Juventude Transviada No Cinema Hollywoodinano

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1 CRISTIANO MARLON VITECK REBELDIA EM CENA: A juventude transviada no cinema hollywoodiano nas décadas de 1950 e 1960 MARECHAL CÂNDIDO RONDON 2009

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Juventude Transviada No Cinema Hollywoodinano

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    CRISTIANO MARLON VITECK

    REBELDIA EM CENA:

    A juventude transviada no cinema hollywoodiano nas dcadas de 1950 e 1960

    MARECHAL CNDIDO RONDON

    2009

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    CRISTIANO MARLON VITECK

    REBELDIA EM CENA:

    A juventude transviada no cinema hollywoodiano nas dcadas de 1950 e 1960

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria, Poder e Prticas Sociais, da Universidade Estadual do Oeste do Paran UNIOESTE, para obteno do ttulo de mestre em Histria. Orientadora: Dra. Geni Rosa Duarte

    MARECHAL CNDIDO RONDON

    2009

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    Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)

    (Biblioteca da UNIOESTE Campus de Marechal Cndido Rondon PR., Brasil)

    Viteck, Cristiano Marlon V838m Rebeldia em cena: a juventude transviada no cinema hollywoodiano nas dcadas de

    1950 e 1960 / Cristiano Marlon Viteck. Marechal Cndido Rondon, 2009 153 p. Orientadora: Prof. Dr. Geni Rosa Duarte Dissertao (Mestrado em Histria) - Universidade Estadual do Oeste do Paran, Campus

    de Marechal Cndido Rondon, 2009. 1. Juventude - Cinema Dcada 50. 2. Juventude - Cinema Dcada de 60 3.

    Contracultura. I. Universidade Estadual do Oeste do Paran. II. Ttulo.

    CDD 21.ed. 306 305.235

    CIP-NBR 12899

    Ficha catalogrfica elaborada por Marcia Elisa Sbaraini Leitzke CRB-9/539

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    Aos meus pais, irmos e amigos.

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    AGRADECIMENTOS

    professora Dra. Geni Rosa Duarte, amiga sincera que acreditou e me orientou durante a dissertao. Ao professor Dr. Robson Laverdi, pela amizade, colaboraes e exemplo de vida. Aos professores Dr. Eduardo Morettin e Dr. Alexandre Fiza, pelo interesse e disposio em avaliar e contribuir com este trabalho. Ao Programa de Ps-Graduao em Histria, Poder e Prticas Sociais, da Universidade Estadual do Oeste do Paran UNIOESTE, em especial professora Dra. Mri Frotscher. Ao Ms. Gilson Backes, Ms. Jorge Pagliarini e Ms. Raphael Pagliarini, grandes amigos durante toda esta jornada. A Puky: vale tudo pra te ver sorrir. A todos os gnios loucos do cinema, literatura e msica. Renunciei poesia mil vezes e voltei para ela mil e uma Carl Solomon.

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    As descobertas e verdades brilhantes, enlouquecedoras e hilariantes da juventude, aquelas que transformam os jovens em demnios visionrios e os fazem ao mesmo tempo infelizes e mais felizes que nunca as verdades mais

    tarde abandonadas com a condescendncia da maturidade -, essas verdades voltam na verdadeira maturidade, a maturidade sendo nada menos que

    sinceridade disciplinada essas verdades vo voltar para todos os homens verdadeiros, que faro delas no mais impetuosas bandeiras da juventude,

    mas faro delas o que puderem (...).

    Jack Kerouac em Dirios, sexta-feira, 27 de junho de 1947.

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    RESUMO

    O conceito de adolescente, que durante toda a primeira metade do sculo XX vinha sendo discutido nos Estados Unidos, ganhou em importncia a partir dos anos 1950, quando se percebeu definitivamente que a adolescncia se constitua em um amplo fenmeno cultural e social da sociedade estadunidense. Caracterstica marcante daquela gerao era a contestao a determinados valores da sociedade. Esse fenmeno ampliou-se ainda mais durante os anos 1960 com a contracultura, que teve a juventude rebelde como a principal protagonista de suas manifestaes. O cinema produzido por Hollywood tambm acabou influenciado e ao mesmo tempo influenciou essas manifestaes. Atravs de um processo denominado de juvenilizao do cinema, a indstria cinematogrfica dos Estados Unidos passou a produzir diversas obras que traziam as mais diversas representaes das questes ligadas ao tema da juventude durante a dcada de 1950, sendo que a rebeldia caracterstica de parte significativa daqueles jovens serviu de argumento para muitos desses filmes, o mesmo acontecendo durante a dcada de 1960 durante a contracultura. Atravs da anlise dos filmes O Selvagem (1954), Juventude Transviada (1955) e Easy Rider Sem Destino (1969), pretende-se compreender o imaginrio social e os comportamentos de determinados grupos de jovens das dcadas de 1950 e 1960, bem como destacar elementos importantes da sociedade estadunidense da poca que estavam sendo contestados. Palavras-chave: Histria, Cinema, Juventude, Contracultura.

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    ABSTRACT

    The concept of teenager, which during the first half of the 20th century was being discussed in the United States, received importance since 1950, when it was definitely noticed that the adolescence constituted a huge cultural and social phenomenon on the American society. A noticeable characteristic from that generation was the contest of some determined social values. This phenomenon got much bigger during the 1960s with the counter culture, that took the rebel youth as the main character of its manifestations. The cinema produced by Hollywood also influenced and at the same tame influenced these manifestations. Trough a process called juvenilization of the cinema, the cinematography industry of the United States started to produce a lot of work that were bringing a diversity of representations of the issues related to the youth theme during the 1950s, and the rebel characteristic of a significant part of those young people was used as an argument for a lot of these films, the same happened during the 1960s during the XXX. Trough the analyses of the movies The Wild One (1954), Rebel Without a Cause (1955) and Easy Rider (1969), we intend to comprehend the social imaginary and the behavior of some determined youth groups of the 1950s and 1960s, as well as highlight important elements of the American society from the times they were being contested. Key words: History, Cinema, Youth, Counter Culture.

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    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Pster promocional norte-americano do filme Go, Johnny Go! ............... 49 Figura 2 Imagem filmada de cima sugere a autoridade do policial ........................... 87 Figura 3 Imagem denota a inferioridade dos motoqueiros diante da autoridade policial de Carbonville .................................................................................................................. 88 Figura 4 A imagem sugere a igualdade de foras entre Johnny e o xerife de Wrightsville .......................................................................................................................................... 89 Figura 5 Pster informa que o filme Juventude Transviada trata da delinquncia juvenil .......................................................................................................................................... 90 Figura 6 Membros do Black Rebels Motorcycle Club ................................................ 91 Figura 7 Os Ramones, na foto de capa do primeiro disco, de 1976 ............................ 92 Figura 8 Johnny se sente atrado pela inocente Kathie ............................................... 93 Figura 9 Johnny ignora Britches, a ousada personagem de O Selvagem ................ 94 Figura 10 Cena da discusso na escada revela a inverso da hierarquia no lar de Jim, que no aceita que o pai seja submisso me .................................................................. 95 Figura 11 Cartaz de O Selvagem destaca apenas a personagem de Marlon Brando 96 Figura 12 Cartaz de O Selvagem destaca somente as personagens masculinas ........ 97 Figura 13 Cartaz de O Selvagem mostra a mulher como objeto de desejo amoroso/sexual e explora a sua condio de submissa ao homem ................................... 98 Figura 14 Cartaz destaca apenas a personagem masculina principal ............................ 99 Figura 15 James Dean em evidncia. Personagem de Natalie Wood, Judy, aparece protegida por Jim .............................................................................................................. 100 Figura 16 Jim estende a sua mo a Judy, oferecendo proteo .................................... 101 Figura 17 Wyatt observa o relgio, antes de jog-lo fora no comeo da viagem ........ 137

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    Figura 18 Enquanto o fazendeiro prega a ferradura, Billy e Wyatt, os caubis modernos, consertam o pneu da moto ................................................................................................ 138 Figura 19 Wyatt cheira cocana durante a transao da droga que tornou a viagem possvel ............................................................................................................................. 139 Figura 20 George prova o cigarro de maconha oferecido por Wyatt ........................... 140 Figura 21 Cartaz de Sem Destino vende uma imagem otimista de liberdade e de aventuras que podem ser vividas nas estradas .................................................................. 141 Figura 22 Cartaz explora o elemento trgico da jornada de Billy e Wyatt .................. 142 Figura 23 Cartaz que melhor define a trajetria dos dois hippies: uma jornada rumo felicidade, que nunca encontrada ................................................................................... 143

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    SUMRIO CONSIDERAES INICIAIS .................................................................................. 11 a) Participao afetiva ................................................................................................... 13 b) Cinema: um agente histrico ..................................................................................... 18 CAPTULO 1: Ascenso, crises e a juvenilizao do cinema norte-americano .... 27 1.1 Hollywood na primeira metade do sculo XX ...................................................... 27 1.2 Juvenilizao do cinema ...................................................................................... 34 1.3 Dcada de 1950: anos dourados? ....................................................................... 40 CAPTULO 2: O Selvagem e Juventude Transviada: rebeldes em cena ............. 50 2.1 O Selvagem ......................................................................................................... 51 2.2 Juventude Transviada ......................................................................................... 61 2.3 Gangues, moda, a mulher e sexualidade ............................................................ 71 CAPTULO 3: Sem Destino: oposies e contradies de uma sociedade em processo de mudana ................................................................................................................. 102 3.1 A contracultura ..................................................................................................... 103 3.2 Sem Destino ........................................................................................................... 108 3.3 Vagabundos, campo e cidade ................................................................................ 114 3.4 Sociedades em confronto ....................................................................................... 128 CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................... 144 FICHAS TCNICAS DOS FILMES ......................................................................... 146 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...................................................................... 149 BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 152

  • CONSIDERAES INICIAIS

    A juventude desempenhou um papel de destaque nas manifestaes socioculturais e

    at mesmo polticas que marcaram os Estados Unidos nas dcadas de 1950 e 1960.

    Vivendo uma era dourada da economia, que teve um crescimento significativo aps a 2

    Guerra Mundial, os adolescentes e jovens contavam com uma realidade pouco vivida at

    ento por outras geraes de norte-americanos. Enquanto os adultos em geral da poca

    tinham, muitos deles, enfrentado a recesso e a profunda crise em consequncia da quebra

    da bolsa de 1929 e, posteriormente, durante a 2 Grande Guerra tambm vivido as

    dificuldades de uma situao de conflito (em que praticamente toda a produo da nao

    era voltada para os esforos de guerra e que qualquer consumo ou uso desnecessrio de

    combustvel, borracha, metal e at leo de cozinha, entre outros, era considerado

    desperdcio e quase uma ofensa ao pas), uma boa parte da juventude dos anos 1950 e 1960

    pde desfrutar dos benefcios de uma economia em ascenso e de uma situao de

    emprego pleno. Tudo isso, claro, tornava possvel consumir as novas necessidades

    geradas pelo mercado, vido por abastecer esta grande parcela jovem da populao que

    tinha dinheiro e estava disposta a gastar com uma srie de produtos, que iam desde

    cosmticos, passando por discos, roupas e at mesmo carros, s para citar alguns.

