Juventude Transviada No Cinema Hollywoodinano
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CRISTIANO MARLON VITECK
REBELDIA EM CENA:
A juventude transviada no cinema hollywoodiano nas dcadas de 1950 e 1960
MARECHAL CNDIDO RONDON
2009
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CRISTIANO MARLON VITECK
REBELDIA EM CENA:
A juventude transviada no cinema hollywoodiano nas dcadas de 1950 e 1960
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria, Poder e Prticas Sociais, da Universidade Estadual do Oeste do Paran UNIOESTE, para obteno do ttulo de mestre em Histria. Orientadora: Dra. Geni Rosa Duarte
MARECHAL CNDIDO RONDON
2009
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Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)
(Biblioteca da UNIOESTE Campus de Marechal Cndido Rondon PR., Brasil)
Viteck, Cristiano Marlon V838m Rebeldia em cena: a juventude transviada no cinema hollywoodiano nas dcadas de
1950 e 1960 / Cristiano Marlon Viteck. Marechal Cndido Rondon, 2009 153 p. Orientadora: Prof. Dr. Geni Rosa Duarte Dissertao (Mestrado em Histria) - Universidade Estadual do Oeste do Paran, Campus
de Marechal Cndido Rondon, 2009. 1. Juventude - Cinema Dcada 50. 2. Juventude - Cinema Dcada de 60 3.
Contracultura. I. Universidade Estadual do Oeste do Paran. II. Ttulo.
CDD 21.ed. 306 305.235
CIP-NBR 12899
Ficha catalogrfica elaborada por Marcia Elisa Sbaraini Leitzke CRB-9/539
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Aos meus pais, irmos e amigos.
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AGRADECIMENTOS
professora Dra. Geni Rosa Duarte, amiga sincera que acreditou e me orientou durante a dissertao. Ao professor Dr. Robson Laverdi, pela amizade, colaboraes e exemplo de vida. Aos professores Dr. Eduardo Morettin e Dr. Alexandre Fiza, pelo interesse e disposio em avaliar e contribuir com este trabalho. Ao Programa de Ps-Graduao em Histria, Poder e Prticas Sociais, da Universidade Estadual do Oeste do Paran UNIOESTE, em especial professora Dra. Mri Frotscher. Ao Ms. Gilson Backes, Ms. Jorge Pagliarini e Ms. Raphael Pagliarini, grandes amigos durante toda esta jornada. A Puky: vale tudo pra te ver sorrir. A todos os gnios loucos do cinema, literatura e msica. Renunciei poesia mil vezes e voltei para ela mil e uma Carl Solomon.
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As descobertas e verdades brilhantes, enlouquecedoras e hilariantes da juventude, aquelas que transformam os jovens em demnios visionrios e os fazem ao mesmo tempo infelizes e mais felizes que nunca as verdades mais
tarde abandonadas com a condescendncia da maturidade -, essas verdades voltam na verdadeira maturidade, a maturidade sendo nada menos que
sinceridade disciplinada essas verdades vo voltar para todos os homens verdadeiros, que faro delas no mais impetuosas bandeiras da juventude,
mas faro delas o que puderem (...).
Jack Kerouac em Dirios, sexta-feira, 27 de junho de 1947.
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RESUMO
O conceito de adolescente, que durante toda a primeira metade do sculo XX vinha sendo discutido nos Estados Unidos, ganhou em importncia a partir dos anos 1950, quando se percebeu definitivamente que a adolescncia se constitua em um amplo fenmeno cultural e social da sociedade estadunidense. Caracterstica marcante daquela gerao era a contestao a determinados valores da sociedade. Esse fenmeno ampliou-se ainda mais durante os anos 1960 com a contracultura, que teve a juventude rebelde como a principal protagonista de suas manifestaes. O cinema produzido por Hollywood tambm acabou influenciado e ao mesmo tempo influenciou essas manifestaes. Atravs de um processo denominado de juvenilizao do cinema, a indstria cinematogrfica dos Estados Unidos passou a produzir diversas obras que traziam as mais diversas representaes das questes ligadas ao tema da juventude durante a dcada de 1950, sendo que a rebeldia caracterstica de parte significativa daqueles jovens serviu de argumento para muitos desses filmes, o mesmo acontecendo durante a dcada de 1960 durante a contracultura. Atravs da anlise dos filmes O Selvagem (1954), Juventude Transviada (1955) e Easy Rider Sem Destino (1969), pretende-se compreender o imaginrio social e os comportamentos de determinados grupos de jovens das dcadas de 1950 e 1960, bem como destacar elementos importantes da sociedade estadunidense da poca que estavam sendo contestados. Palavras-chave: Histria, Cinema, Juventude, Contracultura.
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ABSTRACT
The concept of teenager, which during the first half of the 20th century was being discussed in the United States, received importance since 1950, when it was definitely noticed that the adolescence constituted a huge cultural and social phenomenon on the American society. A noticeable characteristic from that generation was the contest of some determined social values. This phenomenon got much bigger during the 1960s with the counter culture, that took the rebel youth as the main character of its manifestations. The cinema produced by Hollywood also influenced and at the same tame influenced these manifestations. Trough a process called juvenilization of the cinema, the cinematography industry of the United States started to produce a lot of work that were bringing a diversity of representations of the issues related to the youth theme during the 1950s, and the rebel characteristic of a significant part of those young people was used as an argument for a lot of these films, the same happened during the 1960s during the XXX. Trough the analyses of the movies The Wild One (1954), Rebel Without a Cause (1955) and Easy Rider (1969), we intend to comprehend the social imaginary and the behavior of some determined youth groups of the 1950s and 1960s, as well as highlight important elements of the American society from the times they were being contested. Key words: History, Cinema, Youth, Counter Culture.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Pster promocional norte-americano do filme Go, Johnny Go! ............... 49 Figura 2 Imagem filmada de cima sugere a autoridade do policial ........................... 87 Figura 3 Imagem denota a inferioridade dos motoqueiros diante da autoridade policial de Carbonville .................................................................................................................. 88 Figura 4 A imagem sugere a igualdade de foras entre Johnny e o xerife de Wrightsville .......................................................................................................................................... 89 Figura 5 Pster informa que o filme Juventude Transviada trata da delinquncia juvenil .......................................................................................................................................... 90 Figura 6 Membros do Black Rebels Motorcycle Club ................................................ 91 Figura 7 Os Ramones, na foto de capa do primeiro disco, de 1976 ............................ 92 Figura 8 Johnny se sente atrado pela inocente Kathie ............................................... 93 Figura 9 Johnny ignora Britches, a ousada personagem de O Selvagem ................ 94 Figura 10 Cena da discusso na escada revela a inverso da hierarquia no lar de Jim, que no aceita que o pai seja submisso me .................................................................. 95 Figura 11 Cartaz de O Selvagem destaca apenas a personagem de Marlon Brando 96 Figura 12 Cartaz de O Selvagem destaca somente as personagens masculinas ........ 97 Figura 13 Cartaz de O Selvagem mostra a mulher como objeto de desejo amoroso/sexual e explora a sua condio de submissa ao homem ................................... 98 Figura 14 Cartaz destaca apenas a personagem masculina principal ............................ 99 Figura 15 James Dean em evidncia. Personagem de Natalie Wood, Judy, aparece protegida por Jim .............................................................................................................. 100 Figura 16 Jim estende a sua mo a Judy, oferecendo proteo .................................... 101 Figura 17 Wyatt observa o relgio, antes de jog-lo fora no comeo da viagem ........ 137
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Figura 18 Enquanto o fazendeiro prega a ferradura, Billy e Wyatt, os caubis modernos, consertam o pneu da moto ................................................................................................ 138 Figura 19 Wyatt cheira cocana durante a transao da droga que tornou a viagem possvel ............................................................................................................................. 139 Figura 20 George prova o cigarro de maconha oferecido por Wyatt ........................... 140 Figura 21 Cartaz de Sem Destino vende uma imagem otimista de liberdade e de aventuras que podem ser vividas nas estradas .................................................................. 141 Figura 22 Cartaz explora o elemento trgico da jornada de Billy e Wyatt .................. 142 Figura 23 Cartaz que melhor define a trajetria dos dois hippies: uma jornada rumo felicidade, que nunca encontrada ................................................................................... 143
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SUMRIO CONSIDERAES INICIAIS .................................................................................. 11 a) Participao afetiva ................................................................................................... 13 b) Cinema: um agente histrico ..................................................................................... 18 CAPTULO 1: Ascenso, crises e a juvenilizao do cinema norte-americano .... 27 1.1 Hollywood na primeira metade do sculo XX ...................................................... 27 1.2 Juvenilizao do cinema ...................................................................................... 34 1.3 Dcada de 1950: anos dourados? ....................................................................... 40 CAPTULO 2: O Selvagem e Juventude Transviada: rebeldes em cena ............. 50 2.1 O Selvagem ......................................................................................................... 51 2.2 Juventude Transviada ......................................................................................... 61 2.3 Gangues, moda, a mulher e sexualidade ............................................................ 71 CAPTULO 3: Sem Destino: oposies e contradies de uma sociedade em processo de mudana ................................................................................................................. 102 3.1 A contracultura ..................................................................................................... 103 3.2 Sem Destino ........................................................................................................... 108 3.3 Vagabundos, campo e cidade ................................................................................ 114 3.4 Sociedades em confronto ....................................................................................... 128 CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................... 144 FICHAS TCNICAS DOS FILMES ......................................................................... 146 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...................................................................... 149 BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 152
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CONSIDERAES INICIAIS
A juventude desempenhou um papel de destaque nas manifestaes socioculturais e
at mesmo polticas que marcaram os Estados Unidos nas dcadas de 1950 e 1960.
Vivendo uma era dourada da economia, que teve um crescimento significativo aps a 2
Guerra Mundial, os adolescentes e jovens contavam com uma realidade pouco vivida at
ento por outras geraes de norte-americanos. Enquanto os adultos em geral da poca
tinham, muitos deles, enfrentado a recesso e a profunda crise em consequncia da quebra
da bolsa de 1929 e, posteriormente, durante a 2 Grande Guerra tambm vivido as
dificuldades de uma situao de conflito (em que praticamente toda a produo da nao
era voltada para os esforos de guerra e que qualquer consumo ou uso desnecessrio de
combustvel, borracha, metal e at leo de cozinha, entre outros, era considerado
desperdcio e quase uma ofensa ao pas), uma boa parte da juventude dos anos 1950 e 1960
pde desfrutar dos benefcios de uma economia em ascenso e de uma situao de
emprego pleno. Tudo isso, claro, tornava possvel consumir as novas necessidades
geradas pelo mercado, vido por abastecer esta grande parcela jovem da populao que
tinha dinheiro e estava disposta a gastar com uma srie de produtos, que iam desde
cosmticos, passando por discos, roupas e at mesmo carros, s para citar alguns.
