JUÍZO, GOSTO E LEGITIMIDADE EM HANNAH ARENDT gosto e legitimidade em Hannah Arendt.pdf · RESUMO:...

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  • PHILSOPHOS 8 (2) : 251-271, jul./dez. 2003 Recebido em 20 de setembro de 2003Aceito em 5 de novembro de 2003

    JUZO, GOSTO E LEGITIMIDADEEM HANNAH ARENDT

    Odilio Alves AguiarUniversidade Federal do [email protected]

    RESUMO: Nossa inteno explicitar a noo de juzo em Hannah Arendt, partindo dalegitimidade como contexto de problematizao e tomando a finitude humana comohorizonte de tematizao. Nosso principal argumento o de que em Arendt o juzo concebido como poltico e o gosto o modelo do seu modus operandi. Essa concepo fruto da recepo arendtiana da Terceira Crtica, a Crtica da Faculdade do Juzo, de Kant.Assim, a partir da ligao de juzo a gosto, apresentaremos as seguintes dimenses do juzo:intersubjetiva, autnoma e compreensiva.

    Palavras-chave: Juzo, gosto, legitimidade, autonomia, compreenso, intersubjetividade.

    A legitimidade o grande tema da filosofia poltica. Constituiu-se assim, j no seu surgimento, quando Plato, decepcionado com apolis, em funo do julgamento e morte de Scrates, passou a exigirque a cidade se guiasse no pelas opinies dos cidados, para elearbitrrias, mas por valores racionais, objetivos e absolutos, reunidosno conceito de bem comum.1 Esse procedimento platnico levou atradio filosfica a conceber o juzo poltico, nos moldes dosilogismo apodtico, como juzo de conhecimento universal, guiadopelo par contrrio: falso e verdadeiro. Nesse tipo de juzo, o resultado um padro (eidos) que, aplicado cidade, teria condies de gui-la e de coagir os seus habitantes a praticar o bem e exercitar a boacidadania. Esse padro isento das incrustaes particulares efundamentado em um distanciamento absoluto, por algum quese situa como se estivesse no lugar de Deus.2

    O que est em questo no tema da legitimidade o sentidoda existncia das comunidades polticas e a provenincia da auto-

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    ridade poltica: quem detm o poder de deciso e em nome dequem so decididos os assuntos que afetam a todos.3 Para a tradiofilosfica de extrao platnica, a razo a detentora da autoridade,uma vez que ela chega a um padro completamente isento dosparticularismos provenientes do mundo sensvel, labirinto queconduz os homens na via da ignorncia, das supersties e dosinstintos.4

    Essa perspectiva foi apropriada pelas instituies polticasocidentais, desde o Imprio Romano (o Imprio como o bemcomum), ao poder absoluto do Papa, com a instituio do legibussolutus na Idade Mdia, quando o sumo pontfice passa a detentorexclusivo do poder espiritual e terreno, at o Estado Moderno e osurgimento da idia de razo de Estado e de domnio da naosoberana. A associao do princpio de autoridade idia de bemcomum, a algo absoluto, objetivo e universal desembocou na legiti-mao do autoritarismo nas nossas instituies polticas, na inviabi-lizao e afastamento dos cidados da esfera poltica. A eternizaodo Imprio, a idia da realizao da vontade de Deus, a prtica dodomnio da nao soberana e o ideal da coletivizao da riquezaforam tomados como princpios autorizadores de qualquer ao queviesse a justificar a sua implantao e sustentao.5 Com isso ficaevidente que o poder poltico no recebia a sua autoridade da esferapblica, dos cidados, mas de instncias externas: nao, religio,interesses econmicos etc. A idia de legitimidade transforma-se,pois, em legitimao, na qual a ao convertida em obedincia emando, e a vida poltica submetida a princpios externos esferapblica.6 O resultado a retirada dos cidados do campo das deci-ses polticas e do mbito relacionado ao destino comum, alm daconcentrao dessas mesmas decises nas mos de poucos, os legti-mos representantes dos interesses universais, considerados osexecutores do bem comum.

    Desse modo, a legitimidade poltica foi deixando a sua ligaocom uma forma de convivncia humana e cada vez mais se tornandoassociada eficcia na realizao dos comandos da autoridade

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    abstratamente legitimada. O pice dessa perspectiva encontra-seno positivismo jurdico em vigncia nas sociedades contemporneas.Na legitimao jurdico-positiva, no importa a ressonncia dasdecises na formao, estruturao e sustentao da vida pblicacomo algo importante, mas apenas a eficcia dos procedimentosjurdicos ao dirigir e levar as pessoas obedincia aos seus institutos.Passa-se, com efeito, ao largo da importncia da vida pblica comoelemento fundamental para a formao e manuteno de um corpoefetivamente poltico.7

    Para Arendt, o tema da legitimidade tem uma conotaopoltica mais do que filosfica. Nessa autora, o fim da tradio, queaconteceu com o advento da modernidade, no especulao nem um juzo de valor, mas um fato politicamente palpvel. Com isso,ela quer dizer que, com a modernidade, as comunidades polticasdeixaram de ser sustentadas pelos valores e costumes tradicionais.8

    A tradio perdeu o poder de organizar e dar um sentido para avida poltica e comunitria. Os valores tradicionais, que antes reu-niam os valores mximos da humanidade, perderam a validadeobjetiva e foram desmascarados como parciais e ideolgicos. Ne-nhum costume ou valor universal poderia ser deixado de lado pelotrabalho incessante do esclarecimento. justamente nesse momentoque surgem o tema da secularizao e a tentativa de se pensar umaforma poltica legitimada na confluncia de valores e instituiesgenuinamente seculares.9

    Diferentemente da repercusso desse fato na filosofia, oproblema do fim da tradio no levou Arendt a repor a questodo fundamento absoluto ou a trabalhar na defesa de um relativismoque leva ao cinismo poltico. Essa questo, para ela, eminentementepoltica, isto , trata-se de recuperar a dignidade da esfera polticacomo o modo nico de articular uma convivncia humana civilizadae de erguer comunidades polticas vivas.

