reportar inclinao ou ao medo. Aquilo que eu reconheo
imediatamente como lei para mim, reconheo-o com um sentimento de respeito
que no significa seno a conscincia da subordinao da minha vontade a uma
lei, sem interveno de outras influncias sobre a minha sensibilidade. A
determinao imediata da vontade pela lei e a conscincia desta determinao
que se chama respeito, de modo que se deve ver o efeito da lei sobre o sujeito e
no a sua causa. O respeito propriamente a representao de um valor que
causa dano ao meu amor-prprio. portanto alguma coisa que no pode ser
considerada como objecto nem da inclinao nem do temor, embora tenha algo
de anlogo com ambos simultaneamente. O objecto do respeito portanto
simplesmente a lei, quero dizer aquela lei que nos impomos a ns mesmos, e no
entanto como necessria em si. Como lei que , estamos-lhe subordinados, sem
termos que consultar o amor-prprio; mas como lei que ns nos impomos a ns
mesmos, ela. uma consequncia da nossa vontade e tem, de um lado, analogia
com o temor, e, do outro, com a inclinao. // Todo o respeito por uma pessoa
propriamente s respeito pela lei (lei da rectido, etc), da qual essa pessoa nos d
o exemplo. Porque consideramos tambm o alargamento dos nossos talentos
como um dever, representamo-nos igualmente numa pessoa de talento por assim
dizer o exemplo duma lei (a de nos tornarmos semelhantes a ela por meio do
exerccio), e isso que constitui o nosso respeito. Todo o chamado interesse
moral consiste simplesmente no respeito pela lei. (Nota de Kant.)
// BA 16, nota: // BA 16
-
33
// Mas que lei pode ser ento essa, cuja representao,
mesmo sem tomar em considerao o efeito que dela se espera,
tem de determinar a vontade para que esta se possa chamar boa
absolutamente e sem restrio? Uma vez que despojei a vontade
de todos os estmulos que lhe poderiam advir da obedincia a
qualquer lei(1), nada mais resta do que a conformidade a uma lei
universal das aces em geral que possa servir de nico princpio
vontade, isto : devo proceder sempre de maneira que eu possa
querer tambm que a minha mxima se torne uma lei universal.
Aqui pois a simples conformidade lei em geral (sem tomar
como base qualquer lei destinada a certas aces) o que serve de
princpio vontade, e tambm o que tem de lhe servir de
princpio, para que o dever no seja por toda parte uma v iluso
e um conceito quimrico; e com isto est perfeitamente de acordo
a comum razo humana (2) nos seus juzos prticos e tem sempre
diante dos olhos este princpio.
// Ponhamos, por exemplo, a questo seguinte: No posso
eu, quando me encontro em apuro, fazer uma promessa com a
inteno de a no cumprir? Facilmente distingo aqui os dois
sentidos que a questo pode ter: se prudente, ou se
conforme ao dever, fazer uma falsa promessa. O primeiro caso
pode sem dvida apresentar-se
__________________________
(1) Morente (pg. 35) interpreta este passo de maneira totalmente errada ao
traduzir: Como he substratdo la voluntad a todos los afanes que pudieran
apartarla del cumplimiento de una ley.... O original diz: Da ich den Willen
aller Antriebe beraubet habe, die ihm aus der Befolgung irgendeines Gesetzes
entspringen knn-ten... (P.Q.)
(2) Ativemo-nos, neste passo, traduo literal do original die gemeine
Menschenvernunft, embora nos parea que seria melhor traduzir por o
humano senso comum. Delbos (pg. 103) traduz: la raison commune des
hommes; Morente (pg. 35): la razn vulgar de los hombres; Lachelier (pg.
25), quase em concordncia connosco: Le bon sens populaire. (P.Q.)
// BA 17, 18
-
34
muitas vezes. E verdade que vejo bem que no basta furtar-me ao
embarao presente por meio desta escapatria, mas que tenho de
ponderar se desta mentira me no podero advir posteriormente
incmodos maiores do que aqueles de que agora me liberto; e
como as consequncias, a despeito da minha pretensa esperteza,
no so assim to fceis de prever, devo pensar que a confiana
uma vez perdida me pode vir a ser mais prejudicial do que todo o
mal que agora quero evitar; posso enfim perguntar se no seria
mais prudente agir aqui em conformidade com uma mxima
universal e adquirir o costume de no prometer nada seno com a
inteno de cumprir a promessa. Mas breve se me torna claro que
uma tal mxima tem sempre na base o receio das consequncias.