    Porm, no foi apenas pela grande capacidade de se entregar ao mercado que ficou

    marcada aquela gerao de adolescentes e jovens dos Estados Unidos naquelas dcadas.

    Junto a isso, aquela gerao tambm ganhou destaque pelas mudanas que promoveram ou

    ajudaram a promover na sociedade, alterando costumes, tradies, substituindo antigos

    valores por novos, os quais muitos deles esto em vigor at os dias de hoje. Vrias dessas

    transformaes aconteceram na base da contestao, do questionamento e at mesmo

    atravs de um comportamento rebelde, que para a maioria da gerao adulta e at mesmo

    outros jovens poderia parecer sem sentido.

    O cinema, produto direto da era industrial e que desde o incio funcionou dentro da

    lgica do mercado (e diante de seu enorme apelo popular, outras tantas vezes tambm foi

    utilizado com objetivos claramente polticos), evidentemente que no ficou alheio a essa

    agitao que brotava da juventude norte-americana, ela prpria uma parcela importante do

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    pblico que lotava as salas de cinema, em particular, e que era responsvel pelo consumo

    em larga escala de outros tantos produtos, de uma forma geral.

    Com a inteno de obter lucros a partir daquele at ento indito fenmeno da

    juventude, mas tambm com o objetivo de dialogar com parte dessa gerao e, ao mesmo

    tempo, tentar levar respostas aos adultos sobre as causas de tamanha agitao de uma parte

    significativa dos jovens norte-americanos daquele perodo, a indstria cinematogrfica

    produziu incontveis filmes abordando o conflito de geraes sob diferentes abordagens,

    que iam desde o enaltecimento do rock n roll (o novo ritmo musical que se transformou na

    trilha sonora dos jovens contestadores da poca), passando pelas novas formas de

    comportamento, moda, costumes, entre outros. Assim, em meio a muitos filmes que foram

    produzidos em srie visando extrair o mximo de ganhos daquela efervescncia cultural

    e social, alguns ttulos se firmaram como referncia sobre o perodo, seja pelo impacto que

    causaram na poca, pelo ineditismo dos assuntos presentes em suas histrias ou at mesmo

    pelos pontos de vista inovadores a respeito de temas que j eram recorrentes em outros

    filmes da poca.

    Entre os ttulos que, ao longo das ltimas dcadas, no foram esquecidas pelo

    pblico e, por outro lado, se transformaram em documentos riqussimos para a pesquisa

    histrica, destacamos trs obras, que so os objetos de estudo deste trabalho: O

    Selvagem (The Wild One, direo de Laslo Benedek, 1954), estrelado por Marlon Brando;

    Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, direo de Nicholas Ray, 1955), que teve

    como ator principal James Dean; e Sem Destino (Easy Rider, direo de Dennis Hopper,

    1969), estrelado por Peter Fonda e Dennis Hopper. Temos por objetivo neste trabalho

    perceber as representaes que estes filmes faziam das mudanas comportamentais e

    culturais que estavam ocorrendo nos Estados Unidos; com que valores eles dialogavam e

    que respostas ofereciam ou quais questionamentos faziam sobre as contestaes daquelas

    geraes de jovens.Em comum, estes trs filmes levaram s telas de cinema representaes

    da sociedade norte-americana da poca tendo como ponto de partida a juventude

    contestadora. O Selvagem, Juventude Transviada e Sem Destino foram e so

    apontados por geraes seguintes de jovens como referenciais, pois mesmo passados vrios

    anos aps seus lanamentos, ainda assim so capazes de exercer fascnio e referenciar

    comportamentos, de forma direta ou indireta. Isso possvel porque, conforme Umberto

    Barbaro, toda obra de arte adquire no contacto com o pblico um valor social; isto ,

    promove e determina certas correntes afetivas e ideolgicas, certos movimentos de opinio

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    que jamais permanecem estreis, mas fermentam poderosamente a massa heterognea de

    fatores sociais, como antecipaes ideais da Histria prxima1. E o cinema, talvez a

    forma de arte de maior alcance popular do sculo XX, no escapa dessa lgica. Mas, por

    que o cinema capaz de exercer tamanha fascinao sobre a maioria das pessoas? Que

    sentimentos e emoes ele consegue provocar no pblico? At aonde vai a sua capacidade

    para influenciar o comportamento das pessoas? So perguntas que nos ajudam a perceber

    como, por exemplo, o cinema pde, entre outros elementos, tornar-se um catalisador do

    fenmeno da juventude estadunidense na segunda metade do sculo passado.

    a) Participao afetiva

    Desde as primeiras exibies de filmes atravs dos cinematgrafos, no final do

    sculo XIX, as pessoas nunca ficaram indiferentes s imagens em movimento que eram

    apresentadas. No so poucos os relatos a respeito do espanto, desconfiana, terror, mas,

    tambm, de entusiasmo e admirao dos espectadores que assistiam a essas projees. Isso

    se dava pela novidade da prpria inveno. Se dcadas antes a fotografia j havia

    possibilitado a apreenso da realidade atravs da criao de um duplo, agora essa

    possibilidade havia se ampliado ainda mais com a reproduo de imagens em movimento

    e, algumas dcadas mais tarde, tambm com o som e, enfim, o cinema em cores.

    O ato de ir ao cinema j ele mesmo um catalisador de emoes. Se ainda hoje as

    salas de cinema atraem as pessoas, que tm disposio no conforto de suas casas a

    televiso, aparelhos de DVD e computadores conectados Internet, de se supor como o

    ir ao cinema era um grande atrativo para o pblico de dcadas atrs, quando todo esse

    aparato domstico no existia.

    A sala de cinema um local de interao social. Apesar do silncio que impera

    durante a projeo da pelcula, o ato de assistir a um filme no cinema geralmente feito na

    companhia de amigos, namorados, familiares, o que j algo por si s instigante como

    uma opo de divertimento. Mas, a prpria ida solitria ao cinema tambm um gesto que

    traz prazer s pessoas. Isso porque, conforme afirmou Graeme Turner, o desejo de assistir

    1 BARBARO, Umberto. Elementos da Esttica Cinematogrfica. Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira, 1965, p. 78.

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    a um filme popular est relacionado com toda uma gama de outros desejos moda,

    novidade, posse de cones ou signos altamente valorizados pelas outras pessoas do mesmo

    grupo de interesses, de mesma condio social ou faixa etria2. Enfim, assistir a

    determinado filme uma experincia bastante ampla que extrapola o prprio ato de ir ao

    cinema.

    Mas, uma vez assistindo a um filme, qual a funo do espectador? Ele se torna

    algum passivo, alvo de mensagens ideolgicas propostas pelos produtores da obra? Ele

    desempenha um papel crtico?

    As anlises sobre o poder que os filmes exercem sobre as pessoas so bastante

    diversas. Umberto Barbaro, por exemplo, afirmou que:

    Tudo o que aparece na tela, absolutamente tudo, de fato escolhido e disposto de acordo com uma vontade inaltervel, que determina no apenas o que o espectador deve ver, mas, tambm e sobretudo, o modo como deve v-lo. (...) Vendo-a assim, em condies determinadas, obrigado, pelo menos durante a projeo do filme, a julgar os fatos e as personagens como o pretenderam os autores. (...) As impresses com que o filme bombardeia o subconsciente dos espectadores podem ser to violentas a ponto de eclodirem em aes sbitas irrefletidas. Assim, a grande massa dos freqentadores do cinema (muitas centenas de milhares diariamente) passa a constituir como que um imenso campo arado, no qual os cineastas lanam s mos-cheias sementes cujos frutos, imediatos ou distantes, no deixaro de se manifestar.3

    Conforme Luiz Carlos Merten, quando uma pessoa entra em uma sala de cinema

    que toda construda para que, uma vez dentro dela, o espectador rompa seus vnculos

    com o mundo exterior e tenha a sensao de estar entrando em um outro universo ela se

    integra e se entrega ao que acontece na grande tela4. Mas, uma vez dentro da sala escura, o

    que faz com que cada espectador se sinta atrado pelo que est sendo projetado na tela?

    Esta uma questo a que muitos tericos tm se dedicado a tentar responder.

    No desconsideramos neste trabalho o posicionamento crtico que os espectadores

    podem adotar enquanto assistem a um filme. Porm, enfatizamos que essa capacidade de

    atentar para detalhes ou mensagens que esto um pouco abaixo da superfcie certamente

    muda conforme o objetivo de cada pessoa. Um crtico ou um analista, por exemplo,

    tender a ver o filme de uma forma muito mais racional do que emocional. J o contrrio

    2 TURNER, Graeme. Cinema como prtica social. Trad. Mauro Silva. So Paulo: Summus, 1997, p. 16. 3 BARBARO, Umberto. Op. cit., p. 79-81. 4 MERTEN, Luiz Carlos. Cinema: Um Zapping de Lumiere a Tarantino. Porto Alegre: Artes e Ofcios, 1995, p. 08 e 09.

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    provavelmente acontece com quem se dispe a assistir o mesmo filme por mero

    entretenimento. E, com certeza, este o objetivo fundamental da grande maioria das

    pessoas que frequentam as salas de cinema: deixar-se envolver pela histria, mergulhar na

    narrativa e, uma vez absortas pelo filme, a tendncia a envolverem-se com a trama e

    aceitar como naturais uma srie de mensagens ideolgicas (explcitas ou no) muito

    maior. E o cinema, ao longo das dcadas, foi aprimorando cada vez mais as tcnicas para

    seduzir o seu pblico.

    Edgar Morin fala sobre a capacidade do cinema de instigar uma participao

    afetiva do espectador com as histrias dos filmes, graas a um processo mental de

    projees-identificaes. Na medida em que identificamos as imagens da tela com a

    vida real, pomos as nossas projees-identificaes referentes vida real em movimento5,

    escreveu o autor, lembrando que a prpria tcnica narrativa e o processo usual de obteno

    das imagens utilizado pelo cinema so no sentido de criar uma iluso de realidade para o

    filme. Mesmo sabendo de que se trata de uma obra de fico, o espectador ainda assim se

    deixa absorver pelo enredo. Tambm de acordo com Edgar Morin, as prprias

    caractersticas da sala de cinema conduzem entrega ao filme por parte do espectador. A

    sala escura, o conforto relaxante das cadeiras e a prpria total incapacidade de influenciar

    no desenvolvimento da histria acabam por deixar o pblico em uma atitude passiva.