    Essa convico fruto da investigao arendtiana sobre osproblemas surgidos com o fim da tradio e sobre a tendncia aofim do poltico e ao incremento da violncia nas sociedades moder-

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    nas. Mas, notadamente, fruto do estudo arendtiano sobre aexperincia totalitria. Se a modernidade implicou o fim das tradi-es que vinham organizando as comunidades polticas, a experin-cia totalitria levou ao paroxismo o questionamento das bases sobreas quais estavam assentadas as comunidades europias, vale dizer, atradio racionalista ocidental. Saber como naes formadas econstitudas nessa tradio permitiram o aparecimento dos gover-nos com pretenso de domnio total era a grande indagao feitapor Arendt. A experincia totalitria produziu uma situao absolu-tamente nova, sem condies de inteligibilidade a partir dos padrestradicionais de compreenso. idia de governo total eram ineren-tes a eliminao da poltica, o relacionamento das pessoas nacondio de seres com capacidade de escolher o destino comum. Oterror, o medo, o silncio e a solido eram os sustentculos dessatentativa de governo. Esses elementos poderiam ocasionar qualquercoisa, menos uma comunidade politicamente organizada. A legiti-mao era dotada de tal absolutez que, como nas tiranias tradicionais,no apenas distanciava os cidados da esfera pblica, mas tambmperseguia as suas vidas, exigindo que todos se contentassem apenascom a dimenso biolgica, se assumissem como mortos-vivos. Ototalitarismo foi a primeira forma de governo que eliminou a polticacomo instncia de legitimidade.

    nesse contexto que o tema da legitimidade aparece emArendt, o que significa que a autora concebe a legitimidade nombito da finitude humana. Para ela, a poltica a forma propria-mente humana de instituio e manuteno do poder. Relacionarpoder e finitude humana significa acreditar que os homens sejamdotados em si mesmos das faculdades exigidas para uma convivnciacivilizada. Com isso se quer dizer que a civilizao no medida porum critrio absoluto, externo aos prprios homens, mas pela formacomo eles constituem suas relaes cotidianas. A existncia de conta-tos entre os homens, bem como o respeito ao outro que isso implica, a medida que d aos governos e s comunidades legitimidadepropriamente poltica. Essa idia de legitimidade vai na contramo

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    da legitimidade absoluta, que torna os contatos humanossuprfluos, e dos relativismos polticos, incapazes de pensar a idiade comunidade poltica, fechadas que esto em um conceito desubjetividade inteiramente acsmico.

    Podemos inserir aqui a reflexo arendtiana sobre o juzo.Arendt no lgica nem terica do conhecimento. A concepoque emerge dos seus textos eminentemente poltica. O juzo aforma poltica, e no lgica ou moral, de o cidado se manifestarna esfera pblica. Dizer que o juzo em Arendt poltico significadizer que o cidado, ao julgar, ultrapassa suas pertenas silenciosas,fictcias e biolgicas. Se o juzo entendido como uma faculdadepoltica, o paradigma para pens-lo se possvel usar esse termonessa autora retirado, no entanto, da esttica.10

    Arendt recorre ao gosto como categoria central para pensare expor a sua concepo de juzo. Isso, de maneira alguma, significaaceitar a idia de que a poltica o campo do arbitrrio, em vez deesfera da intersubjetividade. O gosto apresenta-se como apropriadopara pensar uma forma de juzo numa poca em que os critriosuniversais perderam a validade universal, pelo menos como umaevidncia, e em que predominam os padres conformistas das socie-dades guiadas pela indstria cultural, pela propaganda e pelas delibe-raes econmicas. O gosto no do reino do instinto e da compul-so; ao contrrio, pressupe a capacidade do cidado de ultrapassaros seus condicionamentos biossociais e apresentar a sua posioparticular no mundo. A dimenso de mundaneidade presente nojuzo poltico o quantum atravs do qual a dimenso biolgica eegosta ultrapassada sem a necessidade do recurso a uma posiofora do mundo. Ao julgar, o homem supera sua condio de animal,sem se tornar Deus, alm de superar a condio de objeto a quequerem submet-lo as grandes estruturas sociais, econmicas, gover-namentais, religiosas, culturais etc. Julgar se tornar algum, dei-xar de ser dito e passar condio de falante, sem ser dono dapalavra e da linguagem. Julgar, assim, no se colocar no lugar deDeus, mas expor a prpria posio no mundo. Essa concepo de

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    juzo mostra-se central no entendimento da legitimidade em Arendt.Atravs do juzo no um fundamento absoluto nem a eficcia quelegitimam uma ao, mas o embate e os contatos publicamentearticulados dos cidados na esfera pblica.

