Juventude, marxismo e revolução

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Michel Silva 2 Quando se analisa a bibliografia acerca da participação política dos jovens, em especial aquela referente à organização e à ação política dos estudantes, percebe-se a construção de uma “mitologia estudantil”, segundo a qual estes seriam uma parte naturalmente rebelde da sociedade (MARTINS FILHO, 987, p. 25). Um desses textos é o estudo clássico de Poerner (968), para quem a universidade no Brasil é “a maior escola de formação de líderes políticos”, escrito sob o impacto das mobilizações estudantis contra a ditadura no final da década de 960. Partindo do pressuposto de que “o estudante brasileiro é um oposicionista nato”, Poerner afirma que “desde o trote dos calouros, em março, às provas finais, em dezembro, com uma ligeira trégua provocada pelas férias de julho, os estudantes brasileiros protestam sempre, sem parar” (POERNER, 968, p. 25). Em estudo de escopo semelhante, embora específico sobre a história do movimento estudantil em Santa Catarina, Moretti (984, p. 7) afirma que “os estudantes sempre estiveram presentes na História do Brasil”, mencionando exemplos que vão da resistência a uma invasão francesa, ocorrida em 70, até as lutas encabeçadas pela UNE a partir de 937. Dessa forma, segundo o autor, o movimento estudantil foi se moldando através dos tempos, e não raras vezes se converteu, em muitos momentos da vida nacional, em verdadeiro “ponta de lança” dessa sociedade oprimida e reprimida, atuando no sentido de desencadear movimentos de caráter mais amplo e que desembocaram em sérias transformações políticas do país (MORETTI, 984, p. 7). Mas essas concepções a respeito da ação política da juventude, em especial por meio das organizações estudantis, não se limitam a procurar uma relação desta com diferentes manifestações de revolta, mas também com processos revolucionários. Mesmo no seio do marxismo se expressa a “mitologia” da natureza rebelde do jovem, ignorando acúmulos políticos e teóricos dessa corrente acerca de questões da juventude. Um exemplo, publicado em revista de circulação nacional voltada ao movimento estudantil, identificava haver, desde o 2 Estudante de Graduação de História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e de Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). começo do século XX, um “mal-estar” da juventude diante das estruturas da sociedade, pois “os jovens sempre resistiram em aceitar passivamente o que a burguesia e os governantes tinham a lhes oferecer” (SAMPAIO, 999, p. 8). Diferentes gerações “recusaram a oferta” da sociedade “regida pela exploração e pela lógica hipócrita da moral burguesa”, pois “na maior parte das vezes, o que se vislumbrava adiante era uma vida massacrante e sem sentido” (SAMPAIO, 999, p. 8). No texto de Sampaio, a geração que viveu após a Primeira Guerra Mundial é descrita como aquela que “sofreu o impacto da Revolução Russa e lutou para derrubar o capitalismo” (SAMPAIO, 999, p. 8). Não há comentários a respeito dos jovens que se colocaram ao lado de suas respectivas burguesias durante a guerra ou que apoiaram o governo provisório derrubado pela revolução soviética em outubro de 97. Sampaio também afirma que “a geração seguinte lutou e derrotou o nazismo e o fascismo nos campos de batalha e nas mobilizações de rua. Milhões de jovens morreram defendendo a liberdade contra o mais monstruoso totalitarismo da história da humanidade” (SAMPAIO, 999, p. 8). Ora, a existência de juventudes organizadas vinculadas aos movimentos nazista e fascista mostra que também havia jovens daquela geração que, convencidos pela idéia de que o projeto autoritário nazi-fascista era uma forma de transformação radical e de melhoria da sociedade, sustentaram os regimes totalitários da Itália e da Alemanha. Portanto, embora partindo de um referencial teórico marxista, Sampaio não consegue sustentar a tese de uma natureza rebelde da juventude, esquecendo que “o radicalismo político é a manifestação de um tipo peculiar de consciência social, isto é, histórica, desenvolvida pelo jovem em condições determinadas” (IANNI, 968, p. 230, grifos do autor). Essa suposta natureza revoltosa da juventude suscitou numerosos debates ao longo do século XX. No início da década de 940, Mannhein afirmou que “a juventude não é progressista nem conservadora por índole, porém é uma potencialidade pronta para qualquer nova oportunidade” (968, p. 74-5). Para o sociólogo, “a mocidade é parte importante das reservas que se acham presentes em toda sociedade. Dependerá da estrutura social, essas reservas (e quais delas, se houver) serem mobilizadas e integradas numa função” (MANNHEIN, 968, p. 77). Esse debate aparece também em Martins Filho (987), que polemiza com as posições que Artigo Juventude, marxismo e revolução 1 28 Texto também publicado na revista Mosaico Social, de Florianópolis, nº. 4, de 2008.