Porm, no foi apenas pela grande capacidade de se entregar ao mercado que ficou
marcada aquela gerao de adolescentes e jovens dos Estados Unidos naquelas dcadas.
Junto a isso, aquela gerao tambm ganhou destaque pelas mudanas que promoveram ou
ajudaram a promover na sociedade, alterando costumes, tradies, substituindo antigos
valores por novos, os quais muitos deles esto em vigor at os dias de hoje. Vrias dessas
transformaes aconteceram na base da contestao, do questionamento e at mesmo
atravs de um comportamento rebelde, que para a maioria da gerao adulta e at mesmo
outros jovens poderia parecer sem sentido.
O cinema, produto direto da era industrial e que desde o incio funcionou dentro da
lgica do mercado (e diante de seu enorme apelo popular, outras tantas vezes tambm foi
utilizado com objetivos claramente polticos), evidentemente que no ficou alheio a essa
agitao que brotava da juventude norte-americana, ela prpria uma parcela importante do
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pblico que lotava as salas de cinema, em particular, e que era responsvel pelo consumo
em larga escala de outros tantos produtos, de uma forma geral.
Com a inteno de obter lucros a partir daquele at ento indito fenmeno da
juventude, mas tambm com o objetivo de dialogar com parte dessa gerao e, ao mesmo
tempo, tentar levar respostas aos adultos sobre as causas de tamanha agitao de uma parte
significativa dos jovens norte-americanos daquele perodo, a indstria cinematogrfica
produziu incontveis filmes abordando o conflito de geraes sob diferentes abordagens,
que iam desde o enaltecimento do rock n roll (o novo ritmo musical que se transformou na
trilha sonora dos jovens contestadores da poca), passando pelas novas formas de
comportamento, moda, costumes, entre outros. Assim, em meio a muitos filmes que foram
produzidos em srie visando extrair o mximo de ganhos daquela efervescncia cultural
e social, alguns ttulos se firmaram como referncia sobre o perodo, seja pelo impacto que
causaram na poca, pelo ineditismo dos assuntos presentes em suas histrias ou at mesmo
pelos pontos de vista inovadores a respeito de temas que j eram recorrentes em outros
filmes da poca.
Entre os ttulos que, ao longo das ltimas dcadas, no foram esquecidas pelo
pblico e, por outro lado, se transformaram em documentos riqussimos para a pesquisa
histrica, destacamos trs obras, que so os objetos de estudo deste trabalho: O
Selvagem (The Wild One, direo de Laslo Benedek, 1954), estrelado por Marlon Brando;
Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, direo de Nicholas Ray, 1955), que teve
como ator principal James Dean; e Sem Destino (Easy Rider, direo de Dennis Hopper,
1969), estrelado por Peter Fonda e Dennis Hopper. Temos por objetivo neste trabalho
perceber as representaes que estes filmes faziam das mudanas comportamentais e
culturais que estavam ocorrendo nos Estados Unidos; com que valores eles dialogavam e
que respostas ofereciam ou quais questionamentos faziam sobre as contestaes daquelas
geraes de jovens.Em comum, estes trs filmes levaram s telas de cinema representaes
da sociedade norte-americana da poca tendo como ponto de partida a juventude
contestadora. O Selvagem, Juventude Transviada e Sem Destino foram e so
apontados por geraes seguintes de jovens como referenciais, pois mesmo passados vrios
anos aps seus lanamentos, ainda assim so capazes de exercer fascnio e referenciar
comportamentos, de forma direta ou indireta. Isso possvel porque, conforme Umberto
Barbaro, toda obra de arte adquire no contacto com o pblico um valor social; isto ,
promove e determina certas correntes afetivas e ideolgicas, certos movimentos de opinio
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que jamais permanecem estreis, mas fermentam poderosamente a massa heterognea de
fatores sociais, como antecipaes ideais da Histria prxima1. E o cinema, talvez a
forma de arte de maior alcance popular do sculo XX, no escapa dessa lgica. Mas, por
que o cinema capaz de exercer tamanha fascinao sobre a maioria das pessoas? Que
sentimentos e emoes ele consegue provocar no pblico? At aonde vai a sua capacidade
para influenciar o comportamento das pessoas? So perguntas que nos ajudam a perceber
como, por exemplo, o cinema pde, entre outros elementos, tornar-se um catalisador do
fenmeno da juventude estadunidense na segunda metade do sculo passado.
a) Participao afetiva
Desde as primeiras exibies de filmes atravs dos cinematgrafos, no final do
sculo XIX, as pessoas nunca ficaram indiferentes s imagens em movimento que eram
apresentadas. No so poucos os relatos a respeito do espanto, desconfiana, terror, mas,
tambm, de entusiasmo e admirao dos espectadores que assistiam a essas projees. Isso
se dava pela novidade da prpria inveno. Se dcadas antes a fotografia j havia
possibilitado a apreenso da realidade atravs da criao de um duplo, agora essa
possibilidade havia se ampliado ainda mais com a reproduo de imagens em movimento
e, algumas dcadas mais tarde, tambm com o som e, enfim, o cinema em cores.
O ato de ir ao cinema j ele mesmo um catalisador de emoes. Se ainda hoje as
salas de cinema atraem as pessoas, que tm disposio no conforto de suas casas a
televiso, aparelhos de DVD e computadores conectados Internet, de se supor como o
ir ao cinema era um grande atrativo para o pblico de dcadas atrs, quando todo esse
aparato domstico no existia.
A sala de cinema um local de interao social. Apesar do silncio que impera
durante a projeo da pelcula, o ato de assistir a um filme no cinema geralmente feito na
companhia de amigos, namorados, familiares, o que j algo por si s instigante como
uma opo de divertimento. Mas, a prpria ida solitria ao cinema tambm um gesto que
traz prazer s pessoas. Isso porque, conforme afirmou Graeme Turner, o desejo de assistir
1 BARBARO, Umberto. Elementos da Esttica Cinematogrfica. Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira, 1965, p. 78.
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a um filme popular est relacionado com toda uma gama de outros desejos moda,
novidade, posse de cones ou signos altamente valorizados pelas outras pessoas do mesmo
grupo de interesses, de mesma condio social ou faixa etria2. Enfim, assistir a
determinado filme uma experincia bastante ampla que extrapola o prprio ato de ir ao
cinema.
Mas, uma vez assistindo a um filme, qual a funo do espectador? Ele se torna
algum passivo, alvo de mensagens ideolgicas propostas pelos produtores da obra? Ele
desempenha um papel crtico?
As anlises sobre o poder que os filmes exercem sobre as pessoas so bastante
diversas. Umberto Barbaro, por exemplo, afirmou que:
Tudo o que aparece na tela, absolutamente tudo, de fato escolhido e disposto de acordo com uma vontade inaltervel, que determina no apenas o que o espectador deve ver, mas, tambm e sobretudo, o modo como deve v-lo. (...) Vendo-a assim, em condies determinadas, obrigado, pelo menos durante a projeo do filme, a julgar os fatos e as personagens como o pretenderam os autores. (...) As impresses com que o filme bombardeia o subconsciente dos espectadores podem ser to violentas a ponto de eclodirem em aes sbitas irrefletidas. Assim, a grande massa dos freqentadores do cinema (muitas centenas de milhares diariamente) passa a constituir como que um imenso campo arado, no qual os cineastas lanam s mos-cheias sementes cujos frutos, imediatos ou distantes, no deixaro de se manifestar.3
Conforme Luiz Carlos Merten, quando uma pessoa entra em uma sala de cinema
que toda construda para que, uma vez dentro dela, o espectador rompa seus vnculos
com o mundo exterior e tenha a sensao de estar entrando em um outro universo ela se
integra e se entrega ao que acontece na grande tela4. Mas, uma vez dentro da sala escura, o
que faz com que cada espectador se sinta atrado pelo que est sendo projetado na tela?
Esta uma questo a que muitos tericos tm se dedicado a tentar responder.
No desconsideramos neste trabalho o posicionamento crtico que os espectadores
podem adotar enquanto assistem a um filme. Porm, enfatizamos que essa capacidade de
atentar para detalhes ou mensagens que esto um pouco abaixo da superfcie certamente
muda conforme o objetivo de cada pessoa. Um crtico ou um analista, por exemplo,
tender a ver o filme de uma forma muito mais racional do que emocional. J o contrrio
2 TURNER, Graeme. Cinema como prtica social. Trad. Mauro Silva. So Paulo: Summus, 1997, p. 16. 3 BARBARO, Umberto. Op. cit., p. 79-81. 4 MERTEN, Luiz Carlos. Cinema: Um Zapping de Lumiere a Tarantino. Porto Alegre: Artes e Ofcios, 1995, p. 08 e 09.
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provavelmente acontece com quem se dispe a assistir o mesmo filme por mero
entretenimento. E, com certeza, este o objetivo fundamental da grande maioria das
pessoas que frequentam as salas de cinema: deixar-se envolver pela histria, mergulhar na
narrativa e, uma vez absortas pelo filme, a tendncia a envolverem-se com a trama e
aceitar como naturais uma srie de mensagens ideolgicas (explcitas ou no) muito
maior. E o cinema, ao longo das dcadas, foi aprimorando cada vez mais as tcnicas para
seduzir o seu pblico.
Edgar Morin fala sobre a capacidade do cinema de instigar uma participao
afetiva do espectador com as histrias dos filmes, graas a um processo mental de
projees-identificaes. Na medida em que identificamos as imagens da tela com a
vida real, pomos as nossas projees-identificaes referentes vida real em movimento5,
escreveu o autor, lembrando que a prpria tcnica narrativa e o processo usual de obteno
das imagens utilizado pelo cinema so no sentido de criar uma iluso de realidade para o
filme. Mesmo sabendo de que se trata de uma obra de fico, o espectador ainda assim se
deixa absorver pelo enredo. Tambm de acordo com Edgar Morin, as prprias
caractersticas da sala de cinema conduzem entrega ao filme por parte do espectador. A
sala escura, o conforto relaxante das cadeiras e a prpria total incapacidade de influenciar
no desenvolvimento da histria acabam por deixar o pblico em uma atitude passiva.
