Juventude no alvo

2
58 CARTA FUNDAMENTAL REPORTAGEM Juventude no alvo Pesquisa aponta aumento na taxa de homicídio de adolescentes brasileiros e mostra que a violência chegou ao interior do País POR ISABELA MORAIS A ntônio Francisco de Paula Fi- lho estava há poucos meses na direção da Ernani Silva Bruno na Vila Brasilândia, zona nor- te de São Paulo, quando ouviu de dentro da escola os tiros que vitimaram um ex-aluno, em agosto de 2003. “Foi a úni- ca morte que aconteceu tão perto de nós, mas de vez em quando a gente fica sabendo de um caso ou outro”, ele conta. A região, na perife- ria da cidade, carrega os mais pesados índi- ces de assassinato de jovens. Fora da capital paulista, o número de homicídios de crian- ças e adolescentes também ameaça os direi- tos humanos dessa população. Segundo o Mapa da Violência 2012 – Crianças e Adolescentes do Brasil, elabora- do pela Faculdade Latino-Americana de Ci- ências Sociais (Flacso), entre 1981 e 2010, fo- ram registradas 180 mil vítimas, o que coloca o Brasil na quarta posição no ranking mun- dial de assassinatos de pessoas de zero a 19 anos. Entre 92 nações, a situação só é pior em El Salvador, Venezuela e Trinidad e Tobago. Chama a atenção o cenário da última dé- cada. De 2000 a 2010, as taxas, já eleva- das, cresceram de 11,9 para 13,8 assassina- tos para cada 100 mil crianças e adolescen- tes. Além do aumento no número de víti- mas, uma característica histórica voltou a ser confirmada, a vitimização masculina: os garotos somam 90% dos casos. Outro da- do relevante mostra que a violência contra os jovens tem aumentado fora dos grandes centros urbanos e da Região Sudeste. Cerca de 70% de todos os assassinatos co- metidos no País são causados por armas de fogo. Apesar da falta de pesquisas, Bruno Langeani, coordenador da área de contro- le de armas do Instituto Sou da Paz, consi- dera que a tendência deve ser a mesma nos homicídios de crianças e adolescentes. Para Miriam Abramovay, coordenadora da área de Juventude e Políticas Públicas da Flacso, o acesso a armas de fogo, a glamou- rização da violência, as medidas repressivas e a falta de ações para os jovens ajudam a ex- plicar os números. Em uma sociedade exibi- cionista, onde a demonstração de força é ti- da como um bem, a aquisição de armamen- to se torna uma questão delicada. “Como fa- ço pesquisa na área, já ouvi vários depoimen- tos de garotos que dizem ser mais fácil com- prar uma arma do que um pão na padaria.” Outra motivação para os números, de acor- do com a pesquisadora, está na dificuldade do poder público em atender às reivindica- ções básicas da juventude e na prioridade da- da a medidas de caráter repressivo. O trato com jovens pede políticas preventivas. “Não conseguimos garantir um verdadeiro estado de proteção para esses meninos e meninas, porque não prevenimos.” Quanto às políticas públicas, Miriam lamenta que hoje “falta tu- do” para o jovem brasileiro. “Faltam traba- lho, possibilidade de permanecer na escola, acesso à cultura e ao lazer. Faltam políticas de segurança efetivas e medidas de proteção.” Consolidando a tendência observada em estudos anteriores, o Mapa da Violência 2012 mostra duas mudanças na distribuição dos homicídios pelo País. O primeiro fenômeno Entre 1990 e 2000 o número de assassinatos passou de 11,9 para 13,8 para cada 100 mil crianças e adolescentes ••CFReportagemViolencia41.indd 58 28/08/12 19:03

Transcript of Juventude no alvo

Page 1: Juventude no alvo

58 carta fundamental

reportagem

Juventude no alvo Pesquisa aponta aumento na taxa de homicídio de adolescentes brasileiros e mostra que a violência chegou ao interior do PaísPor I sab e l a M o r aI s

Antônio Francisco de Paula Fi-lho estava há poucos meses na direção da Ernani Silva Bruno na Vila Brasilândia, zona nor-te de São Paulo, quando ouviu

de dentro da escola os tiros que vitimaram um ex-aluno, em agosto de 2003. “Foi a úni-ca morte que aconteceu tão perto de nós, mas de vez em quando a gente fica sabendo de um caso ou outro”, ele conta. A região, na perife-ria da cidade, carrega os mais pesados índi-ces de assassinato de jovens. Fora da capital paulista, o número de homicídios de crian-ças e adolescentes também ameaça os direi-tos humanos dessa população.

Segundo o Mapa da Violência 2012 – Crianças e Adolescentes do Brasil, elabora-do pela Faculdade Latino-Americana de Ci-ências Sociais (Flacso), entre 1981 e 2010, fo-ram registradas 180 mil vítimas, o que coloca o Brasil na quarta posição no ranking mun-dial de assassinatos de pessoas de zero a 19 anos. Entre 92 nações, a situação só é pior em El Salvador, Venezuela e Trinidad e Tobago.

Chama a atenção o cenário da última dé-cada. De 2000 a 2010, as taxas, já eleva-das, cresceram de 11,9 para 13,8 assassina-tos para cada 100 mil crianças e adolescen-tes. Além do aumento no número de víti-mas, uma característica histórica voltou a ser confirmada, a vitimização masculina: os garotos somam 90% dos casos. Outro da-do relevante mostra que a violência contra os jovens tem aumentado fora dos grandes centros urbanos e da Região Sudeste.