    Edgar Morin completa:

    A ausncia ou o atrofiamento da participao motriz, prtica ou ativa (...) est estreitamente ligada participao psquica ou afetiva. No podendo exprimir-se por atos, a participao do espectador interioriza-se. (...) A ausncia de participao prtica determina portanto uma participao afetiva intensa: operam-se verdadeiras transferncias entre a alma do espectador e o espetculo da tela. Correlativamente, a passividade, a impotncia do espectador, colocam-no em situao regressiva. O espetculo serve de ilustrao a uma lei antropolgica geral: todos ns nos tornamos sentimentais, sensveis e lacrimejantes logo que nos vemos privados dos nossos meios de ao.6

    Mas, a participao afetiva no se deve apenas ao ambiente da sala de cinema ou

    unicamente histria contada atravs do filme. Cada espectador tende a identificar-se com

    as personagens da obra, em especial com os heris. Essa identificao sempre mais

    intensa quanto mais o espectador considerar os aspectos fsicos e morais da personagem 5 MORIN, Edgar. A Alma do Cinema. In: XAVIER, Ismail (org.). A Experincia do Cinema. 2 ed. Rio de Janeiro: Edies Graal, Embrafilme, 1991, p. 151. 6 Idem, Ibid., p. 154.

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    semelhantes aos seus. Edgar Morin, ainda analisando os processos de projeo-

    identificao, avalia que outro fator que atua neste sentido a prpria relao que os

    espectadores possuem com as estrelas de cinema. Acontecimentos da vida pblica do ator

    (trajetrias e estilos de vida, gostos, opinies, etc.) tambm podem deflagrar uma maior

    participao afetiva do espectador na hora de assistir a um filme.

    Para Robert Sklar, j na poca dos primeiros filmes do sculo XX os astros de

    cinema tocavam a psique humana e o pblico deixava-se absorver pelas histrias que eram

    projetadas na grande tela e, ento, admitidos intimidade da vida do filme, os cinemeiros

    queriam que suas fantasias se prolongassem, intactas, na vida real. A vida dos astros e

    estrelas do cinema tornaram-se smbolos to importantes para ser manipulados quantos

    suas imagens cinematogrficas7. O autor lembra que nas dcadas de 1910 e 1920,

    diversos filmes de Hollywood foram alvos de crticas de setores conservadores da

    sociedade, que se mostravam preocupados com os efeitos que cenas consideradas

    imprprias poderiam causar sobre o pblico. Ele recorda ainda que as notcias veiculadas

    na imprensa, na qual revelavam as grandes festas que eram promovidas pelas primeiras

    grandes estrelas de cinema (muitas vezes regadas a sexo, bebidas e drogas) tambm

    acabavam atraindo o interesse do pblico para a vida dos artistas. Tamanha era a crena

    nesse poder de influncia que muitos daqueles que criticavam o cinema como sendo imoral

    acabaram por voltar seus ataques contra a vida particular dos astros e estrelas. Chegou-se

    at a acreditar que os freqentadores de cinema respondiam menos a histrias e a cenas

    do que transparecia nas imagens projetadas; os artistas, em outras palavras, eram mais reais

    para o pblico do que os personagens que interpretavam8. Conforme o autor, passado

    algum perodo, os moralistas voltaram a criticar com mais intensidade as histrias contadas

    nos filmes. Mesmo assim, o interesse pela vida privada dos atores, atrizes, diretores, enfim,

    de todos aqueles que tm uma projeo maior na indstria cinematogrfica, em especial a

    norte-americana, nunca deixam de atrair o interesse das pessoas. No fosse assim, o star

    system de Hollywood (que alimenta a mdia com informaes a respeito da vida particular

    das estrelas) no seria to importante para a indstria cinematogrfica dos Estados Unidos

    at mesmo nos tempos atuais.

    Ainda buscando expressar o enorme potencial de projeo-identificao de que

    dotado o cinema, Edgar Morin ressalta que a identificao do pblico com os filmes

    7 SKLAR, Robert. Histria Social do Cinema Americano. So Paulo: Editora Cultrix, 1978, p. 269. 8 Idem, Ibid, p. 99.

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    tambm pode se dar atravs daquilo que o espectador no tem de semelhante com a

    personagem/ator. Se determinado ator bonito e o espectador se julga feio, esse pode ser

    um motivo para admirao. Se o heri do filme corajoso e o espectador se julga no to

    valente, este ltimo tambm pode admirar esta caracterstica da personagem e assim por

    diante.

    Edgar Morin tambm afirma a importncia que as prprias imagens tm dentro do

    processo de seduo que os filmes se propem a fazer. Belas paisagens, closes, msicas,

    movimentao de cmeras que aceleram ou reprimem as emoes conforme exige a

    narrativa so elementos que ajudam a conceber a participao afetiva, que o autor define

    como sendo o estado gentico e fundamento estrutural do cinema9. Ou seja, sem emoo,

    sentimento e satisfao, o cinema perde a sua magia e sua razo de existir.

    Retomando Graeme Turner, este incluiu outros elementos que despertam prazer nas

    pessoas que assistem a um filme. Em primeiro lugar, o autor afirma que existe uma

    satisfao naquilo que familiar, da o interesse do cinema hollywoodiano em produzir,

    preferencialmente, histrias que poderiam acontecer a qualquer um ou que no rompam

    muito com as convenes culturais da sociedade onde o filme produzido ou at mesmo

    para outras sociedades onde ele ser visto. Conforme Graeme Turner:

    Esses so alguns prazeres caractersticos da cultura popular, todos (potencialmente) envolvidos na deciso do pblico de ver um filme e na relao que as pessoas tm com o filme quando o vem. So prazeres sociais, culturais, dos quais os indivduos se apropriam para seu prprio uso, mas que de modo algum tm origem em cada indivduo. So prazeres oferecidos tambm por outras prticas sociais dentro da cultura popular, e portanto revelam como a prtica social do cinema est embutida em outras prticas, em outros sistemas de significado.10

    Tal afirmao tambm corroborada por Leif Furhammar e Folke Isaksson, que ao

    escreverem sobre o cinema de Hollywood, afirmam que ele geralmente tende a se basear

    em valores conservadores e seguramente estabelecidos, a fim de satisfazer a maior

    quantidade possvel de espectadores. Uma indstria de diverso, to firmemente voltada

    para a satisfao de todos, est eventualmente limitada a desenvolver um mundo

    imaginrio completo que tanto modela como modelado pelos juzos de valores coletivos

    do pblico. Isso no apresenta obrigatoriamente teses polticas, mas reflete e preserva as

    9 MORIN, Edgar. Op. cit., p. 165. 10 TURNER, Graeme. Op. cit., p. 121.

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    metas imaginadas e os mitos favoritos da sociedade ao mostr-los sob formas atraentes11,

    destacaram os autores.

    Entendendo os laos que unem afetivamente as pessoas ao cinema, necessrio nos

    direcionarmos para as relaes entre o Cinema e a Histria para podermos atingir os

    objetivos da nossa pesquisa. importante entender de que forma o cinema pode contribuir

    para gerar conhecimento histrico, bem como conhecer mtodos que tornam possvel o

    trabalho do historiador com os filmes.

    b) Cinema: um agente histrico

    Os encontros entre o Cinema e a Histria tm se dado desde a inveno do

    cinematgrafo, no final do sculo XIX. Conforme Antnio Costa, essa relao se d de trs

    maneiras: a) A histria do cinema, da qual se ocupam os pesquisadores que estudam a

    transformao dessa prtica ao longo dos anos; b) A histria no cinema, na qual os filmes

    so tidos como fontes de documentao histrica e meios de representao da histria; c)

    O cinema na histria, ou seja, o cinema como um agente histrico, exercendo influncia na

    sociedade12.

    A maioria dos primeiros trabalhos voltados para o cinema na histria, que a

    nfase desta pesquisa, foi realizada no final da dcada de 1960 e se intensificou a partir dos

    anos 1970, sendo que desde ento os estudos que se propem a fazer uma leitura histrica

    e social da sociedade atravs dos filmes, sejam eles documentrios ou de fico, tm

    crescido de maneira significativa, apesar de que, pelo menos no Brasil, o nmero de

    publicaes tericas ou com resultados de pesquisas nesse sentido ainda seja bastante

    pequeno, em comparao com outros pases, como a Frana.

    Alis, foi o francs Marc Ferro um dos primeiros historiadores a teorizar a respeito

    da possibilidade de se realizar a anlise histrica e social de filmes. Isso porque, segundo

    ele, os filmes permitem que alcancemos zonas invisveis do passado, o que pode trazer

    tona as autocensuras e lapsos de uma sociedade. Marc Ferro reconhece, por exemplo, que

    11 FURHAMMAR, Leif; ISAKSSON, Folke. Cinema e Poltica. Trad. Jlio Cezar Montenegro. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001, p. 52 e 23. 12 COSTA, Antnio. Compreender o Cinema. Trad. Nilson Moulin Louzada. 3 ed. So Paulo: Globo, 2003, p. 29 e 30.

  • 19

    logo nos primeiros anos aps a criao do cinematgrafo e com o incio do

    desenvolvimento de uma linguagem cinematogrfica, muitos governos perceberam o poder

    de influncia que o cinema poderia exercer sobre os espectadores. No foi toa que o

    governo russo, por exemplo, investiu consideravelmente na produo de filmes que

    enaltecessem ou aludissem revoluo socialista de 1917, como o caso do Encouraado

    Potemkim (Bronenosets Potymkin, dirigido por Sergei Eisenstein, de 1925.); ou que

    Leni Riefenstahl tenha recebido do governo nazista a incumbncia de produzir, entre

    outros trabalhos, um documentrio sobre as Olimpadas de Berlim de 1936, no qual fosse

    destacada a superioridade ariana na competio. No caso dos Estados Unidos houve claro

    incentivo para que os estdios de Hollywood produzissem filmes com evidentes

    mensagens anticomunistas j a partir dos anos 1930 e, de maneira mais intensa, com o

    incio da Guerra Fria. Contudo, apesar desse controle ideolgico, Marc Ferro afirma que

    essa no a essncia do cinema, pois o filme tem essa capacidade de desestruturar aquilo

    que diversas geraes de homens de Estado e pensadores conseguiram ordenar num belo

    equilbrio. Ele destri a imagem do duplo que cada instituio, cada indivduo conseguiu

    construir diante da sociedade13. Ou seja, o cinema faz uma contra-anlise da sociedade.