Edgar Morin completa:
A ausncia ou o atrofiamento da participao motriz, prtica ou ativa (...) est estreitamente ligada participao psquica ou afetiva. No podendo exprimir-se por atos, a participao do espectador interioriza-se. (...) A ausncia de participao prtica determina portanto uma participao afetiva intensa: operam-se verdadeiras transferncias entre a alma do espectador e o espetculo da tela. Correlativamente, a passividade, a impotncia do espectador, colocam-no em situao regressiva. O espetculo serve de ilustrao a uma lei antropolgica geral: todos ns nos tornamos sentimentais, sensveis e lacrimejantes logo que nos vemos privados dos nossos meios de ao.6
Mas, a participao afetiva no se deve apenas ao ambiente da sala de cinema ou
unicamente histria contada atravs do filme. Cada espectador tende a identificar-se com
as personagens da obra, em especial com os heris. Essa identificao sempre mais
intensa quanto mais o espectador considerar os aspectos fsicos e morais da personagem 5 MORIN, Edgar. A Alma do Cinema. In: XAVIER, Ismail (org.). A Experincia do Cinema. 2 ed. Rio de Janeiro: Edies Graal, Embrafilme, 1991, p. 151. 6 Idem, Ibid., p. 154.
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semelhantes aos seus. Edgar Morin, ainda analisando os processos de projeo-
identificao, avalia que outro fator que atua neste sentido a prpria relao que os
espectadores possuem com as estrelas de cinema. Acontecimentos da vida pblica do ator
(trajetrias e estilos de vida, gostos, opinies, etc.) tambm podem deflagrar uma maior
participao afetiva do espectador na hora de assistir a um filme.
Para Robert Sklar, j na poca dos primeiros filmes do sculo XX os astros de
cinema tocavam a psique humana e o pblico deixava-se absorver pelas histrias que eram
projetadas na grande tela e, ento, admitidos intimidade da vida do filme, os cinemeiros
queriam que suas fantasias se prolongassem, intactas, na vida real. A vida dos astros e
estrelas do cinema tornaram-se smbolos to importantes para ser manipulados quantos
suas imagens cinematogrficas7. O autor lembra que nas dcadas de 1910 e 1920,
diversos filmes de Hollywood foram alvos de crticas de setores conservadores da
sociedade, que se mostravam preocupados com os efeitos que cenas consideradas
imprprias poderiam causar sobre o pblico. Ele recorda ainda que as notcias veiculadas
na imprensa, na qual revelavam as grandes festas que eram promovidas pelas primeiras
grandes estrelas de cinema (muitas vezes regadas a sexo, bebidas e drogas) tambm
acabavam atraindo o interesse do pblico para a vida dos artistas. Tamanha era a crena
nesse poder de influncia que muitos daqueles que criticavam o cinema como sendo imoral
acabaram por voltar seus ataques contra a vida particular dos astros e estrelas. Chegou-se
at a acreditar que os freqentadores de cinema respondiam menos a histrias e a cenas
do que transparecia nas imagens projetadas; os artistas, em outras palavras, eram mais reais
para o pblico do que os personagens que interpretavam8. Conforme o autor, passado
algum perodo, os moralistas voltaram a criticar com mais intensidade as histrias contadas
nos filmes. Mesmo assim, o interesse pela vida privada dos atores, atrizes, diretores, enfim,
de todos aqueles que tm uma projeo maior na indstria cinematogrfica, em especial a
norte-americana, nunca deixam de atrair o interesse das pessoas. No fosse assim, o star
system de Hollywood (que alimenta a mdia com informaes a respeito da vida particular
das estrelas) no seria to importante para a indstria cinematogrfica dos Estados Unidos
at mesmo nos tempos atuais.
Ainda buscando expressar o enorme potencial de projeo-identificao de que
dotado o cinema, Edgar Morin ressalta que a identificao do pblico com os filmes
7 SKLAR, Robert. Histria Social do Cinema Americano. So Paulo: Editora Cultrix, 1978, p. 269. 8 Idem, Ibid, p. 99.
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tambm pode se dar atravs daquilo que o espectador no tem de semelhante com a
personagem/ator. Se determinado ator bonito e o espectador se julga feio, esse pode ser
um motivo para admirao. Se o heri do filme corajoso e o espectador se julga no to
valente, este ltimo tambm pode admirar esta caracterstica da personagem e assim por
diante.
Edgar Morin tambm afirma a importncia que as prprias imagens tm dentro do
processo de seduo que os filmes se propem a fazer. Belas paisagens, closes, msicas,
movimentao de cmeras que aceleram ou reprimem as emoes conforme exige a
narrativa so elementos que ajudam a conceber a participao afetiva, que o autor define
como sendo o estado gentico e fundamento estrutural do cinema9. Ou seja, sem emoo,
sentimento e satisfao, o cinema perde a sua magia e sua razo de existir.
Retomando Graeme Turner, este incluiu outros elementos que despertam prazer nas
pessoas que assistem a um filme. Em primeiro lugar, o autor afirma que existe uma
satisfao naquilo que familiar, da o interesse do cinema hollywoodiano em produzir,
preferencialmente, histrias que poderiam acontecer a qualquer um ou que no rompam
muito com as convenes culturais da sociedade onde o filme produzido ou at mesmo
para outras sociedades onde ele ser visto. Conforme Graeme Turner:
Esses so alguns prazeres caractersticos da cultura popular, todos (potencialmente) envolvidos na deciso do pblico de ver um filme e na relao que as pessoas tm com o filme quando o vem. So prazeres sociais, culturais, dos quais os indivduos se apropriam para seu prprio uso, mas que de modo algum tm origem em cada indivduo. So prazeres oferecidos tambm por outras prticas sociais dentro da cultura popular, e portanto revelam como a prtica social do cinema est embutida em outras prticas, em outros sistemas de significado.10
Tal afirmao tambm corroborada por Leif Furhammar e Folke Isaksson, que ao
escreverem sobre o cinema de Hollywood, afirmam que ele geralmente tende a se basear
em valores conservadores e seguramente estabelecidos, a fim de satisfazer a maior
quantidade possvel de espectadores. Uma indstria de diverso, to firmemente voltada
para a satisfao de todos, est eventualmente limitada a desenvolver um mundo
imaginrio completo que tanto modela como modelado pelos juzos de valores coletivos
do pblico. Isso no apresenta obrigatoriamente teses polticas, mas reflete e preserva as
9 MORIN, Edgar. Op. cit., p. 165. 10 TURNER, Graeme. Op. cit., p. 121.
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metas imaginadas e os mitos favoritos da sociedade ao mostr-los sob formas atraentes11,
destacaram os autores.
Entendendo os laos que unem afetivamente as pessoas ao cinema, necessrio nos
direcionarmos para as relaes entre o Cinema e a Histria para podermos atingir os
objetivos da nossa pesquisa. importante entender de que forma o cinema pode contribuir
para gerar conhecimento histrico, bem como conhecer mtodos que tornam possvel o
trabalho do historiador com os filmes.
b) Cinema: um agente histrico
Os encontros entre o Cinema e a Histria tm se dado desde a inveno do
cinematgrafo, no final do sculo XIX. Conforme Antnio Costa, essa relao se d de trs
maneiras: a) A histria do cinema, da qual se ocupam os pesquisadores que estudam a
transformao dessa prtica ao longo dos anos; b) A histria no cinema, na qual os filmes
so tidos como fontes de documentao histrica e meios de representao da histria; c)
O cinema na histria, ou seja, o cinema como um agente histrico, exercendo influncia na
sociedade12.
A maioria dos primeiros trabalhos voltados para o cinema na histria, que a
nfase desta pesquisa, foi realizada no final da dcada de 1960 e se intensificou a partir dos
anos 1970, sendo que desde ento os estudos que se propem a fazer uma leitura histrica
e social da sociedade atravs dos filmes, sejam eles documentrios ou de fico, tm
crescido de maneira significativa, apesar de que, pelo menos no Brasil, o nmero de
publicaes tericas ou com resultados de pesquisas nesse sentido ainda seja bastante
pequeno, em comparao com outros pases, como a Frana.
Alis, foi o francs Marc Ferro um dos primeiros historiadores a teorizar a respeito
da possibilidade de se realizar a anlise histrica e social de filmes. Isso porque, segundo
ele, os filmes permitem que alcancemos zonas invisveis do passado, o que pode trazer
tona as autocensuras e lapsos de uma sociedade. Marc Ferro reconhece, por exemplo, que
11 FURHAMMAR, Leif; ISAKSSON, Folke. Cinema e Poltica. Trad. Jlio Cezar Montenegro. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001, p. 52 e 23. 12 COSTA, Antnio. Compreender o Cinema. Trad. Nilson Moulin Louzada. 3 ed. So Paulo: Globo, 2003, p. 29 e 30.
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logo nos primeiros anos aps a criao do cinematgrafo e com o incio do
desenvolvimento de uma linguagem cinematogrfica, muitos governos perceberam o poder
de influncia que o cinema poderia exercer sobre os espectadores. No foi toa que o
governo russo, por exemplo, investiu consideravelmente na produo de filmes que
enaltecessem ou aludissem revoluo socialista de 1917, como o caso do Encouraado
Potemkim (Bronenosets Potymkin, dirigido por Sergei Eisenstein, de 1925.); ou que
Leni Riefenstahl tenha recebido do governo nazista a incumbncia de produzir, entre
outros trabalhos, um documentrio sobre as Olimpadas de Berlim de 1936, no qual fosse
destacada a superioridade ariana na competio. No caso dos Estados Unidos houve claro
incentivo para que os estdios de Hollywood produzissem filmes com evidentes
mensagens anticomunistas j a partir dos anos 1930 e, de maneira mais intensa, com o
incio da Guerra Fria. Contudo, apesar desse controle ideolgico, Marc Ferro afirma que
essa no a essncia do cinema, pois o filme tem essa capacidade de desestruturar aquilo
que diversas geraes de homens de Estado e pensadores conseguiram ordenar num belo
equilbrio. Ele destri a imagem do duplo que cada instituio, cada indivduo conseguiu
construir diante da sociedade13. Ou seja, o cinema faz uma contra-anlise da sociedade.