Cerca de 70% de todos os assassinatos co-

metidos no País são causados por armas de fogo. Apesar da falta de pesquisas, Bruno Langeani, coordenador da área de contro-le de armas do Instituto Sou da Paz, consi-dera que a tendência deve ser a mesma nos homicídios de crianças e adolescentes.

Para Miriam Abramovay, coordenadora da área de Juventude e Políticas Públicas da Flacso, o acesso a armas de fogo, a glamou-rização da violência, as medidas repressivas e a falta de ações para os jovens ajudam a ex-plicar os números. Em uma sociedade exibi-cionista, onde a demonstração de força é ti-da como um bem, a aquisição de armamen-to se torna uma questão delicada. “Como fa-ço pesquisa na área, já ouvi vários depoimen-tos de garotos que dizem ser mais fácil com-prar uma arma do que um pão na padaria.”

Outra motivação para os números, de acor-do com a pesquisadora, está na dificuldade do poder público em atender às reivindica-ções básicas da juventude e na prioridade da-da a medidas de caráter repressivo. O trato com jovens pede políticas preventivas. “Não conseguimos garantir um verdadeiro estado de proteção para esses meninos e meninas, porque não prevenimos.” Quanto às políticas públicas, Miriam lamenta que hoje “falta tu-do” para o jovem brasileiro. “Faltam traba-lho, possibilidade de permanecer na escola, acesso à cultura e ao lazer. Faltam políticas de segurança efetivas e medidas de proteção.”

Consolidando a tendência observada em estudos anteriores, o Mapa da Violência 2012 mostra duas mudanças na distribuição dos homicídios pelo País. O primeiro fenômeno

Entre 1990 e 2000 o número de assassinatos passou de 11,9 para 13,8 para cada 100 mil crianças e adolescentes

••CFReportagemViolencia41.indd 58 28/08/12 19:03

Page 2: Juventude no alvo

carta fundamental 59

é o da interiorização. Até 1996, o crescimento de homicídios acontecia nas capitais e nas re-giões metropolitanas, mas, a partir de 2003, as taxas desses locais declinaram, enquanto os números de cidades do interior cresceram.

A disseminação fez com que diversos es-tados que apresentavam taxas moderadas, durante 1990 a 2000, vivenciassem um boom em seus níveis de violência na década posterior. Movimentos diferentes, mas que integram um mesmo fenômeno. De acordo com a pesquisadora, essas migrações são resultado do aumento da repressão nas ci-dades maiores. “Quando houve um pou-co mais de controle, inclusive, sobre o trá-fico de drogas, a violência foi para o inte-rior.” Hoje, o Brasil conta com diversos fo-cos de violência espalhados pelo território e

não mais com grandes áreas problemáticas.Das dez cidades com maiores taxas, cinco

são do estado da Bahia, duas do Espírito San-to, uma do Pará, uma de Alagoas e uma da Paraíba. Líder do ranking, o município de Si-mões Filho (BA) chega a registrar a taxa de 134,4, seguido de Lauro de Freiras (BA) com 94,6 e Ananindeua (PA) com 88,6. André de Albuquerque Garcia, secretário extraordiná-rio de Ações Estratégias do Espírito Santo, considera que os números revelam uma rea-lidade histórica do estado, que possui duas entre as dez cidades com piores índices. “Sempre estivemos próximos ao dobro da média nacional.” Desde 2011, o governo tra-balha com o Programa Estado Presente, que pretende reduzir a violência nas regiões mais vulneráveis. “Estamos no segundo ano de re-dução de indicadores, mas como a quantida-de de homicídios ainda é elevada, não temos muito que comemorar.” O secretário afirma que tem trabalhado com ações de prevenção entre crianças e adolescentes com atividades culturais, de lazer e ações educativas que aproximam as escolas da comunidade.

De acordo com Miriam, a escola pode de-sempenhar um papel importante para não naturalizar a violência na vida da criança e do adolescente. Se uma cultura de paz per-meia a vida do estudante, ele deixa de bus-car respostas violentas para seus problemas. Uma solução é colocar em discussão as pe-quenas agressões do cotidiano, como xinga-mentos e atitudes preconceituosas.

A escola Ernani Silva Bruno oferece ofici-nas de capoeira, música afro-brasileira, tea-tro e dança do ventre durante o período de contraturno. Apesar de muitos desses proje-tos estarem “capengas”, o diretor Tico – co-mo é conhecido na comunidade – tem con-seguido manter alunos na escola além do período de aulas. Ocupar o tempo das crian-ças e dos adolescentes, afirma Tico, pode ajudar a mantê-los longe da criminalidade da área mais violenta da cidade. Mas só is-so não basta. “O governo tem jogado a fun-ção de criar políticas públicas para a esco-la. Nós ficamos saturados. Por que tudo tem de acontecer na escola? Arrumem-se, tam-bém, outros espaços.”

Tiro cerToOs garotos somam 90% dos casos de violência

ma

rl

en

e b

er

ga

mo

/fo

lh

ap

re

ss

••CFReportagemViolencia41.indd 59 28/08/12 19:03