Ora ser verdadeiro por dever uma coisa totalmente diferente de
s-lo por medo das consequncias prejudiciais; enquanto no
primeiro caso o conceito da aco em si mesma contm j para
mim uma lei, no segundo tenho antes que olhar rninha volta
para descobrir que efeitos podero para mim // estar ligados
aco. Porque, se me afasto do princpio do dever, isso de
certeza mau; mas se for infiel minha mxima de esperteza, isso
poder trazer-me por vezes grandes vantagens, embora seja em
verdade mais seguro continuar--lhe fiel. Entretanto, para resolver
da maneira mais curta e mais segura o problema de saber se uma
promessa mentirosa conforme ao dever, preciso s de perguntar
a mim mesmo: Ficaria eu satisfeito de ver a minha
mxima (de me tirar de apuros por meio de uma promessa no
verdadeira) tomar o valor de lei universal (tanto para mim como
para os outros)? E poderia eu dizer a mim mesmo: Toda a
gente pode fazer uma promessa mentirosa quando se acha numa
dificuldade de que no pode sair de outra maneira? Em breve
reconheo que posso em verdade querer a mentira, mas que no
posso querer uma lei universal de mentir; pois, segundo uma tal
lei, no poderia propriamente haver j promessa alguma, por-
__________________________
// BA 19
-
35
que seria intil afirmar a minha vontade relativamente s minhas
futuras aces a pessoas que no acreditariam na minha afirmao,
ou, se precipitadamente o fizessem, me pagariam na mesma moeda.
Por conseguinte a minha mxima, uma vez arvorada em lei
universal, destruir-se-ia a si mesma necessariamente.
No preciso pois de perspiccia de muito largo alcance para
saber o que hei-de fazer para que o meu querer // seja moralmente
bom. Inexperiente a respeito do curso das coisas do mundo,
incapaz de preveno em face dos acontecimentos que nele se
venham a dar, basta que eu pergunte a mim mesmo: Podes tu
querer tambm que a tua mxima se converta em lei universal? Se
no podes, ento deves rejeit-la, e no por causa de qualquer pre-
juzo que dela pudesse resultar para ti ou para os outros, mas
porque ela no pode caber como princpio numa possvel
legislao universal. Ora a razo exige-me respeito por uma tal
legislao, da qual em verdade presentemente no vejo em que se
funde (problema que o filsofo pode investigar), mas de que pelo
menos compreendo que uma apreciao do valor que de longe
ultrapassa o de tudo aquilo que a inclinao louva, e que a
necessidade das minhas aces por puro respeito lei prtica o
que constitui o dever, perante o qual tem de ceder qualquer outro
motivo, porque ele a condio de uma vontade boa em si, cujo
valor superior a tudo.
Assim, no conhecimento moral da razo humana vulgar,
chegmos ns a alcanar o seu princpio, princpio esse que a
razo vulgar em verdade no concebe abstractamente numa
forma geral, mas que mantm sempre realmente diante dos olhos
e de que se serve como padro dos seus juzos. Seria fcil mostrar
aqui como // ela, com esta bssola na mo, sabe perfeitamente
distinguir, em todos os casos que se apresentem, o que bom e o
que mau, o que conforme ao dever ou o que contrrio a ele.
Basta, sem que com isto lhe ensinemos nada de novo,
__________________________
// BA 20, 21
-
36
que chamemos a sua ateno, como fez SCRATES, para o seu
prprio princpio, e que no preciso nem cincia nem filosofia
para que ela saiba o que h a fazer para se ser honrado e bom,
mais ainda, para se ser sages e virtuoso. Podia-se mesmo j
presumir antecipadamente que o conhecimento daquilo que cada
homem deve fazer, e por conseguinte saber, tambm pertena
de cada homem, mesmo do mais vulgar. E aqui no nos podemos
furtar a uma certa admirao ao ver como a capacidade prtica de
julgar se avantaja tanto capacidade terica no entendimento
humano vulgar. Nesta ltima, quando a razo vulgar se atreve a
afastar-se das leis da experincia e dos dados dos sentidos, vai
cair em puras incompreensibilida-des e contradies consigo
mesma ou, pelo menos, num caos de incerteza, escurido e
inconstncia. No campo prtico, porm, a capacidade de julgar s
ento comea a mostrar todas as suas vantagens quando o
entendimento vulgar (1) exclui das leis prticas todos os mbiles
sensveis. Faz-se ento mesmo subtil, quer ele queira fazer
chicana com a sua conscincia ou com outras pretenses em
relao com o que deva chamar-se justo, quer queira
sinceramente determinar // o valor das suas aces para sua
prpria edificao; e o que o principal (2) , neste ltimo
caso pode at alimentar esperanas de xito to grandes como as
de qualquer filsofo, nisto at mesmo mais seguro do que este,
porque o filsofo no pode ter outro princpio que o homem
vulgar, mas o seu juzo pode ser facilmente perturbado e desviado
do direito caminho por uma multido de consideraes estranhas
ao caso. No seria, portanto, mais aconselhvel, em
__________________________
(1) Der gemeine Verstand Poderia tambm traduzir-se: o senso
comum. (P.Q.).
(2) Morente (pg. 39) traduz erradamente: lo que es ms frecuente. O
original diz: was das meiste ist. (P.Q.)