Mas, para que seja possvel promover essa contra-anlise, Marc Ferro sistematiza
mtodos para a anlise histrica de filmes. Em primeiro lugar, ele defende que necessrio
partir da imagem, das imagens. No buscar nelas somente ilustrao, confirmao ou o
desmentido do outro saber que o da tradio escrita14. Ou seja, cinema um campo
singular da pesquisa histrica, dotado de especificidades que precisam ser respeitadas. Do
mesmo modo, ele explica que a pelcula a ser analisada no deve ser vista como uma obra
de arte, mas como um produto que vai alm dos significados cinematogrficos. Tambm,
para o estudo histrico de um filme, o autor vai ressaltar que no preciso debruar-se
sobre o todo. possvel fragment-lo, compor sries ou conjuntos atravs da seleo de
temas ou de planos. E mais: alm daquilo que mostrado na tela do cinema, preciso
ainda que o historiador busque encontrar outros elementos, como informaes a respeito da
criao do roteiro, sobre a produo, sobre as pessoas envolvidas, o momento vivido pela
sociedade, a que pblico o filme se destinava, quem o financiou, entre outros, isso porque a
prpria produo de uma obra cinematogrfica tambm histria.
13 FERRO, Marc. Cinema e Histria. Trad. Flvia Nascimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 86. 14 Idem, Ibid, p. 86.
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Um filme, seja ele qual for, sempre vai alm de seu prprio contedo15, escreveu
o historiador francs. Isso significa que, mesmo no estando sobre o controle direto do
Estado, como o caso dos trs filmes objetos de estudo deste trabalho, cada produo
flmica portadora de elementos ideolgicos muitas vezes, at mesmo contraditrios,
como poderemos perceber nas anlises mais adiante. Do mesmo modo, o autor alerta aos
pesquisadores que se propem a estudar o cinema que o significado de um filme pode ser
lido de maneira distinta em pocas diferentes e em sociedades diferentes. Mas, acima de
tudo, importante reconhecer que os filmes so tambm agentes da histria, pois
interferem nesta. No caso desta dissertao, temos claro que o cinema sobre e tambm feito
para os jovens norte-americanos acabou por ajudar a compor modelos de comportamento
para o novo conceito de juventude que estava sendo gerado durante os anos 1950 e 1960
naquela sociedade e tambm em outras partes do mundo.
Enfim, Marc Ferro esquematiza a sua proposta de anlise em quatro momentos. O
primeiro verificar o contedo aparente ou a imagem da realidade, ou seja, perceber quais
os elementos que so imediatamente absorvidos pelo espectador. Depois, numa etapa
seguinte, o autor prope que sejam identificados os elementos ideolgicos da obra
analisada. Em terceiro, e em razo do segundo item, possvel identificar o contedo
latente, portanto, aquilo que no est to explcito no contedo flmico. Por fim, preciso
entrar na realidade no visvel da obra, o que pode se interpretado como aquilo que no
est presente na tela, ou seja, o contexto de produo.
Mas, apesar da importncia da obra de Marc Ferro, sua teoria de que o cinema
poderia realizar uma contra-anlise da sociedade, da maneira como ele pressupe,
recentemente tem sido questionada. Sem descartar todos os mtodos propostos pelo
historiador francs e considerando-o uma leitura obrigatria, Eduardo Morettin pondera e
defende que, na prtica, a suposio de que um filme faz a contra-anlise da sociedade no
pode ser aceita integralmente ou sem ressalvas. De acordo com ele, de certa forma se
empobrece o campo de anlise de um filme quando se parte de relaes antagnicas como
latente e aparente, visvel e no visvel ou at mesmo histria e contra-histria. Embora
concorde em parte com Marc Ferro, ele amplia essa discusso ao afirmar que, na anlise
histrica de um filme:
A idia proposta pelo historiador de que o cinema no uma expresso direta dos projetos ideolgicos que lhe do suporte deve ser ressaltada: um
15 Idem, Ibid, p. 114 e 115.
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filme apresenta, de fato, tenses prprias. Estas, porm, no devem ser pensadas nos termos de sua incluso no campo da histria ou de sua contra-histria, tal como faces opostas de uma mesma moeda, parti-pris que define um nico sentido da obra. Por outro lado, afirmar a possibilidade de recuperar o no visvel atravs do visvel contraditrio, j que essa anlise v a obra cinematogrfica como portadora de dois nveis de significado independentes, perdendo de vista o carter polissmico da imagem. (...) Pelo contrrio, afirmamos que um filme pode abrigar leituras opostas acerca de um determinado fato, fazendo dessa tenso um dado intrnseco sua prpria estrutura interna. Perceber esse movimento deriva do conhecimento especfico do meio, o que nos permite encontrar pontos de adeso ou rejeio existentes entre o projeto-ideolgico de um determinado grupo social e a sua formatao em imagem.16
Como se percebe, Morettin no fala em um sentido nico para o filme. Ele vai mais
alm ao afirmar que os filmes avanam, mas tambm retrocedem, tomam muitas vezes
caminhos tortos, diferentes da ideologia dos grupos que o produzem. Com relao
contra-histria atravs do cinema, ele reconhece que ela mais facilmente produzida pelos
marginalizados, pelas pessoas que no esto no poder e que lutam contra ele. Porm, ele
acredita que, se os filmes em geral fazem uma contra-anlise da sociedade estabelecida, o
mesmo tem que ser vlido para a produo marginal. Ou seja, os filmes que tm por
objetivo revelar o inverso da sociedade tambm podem fornecer indcios para a sua
prpria contra-anlise, explicitando aquilo que os produtores marginais tambm no
gostariam de dizer ou pretendiam esconder.
Ironicamente, apesar de Marc Ferro ser um dos primeiros historiadores a formular
uma teoria e uma metodologia para o estudo histrico atravs do cinema, Morettin
percebeu que, ao longo da obra do autor, os filmes muitas vezes foram utilizados para
reafirmar conhecimentos j existentes a partir de documentos escritos. Neste caso, o
cinema quase percebido apenas como uma complementaridade, como algo a mais para
provar ou desacreditar o saber que teve sua origem atravs de outros documentos e fontes.
Morettin, no entanto, entende que se o historiador quiser realmente explorar toda a
potencialidade de anlise de um filme ele deve sempre partir em busca de respostas a partir
do filme e, mais do que isso, deixar que as questes que ele coloca na pesquisa tenham a
sua origem tambm na prpria obra cinematogrfica:
16 MORETTIN, Eduardo. O Cinema como fonte histrica na obra de Marc Ferro. In: CAPELATO, Maria Helena... [et al.]. Histria e Cinema. So Paulo: Alameda, 2007, p. 42.
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O filme possui um movimento que lhe prprio, e cabe ao estudioso identificar o seu fluxo e refluxo. importante, portanto, para que possamos apreender o sentido produzido pela obra, refazer o caminho trilhado pela narrativa e reconhecer a rea a ser percorrida a fim de compreender as opes que foram feitas e as que foram deixadas de lado no decorrer de seu trajeto. (...) Para que possamos recuperar o significado de uma obra cinematogrfica, as questes que presidem o seu exame devem emergir de sua prpria anlise. (...) Com esse movimento, evitamos o emprego da histria como pano de fundo, na medida em que o filme no est a iluminar a bibliografia selecionada, ao mesmo tempo que no isolamos a obra de seu contexto, pois partimos das perguntas postas pela obra para interrog-la.17
Nesta perspectiva, abrem-se dois caminhos para a anlise, os quais devem andar, a
princpio paralelamente, at que sejam enfim confrontados para se chegar aos resultados
finais da anlise. Um deles levar em conta a linguagem estritamente cinematogrfica. Ou
seja, no se ater somente ao tema, mas tambm sobre as tcnicas utilizadas, de que escola
ou escolas do cinema determinada obra se aproxima, que estilos adota, etc. A outra
justamente a busca dos elementos ideolgicos que esto presentes nos filmes selecionados
para a anlise, procurando identificar os dilogos que eles mantm com outros elementos
da sociedade, sobre a qual elaboram representaes e ao mesmo tempo lhe causam
interferncias.
Segundo se afirma na introduo do livro Histria e Cinema, com o exame
detalhado dos filmes poderemos entender o cinema de uma poca como uma expresso de
valores, no s delimitados pela maneira de abordar o tema encenado, mas, de modo mais
decisivo, pela forma como foram concebidos os registros visuais e sua organizao na
forma flmica.18
Temos claro que o cinema passvel de ser alvo das mais diversas anlises. Para
fazer especificamente a anlise histrica de um filme, nem sempre o trabalho do
historiador precisa se ater totalidade da obra. Conforme Ciro Flamarion Cardoso e Ana
Maria Mauad, seguindo o que Marc Ferro j havia proposto, o historiador tem a liberdade
de se utilizar to somente de determinadas sequncias ou imagens recortadas, compor
sries e elaborar conjuntos. Junto a isso, quem se prope a fazer a anlise histrica de um
trabalho cinematogrfico tambm deve ter a preocupao de integrar o filme ao contexto
em que ele surge: 17 Idem, Ibid. p. 62 e 63. 18 CAPELATO, Maria Helena; MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos; SALIBA, Elias Thom. Apresentao. In: Histria e Cinema. So Paulo: Alameda, 2007, p. 10.
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Um filme uma mensagem de mensagens de considervel complexidade, reunindo e combinando em diversas modalidades e graus de incidncia sinais de decodificao. (...) Sua decodificao ter a ver com a historicidade das convenes, espcie de contrato tcito varivel no tempo entre quem produz o filme e quem o v, sem o qual no se cumpririam as significaes segundo certos padres.19
Como frisaram os autores, preciso atentar para o fato de que, por ser uma
linguagem que no repete a racionalidade da escrita, o cinema no segue a mesma lgica
que rege as linguagens do verbal e do oral. Dito isto, possvel perceber que, a partir de
um filme, so reveladas outras coisas e de maneiras diferentes daquelas que so possveis
de perceber atravs dos documentos escritos ou das fontes orais, por exemplo.