    Mas, para que seja possvel promover essa contra-anlise, Marc Ferro sistematiza

    mtodos para a anlise histrica de filmes. Em primeiro lugar, ele defende que necessrio

    partir da imagem, das imagens. No buscar nelas somente ilustrao, confirmao ou o

    desmentido do outro saber que o da tradio escrita14. Ou seja, cinema um campo

    singular da pesquisa histrica, dotado de especificidades que precisam ser respeitadas. Do

    mesmo modo, ele explica que a pelcula a ser analisada no deve ser vista como uma obra

    de arte, mas como um produto que vai alm dos significados cinematogrficos. Tambm,

    para o estudo histrico de um filme, o autor vai ressaltar que no preciso debruar-se

    sobre o todo. possvel fragment-lo, compor sries ou conjuntos atravs da seleo de

    temas ou de planos. E mais: alm daquilo que mostrado na tela do cinema, preciso

    ainda que o historiador busque encontrar outros elementos, como informaes a respeito da

    criao do roteiro, sobre a produo, sobre as pessoas envolvidas, o momento vivido pela

    sociedade, a que pblico o filme se destinava, quem o financiou, entre outros, isso porque a

    prpria produo de uma obra cinematogrfica tambm histria.

    13 FERRO, Marc. Cinema e Histria. Trad. Flvia Nascimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 86. 14 Idem, Ibid, p. 86.

  • 20

    Um filme, seja ele qual for, sempre vai alm de seu prprio contedo15, escreveu

    o historiador francs. Isso significa que, mesmo no estando sobre o controle direto do

    Estado, como o caso dos trs filmes objetos de estudo deste trabalho, cada produo

    flmica portadora de elementos ideolgicos muitas vezes, at mesmo contraditrios,

    como poderemos perceber nas anlises mais adiante. Do mesmo modo, o autor alerta aos

    pesquisadores que se propem a estudar o cinema que o significado de um filme pode ser

    lido de maneira distinta em pocas diferentes e em sociedades diferentes. Mas, acima de

    tudo, importante reconhecer que os filmes so tambm agentes da histria, pois

    interferem nesta. No caso desta dissertao, temos claro que o cinema sobre e tambm feito

    para os jovens norte-americanos acabou por ajudar a compor modelos de comportamento

    para o novo conceito de juventude que estava sendo gerado durante os anos 1950 e 1960

    naquela sociedade e tambm em outras partes do mundo.

    Enfim, Marc Ferro esquematiza a sua proposta de anlise em quatro momentos. O

    primeiro verificar o contedo aparente ou a imagem da realidade, ou seja, perceber quais

    os elementos que so imediatamente absorvidos pelo espectador. Depois, numa etapa

    seguinte, o autor prope que sejam identificados os elementos ideolgicos da obra

    analisada. Em terceiro, e em razo do segundo item, possvel identificar o contedo

    latente, portanto, aquilo que no est to explcito no contedo flmico. Por fim, preciso

    entrar na realidade no visvel da obra, o que pode se interpretado como aquilo que no

    est presente na tela, ou seja, o contexto de produo.

    Mas, apesar da importncia da obra de Marc Ferro, sua teoria de que o cinema

    poderia realizar uma contra-anlise da sociedade, da maneira como ele pressupe,

    recentemente tem sido questionada. Sem descartar todos os mtodos propostos pelo

    historiador francs e considerando-o uma leitura obrigatria, Eduardo Morettin pondera e

    defende que, na prtica, a suposio de que um filme faz a contra-anlise da sociedade no

    pode ser aceita integralmente ou sem ressalvas. De acordo com ele, de certa forma se

    empobrece o campo de anlise de um filme quando se parte de relaes antagnicas como

    latente e aparente, visvel e no visvel ou at mesmo histria e contra-histria. Embora

    concorde em parte com Marc Ferro, ele amplia essa discusso ao afirmar que, na anlise

    histrica de um filme:

    A idia proposta pelo historiador de que o cinema no uma expresso direta dos projetos ideolgicos que lhe do suporte deve ser ressaltada: um

    15 Idem, Ibid, p. 114 e 115.

  • 21

    filme apresenta, de fato, tenses prprias. Estas, porm, no devem ser pensadas nos termos de sua incluso no campo da histria ou de sua contra-histria, tal como faces opostas de uma mesma moeda, parti-pris que define um nico sentido da obra. Por outro lado, afirmar a possibilidade de recuperar o no visvel atravs do visvel contraditrio, j que essa anlise v a obra cinematogrfica como portadora de dois nveis de significado independentes, perdendo de vista o carter polissmico da imagem. (...) Pelo contrrio, afirmamos que um filme pode abrigar leituras opostas acerca de um determinado fato, fazendo dessa tenso um dado intrnseco sua prpria estrutura interna. Perceber esse movimento deriva do conhecimento especfico do meio, o que nos permite encontrar pontos de adeso ou rejeio existentes entre o projeto-ideolgico de um determinado grupo social e a sua formatao em imagem.16

    Como se percebe, Morettin no fala em um sentido nico para o filme. Ele vai mais

    alm ao afirmar que os filmes avanam, mas tambm retrocedem, tomam muitas vezes

    caminhos tortos, diferentes da ideologia dos grupos que o produzem. Com relao

    contra-histria atravs do cinema, ele reconhece que ela mais facilmente produzida pelos

    marginalizados, pelas pessoas que no esto no poder e que lutam contra ele. Porm, ele

    acredita que, se os filmes em geral fazem uma contra-anlise da sociedade estabelecida, o

    mesmo tem que ser vlido para a produo marginal. Ou seja, os filmes que tm por

    objetivo revelar o inverso da sociedade tambm podem fornecer indcios para a sua

    prpria contra-anlise, explicitando aquilo que os produtores marginais tambm no

    gostariam de dizer ou pretendiam esconder.

    Ironicamente, apesar de Marc Ferro ser um dos primeiros historiadores a formular

    uma teoria e uma metodologia para o estudo histrico atravs do cinema, Morettin

    percebeu que, ao longo da obra do autor, os filmes muitas vezes foram utilizados para

    reafirmar conhecimentos j existentes a partir de documentos escritos. Neste caso, o

    cinema quase percebido apenas como uma complementaridade, como algo a mais para

    provar ou desacreditar o saber que teve sua origem atravs de outros documentos e fontes.

    Morettin, no entanto, entende que se o historiador quiser realmente explorar toda a

    potencialidade de anlise de um filme ele deve sempre partir em busca de respostas a partir

    do filme e, mais do que isso, deixar que as questes que ele coloca na pesquisa tenham a

    sua origem tambm na prpria obra cinematogrfica:

    16 MORETTIN, Eduardo. O Cinema como fonte histrica na obra de Marc Ferro. In: CAPELATO, Maria Helena... [et al.]. Histria e Cinema. So Paulo: Alameda, 2007, p. 42.

  • 22

    O filme possui um movimento que lhe prprio, e cabe ao estudioso identificar o seu fluxo e refluxo. importante, portanto, para que possamos apreender o sentido produzido pela obra, refazer o caminho trilhado pela narrativa e reconhecer a rea a ser percorrida a fim de compreender as opes que foram feitas e as que foram deixadas de lado no decorrer de seu trajeto. (...) Para que possamos recuperar o significado de uma obra cinematogrfica, as questes que presidem o seu exame devem emergir de sua prpria anlise. (...) Com esse movimento, evitamos o emprego da histria como pano de fundo, na medida em que o filme no est a iluminar a bibliografia selecionada, ao mesmo tempo que no isolamos a obra de seu contexto, pois partimos das perguntas postas pela obra para interrog-la.17

    Nesta perspectiva, abrem-se dois caminhos para a anlise, os quais devem andar, a

    princpio paralelamente, at que sejam enfim confrontados para se chegar aos resultados

    finais da anlise. Um deles levar em conta a linguagem estritamente cinematogrfica. Ou

    seja, no se ater somente ao tema, mas tambm sobre as tcnicas utilizadas, de que escola

    ou escolas do cinema determinada obra se aproxima, que estilos adota, etc. A outra

    justamente a busca dos elementos ideolgicos que esto presentes nos filmes selecionados

    para a anlise, procurando identificar os dilogos que eles mantm com outros elementos

    da sociedade, sobre a qual elaboram representaes e ao mesmo tempo lhe causam

    interferncias.

    Segundo se afirma na introduo do livro Histria e Cinema, com o exame

    detalhado dos filmes poderemos entender o cinema de uma poca como uma expresso de

    valores, no s delimitados pela maneira de abordar o tema encenado, mas, de modo mais

    decisivo, pela forma como foram concebidos os registros visuais e sua organizao na

    forma flmica.18

    Temos claro que o cinema passvel de ser alvo das mais diversas anlises. Para

    fazer especificamente a anlise histrica de um filme, nem sempre o trabalho do

    historiador precisa se ater totalidade da obra. Conforme Ciro Flamarion Cardoso e Ana

    Maria Mauad, seguindo o que Marc Ferro j havia proposto, o historiador tem a liberdade

    de se utilizar to somente de determinadas sequncias ou imagens recortadas, compor

    sries e elaborar conjuntos. Junto a isso, quem se prope a fazer a anlise histrica de um

    trabalho cinematogrfico tambm deve ter a preocupao de integrar o filme ao contexto

    em que ele surge: 17 Idem, Ibid. p. 62 e 63. 18 CAPELATO, Maria Helena; MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos; SALIBA, Elias Thom. Apresentao. In: Histria e Cinema. So Paulo: Alameda, 2007, p. 10.

  • 23

    Um filme uma mensagem de mensagens de considervel complexidade, reunindo e combinando em diversas modalidades e graus de incidncia sinais de decodificao. (...) Sua decodificao ter a ver com a historicidade das convenes, espcie de contrato tcito varivel no tempo entre quem produz o filme e quem o v, sem o qual no se cumpririam as significaes segundo certos padres.19

    Como frisaram os autores, preciso atentar para o fato de que, por ser uma

    linguagem que no repete a racionalidade da escrita, o cinema no segue a mesma lgica

    que rege as linguagens do verbal e do oral. Dito isto, possvel perceber que, a partir de

    um filme, so reveladas outras coisas e de maneiras diferentes daquelas que so possveis

    de perceber atravs dos documentos escritos ou das fontes orais, por exemplo.