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37
matria moral, ficarmo-nos pelo juzo da razo vulgar e s
recorrer filosofia para, quando muito, tornar o sistema dos
costumes mais completo e compreensvel, expor as regras de
maneira mais cmoda com vista ao seu uso (e sobretudo
discusso), mas no para desviar o humano senso comum (den
gemeinen Menschenverstand), mesmo em matria prtica, da sua
feliz simplicidade e p-lo por meio da filosofia num novo
caminho da investigao e do ensino?
A inocncia uma coisa admirvel; mas por outro lado
muito triste que ela se possa preservar to mal e se deixe to
facilmente seduzir. E por isso que a prpria sageza que de
resto consiste mais em fazer ou no fazer do que em saber
precisa tambm da cincia, no para aprender dela, mas para
assegurar s suas // prescries entrada nas almas e para lhes dar
estabilidade. O homem sente em si mesmo um forte contrapeso
contra todos os mandamentos do dever que a razo lhe representa
como to dignos de respeito: so as suas necessidades e inclina-
es, cuja total satisfao ele resume sob o nome de felicidade.
Ora a razo impe as suas prescries, sem nada alis prometer s
inclinaes, irremitentemente, e tambm como que com desprezo
e menoscabo daquelas pretenses to tumultuosas e
aparentemente tio justificadas (e que se no querem deixar
eliminar por qualquer ordem). Daqui nasce uma dialctica
natural, quer dizer uma tendncia para opor arrazoados e
subtilezas (1) s leis severas do dever, para pr em dvida a sua
validade ou pelo menos a sua pureza e o seu rigor e para as fazer
mais conformes, se possvel, aos nossos desejos e inclinaes,
isto , no fundo, para corromp-las e despoj-las de toda a
sua
__________________________
(1) Vernnfteln a expresso alem. Lachelier (pg. 29) traduz por
chicaner; Delbos (pg. 109) por sophistiquer; Morente (pg. 40) por
discutir. (P.Q.)
// BA 23
-
38
dignidade, o que a prpria razo prtica vulgar acabar por
condenar.
assim, pois, que a razo humana vulgar, impelida por
motivos propriamente prticos e no por qualquer necessidade de
especulao (que nunca a tenta, enquanto ela se satisfaz com ser
simples s razo), se v levada a sair do seu crculo e a dar um
passo para dentro do campo da filosofia prtica. A encontra ela
informaes e instrues claras sobre a fonte do seu princpio, //
sobre a sua verdadeira determinao em oposio s mximas que
se apoiam sobre a necessidade e a inclinao. Assim espera ela
sair das dificuldades que lhe causam pretenses opostas, e fugir
ao perigo de perder todos os puros princpios morais em virtude
dos equvocos em que facilmente cai. Assim se desenvolve
insensivelmente na razo prtica vulgar, quando se cultiva, uma
dialctica que a obriga a buscar ajuda na filosofia, como lhe
acontece no uso terico; e tanto a primeira como a segunda no
podero achar repouso em parte alguma a no ser numa crtica
completa da nossa razo.
__________________________
// BA 24
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39
// SEGUNDA SECO
TRANSIO DA FILOSOFIA MORAL POPULAR PARA A
METAFSICA DOS COSTUMES
Do facto de at agora havermos tirado o nosso conceito de
dever do uso vulgar da nossa razo prtica no se deve de forma
alguma concluir que o tenhamos tratado como um conceito
emprico. Pelo contrrio, quando atentamos na experincia
humana de fazer ou deixar de fazer, encontramos queixas
frequentes e, como ns mesmos concedemos, justas, (1) de que se
no podem apresentar nenhuns exemplos seguros da inteno de
agir por puro dever; porque, embora muitas das coisas que o
dever ordena possam acontecer em conformidade com ele,
contudo ainda duvidoso que elas aconteam verdadeiramente por
dever e que tenham portanto valor moral. Por isso que houve em
__________________________
(1) Lachelier (pg. 31) traduz, ambiguamente: ...nous enten-drons bien
des personnes se plaindre, et justement nous laccor-dons.... (P.Q.)
// BA 25
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40
todos os tempos filsofos que negaram pura e simplesmente a
realidade desta inteno nas aces humanas e tudo atriburam ao
egosmo mais ou menos apurado, sem contudo por isso porem em
dvida a justeza do conceito de moralidade; pelo contrrio,
deploravam profundamente a fraqueza e a corrupo da natureza
humana que, se por um lado era nobre bastante // para fazer de
uma ideia to respeitvel a sua regra de conduta, por outro era
fraca de mais para lhe obedecer, e s se servia da razo, que lhe
devia fornecer as leis, para tratar do interesse das inclinaes, de
maneira a satisfaz-las quer isoladamente, quer, no melhor dos
casos, buscando a maior conciliao entre elas.