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Michel Silva2�

Quando se analisa a bibliografia acerca da participação política dos jovens, em especial aquela referente à organização e à ação política dos estudantes, percebe-se a construção de uma “mitologia estudantil”, segundo a qual estes seriam uma parte naturalmente rebelde da sociedade (MARTINS FILHO, �987, p. 25). Um desses textos é o estudo clássico de Poerner (�968), para quem a universidade no Brasil é “a maior escola de formação de líderes políticos”, escrito sob o impacto das mobilizações estudantis contra a ditadura no final da década de �960. Partindo do pressuposto de que “o estudante brasileiro é um oposicionista nato”, Poerner afirma que “desde o trote dos calouros, em março, às provas finais, em dezembro, com uma ligeira trégua provocada pelas férias de julho, os estudantes brasileiros protestam sempre, sem parar” (POERNER, �968, p. 25). Em estudo de escopo semelhante, embora específico sobre a história do movimento estudantil em Santa Catarina, Moretti (�984, p. 7) afirma que “os estudantes sempre estiveram presentes na História do Brasil”, mencionando exemplos que vão da resistência a uma invasão francesa, ocorrida em �7�0, até as lutas encabeçadas pela UNE a partir de �937. Dessa forma, segundo o autor,

o movimento estudantil foi se moldando através dos tempos, e não raras vezes se converteu, em muitos momentos da vida nacional, em verdadeiro “ponta de lança” dessa sociedade oprimida e reprimida, atuando no sentido de desencadear movimentos de caráter mais amplo e que desembocaram em sérias transformações políticas do país (MORETTI, �984, p. 7).

Mas essas concepções a respeito da ação política da juventude, em especial por meio das organizações estudantis, não se limitam a procurar uma relação desta com diferentes manifestações de revolta, mas também com processos revolucionários. Mesmo no seio do marxismo se expressa a “mitologia” da natureza rebelde do jovem, ignorando acúmulos políticos e teóricos dessa corrente acerca de questões da juventude. Um exemplo, publicado em revista de circulação nacional voltada ao movimento estudantil, identificava haver, desde o

2 Estudante de Graduação de História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e de Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

começo do século XX, um “mal-estar” da juventude diante das estruturas da sociedade, pois “os jovens sempre resistiram em aceitar passivamente o que a burguesia e os governantes tinham a lhes oferecer” (SAMPAIO, �999, p. 8). Diferentes gerações “recusaram a oferta” da sociedade “regida pela exploração e pela lógica hipócrita da moral burguesa”, pois “na maior parte das vezes, o que se vislumbrava adiante era uma vida massacrante e sem sentido” (SAMPAIO, �999, p. 8).