    Embora a problemtica do julgamento esteja presente emtoda obra de Arendt, significativo o fato de o termo juzo surgir,no incio, explicitamente, num artigo em que ela analisa associedades de massa e a indstria do entretenimento, na qual arepresso formao do gosto prprio impe a padronizao dasescolhas.11 Arendt ressalta como esse bloqueamento do gosto vaiimplicar a inviabilizao do mundo comum. Sem pessoas com gostoprprio no existe mundo, mas apenas o deserto homogneo dospadres. por isso que o juzo pea fundamental. Porm, o modelode juzo no o filosfico, em que, dialogando consigo mesmo, ofilsofo elabora os princpios absolutos e entra em contato comeles. Arendt encontrou na Terceira Crtica de Kant a frmula deque precisava, pois como algum que faz uma descoberta que elase expressa a Karl Jaspers.12

    Arendt percebeu no juzo reflexionante esttico a sada parao julgamento numa situao de crise dos costumes e dos valorestomados como evidentes e universais pela tradio ocidental. Comojulgar sem o corrimo dos critrios tradicionais, agora estilhaados?O juzo esttico kantianamente pensado aponta, segundo Arendt,uma sada plausvel para essa questo. Arendt no intrprete deKant, e por isso no faz sentido entrarmos aqui na verificao daplausibilidade da sua interpretao. O que Arendt faz se apropriarde Kant para fundamentar as prprias posies. Ela escreve a Jaspersafirmando que a Terceira Crtica tem elementos que poderiam terlevado Kant sua Quarta Crtica, a da razo poltica. Embora eleno a mencione, poderia ter avanado nessa crtica com base noselementos da Crtica da Faculdade do Juzo. Essa tarefa nem mesmoela chegou a finalizar.13 Vale salientar que Arendt tem conscinciada subverso que realiza na leitura do texto kantiano. Ela mesmaescreve: gostaria de me apoiar na primeira parte da Crtica do juzo

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    de Kant, que contm, como Crtica do Juzo Esttico, talvez o maiore mais original aspecto da Filosofia Poltica de Kant. E mais frente,no mesmo escrito, diz:

    [...] mister recordar em poucas palavras o que habitualmentese considera como sendo a Filosofia Poltica de Kant, ou seja,a Crtica da razo prtica, a qual trata da faculdade legislativada razo. O princpio da legislatura, como estabelecido noimperativo categrico age sempre e de tal maneira que oprincpio de tua ao possa se tornar uma lei universal ,baseia-se na necessidade de pr o pensamento racional deacordo consigo mesmo.14

    Que elementos esto presentes no juzo de gosto e que soimportantes para se pensar o juzo poltico em Arendt? possvelvislumbrar, a partir das observaes de Arendt, uma dimensointersubjetiva, autnoma e compreensiva que valida o juzo de gostocomo instncia fundamental para a reflexo sobre a legitimidadepoltica.

    Comecemos pela dimenso intersubjetiva. A forma de vali-dao do juzo de gosto apresentou-se fundamental para a apropria-o arendtiana. No juzo de gosto, o belo no fruto de um padro;a condio para o seu surgimento o julgamento de quem apreciauma obra de arte particular. Sem essa apreciao, no h belo nemarte. Se o gosto indica uma abertura em direo a um objeto consi-derado, em si mesmo, merecedor da apreciao, por sua vez, o belo,como tal, s vai emergir na medida em que o juzo esttico forrealizado. Podemos dizer, assim, que o belo fruto do juzo. A capaci-dade do juzo de justificar por que uma obra agrada que a tornaartstica. E quando algum pronuncia um julgamento esttico,sempre o faz para outro e dele pede a concordncia. O juzo esttico,assim, provoca um deslocamento dos padres evidentes para aaquiescncia ao gosto do apreciador como fundamental conside-rao de algo como belo.

    Essa dimenso intersubjetiva na forma da validao do juzoesttico indispensvel e apropriada, segundo Arendt, para a

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    validao dos assuntos polticos. O gosto, no sendo determinado,no entra em acordo com regras e normas gerais, porm no irracional, pois exige a aquiescncia dos outros. Sem essa abertura ecomunicao com o outro, o gosto no ultrapassa a idiossincrasiapessoal. Embora no seja conhecimento, ele no mera reao aosestmulos sensoriais. Atravs da exigncia de comunicabilidade, umaexigncia intrnseca a todo juzo esttico, o gosto eleva-se ao planodo mundo comum. Ele implica a ultrapassagem da atitude auto-referencial.

    Para Arendt, assim como o juzo de gosto exige o contatocom o outro, o juzo poltico visto como integrante imprescindveldo espao pblico e como a maior habilidade poltica. Nesse aspecto,o juzo se apresenta como uma feio pblica do pensar, e, comotal, condizente com a esfera pblica. Com isso Arendt quer dizerque a ao poltica no obtm sua validade de uma prova, mas deuma concordncia elaborada intersubjetivamente. Qualquer decisopoltica deve levar em considerao os implicados; sem essa consi-derao, a deciso pode ter qualquer qualificativo, menos de poltica.Nenhuma opinio possui validade de antemo e, por isso, a persua-so, e no a prova, a forma apropriada de validao e legitimidadepoltica. Da a dificuldade de Arendt em trabalhar com o conceitode verdade em poltica. A verdade est situada alm do acordo e doconsentimento, a adeso obtida por meio do poder coercitivoinerente lgica do argumento, presente no seu processo de prova.Leva-se, assim, supresso da troca poltica de opinies, eliminandoa cidadania como essencial ao corpo poltico.