    Por sua vez, Graeme Turner vai incluir mais um ingrediente no desafio que

    percorrer os caminhos da anlise histrica dos filmes. Conforme o autor que percebe o

    cinema no apenas como entretenimento, narrativa e evento cultural, mas como uma

    prtica social para aqueles que o fazem e para o pblico, j que em suas narrativas e

    significados podemos identificar evidncias do modo como nossa cultura d sentido a si

    prpria20 os filmes tambm devem ser estudados em relao a outros filmes. Conforme

    Graeme Turner, existe uma intertextualidade entre as produes cinematogrficas; e essa

    intertextualidade vai influenciar no apenas na produo de cada obra, mas tambm como

    o filme ser compreendido pelo pblico. Essa intertextualidade o que nos permite incluir

    neste mesmo trabalho os filmes O Selvagem e Juventude Transviada, produzidos na

    dcada de 1950 dentro de um novo gnero surgido na poca (os filmes de adolescentes -

    teenpics), e Sem Destino, produzido j em outro contexto. Sem Destino aborda o

    tema da juventude dentro da contracultura e no da delinquncia juvenil, como o caso

    dos dois primeiros, mas, seria um erro negar que existe um elo (difcil de dimensionar,

    verdade) unindo estes trs filmes. Assim, desde que respeitadas as diferenas narrativas e

    de gnero e colocadas lado a lado as similaridades, possvel tentar perceber como as

    problemticas que j estavam presentes na sociedade que produziu e estava representada

    em O Selvagem e Juventude Transviada foram transformadas e ganharam novos

    sentidos em Sem Destino.

    19 CARDOSO, Ciro Flamarion Cardoso e MAUAD, Ana Maria. Histria e Imagem: Os Exemplos da Fotografia e do Cinema. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domnios da Histria: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997, p. 413. 20 TURNER, Graemer. Op. cit., p. 13.

  • 24

    Retomando a idia de intertextualidade de Graeme Turner, ele afirma que

    entendemos os filmes em termos de outros filmes, seu universo em termos de outros

    universos, para depois ir alm e ressaltar que os filmes so, portanto, produzidos e vistos

    dentro de um contexto social e cultural que inclui mais do que os textos de outros filmes. O

    cinema desempenha uma funo cultural, por meios de suas narrativas21, que vai alm do

    prazer da histria22. Como contexto social, o autor tambm inclui as construes a

    respeito do filme feitas pela mdia e as estratgias de publicidade adotadas para atrair o

    pblico at o cinema para assistir a obra cinematogrfica.

    A respeito das ideologias presentes nos filmes, Graeme Turner segue na mesma

    linha dos autores antes citados: no existe uma maneira nica de entender uma obra

    cinematogrfica, no sentido de que no existem contradies em cada obra, ou que os

    significados ideolgicos sejam apreendidos de modo igual entre todos os espectadores. O

    autor explica que a ideologia de um filme no assume a forma de declaraes ou reflexes

    diretas sobre a cultura. Ela se encontra na estrutura narrativa e nos discursos usados

    imagens, mitos, convenes e estilo visuais23. Para ele, o texto flmico um campo de

    batalha de posies concorrentes, do qual, a princpio, vence sempre a posio dominante.

    Porm, deste combate surgem fraturas, as quais expem o esforo que feito pelos

    produtores de um filme no sentido de se criar um consenso ideolgico.

    Um campo de batalha um termo prximo ao modo como Francis Vanoye e Anne

    Goliet-Lt vo se referir ao confronto que travado entre quem se prope a fazer a anlise

    flmica e a prpria obra cinematogrfica a ser estudada. Segundo estes autores, a anlise

    requer um grande esforo do analista, que deve rever o filme vrias vezes e examin-lo

    tecnicamente. Ao mesmo tempo, necessrio desmontar o filme, separando os

    elementos que o constituem. Isso, segundo Vanoye e Goliot-Lt, possibilita ao

    pesquisador o distanciamento necessrio para realizar um estudo com o rigor cientfico

    exigido. Separados os elementos, ento deve-se estabelecer os elos entre eles para

    compreender como eles se associam e se tornam cmplices para fazer surgir um todo

    significante: reconstruir o filme ou o fragmento. evidente que essa reconstruo no

    apresenta qualquer ponto em comum com a realizao concreta do filme. uma criao

    21 Para o autor, narrativa uma forma de dar sentidoao nosso mundo social e compartilhar esse sentido com os outros. Idem, Ibid, p. 73. 22 Idem, Ibid, p. 69. 23 Idem, Ibid, p. 146.

  • 25

    totalmente assumida pelo analista24. Ou seja, o processo de desconstruo, na prtica, se

    realiza no ato de descrever o filme, enquanto a reconstruo j se d a partir da

    interpretao que o pesquisador elabora sobre a obra cinematogrfica.

    Passando para a anlise e interpretao scio-histrica de um filme, Vanoye e

    Goliot-Lt asseguram que o pesquisador deve sempre ter em considerao o contexto de

    produo do mesmo. Outra premissa apontada por eles que todo filme sempre fala do

    presente, no importando se ele baseado em fatos histricos ou em devaneios futuristas,

    ou obviamente, quando trata da sua prpria poca em que produzido. Ou seja,

    independentemente do tema do filme, ele sempre o resultado imediato da sociedade no

    qual est inserido no momento exato de sua criao. Outra observao importante que:

    Em um filme, qualquer que seja seu projeto (...), a sociedade no propriamente mostrada, encenada. Em outras palavras, o filme opera escolhas, organiza elementos entre si, decupa no real e no imaginrio, constri um mundo possvel que mantm relaes complexas com o mundo real: pode ser em parte seu reflexo, mas tambm pode ser sua recusa (ocultando aspectos importantes do mundo real, idealizando, amplificando certos defeitos, propondo um contramundo etc. Reflexo ou recusa, o filme constitui um ponto de vista sobre este ou aquele aspecto do mundo que lhe contemporneo.25

    Ou seja, o analista deve ter presente que um filme no pode ser pensado como

    espelho da sociedade qual ele se refere. Outra armadilha que muitas vezes se coloca

    frente do pesquisador buscar reconhecer uma funo especfica para o filme. A mais

    comum, conforme os autores, acreditar, por exemplo, que existe uma oposio entre o

    filme de fico e o documentrio, sendo que o primeiro estaria no mbito da fantasia,

    enquanto que o segundo estaria mais prximo da realidade, o que no verdade. Tanto um

    quanto outro podem ser construdos de modo a criar um efeito de realidade como,

    tambm, dependendo dos objetivos de quem o produz, distanciar-se dos referenciais mais

    realistas. Marc Ferro reconhece no prprio filme de fico certos elementos da realidade

    que se tornam importantes para a compreenso da obra cinematogrfica.

    Acreditamos que todo esse debate nos d base para empreender a anlise flmica

    proposta neste trabalho. Porm, antes de seguir, necessrio revelar de que forma ele est

    estruturado. No captulo 1, denominado Ascenso, crises e a juvenilizao do cinema

    24 GOLIOT-LT, Anne e VANOYE, Francis. Ensaio Sobre a Anlise Flmica. Trad. De Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1994, p. 15. 25 Idem, Ibid, p. 56.

  • 26

    norte-americano, iremos discorrer a respeito da indstria cinematogrfica de Hollywood

    at pouco depois da primeira metade do sculo XX. Daremos nfase, principalmente, ao

    processo que tornou o cinema norte-americano o mais popular do mundo sem, no entanto,

    esquecer das fases difceis que acabaram por resultar em estratgias para garantir que as

    pessoas continuassem frequentando as salas de cinema em momentos de crise de

    Hollywood. Alis, foi dentro de um contexto de crise da indstria de cinema dos Estados

    Unidos que ocorreu aquilo que ficou conhecido como a juvenilizao do cinema, que

    tambm uma questo abordada nesta parte do trabalho. Ganha destaque ainda no

    primeiro captulo a discusso sobre o fenmeno da juventude ocorrido na dcada de 1950

    nos Estados Unidos.

    No captulo 2, intitulado O Selvagem e Juventude Transviada: rebeldes em cena,

    pretendemos, atravs das anlises dos filmes O Selvagem e Juventude Transviada,

    promover a discusso sobre as representaes que eles faziam da sociedade na poca, bem

    como, a partir deles, estabelecer relaes com e sobre o universo dos adolescentes-

    problema do perodo, abordando questes como o conflito de geraes, o confronto contra

    a autoridade, a moda, o papel da mulher, sexualidade e as gangues. Cada filme ser

    discutido primeiramente em separado para, ento, realizar uma anlise conjunta das

    problemticas percebidas nas duas obras.

    No terceiro captulo, denominado Sem Destino: oposies e contradies de uma

    sociedade em processo de mudana, a dissertao traz a discusso sobre o filme Sem

    Destino. Para tanto, apresentamos algumas questes relativas contracultura dos anos

    1960, abordando alguns de seus principais elementos. A partir de ento, ser realizada a

    discusso especfica sobre o filme, com nfase sobre as questes relativas ao nomadismo,

    oposio entre campo e cidade, aos comportamentos considerados como desviantes, em

    especial, o consumo de drogas, que est bastante presente em Sem Destino.

  • CAPTULO 1:

    Ascenso, crises e a juvenilizao do cinema norte-americano

    Elemento de riqueza conteudstica, o tema de jovens sem f e sem causa iria, por ser novo, prenhe, necessitando de alvio, provocar novas experincias de linguagem conematogrfica.

    Glauber Rocha26

    Os filmes O Selvagem e Juventude Transviada foram rodados no apenas no

    momento em que o fenmeno da adolescncia/juventude ganhava forma nos Estados

    Unidos, mas tambm em um perodo de grande crise dos estdios de Hollywood.

    Considerados precursores de um novo gnero do cinema norte-americano os filmes sobre

    e para adolescentes (teenpics) -, estas obras, entre muitas outras coisas, eram tambm parte

    de um esforo da indstria cinematogrfica dos Estados Unidos para recuperar o prestgio

    vivido at meados da dcada de 1940, quando os filmes hollywoodianos atingiram uma

    popularidade semelhante quela alcanada logo aps o fim da Primeira Guerra Mundial.

    Embora no estivesse ameaada pelas indstrias de filmes de outros pases, Hollywood

    teve que encontrar meios para garantir a frequncia do pblico norte-americano nas salas

    de cinema em razo da concorrncia, principalmente, da televiso, a grande novidade do

    comeo dos anos 1950.

    1.1 Hollywood na primeira metade do sculo XX

    Os filmes norte-americanos tiveram grande repercusso j no incio do sculo XX,

    quando Hollywood ainda estava dando seus primeiros passos para se tornar o grande plo

    mundial do cinema. possvel afirmar que isso se deu basicamente por causa de dois

    aspectos: um deles o modelo narrativo desenvolvido pelos estdios de cinema dos

    26 ROCHA, Glauber. O Sculo do Cinema. Rio de Janeiro: Alhambra, 1985, p. 44.

  • 28

    Estados Unidos e o outro so acontecimentos que extrapolaram o universo do cinema, mas

    que acabaram beneficiando Hollywood de forma significativa.