No texto de Sampaio, a geração que viveu após a Primeira Guerra Mundial é descrita como aquela que “sofreu o impacto da Revolução Russa e lutou para derrubar o capitalismo” (SAMPAIO, �999, p. 8). Não há comentários a respeito dos jovens que se colocaram ao lado de suas respectivas burguesias durante a guerra ou que apoiaram o governo provisório derrubado pela revolução soviética em outubro de �9�7. Sampaio também afirma que “a geração seguinte lutou e derrotou o nazismo e o fascismo nos campos de batalha e nas mobilizações de rua. Milhões de jovens morreram defendendo a liberdade contra o mais monstruoso totalitarismo da história da humanidade” (SAMPAIO, �999, p. 8). Ora, a existência de juventudes organizadas vinculadas aos movimentos nazista e fascista mostra que também havia jovens daquela geração que, convencidos pela idéia de que o projeto autoritário nazi-fascista era uma forma de transformação radical e de melhoria da sociedade, sustentaram os regimes totalitários da Itália e da Alemanha. Portanto, embora partindo de um referencial teórico marxista, Sampaio não consegue sustentar a tese de uma natureza rebelde da juventude, esquecendo que “o radicalismo político é a manifestação de um tipo peculiar de consciência social, isto é, histórica, desenvolvida pelo jovem em condições determinadas” (IANNI, �968, p. 230, grifos do autor).

Essa suposta natureza revoltosa da juventude suscitou numerosos debates ao longo do século XX. No início da década de �940, Mannhein afirmou que “a juventude não é progressista nem conservadora por índole, porém é uma potencialidade pronta para qualquer nova oportunidade” (�968, p. 74-5). Para o sociólogo, “a mocidade é parte importante das reservas que se acham presentes em toda sociedade. Dependerá da estrutura social, essas reservas (e quais delas, se houver) serem mobilizadas e integradas numa função” (MANNHEIN, �968, p. 77). Esse debate aparece também em Martins Filho (�987), que polemiza com as posições que

Artigo

Juventude, marxismo e revolução128

� Texto também publicado na revista Mosaico Social, de Florianópolis, nº. 4, de 2008.

defendem “representações ilusórias” sobre os estudantes, presentes tanto em estudos históricos e sociológicos como nos discursos de lideranças estudantis. Para fundamentar sua polêmica, o autor aponta, por exemplo, que no Brasil “há indícios de que, com freqüência, os estudantes das faculdades da Primeira República foram portadores de orientações antipopulares e elitistas” (MARTINS FILHO, �987, p. �6). Em trabalho mais recente, Zaneti procura analisar a relação entre a juventude e a “atitude revolucionária”, entendida como a “disposição de adotar a revolução como saída para os problemas políticos e sociais” (ZANETI, 200�, p. 28). O autor afirma que “a história da humanidade tem-nos mostrado que há na juventude uma potencialidade latente que pode ser mobilizada por uma via revolucionária” (ZANETI, 200�, p. 28, grifos meus). Portanto, esses autores não falam da juventude como algo pronto e acabado, cuja trajetória está determinada pela idade, mas como construção histórica de subjetividades individuais e coletivas.

Entre as contribuições marxistas ao debate acerca da juventude, há as de Lênin e Trotski, que enfrentaram, como dirigentes políticos do Partido Comunista e do Estado soviético, as questões referentes às ações políticas e às perspectivas em relação à juventude. Lênin, embora não tenha se dedicado especificamente a esse tema, escreveu alguns textos sobre o que considerava as “tarefas” da juventude. Em um desses trabalhos, escrito em �903, o autor afirma concordar com uma das teses defendidas pela redação do jornal socialista de juventude Student, quando este afirma: “apenas um sentimento revolucionário não pode criar a unidade ideológica dos estudantes”, sendo necessário para este objetivo “um ideal socialista, que se apóie numa ou noutra concepção socialista do mundo” (apud LÉNINE, �984, p. �03). Para Lênin, não há um instinto revolucionário juvenil, pois ele entende que a perspectiva da transformação social está ligada à formação de uma consciência política e de uma clareza ideológica por parte da juventude.

Lênin não compreende a juventude como uma categoria monolítica, mas distingue dentro dela alguns grupos, entre os quais os “reacionários”, os “indiferentes”, os “políticos” – divididos entre liberais, socialista-revolucionários e sociais-democratas – e os “academistas” ou “culturalistas” (LÉNINE, �984, p. �04-5)3.� Para o autor, essa divisão deve ser encarada por meio de uma compreensão histórica e materialista da realidade. Os estudantes são a parte da intelectualidade que mais sensivelmente reflete e exprime “o desenvolvimento dos interesses de classe e dos agrupamentos políticos