    Arendt encontra na considerao kantiana do juzo estticoalgo muito prximo do significado da opinio (doxa) para a polisantiga.15 A opinio no era entendida como um falseamento ousombra do real, mas como a forma apropriada de o cidado expressarde que modo o mundo se abria para ele. A ligao entre ao e opinioera a garantia de que na poltica se realizava o exerccio do poder doshomens, ou seja, ela no se constitua em mera fabricao e realizaode um padro externo (bem, justia, crenas, economia, razo etc.).

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    A importncia da opinio vai de par, em Arendt, com a deliberaopblica como pedra de toque da esfera poltica e do juzo como seusuporte. No juzo, Arendt visualiza uma possibilidade de acordo, sema necessidade da unidade de pensamento: a possibilidade de deliberare realizar algo, apesar de manter as divergncias.

    Arendt entende que a sabedoria poltica independente dasabedoria contemplativa, terica. Para a autora, os homens so dota-dos do que ela chama de faculdade discriminadora, intimamenterelacionada capacidade de lidar com a alteridade. Essa capacidade,na poltica, exige uma sabedoria prtica mais do que terica, naqual se lida com abstraes e no com seres humanos pensadoscomo capazes de agir e falar. Com isso Arendt quer dizer que ainstncia autorizadora e limitadora da ao so as relaes entre oshomens, razo de ser da fundao e instituio das comunidadespolticas. A ao autorizada pelas relaes entre os homens s possvel na medida em que real o reconhecimento das pessoascomo cidads, livres para falar e comear. Por isso, o reconhecimentoe o respeito so as categorias centrais para se pensar o fundamento,se que se pode falar assim, em Arendt, dos corpos polticos. Umaao s legtima quando tem por base e estimula o contato entreos homens, isto , o agir em conjunto. Por isso Arendt se contrapeao conceito moderno de representao e soberania. A partir dessaviso, possvel pensar a poltica sem ao em concerto, como coisados governantes e do Estado, e no como algo inerente aos cidados.Desvinculou-se, assim, a legitimidade da convivncia entre oshomens e passou-se a pensar, como fundamento da vida poltica,instncias cuja validade independe de os homens se relacionaremou no.

    Assim como o juzo esttico necessita da comunidade paraobter validade, o juzo poltico tambm s tem sentido dentro dareferncia ao sensus communis.16 Ele fortalece a fundao do mundocomum ou vai em direo a ela. Ningum julga para si, sozinho; ojulgamento sempre acontece num contexto de convivncia. Graasao senso comum, possvel saber que as percepes sensoriais no

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    so meras irritaes dos nossos nervos nem sensaes de nosso corpo,mas algo real, confirmvel pelos outros. Para os antigos, o sensocomum era o sentido da civilidade.17 Vico, polemizando comDescartes, enfatiza muito esse aspecto, contrapondo-se tirania douniversalismo racionalista. O senso comum aponta para umaexperincia comum do mundo. Espelha, assim, a nossa condiohumana, o fato de os homens, e no o homem, habitarem a terra o guia capaz de nos conduzir num mundo povoado por outraspessoas.

    Essa nfase na dimenso intersubjetiva do juzo indica quenenhuma prova ou autoridade pode substituir a esfera pblica, oespao onde a dignidade humana deixa de ser mera idia e passa realidade. Sem isso, temos o deserto, a solido, a descartabilidadedos homens. A dimenso intersubjetiva requer a compreenso deque o reconhecimento pelos outros, o assentimento da comunidade,a legitimidade poltica para a ao, superior a qualquer prova,axioma, demonstrao, crena ou ideologia.18

    Se no juzo de gosto o acordo com os outros algo funda-mental, tambm essencial lembrar-se de que a condio paraentrar em acordo com os outros estar, primeiramente, em acordoconsigo mesmo. A essa faceta do juzo chamamos de autnoma.Essa dimenso peculiarmente importante na situao de crise,tpica da atualidade, na qual no h nem se aceitam Estados, empre-sas, religies, costumes etc. como autorizados a julgar em nome detodos. Na situao atual, todos somos convocados a julgar e, porisso, responsveis pelas nossas aes.

    Essa dimenso no elimina o aspecto intersubjetivo. A inter-subjetividade doa realidade e humanidade ao juzo autonomamentepensado.19 Em todo juzo de gosto est embutida certa dose deautonomia. Quem no tem autonomia no tem gosto, guia-se pelogosto alheio. No entanto, o que Arendt ressalta aqui a dificuldadedo exerccio do julgamento numa situao em que no seja possvela troca pblica de julgamento. Arendt pergunta o que fazer numasituao como a contempornea, em que o pblico no ilumina,

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    mas obscurece tudo. O que resta? A partir do julgamento deEichman, o carrasco nazista encarregado do envio dos judeus paraas cmaras de gs (em face do impedimento deste para julgar asprprias aes, concebendo-as como simples questo de obedincia),e a partir da atitude do governo de Israel, que queria no a realizaoda justia e os esclarecimentos dos fatos, mas usar pedaggica epropagandisticamente o acontecimento,20 Arendt retoma umaposio que j havia elaborado, mas no explicitado, em Filosofia epoltica, um texto de 1953. Ela passa ento a relacionar juzo epensamento, juzo e acordo no com os outros, mas consigo prprio,o que no significa, entretanto, uma renncia esfera pblica.Segundo Arendt, isso quer dizer que quando no mais existe essaesfera pblica, o pensamento a nica forma e recurso para semovimentar no mundo de forma livre. De acordo com a autora, oprincipal critrio para o homem que expressa sua doxa coerentemente o de que ele esteja em acordo consigo mesmo. Para ela, o eu nopensamento se duplica, e isso, de alguma forma, uma maneira deo outro se apresentar:

    Enquanto travo dilogo do estar s, no qual estou estritamentesozinho, no estou inteiramente separado daquela pluralidadeque o mundo dos homens e que designamos, no sentidoamplo, por humanidade. Essa humanidade, ou melhor, essapluralidade, j se evidencia no fato de que sou dois-em-um.21

    Segundo Arendt, melhor estar em desacordo em relao atodo mundo do que, sendo um, estar em desacordo em relao a siprprio.

    Essa dimenso autnoma adquire grande relevncia se consi-derarmos a tendncia institucional e filosfica a tomar os grandesprocessos, o Estado, a economia e os meios de comunicao comoas instituies habilitadas a legitimar as aes. comum subjetivaras instituies, dando-lhes caractersticas de seres humanos, os nicoshabilitados a julgar e coisificar os homens na medida em que estesse tornam refns de processos e instituies. Esse o sentido da

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    epgrafe deixada por Arendt nos manuscritos sobre o julgar: Acausa dos vencedores agrada aos deuses e a dos vencidos a Cato.Isso uma aposta radical na autonomia e dignidade do homem, noseu valor, independentemente dos sistemas, estruturas, processosetc. Essa epgrafe foi escrita por Arendt em contraposio aopargrafo 340 da Filosofia do direito, de Hegel, no qual est registradoque o juzo final cabe histria. Ora, se aos homens no cabe julgare se o juzo s pode ser ancorado no absoluto, ento o homem nopassar de marionete. Arendt enfatiza, assim, que o critrio da aoe do julgamento no o sucesso; ao contrrio, nos tempos modernose contemporneos, tm obtido sucesso poltico, histrico e institu-cional perspectivas que no favorecem o valor e realizao daexcelncia humana.

    Tal dimenso autnoma do juzo ressalta a possibilidade daresistncia e da demanda humana por um ambiente em que sepossa tomar iniciativa, comear algo. Julgar, assim, no subsumir,no submeter um particular a um critrio geral, mas decidir combase na considerao sobre o que est acontecendo. Essa considera-o finca o julgamento e a deciso na esfera intersubjetiva e evita oarbtrio e a perspectiva estratgica, pois todos os envolvidos sorespeitados para alm de uma considerao entre meios e fins, entrecausa e efeito. O julgamento poltico se realiza, portanto, numcampo em que existem escolhas a serem feitas, e no na esfera domero reconhecimento e submisso s leis objetivas da natureza ou necessidade histrica. Na subsuno no existe escolha, mascoero. A subsuno no campo poltico leva os homens a seperderem no determinismo, a morrerem como homens, a caremno mimetismo, na reproduo do mesmo, e a usarem o outro comomeio. A repetio, o controle, elimina a especificidade humanaque a criao de mundos, de novas instituies advindas da aoem comum. A proibio do novo a principal caracterstica dosgovernos totalitrios: torna os homens mortos-vivos.

    Nesse horizonte, ganha importncia a vinculao entre juzoe dignidade humana. Arendt, em Origens do totalitarismo, faz

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    veemente crtica aos direitos humanos pautados numa concepoabstrata de humanidade de forma a incidir numa prtica que osreduz a direitos civis: direito propriedade, vida, ao trabalho etc.O humanismo abstrato leva piedade, e no ao respeito, segundoArendt, a categoria correta para se pensar a solidariedade. A partirda idia de juzo poltico como esfera de legitimidade, ganha sentidoa reivindicao arendtiana, exposta em Origens do totalitarismo, deque os direitos humanos sejam tomados como direitos pblicosbaseados na idia de direitos a ter direitos, isto , os homens devemser respeitados no apenas como seres biolgicos, mas como cidados,seres livres, capazes de agir e julgar. Quando no se pertence a umacomunidade e nela no se detm o poder, a fala etc., no hdignidade. Direitos humanos sem possibilidade real de participar edecidir sobre o destino comum tornam-se vazios, meros instrumentospropagandsticos para os governos.22 Para Arendt, os direitoshumanos no precisam de uma justificao abstrata, pois nessa oshomens so concebidos como mudos, incapazes de escolher e agir.A capacidade de julgar por si mesmo d aos homens um teor dedignidade imanente que no se verifica em nenhum outro ser edispensa o atrelamento a qualquer outra dimenso ou critrio parajustificar a dignidade humana. Atrelados concepo de juzopoltico, os direitos humanos passam a ser de homens-cidados, seresdotados de autonomia, e no de animais humanos, meros seres denecessidade. Evidentemente mais fcil incluir a proteo ao animalhumano, ao homem como ser de necessidade, na perspectiva dohomem-cidado, do que alcanar e proteger o homem como cidadonos direitos humanos concebidos abstratamente.

