Jurisprudência Mineira_ed.168

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p. 1-359 Repositório autorizado de jurisprudência do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Registro nº 16, Portaria nº 12/90. Os acórdãos selecionados para esta Revista correspondem, na íntegra, às cópias dos originais obtidas na Secretaria do STJ. Repositório autorizado de jurisprudência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, a partir do dia 17.02.2000, conforme Inscrição nº 27/00, no Livro de Publicações Autorizadas daquela Corte. Jurisprudência Mineira Belo Horizonte a. 55 v. 168 abril/junho 2004 Jurisprudência Mineira Órgão Oficial do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais

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  • p. 1-359

    Repositrio autorizado de jurisprudncia do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA, Registro n 16,Portaria n 12/90.

    Os acrdos selecionados para esta Revista correspondem, na ntegra, s cpias dos originaisobtidas na Secretaria do STJ.

    Repositrio autorizado de jurisprudncia do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, a partir do dia17.02.2000, conforme Inscrio n 27/00, no Livro de Publicaes Autorizadas daquela Corte.

    Jurisprudncia Mineira Belo Horizonte a. 55 v. 168 abril/junho 2004

    Jurisprudncia Mineirargo Oficial do Tribunal de Justia

    do Estado de Minas Gerais

  • Fotos da Capa: Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza - Sobrado em Ouro Preto onde funcionou o antigo Tribunal da Relao

    - Palcio da Justia Rodrigues Campos, sede do Tribunal de Justia de Minas GeraisSrgio Faria Daian - Montanhas de Minas GeraisRodrigo Albert - Corte Superior do Tribunal de Justia de Minas Gerais

    Projeto Grfico: ASCOM/COVICDiagramao: EJEF/GEDOC/COTECNormalizao Bibliogrfica: EJEF/GEDOC/COBIB

    SuperintendenteDes. Srgio Antnio de Resende

    Superintendente-AdjuntaDes. Jane Ribeiro Silva

    Diretora ExecutivaMaria Ceclia Belo

    Gerente de Documentao, Pesquisa e Informao EspecializadaPedro Jorge Fonseca

    Assessoria JurdicaMaria da Consolao SantosMaria Helena Duarte

    Coordenao de Comunicao TcnicaEliana Whately Moreira - CoordenadoraMarclio Nogueira de OliveiraMaria Clia da SilveiraMaria Mnica Ribeiro RochaMarisa Martins FerreiraMaricelle da Silva MedeirosMeire Aparecida Furbino MarquesMnica Alexandra de Mendona Terra e Almeida SSvio Capanema Ferreira de MeloTadeu Rodrigo RibeiroThales Augusto BentoVera Lcia Camilo Guimares

    Escola Judicial Des. Edsio Fernandes

    Escola Judicial Desembargador Edsio FernandesRua Guajajaras, 40 - 20 andar - Centro - Ed. Mirafiori Telefone: (31) 3224-006530180-100 - Belo Horizonte/MG - Brasil www.tjmg.gov.br/ejef - [email protected]

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    Qualquer parte desta publicao pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

    Disponvel tambm em CD-ROM.

    ISSN 0447-1768

    JURISPRUDNCIA MINEIRA, Ano 1 n 1 1950-2004Belo Horizonte, Tribunal de Justia do Estado de Minas Gerais

    Trimestral.ISSQN 0447-1768

    1. Direito - Jurisprudncia. 2. Tribunal de Justia. Peridico. I.Minas Gerais. Tribunal de Justia.

    CDU 340.142 (815.1)

  • PresidenteDesembargador MRCIO ANTNIO ABREU CORRA DE MARINS

    Primeiro Vice-PresidenteDesembargador HUGO BENGTSSON JNIOR

    Segundo Vice-PresidenteDesembargador SRGIO ANTNIO DE RESENDE

    Terceiro Vice-PresidenteDesembargador ANTNIO HLIO SILVA

    Corregedor-Geral de JustiaDesembargador ISALINO ROMUALDO DA SILVA LISBA

    Tribunal Pleno

    Desembargadores

    (por ordem de antiguidade em 29.06.2004)