3 Naquela conjuntura o movimento socialista europeu ainda não havia se dividido em duas grandes alas, os “reformistas” e os “revolucionários”. Essa divisão viria a ocorrer no plano organizativo internacional apenas em �9�4, quando amplos setores de partidos social-democratas, como o alemão, se posicionaram a favor da guerra. Em �903, quando Lênin redigiu o texto citado, termos como “revolucionário” e “marxista” eram mais ou menos sinônimos de “social-democrata”.

em toda a sociedade” (LÉNINE, �984, p. �05). Os grupos antes mencionados não são uma expressão direta e mecânica da divisão de classe da sociedade russa, embora essa divisão seja o fundamento mais profundo dos agrupamentos de juventude. Essa divisão só se revela “no curso do desenvolvimento histórico e à medida que cresce a consciência dos participantes e criadores deste desenvolvimento”, como parte da “luta política” (LÉNINE, �984, p. �06).

Trotski, numa pequena nota de �938, direcionada à conferência de uma organização socialista de juventude, reflete sobre a necessidade de analisar fatores concretos para que se entenda a relação da juventude com a revolução. Segundo o autor, um atributo básico da juventude socialista é sua disposição em entregar-se de forma total e completa à revolução, destacando a importância do sacrifício, que “move para frente” a história. Mas destaca que “o sacrifício apenas não é o suficiente”, afinal “o mais contagiante entusiasmo rapidamente esfria-se ou evapora se não encontra uma clara compreensão das leis do desenvolvimento histórico” (TROTSKI, �999, p. 44). Para Trotski, “adquirir conhecimento e experiência e ao mesmo tempo não dissipar o espírito lutador, o auto-sacrifício revolucionário e a disposição de ir até o final (...) é a tarefa da educação e da auto-educação da juventude revolucionária” (TROTSKI, �999, p. 44). Dessa forma, ao dialogar com a juventude socialista revolucionária, Trotski aponta a grande disposição para a luta e para o sacrifício como elementos fundamentais na constituição dessa categoria. Mas entende ser necessário que esses jovens também tenham experiência de vida e de luta política e um entendimento materialista histórico da sociedade, alcançado apenas por meio da formação teórica.

Outro aspecto, também levantado com freqüência na bibliografia acerca da juventude, é a relação entre as gerações. Lênin, em texto de �920, afirma que “é precisamente à juventude que incumbe a verdadeira tarefa de criar a sociedade comunista”, afinal “a geração de militantes educada na sociedade capitalista pode, no melhor dos casos, realizar a tarefa de destruir as bases do velho modo de vida capitalista baseado na exploração” (LÉNINE, �980, p. 386). De forma semelhante, ao discutir a questão das gerações, o sociólogo Karl Mannhein afirma que “as gerações mais velhas e intermediárias talvez possam prever a natureza das futuras mudanças e sua imaginação criadora pode ser empregada para formular novas diretrizes, porém a nova vida só será vivida pelas gerações mais moças” (MANNHEIN, �968, p. 72).

Lênin, referindo-se às tarefas das novas gerações diante da necessidade de construir uma nova sociedade, rejeita a idéia de que toda a herança da velha sociedade deve ser jogada fora. Para o autor, “só poderemos

construir o comunismo com a soma de conhecimentos, organizações e instituições, com a reserva de forças e meios humanos que ficaram da velha sociedade” (LÉNINE, �980, p. 386). Nesse contexto, caberia à juventude, entendida como pilar da nova sociedade, a tarefa de “aprender o comunismo”, o que para Lênin não significava decorar manuais e seguir cegamente discursos e idéias dos “velhos”. Essa mera reprodução seria semelhante à educação promovida no capitalismo. Para Lênin, não seria papel da juventude ser cópia dos “velhos” revolucionários, que nasceram sob o capitalismo, mas “partir do material que nos ficou da velha sociedade” para, “transformando radicalmente o ensino, a organização e a educação da juventude”, fazer com que seus esforços “tenham como resultado a criação duma sociedade que não se pareça com a antiga” (LÉNINE, �980, p. 386).