Na realidade, absolutamente impossvel encontrar na
experincia com perfeita certeza um nico caso em que a mxima
de uma aco, de resto conforme ao dever, se tenha baseado
puramente em motivos morais e na representao do dever.
Acontece por vezes na verdade que, apesar do mais agudo exame
de conscincia, no possamos encontrar nada, fora do motivo
moral do dever, que pudesse ser suficientemente forte para nos
impelir a tal ou tal boa aco ou a tal grande sacrifcio. Mas daqui
no se pode concluir com segurana que no tenha sido um
impulso secreto do amor-prprio, oculto sob a simples capa
daquela ideia, a verdadeira causa determinante da vontade.
Gostamos de lisonjear-nos ento com um mbil mais nobre que
falsamente ns arrogamos; mas em realidade, mesmo pelo exame
mais esforado, nunca podemos penetrar completamente at aos
mbiles secretos dos nossos actos, porque, quando se fala de
valor moral, no das aces visveis que se trata, mas dos seus
princpios ntimos que se no vem.
// No se pode prestar servio mais precioso queles que se
riem de toda a moralidade como de uma simples quimera da
imaginao humana exaltada pela presuno, do que conceder-
lhes que os conceitos do dever (exacta-
__________________________
// BA 26, 27
-
41
mente como por preguia nos convencemos que acontece tambm
com todos os outros conceitos) tm de ser tirados somente da
experincia; porque assim lhes preparamos um triunfo certo. Quero
por amor humano conceder que ainda a maior parte das nossas
aces so conformes ao dever; mas se examinarmos mais de perto
as suas aspiraes e esforos, toparemos por toda a parte o querido
Eu que sempre sobressai, e nele, e no no severo mandamento do
dever que muitas vezes exigiria a auto-renncia, que a sua inteno
se apoia. No preciso ser-se mesmo um inimigo da virtude, basta
ser-se apenas um observador de sangue-frio que no tome
imediatamente o mais ardente desejo do bem pela sua realidade, para
em certos momentos (principalmente com o avanar dos anos e com
um juzo apurado em parte pela experincia, em parte aguado para a
observao) nos surpreendermos a duvidar se na verdade se poder
encontrar no mundo qualquer verdadeira virtude. E ento nada nos
pode salvar da completa queda das nossas ideias de dever, para
conservarmos na alma o respeito fundado pela lei, a no ser a clara
convico de que, mesmo que nunca tenha havido aces que
tivessem jorrado de tais fontes // puras, a questo no agora de
saber se isto ou aquilo acontece, mas sim que a razo por si mesma e
independentemente de todos os fenmenos ordena o que deve
acontecer; de fornia que aces, de que o mundo at agora talvez
no deu nenhum exemplo, de cuja possibilidade poder duvidar at
aquele que tudo funda na experincia, podem ser irremitentemente
ordenadas pela razo: por exemplo, a pura lealdade na amizade no
pode exigir-se menos de todo o homem pelo facto de at agora talvez
no ter existido nenhum amigo leal, porque este dever, como dever
em geral, anteriormente a toda a experincia, reside na ideia de uma
razo que determina a vontade por motivos a priori.
Se se acrescentar que, a menos que se queira recusar ao
conceito de moralidade toda a verdade e toda a relao
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com qualquer objecto possvel, se no pode contestar que a sua lei
de to extensa significao que tem de valer no s para os
homens mas para todos os seres racionais em geral, no s sob
condies contingentes e com excepes, mas sim absoluta e
necessariamente, torna-se ento evidente que nenhuma
experincia pode dar motivo para concluir sequer a possibilidade
de tais leis apodcticas. Porque, com que direito podemos ns //
tributar respeito ilimitado, como prescrio universal para toda a
natureza racional, quilo que s vlido talvez nas condies
contingentes da humanidade? E como que as leis da
determinao da nossa vontade ho-de ser consideradas como leis
da determinao da vontade de um ser racional em geral, e s
como tais consideradas tambm para a nossa vontade, se elas
forem apenas empricas e no tirarem a sua origem plenamente a
priori da razo pura mas ao mesmo tempo prtica?
No se poderia tambm prestar pior servio moralidade do
que querer extra-la de exemplos. Pois cada exemplo que me seja
apresentado tem de ser primeiro julgado segundo os princpios da
moralidade para se saber se digno de servir de exemplo
original, isto , de modelo; mas de modo nenhum pode ele dar o
supremo conceito dela. Mesmo o Santo do Evangelho tem
primeiro que ser comparado com o nosso ideal de perfeio moral
antes de o reconhecermos por tal; e ele que diz de si mesmo:
Porque que vs me chamais bom (a mim que vs estais vendo)
? Ningum bom (o prottipo do bem) seno o s Deus (que vs
no vedes). Mas donde que ns tiramos o conceito de Deus
como bem supremo? Somente da ideia que a razo traa a priori
da perfeio moral e que une indissoluvelmente ao conceito de
vontade livre. A imitao no tem lugar algum em matria moral,
// e os exemplos servem apenas para encorajar, isto pem fora
de dvida a possibilidade daquilo que a lei
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ordena, tornam intuitivo (1) aquilo que a regra prtica exprime de
maneira mais geral, mas nunca podem justificar que se ponha de
lado o seu verdadeiro original, que reside na razo, e que nos
guiemos por exemplos.