    Vejamos. Desde seus primeiros anos, os estdios de Hollywood desenvolveram um

    modelo de produzir filmes que, no exagero afirmar, se tornou o mais bem sucedido do

    cinema e hoje chamado de clssico27. Entre as suas principais caractersticas esto a

    clareza, a homogeneidade, a linearidade do tempo e dos fatos, a coerncia narrativa e o

    grande impacto dramtico. A histria se desenvolve sempre a partir de um protagonista

    sendo que cada personagem desempenha um papel especfico (o bom, o mau, o bonito, o

    feio, o heri, o vilo, etc.). No cinema clssico norte-americano, conforme Goliot-Lt e

    Vanoye, tudo parece se desenvolver sem choques, em que os planos e as seqncias se

    encadeiam aparentemente com toda a lgica, em que a histria parece se contar por conta

    prpria28.

    Outra caracterstica do cinema clssico de Hollywood a elaborao de um mtodo

    de interpretao dos atores bem distante dos gestos mais exagerados, por exemplo, da

    representao teatral; a preferncia pela realizao de filmagens em estdio; e por fim a

    escolha de histrias de fcil identificao junto ao pblico e de popularidade garantida.

    Tudo neste cinema caminha em direo ao controle total da realidade criada pelas

    imagens tudo composto, cronometrado e previsto. Ao mesmo tempo, tudo aponta para a

    invisibilidade dos meios de produo desta realidade. Em todos os nveis, a palavra de

    ordem parecer verdadeiro; montar um sistema de representao que procura anular a

    sua presena como trabalho de representao29, afirma Ismail Xavier.

    Da mesma forma, Edgar Morin apontou como caractersticas do cinema clssico o

    domnio do ritmo da ao, a acelerao do tempo, a cmera lenta, os diferentes planos (em

    especial o close-up), o uso de luzes e sombras e a prpria msica que, assim como todos

    27 Grande parte dos crditos a esse modo clssico de se fazer filmes dada a D. W. Griffith, em especial ao seu filme O Nascimento de uma Nao (The Birth of a Nation), de 1915, o qual reunia em uma nica obra praticamente todas as inovaes apresentadas por ele, e tambm por outros diretores, ao longo de quase uma dcada dirigindo centenas de filmes. Nessa, que considerada a sua obra-prima, estavam presentes os close-ups, tomadas diversas para uma mesma cena, o desenrolar de histrias paralelas dentro um mesmo filme, o uso de cmeras em movimento, exuberante composio e ateno aos detalhes do cenrio, maior controle no uso da iluminao, entre outros. Para Robert Sklar, D.W. Griffith, diferena dos predecessores, compreendeu que cada nova tcnica no era apenas um truque para chamar a ateno, mas um sinal, um modo especial de comunicao, um elo na cadeia do discurso cinematogrfico. Foi o primeiro a forj-las num estilo completo e original de movimentao de imagens. SKLAR, Robert. Op. cit., p. 70. 28 GOLIOT-LT, Anne e VANOYE, Francis. Op. cit., p. 28. 29 XAVIER, Ismail. O discurso cinematogrfico: a opacidade e a transparncia. 3 ed. So Paulo: Paz e Terra, 2005, p. 41.

  • 29

    esses outros elementos, tm como objetivo prender a ateno do espectador e fazer com

    que ele tenha uma participao afetiva com o filme. Afirmou Edgar Morin que:

    De fato, a cmera, quer pelos seus movimentos prprios, quer pelos movimentos dos sucessivos planos, pode permitir-se o nunca perder de vista, enquadrar sempre e pr em destaque o elemento emocionante. Pode sempre focar em funo da mais alta intensidade. As suas circunvulaes, as suas mltiplas preenses (diferentes ngulos de vises) em volta do sujeito, realizam, por outro lado, uma autntica envolvncia afetiva.30

    Essencial ainda dentro da proposta naturalista do cinema clssico de Hollywood so

    as regras de continuidade, ou seja, os cuidados que devem ser tomados para evitar que a

    evoluo da trama fique comprometida por erros de montagem ou que se rompa uma certa

    linearidade narrativa, o que pode trazer empecilhos para a assimilao da obra pelo

    pblico. Esse maior refinamento na narrativa flmica, hoje considerada clssica de

    Hollywood, colaborou significativamente para que o cinema norte-americano se tornasse,

    aps a Primeira Guerra Mundial, o mais visto em todo o mundo. At ento, a Frana era a

    maior produtora de filmes, sendo que foi nesse pas onde se comeou a explorar

    comercialmente o cinema. Porm, com o conflito armado que se desenrolou sobre a

    Europa, os recursos e, tambm, a produo de filmes diminuram drasticamente em pases

    como a Itlia, a Alemanha, a Gr-Bretanha e a prpria Frana, todos grandes produtores de

    cinema. Com isso, o cinema dos Estados Unidos pde no somente saborear a maior fatia

    do mercado europeu, como avanar tambm sobre outros pases, como os da Amrica

    Latina31.

    Essa nova realidade propiciou ganhos financeiros gigantescos s produtoras de

    cinema, que no apenas conseguiam cobrir os custos e obter lucros com a exibio de

    filmes nos Estados Unidos, como multiplicavam os rendimentos com as bilheterias no

    exterior. Isso ainda garantiu outra mudana na forma de se produzir cinema: j que no

    havia mais outras indstrias nacionais significativas concorrendo dentro dos Estados

    Unidos ou em outros pases, a motivao dos produtores era no sentido de se produzirem

    filmes que agradassem em cheio o pblico norte-americano.

    30 MORIN, Op. cit., p.158. 31 Essa expanso pode ser medida pelo total de metros de filmes exportados pelos estdios dos Estados Unidos. Se em 1915 o total era de 10,5 milhes de metros, no ano seguinte essa soma atingiu a gigantesca marca de 47,7 milhes de metros. Com esse avano extraordinrio, at o final da Primeira Guerra Mundial, praticamente 85% dos filmes assistidos em todo o mundo eram produes norte-americanas. TURNER, Graeme. Op. cit., p. 24.

  • 30

    Esse perodo de forte crescimento da indstria cinematogrfica perdurou at os

    primeiros anos da dcada de 1920. Isso porque as indstrias cinematogrficas de outros

    pases (que comeavam a se reerguer dos estragos da Primeira Guerra Mundial) passaram a

    produzir novamente filmes em quantidades razoveis, alm de que o cinema enquanto

    opo de lazer passou tambm a sofrer concorrncia com o rdio e os automveis, por

    exemplo, novidades que passaram a disputar com os filmes o interesse das pessoas para

    passarem as horas disponveis para o entretenimento. Mesmo assim, naquele perodo os

    Estados Unidos mantiveram a supremacia na produo de filmes. Uma das novidades para

    garantir a frequncia do pblico foi um refinamento maior do star system e da diviso dos

    filmes em gneros (como o western, filmes de gansters, musicais, comdias, etc.). O star

    system e o gnero, inclusive, so o resultado direto de um modelo de produo industrial

    de cinema ferreamente organizado adotado por Hollywood a partir da dcada de 1920.

    Esse fenmeno ficou conhecido como studio system, no qual as companhias

    cinematogrficas assumiam o controle de todo o processo que envolvia o cinema at ele

    chegar ao pblico, ou seja: a produo, distribuio e exibio dos filmes. Um dos efeitos

    dessa integrao de todos os setores foi a expanso do capital dessas companhias

    cinematogrficas, que atraram investimentos de bancos e companhias de comunicao,

    entre outros.

    Outra grande inovao para manter o interesse do pblico estadunidense pelo

    cinema foi introduzida pela Warner. Em 1927, ela lanou o primeiro longametragem

    sonorizado, com as falas e msicas saindo diretamente da pelcula, ao invs de uso das

    legendas e de msicas tocadas por orquestras nas prprias salas de projeo, como era

    comum at ento no cinema mudo. Ao usar esta inovao no filme O Cantor de Jazz

    (The Jazz Singer, direo de Alan Croslan), a Warner conseguiu no apenas aumentar

    sua participao no mercado apresentando um novo produto que tornava o cinema ainda

    mais real, como tambm acabou contribuindo significativamente para consolidar o

    longa-metragem como a principal atrao cinematogrfica. Porm, se essa novidade foi

    recebida com euforia pela indstria de Hollywood, logo ela trouxe consigo um efeito

    colateral: a perda do mercado em pases onde no se falava a lngua inglesa, j que havia a

    necessidade da dublagem ou de legendas, o que desagradava parte desse pblico.

    Some-se a esse efeito colateral para a indstria de cinema dos Estados Unidos a

    crise de Wall Street, em 1929, e a depresso econmica que se seguiu. Segundo Graeme

    Turner, o pblico do cinema diminuiu at 30% no pas em 1932 e muitos estdios sofreram

  • 31

    interveno em razo das dvidas32. Essa situao de dificuldades se estendeu at o incio

    dos anos 1940, no s porque foi quando os norte-americanos haviam se recuperado

    economicamente, mas em grande parte porque a Europa novamente estava em conflito:

    acontecia a Segunda Guerra Mundial e, com isso, os pases europeus, que tinham outra vez

    uma indstria de filmes considervel, viram cair o nmero de suas produes

    cinematogrficas.33

    A retomada do crescimento de Hollywood atingiu o auge em 1946, perodo em que

    os cinemas registraram o maior comparecimento de pblico em todos os tempos34.

    Contudo, esse perodo de ascenso do cinema hollywoodiano entraria em decadncia com

    uma srie de eventos que se seguiu em um curto espao de tempo. O primeiro duro golpe

    contra os grandes estdios aconteceu em 1948, quando a Corte Suprema dos Estados

    Unidos decidiu pelo fim da integrao da atividade cinematogrfica. Ou seja, os estdios

    no poderiam mais manter o controle sobre o trip produo-distribuio-exibio.

    Como alternativa, os grandes estdios optaram por manter o controle sobre as duas

    primeiras etapas do processo, reconhecendo o papel fundamental que para o sucesso de

    um filme o acesso ao maior nmero possvel de salas de cinema, o que praticamente

    garantido com o processo de distribuio.

    Porm, o maior ataque desferido contra Hollywood certamente foi a popularizao

    da televiso, que se transformou em verdadeira febre de consumo nos Estados Unidos no

    final dos anos 1940 e incio de 1950 e, consequentemente, afastou uma grande parte do

    habitual pblico das salas de cinema. Em 1953, por exemplo, o total de espectadores que

    frequentou as salas de cinema nos Estados Unidos foi cerca da metade daquele de 1946.