Por sua vez, Graeme Turner vai incluir mais um ingrediente no desafio que
percorrer os caminhos da anlise histrica dos filmes. Conforme o autor que percebe o
cinema no apenas como entretenimento, narrativa e evento cultural, mas como uma
prtica social para aqueles que o fazem e para o pblico, j que em suas narrativas e
significados podemos identificar evidncias do modo como nossa cultura d sentido a si
prpria20 os filmes tambm devem ser estudados em relao a outros filmes. Conforme
Graeme Turner, existe uma intertextualidade entre as produes cinematogrficas; e essa
intertextualidade vai influenciar no apenas na produo de cada obra, mas tambm como
o filme ser compreendido pelo pblico. Essa intertextualidade o que nos permite incluir
neste mesmo trabalho os filmes O Selvagem e Juventude Transviada, produzidos na
dcada de 1950 dentro de um novo gnero surgido na poca (os filmes de adolescentes -
teenpics), e Sem Destino, produzido j em outro contexto. Sem Destino aborda o
tema da juventude dentro da contracultura e no da delinquncia juvenil, como o caso
dos dois primeiros, mas, seria um erro negar que existe um elo (difcil de dimensionar,
verdade) unindo estes trs filmes. Assim, desde que respeitadas as diferenas narrativas e
de gnero e colocadas lado a lado as similaridades, possvel tentar perceber como as
problemticas que j estavam presentes na sociedade que produziu e estava representada
em O Selvagem e Juventude Transviada foram transformadas e ganharam novos
sentidos em Sem Destino.
19 CARDOSO, Ciro Flamarion Cardoso e MAUAD, Ana Maria. Histria e Imagem: Os Exemplos da Fotografia e do Cinema. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domnios da Histria: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997, p. 413. 20 TURNER, Graemer. Op. cit., p. 13.
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Retomando a idia de intertextualidade de Graeme Turner, ele afirma que
entendemos os filmes em termos de outros filmes, seu universo em termos de outros
universos, para depois ir alm e ressaltar que os filmes so, portanto, produzidos e vistos
dentro de um contexto social e cultural que inclui mais do que os textos de outros filmes. O
cinema desempenha uma funo cultural, por meios de suas narrativas21, que vai alm do
prazer da histria22. Como contexto social, o autor tambm inclui as construes a
respeito do filme feitas pela mdia e as estratgias de publicidade adotadas para atrair o
pblico at o cinema para assistir a obra cinematogrfica.
A respeito das ideologias presentes nos filmes, Graeme Turner segue na mesma
linha dos autores antes citados: no existe uma maneira nica de entender uma obra
cinematogrfica, no sentido de que no existem contradies em cada obra, ou que os
significados ideolgicos sejam apreendidos de modo igual entre todos os espectadores. O
autor explica que a ideologia de um filme no assume a forma de declaraes ou reflexes
diretas sobre a cultura. Ela se encontra na estrutura narrativa e nos discursos usados
imagens, mitos, convenes e estilo visuais23. Para ele, o texto flmico um campo de
batalha de posies concorrentes, do qual, a princpio, vence sempre a posio dominante.
Porm, deste combate surgem fraturas, as quais expem o esforo que feito pelos
produtores de um filme no sentido de se criar um consenso ideolgico.
Um campo de batalha um termo prximo ao modo como Francis Vanoye e Anne
Goliet-Lt vo se referir ao confronto que travado entre quem se prope a fazer a anlise
flmica e a prpria obra cinematogrfica a ser estudada. Segundo estes autores, a anlise
requer um grande esforo do analista, que deve rever o filme vrias vezes e examin-lo
tecnicamente. Ao mesmo tempo, necessrio desmontar o filme, separando os
elementos que o constituem. Isso, segundo Vanoye e Goliot-Lt, possibilita ao
pesquisador o distanciamento necessrio para realizar um estudo com o rigor cientfico
exigido. Separados os elementos, ento deve-se estabelecer os elos entre eles para
compreender como eles se associam e se tornam cmplices para fazer surgir um todo
significante: reconstruir o filme ou o fragmento. evidente que essa reconstruo no
apresenta qualquer ponto em comum com a realizao concreta do filme. uma criao
21 Para o autor, narrativa uma forma de dar sentidoao nosso mundo social e compartilhar esse sentido com os outros. Idem, Ibid, p. 73. 22 Idem, Ibid, p. 69. 23 Idem, Ibid, p. 146.
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totalmente assumida pelo analista24. Ou seja, o processo de desconstruo, na prtica, se
realiza no ato de descrever o filme, enquanto a reconstruo j se d a partir da
interpretao que o pesquisador elabora sobre a obra cinematogrfica.
Passando para a anlise e interpretao scio-histrica de um filme, Vanoye e
Goliot-Lt asseguram que o pesquisador deve sempre ter em considerao o contexto de
produo do mesmo. Outra premissa apontada por eles que todo filme sempre fala do
presente, no importando se ele baseado em fatos histricos ou em devaneios futuristas,
ou obviamente, quando trata da sua prpria poca em que produzido. Ou seja,
independentemente do tema do filme, ele sempre o resultado imediato da sociedade no
qual est inserido no momento exato de sua criao. Outra observao importante que:
Em um filme, qualquer que seja seu projeto (...), a sociedade no propriamente mostrada, encenada. Em outras palavras, o filme opera escolhas, organiza elementos entre si, decupa no real e no imaginrio, constri um mundo possvel que mantm relaes complexas com o mundo real: pode ser em parte seu reflexo, mas tambm pode ser sua recusa (ocultando aspectos importantes do mundo real, idealizando, amplificando certos defeitos, propondo um contramundo etc. Reflexo ou recusa, o filme constitui um ponto de vista sobre este ou aquele aspecto do mundo que lhe contemporneo.25
Ou seja, o analista deve ter presente que um filme no pode ser pensado como
espelho da sociedade qual ele se refere. Outra armadilha que muitas vezes se coloca
frente do pesquisador buscar reconhecer uma funo especfica para o filme. A mais
comum, conforme os autores, acreditar, por exemplo, que existe uma oposio entre o
filme de fico e o documentrio, sendo que o primeiro estaria no mbito da fantasia,
enquanto que o segundo estaria mais prximo da realidade, o que no verdade. Tanto um
quanto outro podem ser construdos de modo a criar um efeito de realidade como,
tambm, dependendo dos objetivos de quem o produz, distanciar-se dos referenciais mais
realistas. Marc Ferro reconhece no prprio filme de fico certos elementos da realidade
que se tornam importantes para a compreenso da obra cinematogrfica.
Acreditamos que todo esse debate nos d base para empreender a anlise flmica
proposta neste trabalho. Porm, antes de seguir, necessrio revelar de que forma ele est
estruturado. No captulo 1, denominado Ascenso, crises e a juvenilizao do cinema
24 GOLIOT-LT, Anne e VANOYE, Francis. Ensaio Sobre a Anlise Flmica. Trad. De Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1994, p. 15. 25 Idem, Ibid, p. 56.
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norte-americano, iremos discorrer a respeito da indstria cinematogrfica de Hollywood
at pouco depois da primeira metade do sculo XX. Daremos nfase, principalmente, ao
processo que tornou o cinema norte-americano o mais popular do mundo sem, no entanto,
esquecer das fases difceis que acabaram por resultar em estratgias para garantir que as
pessoas continuassem frequentando as salas de cinema em momentos de crise de
Hollywood. Alis, foi dentro de um contexto de crise da indstria de cinema dos Estados
Unidos que ocorreu aquilo que ficou conhecido como a juvenilizao do cinema, que
tambm uma questo abordada nesta parte do trabalho. Ganha destaque ainda no
primeiro captulo a discusso sobre o fenmeno da juventude ocorrido na dcada de 1950
nos Estados Unidos.
No captulo 2, intitulado O Selvagem e Juventude Transviada: rebeldes em cena,
pretendemos, atravs das anlises dos filmes O Selvagem e Juventude Transviada,
promover a discusso sobre as representaes que eles faziam da sociedade na poca, bem
como, a partir deles, estabelecer relaes com e sobre o universo dos adolescentes-
problema do perodo, abordando questes como o conflito de geraes, o confronto contra
a autoridade, a moda, o papel da mulher, sexualidade e as gangues. Cada filme ser
discutido primeiramente em separado para, ento, realizar uma anlise conjunta das
problemticas percebidas nas duas obras.
No terceiro captulo, denominado Sem Destino: oposies e contradies de uma
sociedade em processo de mudana, a dissertao traz a discusso sobre o filme Sem
Destino. Para tanto, apresentamos algumas questes relativas contracultura dos anos
1960, abordando alguns de seus principais elementos. A partir de ento, ser realizada a
discusso especfica sobre o filme, com nfase sobre as questes relativas ao nomadismo,
oposio entre campo e cidade, aos comportamentos considerados como desviantes, em
especial, o consumo de drogas, que est bastante presente em Sem Destino.
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CAPTULO 1:
Ascenso, crises e a juvenilizao do cinema norte-americano
Elemento de riqueza conteudstica, o tema de jovens sem f e sem causa iria, por ser novo, prenhe, necessitando de alvio, provocar novas experincias de linguagem conematogrfica.
Glauber Rocha26
Os filmes O Selvagem e Juventude Transviada foram rodados no apenas no
momento em que o fenmeno da adolescncia/juventude ganhava forma nos Estados
Unidos, mas tambm em um perodo de grande crise dos estdios de Hollywood.
Considerados precursores de um novo gnero do cinema norte-americano os filmes sobre
e para adolescentes (teenpics) -, estas obras, entre muitas outras coisas, eram tambm parte
de um esforo da indstria cinematogrfica dos Estados Unidos para recuperar o prestgio
vivido at meados da dcada de 1940, quando os filmes hollywoodianos atingiram uma
popularidade semelhante quela alcanada logo aps o fim da Primeira Guerra Mundial.
Embora no estivesse ameaada pelas indstrias de filmes de outros pases, Hollywood
teve que encontrar meios para garantir a frequncia do pblico norte-americano nas salas
de cinema em razo da concorrncia, principalmente, da televiso, a grande novidade do
comeo dos anos 1950.
1.1 Hollywood na primeira metade do sculo XX
Os filmes norte-americanos tiveram grande repercusso j no incio do sculo XX,
quando Hollywood ainda estava dando seus primeiros passos para se tornar o grande plo
mundial do cinema. possvel afirmar que isso se deu basicamente por causa de dois
aspectos: um deles o modelo narrativo desenvolvido pelos estdios de cinema dos
26 ROCHA, Glauber. O Sculo do Cinema. Rio de Janeiro: Alhambra, 1985, p. 44.
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Estados Unidos e o outro so acontecimentos que extrapolaram o universo do cinema, mas
que acabaram beneficiando Hollywood de forma significativa.