Se, pois, no h nenhum autntico princpio supremo da
moralidade que, independente de toda a experincia, no tenha de
fundar-se somente na razo pura, creio que no preciso sequer
perguntar se bom expor estes conceitos de maneira geral (in
abstracto), tais como eles existem a priori juntamente com os
princpios que lhes pertencem, se o conhecimento se quiser
distinguir do vulgar e chamar-se filosfico. Mas nos nossos
tempos talvez isto seja necessrio. Pois se se quisesse reunir
votos sobre a preferncia a dar ao puro conhecimento racional
separado de todo o emprico, uma metafsica dos costumes
portanto, ou filosofia prtica popular, depressa se adivinharia
para que lado penderia a balana.
Este facto de descer at aos conceitos populares sem
dvida muito louvvel, contanto que se tenha comeado por subir
at aos princpios da razo pura e se tenha alcanado plena
satisfao neste ponto; isto significaria primeiro o fundamento da
doutrina // dos costumes na metafsica, para depois, uma vez ela
firmada solidamente, a tornar acessvel pela popularidade. Mas
seria extremamente absurdo querer condescender com esta logo
no comeo da investigao de que depende toda a exactido dos
princpios. E no s que este mtodo no pode pretender jamais
alcanar o mrito rarssimo de uma verdadeira popularidade
filosfica, pois no habilidade nenhuma ser compreensvel a
todos quando se desistiu de todo o exame em profundidade; assim
esse mtodo traz luz um asqueroso mistifrio de observaes
enfeixadas a troixe-moixe
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(1) No original: anschaulich. Lachelier (pg. 35): visible. (P.Q.)
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e de princpios racionais meio engrolados com que se deliciam as
cabeas ocas, pois h nisso qualquer coisa de utilizvel para o
palavrrio de todos os dias, enquanto que os circunspectos s
sentem confuso e desviam descontentes os olhos, sem alis
saberem o que ho-de fazer; ao passo que os filsofos, que podem
facilmente descobrir a trapaa, pouca gente encontram que os
oua quando querem desviar-nos por algum tempo da pretensa
popularidade para, s depois de terem alcanado uma ideia
precisa dos princpios, poderem ser com direito populares. Basta
que lancemos os olhos aos ensaios sobre a moralidade feitos
conforme o gosto preferido para breve encontrarmos ora a ideia
do destino particular da natureza humana (mas por vezes tambm
a de uma natureza racional em geral), ora a perfeio, ora a //
felicidade, aqui o sentimento moral, acol o temor de Deus, um
pouco disto, mais um pouco daquilo, numa misturada espantosa;
e nunca ocorre perguntar se por toda a parte se devem buscar no
conhecimento da natureza humana (que no pode provir seno da
experincia) os princpios da moralidade, e, no sendo este o
caso, sendo os ltimos totalmente a priori, livres de todo o
emprico, se se encontraro simplesmente em puros conceitos
racionais e no em qualquer outra parte, nem mesmo em nfima
medida; e ningum tomar a resoluo de antes separar
totalmente esta investigao como pura filosofia prtica ou (para
empregar nome to desacreditado) como metafsica (*)
__________________________
(*) Pode-se, querendo, (assim como se distingue a matemtica pura da
aplicada, a lgica pura da aplicada) distinguir igualmente a pura
filosofia dos costumes (Metafsica) da moral aplicada ( natureza
humana). Esta terminologia lembra-nos imediatamente tambm que os
princpios morais se no fundam nas particularidades da natureza
humana, mas que tm de existir por si mesmos a priori, porm que deles
se podem derivar regras prticas para a natureza humana como para
qualquer natureza racional. (Nota de Kant.)
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dos costumes, lev-la por si mesma sua plena perfeio e ir
consolando o pblico, que exige popularidade, at ao termo desta
empresa.