    Por outro lado, em 1953, 46,2% dos lares norte-americanos j contavam com aparelhos de

    32 TURNER, Graeme. Op. cit., p. 26. 33 Ruy Castro oferece uma viso perfeita e bem-humorada de como Hollywood estava se fortalecendo j nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial: Entre 1939 e 1942, por exemplo, o cinema americano ia to bem de sade que, se fosse melhor, seria pecado. Naquele perodo, havia mais cinemas nos Estados Unidos do que bancos. Hollywood, com seus 400 filmes por ano, movimentava sozinha mais dinheiro do que todas as cadeias de supermercados juntas. Ia-se tanto ao cinema que, para muita gente, a dieta bsica consistia das pipocas que comia durante os filmes. Cinqenta milhes de americanos viam pelo menos um filme por semana, todas as semanas, deixando quase 700 milhes de dlares por ano nas bilheterias. Com este dinheiro, a indstria do cinema punha uma galinha em cada panela das mais de 30 mil pessoas empregadas diretamente nos cinco ou seis grandes estdios. Felizmente, ainda sobrava algum para pagar o salrio anual do magnata da MGM, Louis B. Mayer: 1 milho de dlares. - CASTRO, Ruy. Hollywood. In: LABAKI, Amir (Org.). Folha Conta 100 Anos de Cinema. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995, p. 81 e 82. 34 Conforme Robert Sklar, estatsticas da poca revelam que 75% do pblico potencial (ou seja, todas as pessoas que tivessem condies de comprar uma entrada de cinema) frequentavam ao menos uma vez por semana alguma sala de cinema. In: SKLAR, Robert. Op. cit., p. 313.

  • 32

    televiso.35 Alm da perda de pblico, o sucesso da televiso tambm tinha outro efeito

    negativo para os estdios de cinema, j que um enorme volume de recursos financeiros,

    que antes eram investidos na produo de filmes, passou a ser direcionado para as

    emissoras de televiso. De acordo com Thomas Doherty, em 1947 as emissoras de

    televiso e afiliadas tiveram um rendimento de US$ 1,9 milho nos Estados Unidos. Uma

    dcada depois, este montante havia atingido a gigantesca marca de US$ 943,2 milhes.36

    O desafio para a indstria do cinema era descobrir como convencer as pessoas a

    pagarem pelo bilhete de cinema, j que em casa elas poderiam assistir a muitas atraes da

    televiso praticamente de graa. Como alternativa para concorrer com a TV, Hollywood

    percorreu alguns caminhos. Um deles foi produzir filmes diretamente para as prprias

    emissoras de televiso, o que desde ento se mostrou uma opo bastante lucrativa para os

    estdios de cinema. Um outro foi apostar em inovaes tcnicas, que iam desde a

    ampliao do tamanho da tela onde o filme era projetado (sendo que entre as vrias

    inovaes, apenas o Cinemascope se mostrou vivel e conquistou a simpatia do pblico),

    passando por filmes em 3-D (que exigiam o uso de culos especiais, idia logo

    abandonada) e o uso mais frequente do cinema em cores, tcnica j praticamente dominada

    durante os anos de 1930 e 1940 (mas, naquela poca, praticamente s utilizado para passar

    ao espectador a representao de sonhos ou de momentos mgicos em determinadas cenas

    de um filme). Contudo, ao contrrio do que se imaginava, o filme em cores no causou o

    mesmo efeito positivo para a indstria cinematogrfica do que aquele provocado pela

    incluso do som no final dos anos 1920. O cinema em cores somente se consolidou como o

    padro para a produo de longas-metragens quando as prprias imagens coloridas foram

    padronizadas pela televiso.

    Mas, no foi apenas tecnicamente que a indstria cinematogrfica norte-americana

    reagiu televiso. Os prprios filmes mudaram na tentativa de proporcionar uma diverso

    muito mais espetacular, em diversos sentidos. Conforme Thomas Doherty, the nature of

    television its physical shape, episodic format, and family-oriented largely determined

    the nature of American motion pictures in the 1950s37. Com um oramento mais enxuto,

    j que as receitas com a bilheteria no paravam de cair, os grandes estdios resolveram

    investir mais dinheiro em um nmero menor de filmes. Passou-se a privilegiar para a 35 Idem, Ibid, p. 316. 36 DOHERTY, Thomas. Teenagers and Teenpics: The Juvenilization of American Movies in the 1950s. Philadelphia: Temple University Press, 2002, p. 19. 37 Idem, Ibid, p. 20. A natureza da televiso sua forma fsica, formatao em episdios, e orientao familiar determinaram profundamente a natureza dos filmes americanos nos anos 1950. (Traduo livre)

  • 33

    filmagem roteiros que tradicionalmente tivessem maior apelo popular, ou seja, os filmes

    at hoje conhecidos como blockbusters. Se os recursos aplicados eram gigantes, os temas

    dessas produes tambm eram grandiosos, com nfase em famosos acontecimentos

    histricos ou episdios bblicos, sendo exemplos dessas produes ttulos como Os Dez

    Mandamentos (The Ten Commandments, direo de Cecil. B. DeMille, 1956) e Ben-

    Hur (Ben-Hur, direo de William Wyler, 1959). Nesses filmes picos, tampouco se

    economizava nos efeitos especiais.

    Outra oportunidade encontrada por Hollywood foi ousar mais em diversos filmes e,

    claro, a sensualidade e a sexualidade passaram a aparecer de forma um pouco mais

    explcita para os padres daquela dcada. Desde 1934, os estdios dos Estados Unidos

    controlavam suas obras a partir do que era estabelecido pelo Cdigo de Produo. Este

    documento, criado pela entidade Motion Pictures Producers and Distributors of Amrica,

    estabelecia quais assuntos eram tabu e de que forma eles deveriam ser tratados, se que

    poderiam aparecer nos filmes. Tambm orientava os diretores e atores sobre o que podia e

    o que no podia ser mostrado ou dito. Assim, uma caracterstica dos filmes produzidos at

    ento era o puritanismo ou o recato ao abordar certos temas. A primeira obra que desafiou

    o Cdigo de Produo foi Ingnua At Certo Ponto (The Moon Is Blue, direo de

    Otto Preminger, 1953). O diretor recusou-se a retirar a palavra virgem do filme, que foi

    lanado pela United Artists sem a autorizao dos censores. Diante da polmica, vrias

    outras produes seguiram explorando esta nova possibilidade. Sem ter mais como evitar

    os temas tabus e as cenas mais picantes, os responsveis pelo Cdigo de Produo

    acabaram revisando o documento, at mesmo porque muitos filmes europeus que foram

    exibidos nos Estados Unidos na poca, como E Deus Fez a Mulher (Et Dieu... Crea La

    Femme, direo de Roger Vadim, 1956), j eram bem mais avanados nesse sentido e se

    tornaram uma concorrncia forte para as produes norte-americanas.

    Mas, a histria das mudanas promovidas por Hollywood no estaria completa sem

    um outro componente fundamental. Alm das mudanas j citadas, uma outra alternativa

    incentivada pela indstria de filmes estadunidense para garantir um nmero significativo

    de espectadores nas salas de cinema foi intensificar a segmentao do pblico atravs da

    produo de filmes para determinadas faixas etrias. Essa transformao foi fundamental

    para a indstria cinematogrfica norte-americana e acompanhou uma tendncia

    comportamental.

  • 34

    Desde o incio do cinema nos Estados Unidos at pouco depois da Segunda Guerra

    Mundial, os filmes eram feitos para toda a famlia, ou seja, deveriam agradar pais, filhos e

    avs da mesma forma. Porm, com a chegada da TV, ocorreu que grande parte das pessoas

    adultas passou a utilizar este aparelho como um dos principais meios de entretenimento,

    enquanto que para o pblico adolescente e jovem, o ato de ir ao cinema continuava a ser

    uma atividade de lazer e interao social bastante valorizada. Dessa maneira, bvio que

    as produtoras de cinema focaram muito de sua ateno nos jovens, criando inmeros filmes

    em que aventuras, doces romances, fico cientfica, o terror, o rock and roll e a rebeldia

    geralmente eram os fios condutores das histrias. Tal gnero ficou marcado como filmes

    de adolescentes (teenpictures, ou sua abreviatura em ingls, teenpics) e o seu surgimento

    est tambm ligado a um fenmeno conhecido como a juvenilizao do cinema. 1.2 Juvenilizao do cinema

    As produes que surgiram mais intensamente para o pblico jovem a partir dos

    anos 1950 tinham como caracterstica comum, com raras excees, o baixo oramento.

    Uma das principais razes que os estdios j haviam percebido que, para retirar os

    adultos da frente da televiso e incentiv-los a ir at o cinema precisavam realizar

    superprodues. Contudo, ao mesmo tempo haviam notado que o pblico adolescente e

    jovem continuava frequentando as salas de exibio como um excelente programa de

    entretenimento. Para tanto, bastava apresentar filmes atrativos para esse pblico, que

    falassem sobre o seu universo ou que apostassem em temas de forte apelo, muitas vezes

    sensacionalistas. Assim, nascia um novo gnero: o filme para adolescentes.

    Os gneros, de uma forma geral, tm um papel importante tanto para o pblico

    como para os produtores de filmes. Antnio Costa entende que a classificao dos filmes

    em funo do gnero a que pertencem um aspecto fundamental da instituio

    cinematogrfica, pois, orienta claramente o espectador quanto ambientao, estilo e,

    dentro de certos limites, ideologia38. Como bem observou Edward Buscombe, um filme

    de gnero depende de uma combinao de novidade e familiaridade. As convenes de

    gnero so conhecidas e reconhecidas pelo pblico, e tal reconhecimento j , por si s, um

    38 COSTA, Antnio. Op. cit., p. 93 e 94.

    MaryRealce

    MaryRealce

  • 35

    prazer esttico39. Ou seja, para o pblico, a classificao de um filme como um western,

    por exemplo, lhe d pistas sobre que tipo de histria ele ver no cinema ao comprar o

    bilhete de entrada. Isso porque, por exemplo, um filme sobre o Velho Oeste deve, a

    princpio, contar com conflitos entre os brancos e ndios, ou o desafio do homem diante da

    natureza, o duelo entre o mocinho e o bandido, e da por diante, isso sem mencionar os

    cenrios quase padres dos westerns (montanhas, desertos, o saloon, o trem, entre outros).