Vejamos. Desde seus primeiros anos, os estdios de Hollywood desenvolveram um
modelo de produzir filmes que, no exagero afirmar, se tornou o mais bem sucedido do
cinema e hoje chamado de clssico27. Entre as suas principais caractersticas esto a
clareza, a homogeneidade, a linearidade do tempo e dos fatos, a coerncia narrativa e o
grande impacto dramtico. A histria se desenvolve sempre a partir de um protagonista
sendo que cada personagem desempenha um papel especfico (o bom, o mau, o bonito, o
feio, o heri, o vilo, etc.). No cinema clssico norte-americano, conforme Goliot-Lt e
Vanoye, tudo parece se desenvolver sem choques, em que os planos e as seqncias se
encadeiam aparentemente com toda a lgica, em que a histria parece se contar por conta
prpria28.
Outra caracterstica do cinema clssico de Hollywood a elaborao de um mtodo
de interpretao dos atores bem distante dos gestos mais exagerados, por exemplo, da
representao teatral; a preferncia pela realizao de filmagens em estdio; e por fim a
escolha de histrias de fcil identificao junto ao pblico e de popularidade garantida.
Tudo neste cinema caminha em direo ao controle total da realidade criada pelas
imagens tudo composto, cronometrado e previsto. Ao mesmo tempo, tudo aponta para a
invisibilidade dos meios de produo desta realidade. Em todos os nveis, a palavra de
ordem parecer verdadeiro; montar um sistema de representao que procura anular a
sua presena como trabalho de representao29, afirma Ismail Xavier.
Da mesma forma, Edgar Morin apontou como caractersticas do cinema clssico o
domnio do ritmo da ao, a acelerao do tempo, a cmera lenta, os diferentes planos (em
especial o close-up), o uso de luzes e sombras e a prpria msica que, assim como todos
27 Grande parte dos crditos a esse modo clssico de se fazer filmes dada a D. W. Griffith, em especial ao seu filme O Nascimento de uma Nao (The Birth of a Nation), de 1915, o qual reunia em uma nica obra praticamente todas as inovaes apresentadas por ele, e tambm por outros diretores, ao longo de quase uma dcada dirigindo centenas de filmes. Nessa, que considerada a sua obra-prima, estavam presentes os close-ups, tomadas diversas para uma mesma cena, o desenrolar de histrias paralelas dentro um mesmo filme, o uso de cmeras em movimento, exuberante composio e ateno aos detalhes do cenrio, maior controle no uso da iluminao, entre outros. Para Robert Sklar, D.W. Griffith, diferena dos predecessores, compreendeu que cada nova tcnica no era apenas um truque para chamar a ateno, mas um sinal, um modo especial de comunicao, um elo na cadeia do discurso cinematogrfico. Foi o primeiro a forj-las num estilo completo e original de movimentao de imagens. SKLAR, Robert. Op. cit., p. 70. 28 GOLIOT-LT, Anne e VANOYE, Francis. Op. cit., p. 28. 29 XAVIER, Ismail. O discurso cinematogrfico: a opacidade e a transparncia. 3 ed. So Paulo: Paz e Terra, 2005, p. 41.
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esses outros elementos, tm como objetivo prender a ateno do espectador e fazer com
que ele tenha uma participao afetiva com o filme. Afirmou Edgar Morin que:
De fato, a cmera, quer pelos seus movimentos prprios, quer pelos movimentos dos sucessivos planos, pode permitir-se o nunca perder de vista, enquadrar sempre e pr em destaque o elemento emocionante. Pode sempre focar em funo da mais alta intensidade. As suas circunvulaes, as suas mltiplas preenses (diferentes ngulos de vises) em volta do sujeito, realizam, por outro lado, uma autntica envolvncia afetiva.30
Essencial ainda dentro da proposta naturalista do cinema clssico de Hollywood so
as regras de continuidade, ou seja, os cuidados que devem ser tomados para evitar que a
evoluo da trama fique comprometida por erros de montagem ou que se rompa uma certa
linearidade narrativa, o que pode trazer empecilhos para a assimilao da obra pelo
pblico. Esse maior refinamento na narrativa flmica, hoje considerada clssica de
Hollywood, colaborou significativamente para que o cinema norte-americano se tornasse,
aps a Primeira Guerra Mundial, o mais visto em todo o mundo. At ento, a Frana era a
maior produtora de filmes, sendo que foi nesse pas onde se comeou a explorar
comercialmente o cinema. Porm, com o conflito armado que se desenrolou sobre a
Europa, os recursos e, tambm, a produo de filmes diminuram drasticamente em pases
como a Itlia, a Alemanha, a Gr-Bretanha e a prpria Frana, todos grandes produtores de
cinema. Com isso, o cinema dos Estados Unidos pde no somente saborear a maior fatia
do mercado europeu, como avanar tambm sobre outros pases, como os da Amrica
Latina31.
Essa nova realidade propiciou ganhos financeiros gigantescos s produtoras de
cinema, que no apenas conseguiam cobrir os custos e obter lucros com a exibio de
filmes nos Estados Unidos, como multiplicavam os rendimentos com as bilheterias no
exterior. Isso ainda garantiu outra mudana na forma de se produzir cinema: j que no
havia mais outras indstrias nacionais significativas concorrendo dentro dos Estados
Unidos ou em outros pases, a motivao dos produtores era no sentido de se produzirem
filmes que agradassem em cheio o pblico norte-americano.
30 MORIN, Op. cit., p.158. 31 Essa expanso pode ser medida pelo total de metros de filmes exportados pelos estdios dos Estados Unidos. Se em 1915 o total era de 10,5 milhes de metros, no ano seguinte essa soma atingiu a gigantesca marca de 47,7 milhes de metros. Com esse avano extraordinrio, at o final da Primeira Guerra Mundial, praticamente 85% dos filmes assistidos em todo o mundo eram produes norte-americanas. TURNER, Graeme. Op. cit., p. 24.
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30
Esse perodo de forte crescimento da indstria cinematogrfica perdurou at os
primeiros anos da dcada de 1920. Isso porque as indstrias cinematogrficas de outros
pases (que comeavam a se reerguer dos estragos da Primeira Guerra Mundial) passaram a
produzir novamente filmes em quantidades razoveis, alm de que o cinema enquanto
opo de lazer passou tambm a sofrer concorrncia com o rdio e os automveis, por
exemplo, novidades que passaram a disputar com os filmes o interesse das pessoas para
passarem as horas disponveis para o entretenimento. Mesmo assim, naquele perodo os
Estados Unidos mantiveram a supremacia na produo de filmes. Uma das novidades para
garantir a frequncia do pblico foi um refinamento maior do star system e da diviso dos
filmes em gneros (como o western, filmes de gansters, musicais, comdias, etc.). O star
system e o gnero, inclusive, so o resultado direto de um modelo de produo industrial
de cinema ferreamente organizado adotado por Hollywood a partir da dcada de 1920.
Esse fenmeno ficou conhecido como studio system, no qual as companhias
cinematogrficas assumiam o controle de todo o processo que envolvia o cinema at ele
chegar ao pblico, ou seja: a produo, distribuio e exibio dos filmes. Um dos efeitos
dessa integrao de todos os setores foi a expanso do capital dessas companhias
cinematogrficas, que atraram investimentos de bancos e companhias de comunicao,
entre outros.
Outra grande inovao para manter o interesse do pblico estadunidense pelo
cinema foi introduzida pela Warner. Em 1927, ela lanou o primeiro longametragem
sonorizado, com as falas e msicas saindo diretamente da pelcula, ao invs de uso das
legendas e de msicas tocadas por orquestras nas prprias salas de projeo, como era
comum at ento no cinema mudo. Ao usar esta inovao no filme O Cantor de Jazz
(The Jazz Singer, direo de Alan Croslan), a Warner conseguiu no apenas aumentar
sua participao no mercado apresentando um novo produto que tornava o cinema ainda
mais real, como tambm acabou contribuindo significativamente para consolidar o
longa-metragem como a principal atrao cinematogrfica. Porm, se essa novidade foi
recebida com euforia pela indstria de Hollywood, logo ela trouxe consigo um efeito
colateral: a perda do mercado em pases onde no se falava a lngua inglesa, j que havia a
necessidade da dublagem ou de legendas, o que desagradava parte desse pblico.
Some-se a esse efeito colateral para a indstria de cinema dos Estados Unidos a
crise de Wall Street, em 1929, e a depresso econmica que se seguiu. Segundo Graeme
Turner, o pblico do cinema diminuiu at 30% no pas em 1932 e muitos estdios sofreram
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31
interveno em razo das dvidas32. Essa situao de dificuldades se estendeu at o incio
dos anos 1940, no s porque foi quando os norte-americanos haviam se recuperado
economicamente, mas em grande parte porque a Europa novamente estava em conflito:
acontecia a Segunda Guerra Mundial e, com isso, os pases europeus, que tinham outra vez
uma indstria de filmes considervel, viram cair o nmero de suas produes
cinematogrficas.33
A retomada do crescimento de Hollywood atingiu o auge em 1946, perodo em que
os cinemas registraram o maior comparecimento de pblico em todos os tempos34.
Contudo, esse perodo de ascenso do cinema hollywoodiano entraria em decadncia com
uma srie de eventos que se seguiu em um curto espao de tempo. O primeiro duro golpe
contra os grandes estdios aconteceu em 1948, quando a Corte Suprema dos Estados
Unidos decidiu pelo fim da integrao da atividade cinematogrfica. Ou seja, os estdios
no poderiam mais manter o controle sobre o trip produo-distribuio-exibio.
Como alternativa, os grandes estdios optaram por manter o controle sobre as duas
primeiras etapas do processo, reconhecendo o papel fundamental que para o sucesso de
um filme o acesso ao maior nmero possvel de salas de cinema, o que praticamente
garantido com o processo de distribuio.
Porm, o maior ataque desferido contra Hollywood certamente foi a popularizao
da televiso, que se transformou em verdadeira febre de consumo nos Estados Unidos no
final dos anos 1940 e incio de 1950 e, consequentemente, afastou uma grande parte do
habitual pblico das salas de cinema. Em 1953, por exemplo, o total de espectadores que
frequentou as salas de cinema nos Estados Unidos foi cerca da metade daquele de 1946.