Ora uma tal Metafsica dos costumes, completamente
isolada, que no anda misturada nem com a Antropologia nem //
com a Teologia, nem com a Fsica ou a Hiperfsica, e ainda
menos com as qualidades ocultas (que se poderiam chamar
hipofsicas), no somente um substrato indispensvel de todo o
conhecimento terico dos deveres seguramente determinado, mas
tambm um desiderato da mais alta importncia para a verdadeira
prtica das suas prescries. Pois a pura representao do dever e
em geral da lei moral, que no anda misturada com nenhum
acrescento de estmulos empricos, tem sobre o corao humano,
por intermdio exclusivo da razo (que s ento se d conta de
que por si mesma tambm pode ser prtica), uma influncia muito
mais poderosa do que todos os outros mbiles que se possam ir
buscar ao campo emprico (*),
__________________________
(*) Possuo uma carta do excelente Sulzer, j falecido, em que me pergunta qual
ser a causa por que as doutrinas da virtude, contendo tanto de convenientes
para a razo, tm to curto alcance prtico. A minha resposta atrasou-se com os
preparativos para a poder dar completa. Mas ela no pode ser outra seno esta:
que os prprios mestres no clarificaram os seus conceitos e que, querendo
fazer bem de mais ao reunir por toda a banda motivos que levem ao bem moral,
estragam a mezinha por a quererem fazer especialmente enrgica. Pois a mais
vulgar // observao mostra que, quando apresentamos um acto de honradez, tal
como ele foi levado a efeito com firmeza de alma mesmo sob as maiores
tentaes da misria ou da seduo, apartado de toda a inteno de qualquer
vantagem neste ou noutro mundo, este acto deixa muito atrs de si e na sombra
qualquer outro que se lhe assemelhe mas que tenha sido afectado mesmo em
nfima parte por um mbil estranho, eleva a alma e desperta o desejo de poder
proceder tambm assim. Mesmo as crianas de mediana idade sentem esta
impresso, e nunca se lhes deveria expor os seus deveres de maneira diferente.
(Nota de Kant.)
// BA 33 Nota: // BA 33
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em tal grau que, na conscincia da sua dignidade, pode desprezar
estes ltimos e domin-los pouco a pouco. Em vez disto uma
doutrina dos costumes mesclada, composta de mbiles de
sentimentos e inclinaes ao mesmo tempo que de conceitos
racionais, // tem de fazer vacilar o nimo em face de motivos
impossveis de reportar a princpio algum, que s muito casualmente
levam ao bem, mas muitas vezes podem levar tambm ao mal.
Do aduzido resulta claramente que todos os conceitos morais
tm a sua sede e origem completamente a priori na razo, e isto
tanto na razo humana mais vulgar como na especulativa em mais
alta medida; que no podem ser abstrados de nenhum
conhecimento emprico e por conseguinte puramente contingente;
que exactamente nesta pureza da sua origem reside a sua
dignidade para nos servirem de princpios prticos supremos; que
cada vez que lhes acrescentemos qualquer coisa de emprico
diminumos em igual medida a sua pura influncia e o valor
ilimitado das aces; que no s o exige a maior necessidade sob
o ponto de vista terico quando se trata apenas de especulao, //
mas que tambm da maior importncia prtica tirar da razo pura
os seus conceitos e leis, exp-los com pureza e sem mistura, e
mesmo determinar o mbito de todo este conhecimento racional
prtico mas puro, isto toda a capacidade da razo pura prtica. Mas
aqui no se deve, como a filosofia especulativa o permite e por vezes
mesmo o acha necessrio, tornar os princpios dependentes da
natureza particular da razo humana; mas, porque as leis morais
devem valer para todo o ser racional em geral, do conceito
universal de um ser racional em geral que se devem deduzir. Desta
maneira toda a moral, que para a sua aplicao aos homens precisa
da Antropologia, ser primeiro exposta independentemente desta
cincia como pura filosofia, quer dizer como metafsica, e de
maneira completa (o que decerto se pode fazer neste gnero de
conhecimentos totalmente abstractos). E preciso ver
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bem que, se no estivermos de posse desta, no digo s que ser
vo querer determinar exactamente para o juzo especulativo o
carcter moral do dever em tudo o que conforme ao dever, mas
at que ser impossvel no uso simplesmente vulgar e prtico,
especialmente na instruo moral, fundar os costumes sobre os
seus autnticos princpios e criar atravs disto puras disposies
morais e implant-las nos nimos para o bem supremo do mundo.
// Para, porm, neste trabalho avanarmos por uma gradao
natural, no somente do juzo moral vulgar (que aqui muito
digno de respeito) para o juzo filosfico, como de resto j se fez,
mas duma filosofia popular, que no passa alm do ponto onde
pode chegar s apalpadelas por meio de exemplos, at
metafsica (que no se deixa deter por nada de emprico e que,
devendo medir todo o contedo do conhecimento racional deste
gnero, se eleva em todo o caso at s ideias, onde mesmo os
exemplos nos abandonam), temos ns de seguir e descrever clara-
mente a faculdade prtica da razo, partindo das suas regras
universais de determinao, at ao ponto em que dela brota o
conceito de dever.
Tudo (1) na natureza age segundo leis. S um ser racional
tem a capacidade de agir segundo a representao das leis, isto ,
segundo princpios, ou: s ele tem uma vontade. Como para
derivar as aces das leis necessria a razo, a vontade no
outra coisa seno razo prtica. Se a razo determina
infalivelmente a vontade, as aces de um tal ser, que so
conhecidas como objectivamente necessrias, so tambm
subjectivamente necessrias, isto , a vontade a faculdade de
escolher s aquilo que a razo, independentemente da inclinao,
// reconhece como praticamente necessrio, quer dizer como bom.