Mas a dinâmica da revolução soviética não fez surgir uma nova sociedade. Sobre novas bases econômicas construiu-se algo que muito se assemelhava à sociedade capitalista, a ponto de não mais caber à juventude “aprender o comunismo”. Em �936, o secretário geral da Juventude Comunista definia as novas “tarefas da juventude”:

Temos de deixar de tagarelar sobre os planos industrial e financeiro, sobre a descida dos preços de custo, sobre o equilíbrio das contas, sobre as sementeiras e todas as outras tarefas do governo, como se fôssemos nós a decidir sobre isso (apud TROTSKI, �980, p. ��6, grifos do autor).

Deixava-se de lado a preocupação de Lênin em pôr fim ao “completo divórcio entre o livro e a vida prática” (LÉNINE, �980, p. 387). Nesse novo contexto, segundo Trotski, à juventude restava como possibilidades:

assimilar-se à burocracia e fazer carreira; submeter-se em silêncio, absorvendo no trabalho econômico ou científico, ou na pequenez da sua vida privada; ou passar à clandestinidade, aprender a combater e temperar-se para o futuro (TROTSKI �980, p. ��3).

Portanto, a juventude, antes vista como o principal agente na construção da nova sociedade comunista, via-se presa e tolhida, sem poder realizar o que a revolução antes lhe apontava como possibilidade de ação histórica. Mas, como destaca Trotski, alguns jovens não se submeteram de forma passiva à burocracia stalinista. Em vários momentos, até serem esmagados definitivamente no final da década de �930, os diversos grupos de oposição conquistaram a simpatia de setores de juventude. Por exemplo, a Oposição de Esquerda, que tinha à sua frente alguns importantes dirigentes da revolução de �9�7, inclusive Trotski, reunia também muitos jovens, em especial da juventude operária, justamente pela defesa que fazia da revolução enquanto processo dinâmico e afastado de esquemas. Contra Stalin e seu bloco com Zinoviev e Kamenev, Trotski afirmava em �923:

Nossa juventude não deve se limitar a repetir nossas

fórmulas. Ela deve conquistá-las, assimilá-las, opinar sobre elas, formar seu próprio perfil, e ser capaz de lutar por seus próprios pontos de vista com a coragem que uma profunda convicção e uma inteira independência de caráter possibilitam. (...) O bolchevique não se resume a um homem disciplinado, é um homem que em cada caso constrói uma opinião firme e a defende corajosamente, não somente contra seus inimigos, mas dentro do seu próprio partido (apud BROUÉ, �996, p. 62).

Portanto, ao analisar alguns clássicos do marxismo em suas rápidas e esparsas contribuições ao debate sobre juventude, percebe-se a compreensão de que os comportamentos e possíveis papéis historicamente assumidos pelos jovens na sociedade estão condicionados pela própria realidade de cada sociedade. Por exemplo, na Rússia, em certo momento, a tarefa de juventude era a de “construir” o novo, a partir da “destruição” que as gerações anteriores haviam feito do “velho”, ou seja, a tarefa da juventude era em certo sentido moderada, partindo sempre do que de melhor havia restado do “velho”. Em outro momento, sob o terrorismo estatal stalinista, à juventude caberia interiorizar que seu papel na sociedade se limitava apenas a seguir as normas estabelecidas pelos “velhos”. Em oposição à burocracia, nessa conjuntura, Trotski apontava como tarefa da juventude fazer com a burocracia algo semelhante ao que os “velhos” tinham feito com o capitalismo.

Nem a estratégia moderada apresentada nas colocações de Lênin, nem as palavras libertárias de Trotski, ambas pensadas sob condições históricas diversas, negam o que era mais caro aos dois revolucionários russos: a revolução é um processo dinâmico e aberto. Nas situações expostas, estava nas mãos da juventude não apenas construir o “novo”, mas, se preciso, destruir um “novo velho” que se materializava no stalinismo.