Por outro lado, em 1953, 46,2% dos lares norte-americanos j contavam com aparelhos de
32 TURNER, Graeme. Op. cit., p. 26. 33 Ruy Castro oferece uma viso perfeita e bem-humorada de como Hollywood estava se fortalecendo j nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial: Entre 1939 e 1942, por exemplo, o cinema americano ia to bem de sade que, se fosse melhor, seria pecado. Naquele perodo, havia mais cinemas nos Estados Unidos do que bancos. Hollywood, com seus 400 filmes por ano, movimentava sozinha mais dinheiro do que todas as cadeias de supermercados juntas. Ia-se tanto ao cinema que, para muita gente, a dieta bsica consistia das pipocas que comia durante os filmes. Cinqenta milhes de americanos viam pelo menos um filme por semana, todas as semanas, deixando quase 700 milhes de dlares por ano nas bilheterias. Com este dinheiro, a indstria do cinema punha uma galinha em cada panela das mais de 30 mil pessoas empregadas diretamente nos cinco ou seis grandes estdios. Felizmente, ainda sobrava algum para pagar o salrio anual do magnata da MGM, Louis B. Mayer: 1 milho de dlares. - CASTRO, Ruy. Hollywood. In: LABAKI, Amir (Org.). Folha Conta 100 Anos de Cinema. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995, p. 81 e 82. 34 Conforme Robert Sklar, estatsticas da poca revelam que 75% do pblico potencial (ou seja, todas as pessoas que tivessem condies de comprar uma entrada de cinema) frequentavam ao menos uma vez por semana alguma sala de cinema. In: SKLAR, Robert. Op. cit., p. 313.
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televiso.35 Alm da perda de pblico, o sucesso da televiso tambm tinha outro efeito
negativo para os estdios de cinema, j que um enorme volume de recursos financeiros,
que antes eram investidos na produo de filmes, passou a ser direcionado para as
emissoras de televiso. De acordo com Thomas Doherty, em 1947 as emissoras de
televiso e afiliadas tiveram um rendimento de US$ 1,9 milho nos Estados Unidos. Uma
dcada depois, este montante havia atingido a gigantesca marca de US$ 943,2 milhes.36
O desafio para a indstria do cinema era descobrir como convencer as pessoas a
pagarem pelo bilhete de cinema, j que em casa elas poderiam assistir a muitas atraes da
televiso praticamente de graa. Como alternativa para concorrer com a TV, Hollywood
percorreu alguns caminhos. Um deles foi produzir filmes diretamente para as prprias
emissoras de televiso, o que desde ento se mostrou uma opo bastante lucrativa para os
estdios de cinema. Um outro foi apostar em inovaes tcnicas, que iam desde a
ampliao do tamanho da tela onde o filme era projetado (sendo que entre as vrias
inovaes, apenas o Cinemascope se mostrou vivel e conquistou a simpatia do pblico),
passando por filmes em 3-D (que exigiam o uso de culos especiais, idia logo
abandonada) e o uso mais frequente do cinema em cores, tcnica j praticamente dominada
durante os anos de 1930 e 1940 (mas, naquela poca, praticamente s utilizado para passar
ao espectador a representao de sonhos ou de momentos mgicos em determinadas cenas
de um filme). Contudo, ao contrrio do que se imaginava, o filme em cores no causou o
mesmo efeito positivo para a indstria cinematogrfica do que aquele provocado pela
incluso do som no final dos anos 1920. O cinema em cores somente se consolidou como o
padro para a produo de longas-metragens quando as prprias imagens coloridas foram
padronizadas pela televiso.
Mas, no foi apenas tecnicamente que a indstria cinematogrfica norte-americana
reagiu televiso. Os prprios filmes mudaram na tentativa de proporcionar uma diverso
muito mais espetacular, em diversos sentidos. Conforme Thomas Doherty, the nature of
television its physical shape, episodic format, and family-oriented largely determined
the nature of American motion pictures in the 1950s37. Com um oramento mais enxuto,
j que as receitas com a bilheteria no paravam de cair, os grandes estdios resolveram
investir mais dinheiro em um nmero menor de filmes. Passou-se a privilegiar para a 35 Idem, Ibid, p. 316. 36 DOHERTY, Thomas. Teenagers and Teenpics: The Juvenilization of American Movies in the 1950s. Philadelphia: Temple University Press, 2002, p. 19. 37 Idem, Ibid, p. 20. A natureza da televiso sua forma fsica, formatao em episdios, e orientao familiar determinaram profundamente a natureza dos filmes americanos nos anos 1950. (Traduo livre)
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filmagem roteiros que tradicionalmente tivessem maior apelo popular, ou seja, os filmes
at hoje conhecidos como blockbusters. Se os recursos aplicados eram gigantes, os temas
dessas produes tambm eram grandiosos, com nfase em famosos acontecimentos
histricos ou episdios bblicos, sendo exemplos dessas produes ttulos como Os Dez
Mandamentos (The Ten Commandments, direo de Cecil. B. DeMille, 1956) e Ben-
Hur (Ben-Hur, direo de William Wyler, 1959). Nesses filmes picos, tampouco se
economizava nos efeitos especiais.
Outra oportunidade encontrada por Hollywood foi ousar mais em diversos filmes e,
claro, a sensualidade e a sexualidade passaram a aparecer de forma um pouco mais
explcita para os padres daquela dcada. Desde 1934, os estdios dos Estados Unidos
controlavam suas obras a partir do que era estabelecido pelo Cdigo de Produo. Este
documento, criado pela entidade Motion Pictures Producers and Distributors of Amrica,
estabelecia quais assuntos eram tabu e de que forma eles deveriam ser tratados, se que
poderiam aparecer nos filmes. Tambm orientava os diretores e atores sobre o que podia e
o que no podia ser mostrado ou dito. Assim, uma caracterstica dos filmes produzidos at
ento era o puritanismo ou o recato ao abordar certos temas. A primeira obra que desafiou
o Cdigo de Produo foi Ingnua At Certo Ponto (The Moon Is Blue, direo de
Otto Preminger, 1953). O diretor recusou-se a retirar a palavra virgem do filme, que foi
lanado pela United Artists sem a autorizao dos censores. Diante da polmica, vrias
outras produes seguiram explorando esta nova possibilidade. Sem ter mais como evitar
os temas tabus e as cenas mais picantes, os responsveis pelo Cdigo de Produo
acabaram revisando o documento, at mesmo porque muitos filmes europeus que foram
exibidos nos Estados Unidos na poca, como E Deus Fez a Mulher (Et Dieu... Crea La
Femme, direo de Roger Vadim, 1956), j eram bem mais avanados nesse sentido e se
tornaram uma concorrncia forte para as produes norte-americanas.
Mas, a histria das mudanas promovidas por Hollywood no estaria completa sem
um outro componente fundamental. Alm das mudanas j citadas, uma outra alternativa
incentivada pela indstria de filmes estadunidense para garantir um nmero significativo
de espectadores nas salas de cinema foi intensificar a segmentao do pblico atravs da
produo de filmes para determinadas faixas etrias. Essa transformao foi fundamental
para a indstria cinematogrfica norte-americana e acompanhou uma tendncia
comportamental.
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Desde o incio do cinema nos Estados Unidos at pouco depois da Segunda Guerra
Mundial, os filmes eram feitos para toda a famlia, ou seja, deveriam agradar pais, filhos e
avs da mesma forma. Porm, com a chegada da TV, ocorreu que grande parte das pessoas
adultas passou a utilizar este aparelho como um dos principais meios de entretenimento,
enquanto que para o pblico adolescente e jovem, o ato de ir ao cinema continuava a ser
uma atividade de lazer e interao social bastante valorizada. Dessa maneira, bvio que
as produtoras de cinema focaram muito de sua ateno nos jovens, criando inmeros filmes
em que aventuras, doces romances, fico cientfica, o terror, o rock and roll e a rebeldia
geralmente eram os fios condutores das histrias. Tal gnero ficou marcado como filmes
de adolescentes (teenpictures, ou sua abreviatura em ingls, teenpics) e o seu surgimento
est tambm ligado a um fenmeno conhecido como a juvenilizao do cinema. 1.2 Juvenilizao do cinema
As produes que surgiram mais intensamente para o pblico jovem a partir dos
anos 1950 tinham como caracterstica comum, com raras excees, o baixo oramento.
Uma das principais razes que os estdios j haviam percebido que, para retirar os
adultos da frente da televiso e incentiv-los a ir at o cinema precisavam realizar
superprodues. Contudo, ao mesmo tempo haviam notado que o pblico adolescente e
jovem continuava frequentando as salas de exibio como um excelente programa de
entretenimento. Para tanto, bastava apresentar filmes atrativos para esse pblico, que
falassem sobre o seu universo ou que apostassem em temas de forte apelo, muitas vezes
sensacionalistas. Assim, nascia um novo gnero: o filme para adolescentes.
Os gneros, de uma forma geral, tm um papel importante tanto para o pblico
como para os produtores de filmes. Antnio Costa entende que a classificao dos filmes
em funo do gnero a que pertencem um aspecto fundamental da instituio
cinematogrfica, pois, orienta claramente o espectador quanto ambientao, estilo e,
dentro de certos limites, ideologia38. Como bem observou Edward Buscombe, um filme
de gnero depende de uma combinao de novidade e familiaridade. As convenes de
gnero so conhecidas e reconhecidas pelo pblico, e tal reconhecimento j , por si s, um
38 COSTA, Antnio. Op. cit., p. 93 e 94.
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prazer esttico39. Ou seja, para o pblico, a classificao de um filme como um western,
por exemplo, lhe d pistas sobre que tipo de histria ele ver no cinema ao comprar o
bilhete de entrada. Isso porque, por exemplo, um filme sobre o Velho Oeste deve, a
princpio, contar com conflitos entre os brancos e ndios, ou o desafio do homem diante da
natureza, o duelo entre o mocinho e o bandido, e da por diante, isso sem mencionar os
cenrios quase padres dos westerns (montanhas, desertos, o saloon, o trem, entre outros).