Mas se a
__________________________
(1) Ein jedes Ding der Natur, propriamente: Cada coisa da natureza.
(P.Q.)
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razo s por si no determina suficientemente a vontade, se esta
est ainda sujeita a condies subjectivas (a certos mbiles) que
no coincidem sempre com as objectivas; numa palavra, se a
vontade no em si plenamente conforme razo (como
acontece realmente entre os homens), ento as aces, que
objectivamente so reconhecidas como necessrias, so
subjectivamente contingentes, e a determinao de uma tal
vontade, conforme a leis objectivas, obrigao (Ntigung);
quer dizer, a relao das leis objectivas para uma vontade no
absolutamente boa repre-senta-se como a determinao da
vontade de um ser racional por princpios da razo (1), sim,
princpios esses porm a que esta vontade, pela sua natureza, no
obedece necessariamente.
A representao de um princpio objectivo, enquanto
obrigante para uma vontade, chama-se um mandamento (da
razo), e a frmula do mandamento chama-se Imperativo (2).
Todos os imperativos se exprimem pelo verbo dever
(sollen), e mostram assim a relao de uma lei objectiva da razo
para uma vontade que segundo a sua constituio subjectiva no
por ela necessariamente determinada (uma obrigao). Eles
dizem que seria bom praticar ou deixar de praticar qualquer
coisa, mas // dizem-no a uma vontade que nem sempre faz
qualquer coisa s porque lhe representado que seria bom faz-
la. Praticamente bom porm aquilo que determina a vontade por
meio de representaes da razo, por conseguinte no por causas
subjectivas, mas objectivamente, quer dizer por princpios que
so vlidos para todo o ser racional como tal. Distin-
__________________________
(1) Morente, pg. 54: ...por fundamentos de la voluntad....
(2) Lachelier, pg. 41: La reprsentation dun prncipe objectif comme
contraignant la volont sapelle Impratif. (P.Q.)
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gue-se do agradvel, pois que este s influi na vontade por meio
da sensao em virtude de causas puramente subjectivas que
valem apenas para a sensibilidade deste ou daquele, e no como
princpio da razo que vlido para todos (*).
// Uma vontade perfeitamente boa estaria portanto
igualmente submetida a leis objectivas (do bem), mas no se
poderia representar como obrigada a aces conformes lei,
pois que pela sua constituio subjectiva ela s pode ser
determinada pela representao do bem. Por isso os imperativos
no valem para a vontade divina nem, em geral, para uma
vontade santa; o dever (Sollen) no est aqui no seu lugar,
porque o querer coincide j por si necessariamente com a lei. Por
isso os imperativos so apenas frmulas para exprimir a relao
entre leis objectivas do querer em geral e a imperfeio
subjectiva deste ou daquele ser racional, da vontade humana por
exemplo.
__________________________
(*) Chama-se inclinao a dependncia em que a faculdade de desejar est em
face das sensaes; a inclinao prova sempre portanto uma necessidade
(Bedrfnis). Chama-se interesse a dependncia em que uma vontade
contingentemente determinvel se encontra em face dos princpios da razo.
Este interesse s tem pois lugar numa vontade dependente que no por si
mesma em todo o tempo conforme razo; na vontade divina no se pode
conceber nenhum interesse. Mas a vontade humana pode tambm tomar
interesse por qualquer coisa sem por isso agir por interesse. O primeiro significa
o interesse prtico na aco, o segundo o interesse patolgico no objecto da
aco. O primeiro mostra apenas dependncia da vontade em face dos princpios
da razo em si mesmos, o segundo cm face dos princpios da razo cm proveito
da inclinao, pois aqui a razo d apenas a regra prtica para socorrer a
necessidade da inclinao. No primeiro caso interessa-me a aco, no segundo o
objecto da aco (enquanto ele me agradvel). Vimos na Primeira Seco que
numa aco praticada por dever se no tem de atender ao interesse pelo objecto,
mas somente prpria aco e ao seu princpio na razo ( lei). (Nota de
Kant.)
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Ora, todos os imperativos ordenam ou hipottica- ou
categoricamente. Os hipotticos representam a necessidade
prtica de uma aco possvel como meio de alcanar qualquer
outra coisa que se quer (ou que possvel que se queira). O
imperativo categrico seria aquele que nos representasse uma
aco como objectivamente necessria por si mesma, sem
relao com qualquer outra finalidade.
Como toda a lei prtica representa uma aco possvel como
boa e por isso como necessria para um sujeito praticamente
determinvel pela razo, // todos os imperativos so frmulas da
determinao da aco que necessria segundo o princpio de uma
vontade boa de qualquer maneira. No caso de a aco ser apenas boa
como meio para qualquer outra coisa, o imperativo hipottico; se
a aco representada como boa em si, por conseguinte como
necessria numa vontade em si conforme razo como princpio
dessa vontade, ento o imperativo categrico.