    J aos diretores, roteiristas, cinegrafistas, enfim, aos produtores, essa srie de convenes,

    quando adotada, quase uma garantia de que o filme ir despertar o interesse das pessoas

    que gostam desse gnero, estando a partir da o sucesso ou o fracasso da obra dependendo

    de como o todo ou parte desses elementos sero costurados na narrativa flmica, alm,

    claro, de outros pontos que formam todo o processo cinematogrfico, como distribuio,

    publicidade e atores envolvidos.

    Graeme Turner, por sua vez, contribui tambm com essa discusso, afirmando que

    os estdios de cinema precisam encontrar o equilbrio exato entre as convenes de cada

    gnero e a originalidade/criatividade para garantir o sucesso de um filme:

    fcil fazer com que o gnero soe como uma ameaa determinista criatividade. verdade que todos os meios de comunicao de massa, no apenas o cinema, tm de lidar com o familiar e convencional mais do que, digamos, a pintura e a poesia. Nas artes populares, a percepo individual no tem o lugar privilegiado de que desfruta nas formas mais elitistas, como a literatura. Em vez disso, o prazer vem do familiar, do reconhecimento de convenes, da repetio e reafirmao. H, no entanto, inovao e originalidade nos filmes de gnero, e os melhores exemplos podem atingir um equilbrio muito complexo e delicado entre o familiar e o original, a repetio e a inovao, a previsibilidade e a imprevisibilidade. Os produtores de filmes populares sabem que cada filme de gnero tem de apresentar duas coisas aparentemente conflitantes: confirmar as expectativas existentes do gnero e alter-las um pouco. a variao da expectativa, a inovao em como um roteiro familiar representado, que oferece ao pblico o prazer do reconhecimento do familiar, bem como a emoo do novo. Os gneros, portanto, so dinmicos. Eles mudam.40

    Isso, de fato, perceptvel nos filmes de adolescentes. Entre as incontveis obras

    que foram rodadas na poca, so poucas as que at hoje so lembradas (como o caso de

    O Selvagem e Juventude Transviada). E, se assim o so, porque foram inovadoras na 39 BUSCOMBE, Edward. A idia de gnero no cinema americano. In: RAMOS, Ferno Pessoa (Org.). Teoria Contempornea do Cinema: documentrio e narratividade ficcional. Volume II. So Paulo: Editora Senac, 2005, p. 315. 40 TURNER, Graeme. Op. cit. p. 89.

  • 36

    formatao daquele gnero, ao mesmo tempo em que conseguiram ser criativas em meio a

    srie de convenes relativas ao gnero que estava nascendo. Contudo, fica difcil

    classificar todos os elementos que compem os filmes para adolescentes, j que no h

    uma homogeneidade de temas ou de estilo, mas, sim diversas divises. Assim, pode-se

    dizer que os teenpics so o resultado da dinmica de outros gneros, pois utilizam

    elementos do cinema clssico e de gneros como de fico cientfica, terror, melodrama,

    ao, entre outros, fazendo uma releitura destes de tal forma que pudessem cativar e

    atender as expectativas do pblico jovem. Isso fica evidente nos seus subgneros, sendo os

    principais deles os filmes de rock n roll, de terror, sobre delinquncia juvenil e tambm o

    inverso deste ltimo, os filmes que podemos chamar de politicamente corretos ou que no

    fossem polmicos ao abordar temas ligados ao universo jovem (os clean teenpics, como

    so chamados nos Estados Unidos).

    De acordo com Thomas Doherty41, os filmes que mais obtiveram sucesso junto ao

    pblico adolescente e mais jovem na dcada de 1950 nos Estados Unidos foram os de

    terror ou de fico cientfica, ou at mesmo os dois gneros no mesmo filme. Segundo o

    autor, filmes de terror sempre atraram um bom pblico aos cinemas. Porm, este tipo de

    filme havia praticamente sumido das telas aps a Segunda Guerra Mundial, sendo que a

    causa disso ele especula que talvez tenha sido os prprios horrores do conflito blico, que

    seriam muito mais chocantes do que qualquer histria de monstro ou fantasma poderia ser.

    No entanto, passados poucos anos aps a guerra, filmes de sucesso como Destino

    Lua (Destination Moon, direo de Irving Pichel, 1950), O Fim do Mundo (When

    Worlds Collide, direo de Rudolph Mat, 1951) e A Guerra dos Mundos (War of the

    Worlds, direo de Byron Haskin, 1953) obras que misturam horror e a curiosidade pelo

    espao sideral despertaram novamente o interesse por este tipo de produo. Estudiosos

    do cinema apontam dois motivos principais (que esto interligados) para o sucesso dessas

    histrias. A primeira era a prpria corrida espacial iniciada pelos Estados Unidos e pela

    Unio Sovitica. A outra era o medo de uma invaso comunista no pas norte-americano e

    de um grande conflito blico entre essas duas superpotncias nos primeiros anos da Guerra

    Fria. Nesse sentido, filmes como O Planeta Vermelho (Red Planet Mars, direo de

    Harry Horner, 1952), Invasores de Marte (Invaders from Mars, direo de William

    Cameron Menzies, 1953) e O Mundo em Perigo (Them!, direo de Gordon M.

    Douglas, 1954) tinham seus enredos inspirados na tenso surgida a partir da animosidade 41 DOHERTY, Thomas. Op. cit., p. 116.

    MaryRealce

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    MaryRealceHISTORIA DO CINEMA DE TERROR

  • 37

    entre Unio Sovitica e Estados Unidos e serviam como representao daquele momento

    de tenso poltica, social e militar. Ao mesmo tempo, filmes assim eram apoiados pelo

    prprio governo norte-americano que os percebia como uma boa propaganda

    anticomunista.

    Conforme Alexandre Busko Valim:

    Para o pblico, o aspecto mais assustador destes filmes no eram os monstros, canhes lasers, ou naves aliengenas, mas sim a proximidade e invisibilidade com que inimigos aliengenas poderiam atingir alvos estadunidenses. (...) Nos filmes de fico cientfica da dcada de 1950, os cenrios eram dominados por foras hostis que ansiavam por escravizar os estadunidenses. O imaginrio e a linguagem presentes nestes filmes representaram no somente os medos e anseios relacionados atmosfera da Guerra Fria, mas tambm reforaram a convico de que os EUA precisavam se defender de uma possvel invaso. Assim, as ansiedades estimuladas pela possibilidade de um conflito entre o mundo capitalista e o comunista foram fartamente expressadas por filmes de fico cientfica como The Man from the Planet X (1951), The War of the Worlds (1953) e Invaders From Mars (1953), onde o planeta Terra era repetidamente ameaado por invasores aliengenas que cruelmente procuravam por novos lugares para colonizar e destruir.42

    Apesar do sucesso desses filmes de fico cientfica entre o pblico mais jovem,

    tais obras praticamente ainda no apresentavam os jovens e o seu universo da poca como

    fios condutores das tramas. Filmes nesse sentido foram produzidos de modo mais intenso e

    em grande escala a partir da segunda metade dos anos 1950. Esse fenmeno esteve

    intimamente ligado ao aparecimento do rock n roll, gnero musical que surgiu naquele

    perodo e rapidamente transformou-se em um grande sucesso e passou a ser um smbolo

    identitrio para boa parte da juventude estadunidense da poca.

    O primeiro filme que tratava diretamente sobre o rock and roll foi Ao Balano das

    Horas (Rock Around The Clock, direo de Fred F. Sears, 1956). Ele contava a

    trajetria fictcia de Bill Halley & The Comets, autores e intrpretes da cano que dava

    nome ao longametragem. Filmado com baixo oramento (US$ 300 mil), ele faturou US$ 4

    milhes nas bilheterias norte-americanas. O impacto do filme foi to positivo para a

    indstria cinematogrfica que, a partir de ento, os grandes estdios de Hollywood tambm

    passaram a investir em filmes sobre rock and roll43. Conforme Thomas Doherty44, antes de

    42 VALIM, Alexandre Busko. Imagens Vigiadas: Uma Histria Social do Cinema no Alvorecer da Guerra Fria, 1945-1954. Tese (Doutorado em Histria) Universidade Federal Fluminense. Niteri: 2006, p. 60. 43 O impacto provocado pelo filme Rock Around The Clock no apenas atingiu positivamente as finanas de Hollywood, como tambm gerou polmica nos Estados Unidos e at mesmo fora do pas, como demonstra essa matria publicada pelo jornal brasileiro Folha da Tarde, em 02 de outubro de 1956: (...) O filme que

  • 38

    Rock Around The Clock os estdios de cinema no estavam totalmente cientes de que

    dirigir grande parte de suas produes diretamente para o pblico adolescente era um bom

    negcio. Mas, depois dele, os produtores e diretores tiveram certeza do enorme potencial

    que esse gnero de filme possua, desde que seguisse algumas regras bsicas de produo

    e de divulgao para atrair o interesse dos espectadores.

    A primeira grande produo foi Sabes Que Te Quero (The Girl Cant Help It!,

    direo de Frank Taschlin, 1956). No elenco, o filme apresentava alguns dos principais

    nomes do rock n roll da poca, como Little Richard, Gene Vincent e Eddie Cochran. Elvis

    Presley tambm foi parar nas telas de cinema. Mas, ao invs de rodar um filme sobre rock,

    a sua estria foi o faroeste Ama-me Com Ternura (Love Me Tender, direo de Robert

    D. Webb, 1956). Depois deste, Elvis Presley ainda filmou muitos outros, quase que em

    srie, entre eles A Mulher Que Amo (Loving You, direo de Hal Kanter, 1957) e O

    Prisioneiro do Rock (Jailhouse Rock, direo de Richard Thorpe, 1957).

    Filmes sobre rock nroll tinham como uma de suas caractersticas principais um

    roteiro bastante simples e muitas vezes repetitivo. Ainda assim, as histrias de namoros em

    lanchonetes, brigas entre gangues rivais e pegas disputados com carros velozes tinham tantas complicaes est causando - e at feridos graves, j provocou - chama-se realmente "Rock Around the Clock", o mesmo titulo da cano que serve de tema musical de "Sementes da Violencia", nascendo da a confuso. Trata-se de modesta produo da Columbia Pictures, dessas que entram no regime de produo de rotina. Ningum, nem a companhia nem os produtores do filme puderam imaginar que a pelicula tivesse uma carreira to rapida e se transformasse num recorde de bilheterias, tanto nos Estados Unidos como em outros paises, inclusive na Inglaterra. Embora no tenha custado nem sequer a quinta parte de, por exemplo, "A Um Passo da Eternidade", tambem na Columbia, j rendeu tanto como aquele filme, apesar de continuar inedito na maioria dos mercados no mundo. (...) Um jornalista ingls, que assistiu projeo da pelcula num cinema londrino, durante a qual ocorreram graves acont