    Por ltimo, temos a dimenso compreensiva. Na leitura arend-tiana de Kant, na qual o belo tem uma posio central, possvelcaptar a emergncia, nos juzos estticos, de uma funo catrticafundamental para os homens. Ao julgar algo como belo ou feio, oser humano, de alguma forma, se reconcilia com a sua condiohumana finita e encontra um sentido para ela. Por essa razo, aarte no dispensvel, mas algo necessrio para uma vivncia huma-

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    na digna. Da mesma forma, o juzo poltico pode exercer umafuno compreensivo-reconciliadora fundamental no plano poltico.Ao julgar, o homem consegue se confrontar com o que est sepassando no mundo sem o corrimo das doutrinas, das ideologias edos preconceitos. O juzo tem condies de explicitar o significadodo que efetivamente aconteceu, de provocar a reconciliao com oinelutvel j ocorreu e, assim, de permitir que os homens se sintamem casa na terra concebida como ambiente humano, mbito docontingente.23

    No juzo, o homem no penetra no absoluto nem cai noabsurdo, mas no trgico, em face da presena do outro e do passadoque no se pode mudar.24 Isto , confronta-se com a realidade daqual no senhor, embora tenha de se reconciliar com ela. A esferada ao um campo ontologicamente indeterminado e descontnuo,imprevisvel. Os homens comeam uma ao, por ela so respons-veis, mas no possuem o controle e o saber sobre o seu trmino.Uma ao pode desencadear uma srie de acontecimentos comple-tamente desconhecidos pelo agente. isso que leva Arendt a elogiaros contadores de histrias e a sua capacidade de saber, mais do queningum, as possibilidades catrticas dessas histrias, mesmo dasmais tristes: [...] todas as dores podem ser suportadas se voc aspuser numa histria ou contar uma histria sobre elas.25 O papeldo juzo justamente este: recuperar os acontecimentos na suadimenso contingencial. O juzo, como a histria, revela o sentidosem cometer o erro de defini-lo, realiza o acordo e a reconciliaocom as coisas tais como realmente so.26 No juzo, perdura o interessepela escurido e peculiar densidade que cerca tudo que real.27

    Quando nos aproximamos dessa dimenso compreensiva dojuzo, o que salta aos olhos o esforo tenaz de Arendt para recuperaro sentido singular do evento. O juzo se dirige ao evento na suaparticularidade. A compreenso que emerge no juzo poltico nobusca a sua causa, no pretende apresentar o sentido universalcomum a todos os acontecimentos. Esse o procedimento da filoso-fia da histria e da historiografia cientificista, e o preo pago a

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    perda da significao singular das ocorrncias. Ansiosa por captaras tendncias gerais, as leis do movimento histrico, o progresso, afilosofia da histria nivela todos os acontecimentos, perdendo apeculiaridade a eles inerentes. Sem o reconhecimento dos eventossingulares, os vencidos jamais teriam importncia e cairiam nocompleto esquecimento. No juzo poltico, as pessoas e os eventospossuem sentido neles mesmos e, por isso, uma personalidade ouacontecimento tidos como insignificantes em determinados contex-tos podem ser recuperados como exemplares em outros.

    Vale salientar que, embora a marca da dimenso compreen-siva do juzo seja a reconciliao, isso de maneira alguma significauma acomodao ou rendio realidade ou ao que se passou. uma distoro achar que tout comprendre cest tout pardonner. EmHomens em tempos sombrios, escrevendo sobre Lessing, Arendt dizque ele soube muito bem praticar a compreenso porque, emboraestivesse sempre em relao com o mundo, jamais se vendeu a ele.28

    Penetrar os acontecimentos no igual a justificar o que aconteceu.O juzo compreensivo no visa legitimao, mas confirmaodo lugar dos homens no mundo. Em razo de no ser uma fabricaodos homens, uma simples objetificao dos imperativos da conscin-cia, o que ocorre no mundo exige o trabalho de superao da suaestranheza inerente.29 Quando essa estranheza no reconhecida,a legitimao, a propaganda e a mentira ou justificao substituema compreenso e, nesse caso, o que temos a ciso com a realidade,a tentativa de contemporizao que enseja evitar o sofrimento ine-rente a toda reconciliao, mais bem alcanada atravs das lgrimasda recordao.30

    Arendt resgata, tambm, na dimenso compreensiva do juzo,uma posio que est delineada no texto Compreenso e poltica.A idia norteadora dessa posio a de que o poltico um phronimos(um homem de compreenso) e no um sophos (um sbio, um habi-tante do mundo das idias). O phronimos habita a terra e reconhecea presena dos outros. O sophos, por deter a verdade, acha que omundo deve a ela se curvar. O phronimos, por reconhecer e respeitar

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    a presena do outro, elabora o seu juzo, considerando-o. Isso ositua numa posio e o capacita a julgar politicamente melhor doque o filsofo, no sentido tradicional, pois este ltimo, por habitaro mundo eterno das idias, no sabe se guiar no mundo comumdos mortais.