J aos diretores, roteiristas, cinegrafistas, enfim, aos produtores, essa srie de convenes,
quando adotada, quase uma garantia de que o filme ir despertar o interesse das pessoas
que gostam desse gnero, estando a partir da o sucesso ou o fracasso da obra dependendo
de como o todo ou parte desses elementos sero costurados na narrativa flmica, alm,
claro, de outros pontos que formam todo o processo cinematogrfico, como distribuio,
publicidade e atores envolvidos.
Graeme Turner, por sua vez, contribui tambm com essa discusso, afirmando que
os estdios de cinema precisam encontrar o equilbrio exato entre as convenes de cada
gnero e a originalidade/criatividade para garantir o sucesso de um filme:
fcil fazer com que o gnero soe como uma ameaa determinista criatividade. verdade que todos os meios de comunicao de massa, no apenas o cinema, tm de lidar com o familiar e convencional mais do que, digamos, a pintura e a poesia. Nas artes populares, a percepo individual no tem o lugar privilegiado de que desfruta nas formas mais elitistas, como a literatura. Em vez disso, o prazer vem do familiar, do reconhecimento de convenes, da repetio e reafirmao. H, no entanto, inovao e originalidade nos filmes de gnero, e os melhores exemplos podem atingir um equilbrio muito complexo e delicado entre o familiar e o original, a repetio e a inovao, a previsibilidade e a imprevisibilidade. Os produtores de filmes populares sabem que cada filme de gnero tem de apresentar duas coisas aparentemente conflitantes: confirmar as expectativas existentes do gnero e alter-las um pouco. a variao da expectativa, a inovao em como um roteiro familiar representado, que oferece ao pblico o prazer do reconhecimento do familiar, bem como a emoo do novo. Os gneros, portanto, so dinmicos. Eles mudam.40
Isso, de fato, perceptvel nos filmes de adolescentes. Entre as incontveis obras
que foram rodadas na poca, so poucas as que at hoje so lembradas (como o caso de
O Selvagem e Juventude Transviada). E, se assim o so, porque foram inovadoras na 39 BUSCOMBE, Edward. A idia de gnero no cinema americano. In: RAMOS, Ferno Pessoa (Org.). Teoria Contempornea do Cinema: documentrio e narratividade ficcional. Volume II. So Paulo: Editora Senac, 2005, p. 315. 40 TURNER, Graeme. Op. cit. p. 89.
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formatao daquele gnero, ao mesmo tempo em que conseguiram ser criativas em meio a
srie de convenes relativas ao gnero que estava nascendo. Contudo, fica difcil
classificar todos os elementos que compem os filmes para adolescentes, j que no h
uma homogeneidade de temas ou de estilo, mas, sim diversas divises. Assim, pode-se
dizer que os teenpics so o resultado da dinmica de outros gneros, pois utilizam
elementos do cinema clssico e de gneros como de fico cientfica, terror, melodrama,
ao, entre outros, fazendo uma releitura destes de tal forma que pudessem cativar e
atender as expectativas do pblico jovem. Isso fica evidente nos seus subgneros, sendo os
principais deles os filmes de rock n roll, de terror, sobre delinquncia juvenil e tambm o
inverso deste ltimo, os filmes que podemos chamar de politicamente corretos ou que no
fossem polmicos ao abordar temas ligados ao universo jovem (os clean teenpics, como
so chamados nos Estados Unidos).
De acordo com Thomas Doherty41, os filmes que mais obtiveram sucesso junto ao
pblico adolescente e mais jovem na dcada de 1950 nos Estados Unidos foram os de
terror ou de fico cientfica, ou at mesmo os dois gneros no mesmo filme. Segundo o
autor, filmes de terror sempre atraram um bom pblico aos cinemas. Porm, este tipo de
filme havia praticamente sumido das telas aps a Segunda Guerra Mundial, sendo que a
causa disso ele especula que talvez tenha sido os prprios horrores do conflito blico, que
seriam muito mais chocantes do que qualquer histria de monstro ou fantasma poderia ser.
No entanto, passados poucos anos aps a guerra, filmes de sucesso como Destino
Lua (Destination Moon, direo de Irving Pichel, 1950), O Fim do Mundo (When
Worlds Collide, direo de Rudolph Mat, 1951) e A Guerra dos Mundos (War of the
Worlds, direo de Byron Haskin, 1953) obras que misturam horror e a curiosidade pelo
espao sideral despertaram novamente o interesse por este tipo de produo. Estudiosos
do cinema apontam dois motivos principais (que esto interligados) para o sucesso dessas
histrias. A primeira era a prpria corrida espacial iniciada pelos Estados Unidos e pela
Unio Sovitica. A outra era o medo de uma invaso comunista no pas norte-americano e
de um grande conflito blico entre essas duas superpotncias nos primeiros anos da Guerra
Fria. Nesse sentido, filmes como O Planeta Vermelho (Red Planet Mars, direo de
Harry Horner, 1952), Invasores de Marte (Invaders from Mars, direo de William
Cameron Menzies, 1953) e O Mundo em Perigo (Them!, direo de Gordon M.
Douglas, 1954) tinham seus enredos inspirados na tenso surgida a partir da animosidade 41 DOHERTY, Thomas. Op. cit., p. 116.
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MaryRealceHISTORIA DO CINEMA DE TERROR
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entre Unio Sovitica e Estados Unidos e serviam como representao daquele momento
de tenso poltica, social e militar. Ao mesmo tempo, filmes assim eram apoiados pelo
prprio governo norte-americano que os percebia como uma boa propaganda
anticomunista.
Conforme Alexandre Busko Valim:
Para o pblico, o aspecto mais assustador destes filmes no eram os monstros, canhes lasers, ou naves aliengenas, mas sim a proximidade e invisibilidade com que inimigos aliengenas poderiam atingir alvos estadunidenses. (...) Nos filmes de fico cientfica da dcada de 1950, os cenrios eram dominados por foras hostis que ansiavam por escravizar os estadunidenses. O imaginrio e a linguagem presentes nestes filmes representaram no somente os medos e anseios relacionados atmosfera da Guerra Fria, mas tambm reforaram a convico de que os EUA precisavam se defender de uma possvel invaso. Assim, as ansiedades estimuladas pela possibilidade de um conflito entre o mundo capitalista e o comunista foram fartamente expressadas por filmes de fico cientfica como The Man from the Planet X (1951), The War of the Worlds (1953) e Invaders From Mars (1953), onde o planeta Terra era repetidamente ameaado por invasores aliengenas que cruelmente procuravam por novos lugares para colonizar e destruir.42
Apesar do sucesso desses filmes de fico cientfica entre o pblico mais jovem,
tais obras praticamente ainda no apresentavam os jovens e o seu universo da poca como
fios condutores das tramas. Filmes nesse sentido foram produzidos de modo mais intenso e
em grande escala a partir da segunda metade dos anos 1950. Esse fenmeno esteve
intimamente ligado ao aparecimento do rock n roll, gnero musical que surgiu naquele
perodo e rapidamente transformou-se em um grande sucesso e passou a ser um smbolo
identitrio para boa parte da juventude estadunidense da poca.
O primeiro filme que tratava diretamente sobre o rock and roll foi Ao Balano das
Horas (Rock Around The Clock, direo de Fred F. Sears, 1956). Ele contava a
trajetria fictcia de Bill Halley & The Comets, autores e intrpretes da cano que dava
nome ao longametragem. Filmado com baixo oramento (US$ 300 mil), ele faturou US$ 4
milhes nas bilheterias norte-americanas. O impacto do filme foi to positivo para a
indstria cinematogrfica que, a partir de ento, os grandes estdios de Hollywood tambm
passaram a investir em filmes sobre rock and roll43. Conforme Thomas Doherty44, antes de
42 VALIM, Alexandre Busko. Imagens Vigiadas: Uma Histria Social do Cinema no Alvorecer da Guerra Fria, 1945-1954. Tese (Doutorado em Histria) Universidade Federal Fluminense. Niteri: 2006, p. 60. 43 O impacto provocado pelo filme Rock Around The Clock no apenas atingiu positivamente as finanas de Hollywood, como tambm gerou polmica nos Estados Unidos e at mesmo fora do pas, como demonstra essa matria publicada pelo jornal brasileiro Folha da Tarde, em 02 de outubro de 1956: (...) O filme que
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Rock Around The Clock os estdios de cinema no estavam totalmente cientes de que
dirigir grande parte de suas produes diretamente para o pblico adolescente era um bom
negcio. Mas, depois dele, os produtores e diretores tiveram certeza do enorme potencial
que esse gnero de filme possua, desde que seguisse algumas regras bsicas de produo
e de divulgao para atrair o interesse dos espectadores.
A primeira grande produo foi Sabes Que Te Quero (The Girl Cant Help It!,
direo de Frank Taschlin, 1956). No elenco, o filme apresentava alguns dos principais
nomes do rock n roll da poca, como Little Richard, Gene Vincent e Eddie Cochran. Elvis
Presley tambm foi parar nas telas de cinema. Mas, ao invs de rodar um filme sobre rock,
a sua estria foi o faroeste Ama-me Com Ternura (Love Me Tender, direo de Robert
D. Webb, 1956). Depois deste, Elvis Presley ainda filmou muitos outros, quase que em
srie, entre eles A Mulher Que Amo (Loving You, direo de Hal Kanter, 1957) e O
Prisioneiro do Rock (Jailhouse Rock, direo de Richard Thorpe, 1957).
Filmes sobre rock nroll tinham como uma de suas caractersticas principais um
roteiro bastante simples e muitas vezes repetitivo. Ainda assim, as histrias de namoros em
lanchonetes, brigas entre gangues rivais e pegas disputados com carros velozes tinham tantas complicaes est causando - e at feridos graves, j provocou - chama-se realmente "Rock Around the Clock", o mesmo titulo da cano que serve de tema musical de "Sementes da Violencia", nascendo da a confuso. Trata-se de modesta produo da Columbia Pictures, dessas que entram no regime de produo de rotina. Ningum, nem a companhia nem os produtores do filme puderam imaginar que a pelicula tivesse uma carreira to rapida e se transformasse num recorde de bilheterias, tanto nos Estados Unidos como em outros paises, inclusive na Inglaterra. Embora no tenha custado nem sequer a quinta parte de, por exemplo, "A Um Passo da Eternidade", tambem na Columbia, j rendeu tanto como aquele filme, apesar de continuar inedito na maioria dos mercados no mundo. (...) Um jornalista ingls, que assistiu projeo da pelcula num cinema londrino, durante a qual ocorreram graves acont