Em contraste às análises que naturalizam a rebeldia da juventude, pode-se concluir que o comportamento juvenil está historicamente condicionado pelas mais diferentes contradições: de classe, de geração, de locais, entre outras. Não é possível atribuir às ações da juventude “um caráter genérico e imutável, conferindo-lhe conteúdos e objetivos permanentes” (MARTINS FILHO, �987, p. �7). O jovem operário não será obrigatoriamente “revolucionário”, nem o jovem burguês um “contra-revolucionário”, pois as próprias ideologias e posições políticas das classes e de seus estratos são definidas histórica e socialmente. Portanto, não é possível encarar a juventude em geral nem os extratos mais jovens das classes como um todo homogêneo, como se fosse possível deduzir mecanicamente da condição de classe ou da idade um comportamento político “natural” ou uma consciência de classe previamente definida. Conforme Thompson (�987, p. �0), “a consciência de classe surge da mesma forma em tempos e lugares diferentes, mas nunca exatamente da mesma forma”. Nos comportamentos juvenis há tendências latentes à revolta, que, mais do que determinações oriundas de

fatores biológicos, são conseqüência do conjunto das condições sociais em que vivem os sujeitos e produto de experiências individuais e coletivas.

Nesse sentido, as contribuições de Lênin e Trotski, corroboradas pelas pesquisas realizadas no âmbito dos estudos sobre juventude, são fundamentais para se entender a dialética da relação entre os jovens e a revolução. O jovem “rebelde” não é produto de uma natureza revolucionária, mas de momentos históricos específicos, em função de problemas e necessidades sociais concretas.

O jovem não é visto abstratamente, desvinculado do universo econômico e sócio-cultural em que se produz, mas exatamente em conexão com esse universo, conforme ele afeta a consciência da situação da própria pessoa, da classe social e da sociedade global (IANNI, �968, p. 240).

Os jovens rebeldes tiveram características diferentes ao longo da história, apontando sua prática política sempre para estratégias específicas, acompanhando ou não a classe “progressista” (burguesia nas revoluções liberais, proletariado nas revoluções socialistas) da sociedade em que estavam inseridos. Dessa forma, temos uma conclusão simples, mas tantas vezes difícil de compreender: o homem faz-se a si mesmo, em certo contexto, sob certas condições e com diferentes perspectivas.

Referências:BROUÉ, Pierre. União Soviética: da revolução ao

colapso. Porto Alegre: Ed. Universidade, �996.IANNI, Otávio. O jovem radical. In: BRITO,

Sulamita (Org.). Sociologia da juventude, I: Da Europa de Marx à América Latina de Hoje. Rio de Janeiro: Zahar, �968.

LÉNINE, Vladimir Ilitch. As tarefas da juventude revolucionária. In: ______. Obras escolhidas em seis tomos. Moscou-Lisboa: Progresso-Avante, �984, t. �.

______. As tarefas das Uniões da Juventude. In: ______. Obras escolhidas: em três tomos. São Paulo: Alfa-Omega, �980, t. 3.

MANNHEIN, Karl. O problema da juventude na sociedade moderna. In: BRITO, Sulamita (Org.). Sociologia da juventude, I: Da Europa de Marx à América Latina de Hoje. Rio de Janeiro: Zahar, �968.

MARTINS FILHO, João Roberto. Movimento estudantil e ditadura militar (�964-68). Campinas: Papirus, �987.

MORETTI, Serenito. Movimento estudantil em Santa Catarina. Florianópolis: [s.n.], �984.

POERNER, Arthur José. O poder jovem: história da participação política dos estudantes brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, �968.

SAMPAIO, Bruno. Juventude e revolução. Ruptura Socialista, [São Paulo], n. 0, nov. �999.

THOMPSON, Edward. A formação da classe operária inglesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, �987, vol. I (A Árvore da liberdade).

TROTSKI, Leon. A revolução traída. São Paulo: Global, �980.

______. Uma carta para a juventude. In: ANDRADE, Everaldo (org.). Juventude e socialismo: textos sobre a juventude. São Paulo: O Trabalho, �999.

ZANETI, Hermes. Juventude e revolução: uma investigação sobre a atitude revolucionária juvenil no Brasil. Brasília: EDUNB, 200�.