    Concluindo, podemos dizer que as reflexes de Arendt sobreo juzo se realizam em boa parte como uma forma de enfrentar asdificuldades relacionadas legitimidade surgidas com o fim da auto-ridade das tradies na modernidade e, principalmente, com o fimdas experincias totalitrias. Alm disso, essas reflexes se mantmbastante atuais, se considerarmos os problemas postos no mbitoda legitimidade no contexto societrio contemporneo guiado pelasperspectivas da globalizao e da crise da concepo moderna derepresentao poltica e pela tendncia legitimao propagan-dstico-miditica. A reflexo sobre o juzo, em Arendt, pe comocentral a legitimidade poltica, cuja efetividade se realiza no poderdo cidado, colocando-a como uma das ltimas faculdades polticascapazes de atualizar o sentido da poltica hoje. A recusa da legitimi-dade poltica nas atuais formas societrias baseadas nas decisesdas corporaes econmicas internacionais, centralizadas e respalda-das nos enormes espaos e padres miditicos de comunicao acena para o crescimento da violncia e para o retorno s identifi-caes fictcias e tnicas, barbrie enfim. Instaura-se, pela recusada legitimidade poltica, um sistema societrio em que os homens,como seres capazes de pensar e agir, isto , como diferentes de animaishumanos, so considerados suprfluos. Sem poltica, instaura-se alei do mais forte, a dominao. Assim, a reflexo sobre o juzo,baseada nos pressupostos arendtianos, nos convida a pensar aspossibilidades de resistncia no contexto de ilegitimidade queestamos experimentando com o predomnio do econmico. Ocarter destinal dos processos globalizantes ocorre em virtude de sepensar sempre em termos econmicos e no em termos polticos. medida que o povo, no como massa amorfa, mas como oconjunto dos cidados autonomamente organizados, comear a ser

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    importante, a resistncia se instalar, como j se vem instalando, e,ento, o carter destinal perder sua autoridade. A superao desseimpasse implica um confronto com a tradio e com a culturaautoritria a que fomos submetidos. Da a importncia da reflexosobre o juzo poltico, pois a prtica do julgamento, nos termos deArendt, leva renncia servido e enseja constituir espaos deliberdade.

    ABSTRACT: Our intention is to explain the judgment notion in Hannah Arendt, startingfrom legitimacy as a context and taking the human finitude as a thematic horizon. Ourmain argument defends that in Arendt judgment is conceived as political and taste is themodel of its modus operandi. This conception is fruit of the Arendts reception of ThirdCritic, the Critic of Kants Judgment Faculty. Therefore, from the link of judgment totaste we will present the following dimensions of judgment: intersubjective, autonomusand comprehensive.

    Key words: Judgment, taste, legitimacy, autonomy, comprehension, intersubjectivity.

    Notas

    1. Cf. a respeito ARENDT, H. Filosofia e poltica. In: A dignidade dapoltica. Traduo de Antnio Abranches et al. Rio de Janeiro:Relume-Dumar, 1993.

    2. Esse talvez seja o motivo pelo qual as pessoas tm renunciado aexercitar a faculdade de julgar. Para elas, com razo, se seguirmoso padro da tradio, o julgamento exercido dentro de umcontexto de arrogncia insuportvel. A tradio ocidental perdeuo grmen da cidadania, que nasceu na polis grega, e instituiu atradio, os costumes, os poderes e a religio como lugaresexclusivos do julgamento e da autoridade, inviabilizando ademocratizao da faculdade de julgar.

    3. Cf. a respeito ARENDT, H. Que autoridade?. In: Entre o passadoe o futuro. Traduo de Mauro Barbosa de Almeida. So Paulo:Perspectiva, 1988. p. 127-187.

    4. Na medida em que se tornou critrio para o exerccio do poder,em instncia capaz de autorizar a justa dominao, a razo

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    perdeu a sua dimenso contemplativa, e a sua autonomia,relacionada ao conhecimento e compreenso do real, transfor-mou-se em instrumento, em meio para submet-lo e control-lo. Cf. a respeito FERRAZ, Trcio de. Poltica e cincia poltica.Braslia: Editora UnB, 1978. (Coleo Textos de Aula).

    5. Cf. a respeito AGUIAR, Odilio Alves. O juzo como paradigmado pensamento poltico. In: Filosofia e poltica em Hannah Arendt.Fortaleza: Edies UFC, 2001. p. 95-164.

    6. A transformao da legitimidade em legitimao, do poder emdominao, foi muito bem percebida por Max Weber. Cf. arespeito Cincia e poltica: duas vocaes. So Paulo: Cultrix, 1968.

    7. Cf. a respeito ADEODATO, Joo Maurcio. O problema da legitimi-dade no rastro do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro:Forense Universitria, 1989.

    8. O fim da tradio com o surgimento da modernidade umtema recorrente em Arendt. Esse tema aparece de formavigorosa no seu livro Entre o passado e o futuro, principalmenteno prefcio intitulado A quebra entre o passado e o futuro eno captulo A tradio e a poca moderna.

    9. Para Arendt, o movimento de secularizao ensaiou umarevitalizao da esfera pblica, mas essa linha de ao foi deixadade lado com a entrada do tema da soberania e o surgimento doEstado como detentor da capacidade de decidir e instituir aforma especificamente moderna da poltica. Cf. ARENDT,Hannah. O conceito de histria: antigo e moderno. In: Entre opassado e o futuro. So Paulo: Perspectiva, 1988. p. 69-126.