O imperativo diz-me, pois, que aco das que me so
possveis seria boa, e representa a regra prtica em relao com
uma vontade, que no pratica imediatamente uma aco s
porque ela boa, em parte porque o sujeito nem sempre sabe que
ela boa, em parte porque, mesmo que 9 soubesse, as suas
mximas poderiam contudo ser contrrias aos princpios
objectivos duma razo prtica.
O imperativo hipottico diz pois apenas que a aco boa
em vista de qualquer inteno possvel ou real. No primeiro caso
um princpio problemtico, no segundo um princpio
assertrico-prtico (1). O imperativo cate-
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(1) Delbos (pg. 126): Dans le premier cas, il est un prncipe
PROBLMATIQUEMENT pratique; dans le second, un prncipe
ASSERTORIQUEMENT pratique. Lachelier (pg. 43): Cest un prncipe
pratique problmatique dans le premier cas, assertorique dns le second.
Morente (pg. 57): En el primer caso es un principio problemtico-prtico; en el
segundo caso es un principio Asertrico-prtico. (P.Q.)
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grico, que declara a aco como objectivamente necessria por si,
independentemente de qualquer inteno, quer dizer sem qualquer
outra finalidade, vale como princpio apodctico (prtico).
// Pode-se conceber que aquilo que s possvel pelas foras
de um ser racional tambm inteno possvel para qualquer
vontade, e por isso so de facto infinitamente numerosos os
princpios da aco, enquanto esta representada como
necessria, para alcanar qualquer inteno possvel de atingir por
meio deles. Todas as cincias tm uma parte prtica, que se
compe de problemas que estabelecem que uma determinada
finalidade possvel para ns, e de imperativos que indicam
como ela pode ser atingida. Estes imperativos podem por isso
chamar-se imperativos de destreza. Se a finalidade razovel e
boa no importa aqui saber, mas to-somente o que se tem de
fazer para alcan-la. As regras que o mdico segue para curar
radicalmente o seu doente e as que segue o envenenador para o
matar pela certa, so de igual valor neste sentido de que qualquer
delas serve para conseguir perfeitamente a inteno proposta.
Como no sabemos na primeira juventude quais os fms que se nos
depararo na vida, os pais procuram sobretudo mandar ensinar
aos filhos muitas coisas e tratam de lhes transmitir a destreza no
uso dos meios para toda a sorte de fins, de nenhum dos quais
podem saber se de futuro se transformar realmente numa inten-
o do seu educando, sendo entretanto possvel que venha a ter
qualquer deles; e este cuidado to grande que por ele descuram
ordinariamente a tarefa de formar e corrigir o juzo dos filhos
sobre o valor // das coisas que podero vir a eleger como fins.
H no entanto uma finalidade da qual se pode dizer que
todos os seres racionais a perseguem realmente (enquanto lhes
convm imperativos, isto como seres dependentes), e portanto
uma inteno que no s eles podem ter, mas de que se deve
admitir que a tm na generali-
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dade por uma necessidade natural. Esta finalidade a felicidade.
O imperativo hipottico que nos representa a necessidade prtica
da aco como meio para fomentar a felicidade assertrico.
No se deve propor somente como necessrio para uma inteno
incerta, simplesmente possvel, mas para uma inteno que se
pode admitir como certa e a priori para toda a gente, pois que
pertence sua essncia. Ora a destreza na escolha dos meios para
atingir o maior bem-estar prprio pode-se chamar prudncia
(Klugheit) (*) no sentido mais restrito da palavra. Portanto // o
imperativo que se relaciona com a escolha dos meios para
alcanar a prpria felicidade, quer dizer o preceito de prudncia,
continua a ser hipottico; a aco no ordenada de maneira
absoluta, mas somente como meio para uma outra inteno.
H por fim um imperativo que, sem se basear como
condio em qualquer outra inteno a atingir por um certo
comportamento, ordena imediatamente este comportamento. Este
imperativo categrico. No se relaciona com a matria da
aco e com o que dela deve resultar, mas com a forma e o
princpio de que ela mesma deriva; e o essencialmente bom na
aco reside na disposio (Gesinnung) (*), seja qual for o
resultado. Este imperativo pode-se chamar o imperativo da
moralidade.
__________________________
(*) A palavra prudncia tomada em sentido duplo: ou pode designar a
prudncia nas relaes com o mundo, ou a prudncia privada. A primeira a
destreza de uma pessoa no exerccio de influncia sobre outras para as utilizar
para as suas intenes. A segunda a sagacidade em reunir todas estas intenes
para alcanar uma vantagem pessoal durvel. A ltima propriamente aquela
sobre que reverte mesmo o valor da primeira, e quem prudente no primeiro
sentido mas no no segundo, desse se poder antes dizer: esperto e manhoso,
mas em suma imprudente. (Nota de Kant.)