    10. A respeito da leitura arendtiana de Kant e do juzo esttico comomodelo do juzo poltico em Arendt, conferir os seguintesartigos: BEINER, Ronald: Hannah Arendt on judging, in Lectureson Kants Political Phylosophy, The University of Chicago Press,1982; TASSIN, tienne: Sens commun et communaut: la lecturearendtienne de Kant, in Les Cahiers de Philosophie, 1987;MONGIN, Olivier: Du politique lesthtique, in Esprit, n. 42,1980; BUCI-GLUCKSMANN, Christine: La troisime critique

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    dArendt, in Ontologie et politique, Tierce, 1993; LORIES,Danielle: Sentir en commun et juger par soi-mme, in tudesPhnomnologiques, n. 2, Ousia, 1985; TAMINIAUX, Jacques:Endurance du thaumazein et carence de jugement, in Heideggeret Arendt, Payot, 1992; MACEDO, Andr: A dimenso poltica dafilosofia kantiana segundo Hannah Arendt, ensaio que acom-panha a traduo das Lies sobre a filosofia poltica de Kant,Relume-Dumar, 1993; GARCIA, Claudio: Hannah Arendt:liberdade, ao e juzo comunicativo,UFRGS, 1991; GREBLO,Edoardo: Il poeta Cieco: Hannah Arendt e il giudizio, in Aut-aut, setembro-dezembro, 1990; e CIARAMELLI, Fabio: Laresponsabilit de juger, in Hannah Arendt et la modernit, Vrin,1992.

    11. Cf. ARENDT, Hannah. A crise na cultura: sua importncia sociale poltica. Entre o passado e o futuro, p. 248-281.

    12. Cf. a respeito Hannah Arendt Karl Jaspers: correspondence(1926-1969). Editado por Hans Saner. New York: HB&C, 1992.p. 318.

    13. Vale salientar que Arendt no chegou a sistematizar suas leiturasda Crtica do Juzo. O que temos so suas anotaes e aulaspostumamente editadas. Cf. a respeito Lies sobre a filosofiapoltica de Kant. Traduo de Andr Duarte. Rio de Janeiro:Relume-Dumar, 1993, e O julgar, apndice de A vida doesprito. Traduo de Antnio Abranches et al. Rio de Janeiro:Relume-Dumar, 1992.

    14. Cf. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro, p. 273-274.

    15. Arendt, em Entre o passado e o futuro, p. 97, afirma: A palavradoxa significa no s opinio, mas tambm glria e fama. Comotal, relaciona-se com o domnio pblico, que a esfera pblicaem que qualquer um pode aparecer e mostrar quem . Fazervaler sua prpria opinio referia-se a ser capaz de mostrar-se, servisto e ouvido pelos outros.

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    16. Senso comum em Arendt no tem nenhuma relao com aviso comum, que o concebe como sinnimo de vulgar, inculto,preconceituoso etc. Arendt recupera, a partir da ligao entregosto e sensus communis proposta por Kant, uma tradioproveniente dos romanos e do humanismo cvico renascentistana qual senso comum entendido como a condio da civilidade,como a capacidade humana de contatar e respeitar as outraspessoas que compem a comunidade em que se habita, uma vezque os homens, e no o homem, povoam a terra.

    17. Um resumo breve, mas condensado, da histria da noo desenso comum encontramos em Gadamer, Hans-Georg. Signi-ficacin de la tradicin humanstica para las ciencias del espritu.In: Verdad y metodo, Sgueme, 1993. p. 31-74.

    18. Cf. ROVIELLO, Anne-Marie. Sens commun et modernit chez HannahArendt, Ousia, 1987.

    19. Cf. Etienne TASSIN. Sens commun et communaut: la lecturearendtianne de Kant. Les Cahiers de Philosophie, p. 81-113, eLORIES, Danielle. Sentir en commun et juger par soi-mme.tudes Phnomenologiques, n. 2, Ousia, p. 55-91, 1985.

    20. Cf. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalm: um relato sobre abanalidade do mal. Traduo de Snia Orieta. So Paulo:Diagrama & Texto, 1983.

    21. Cf. ARENDT, Hannah. Filosofia e poltica. In: A dignidade dapoltica. Organizao e traduo de Antnio Abranches et al.Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1993. p. 103.

    22. Cf. ARENDT, Hannah. O declnio do estado-nao e o fim dosdireitos do homem. In: Origens do totalitarismo. Traduo deRoberto Raposo. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.300-336, e LAFER, Celso. O juzo reflexivo como fundamento dareconstruo dos direitos humanos. In: A reconstruo dos direitoshumanos. So Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 275-309.

    23. Cf. ARENDT, Hannah. Compreenso e poltica. In: Origens dototalitarismo, p. 52.

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    24. Cf. idem, A condio humana p. 247. Especialmente a nota n. 75.

    25. Idem, Homens em tempos sombrios, p. 95.

    26. Idem, ibidem, p. 95.

    27. Idem, Compreenso e poltica. In: Origens do totalitarismo, p.53.

    28. Idem, Homens em tempos sombrios, p. 15-16.

    29. Essa estranheza dos eventos evidencia o seu carter novo, indicaa descontinuidade dos acontecimentos e a inviabilidade das visesdefinidas do mundo. Sem essa estranheza, os homens estariamimunes a experincias posteriores, seria o fim da histria. Nesseaspecto, o juzo recupera a possibilidade da ao no presente erenova a esperana de novos comeos. Cf. ARENDT, Hannah.Homens em tempos sombrios, p. 17.

    30. por isso que, para Arendt, a histria no uma cincia, masuma categoria da existncia humana atravs da qual possvel acatarse dos homens em relao ao passado e realidade. Dizela: A cena em que Ulisses escuta a estria da prpria vida paradigmtica tanto para a Histria como para a poesia; areconciliao com a realidade, a catarse [...] constitua o objetivoltimo da histria, alcanado atravs das lgrimas da recordao.Cf. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro, p. 74-75.