    Tribunal de Justia do Estado de Minas Gerais

    Francisco de Assis FigueiredoGudesteu Biber SampaioEdelberto Lllis SantiagoMrcio Antnio Abreu Corra de MarinsHugo Bengtsson JniorOrlando Ado de CarvalhoAntnio Hlio SilvaCludio Renato dos Santos CostaKelsen do Prado CarneiroIsalino Romualdo da Silva LisbaSrgio Antnio de ResendeArmando Pinheiro LagoRoney OliveiraNilo Schalcher VenturaLuiz Carlos BiasuttiReynaldo Ximenes CarneiroJoaquim Herculano RodriguesMrio Lcio Carreira MachadoJos Tarczio de Almeida MeloJos Antonino Baa BorgesLucas Svio de Vasconcellos GomesJos Francisco BuenoClio Csar PaduaniHyparco de Vasconcellos ImmesiKildare Gonalves CarvalhoMrcia Maria Milanez CarneiroTibagy Salles OliveiraNilson ReisDorival Guimares PereiraJarbas de Carvalho Ladeira Filho

    Jse Altivo Brando TeixeiraJos Domingues Ferreira EstevesJane Ribeiro SilvaAntnio Marcos Alvim SoaresEduardo Guimares AndradeAntnio Carlos CruvinelFernando Brulio Ribeiro TerraEdivaldo George dos SantosSilas Rodrigues VieiraWander Paulo Marotta MoreiraSrgio Augusto Fortes BragaMaria Elza de Campos ZettelGeraldo Augusto de AlmeidaCaetano Levi LopesLamberto de Oliveira SantAnnaLuiz Audebert Delage FilhoErnane Fidlis dos SantosJos Nepomuceno da SilvaCelso Maciel PereiraErony da SilvaManuel Bravo SaramagoBelizrio Antnio de LacerdaJos Edgard Penna Amorim PereiraJos Carlos Moreira DinizPaulo Czar DiasJos Luciano Gouva RiosVanessa Verdolim Hudson AndradeEdilson Olmpio FernandesCarlos Batista FrancoGeraldo Jos Duarte de Paula

  • Composio de Cmaras e Grupos - Dias de Sesso

    Primeira Cmara CvelTeras-feiras

    Segunda Cmara CvelTeras-feiras

    Primeiro Grupo deCmaras Cveis

    1 quarta-feira do ms(Primeira e Segunda

    Cmaras, sob a Presidnciado Des. Francisco Figueiredo)

    - Horrio: 13 horas -

    Desembargadores

    Orlando Ado de Carvalho* Eduardo Guimares AndradeGeraldo Augusto de AlmeidaJos Luciano Gouva Rios

    Vanessa Verdolim Hudson Andrade* Presidente da Cmara

    Desembargadores

    Francisco de Assis Figueiredo* Nilson Reis

    Jarbas Ladeira

    Jos Altivo Brando Teixeira Caetano Levi Lopes

    Terceira Cmara CvelQuintas-feiras

    Quarta Cmara CvelQuintas-feiras

    Segundo Grupo deCmaras Cveis

    1 quarta-feira do ms(Terceira e Quarta Cmaras,sob a Presidncia do Des.

    Schalcher Ventura)

    - Horrio: 13 horas -

    Desembargadores

    Nilo Schalcher Ventura* Lucas Svio de Vasconcellos Gomes

    Kildare Gonalves CarvalhoLamberto de Oliveira Sant'Anna

    Celso Maciel Pereira * Presidente da Cmara

    Desembargadores

    Mrio Lcio Carreira Machado*Jos Tarczio de Almeida Melo

    Hyparco de Vasconcellos ImmesiLuiz Audebert Delage FilhoJos Carlos Moreira Diniz

    Quinta Cmara CvelQuintas-feiras

    Sexta Cmara CvelSegundas-feiras

    Terceiro Grupo deCmaras Cveis

    3 quarta-feira do ms(Quinta e Sexta Cmaras,sob a Presidncia do Des.

    Cludio Costa)

    - Horrio: 13 horas -

    Desembargadores

    Cludio Renato dos Santos CostaJos Francisco Bueno*

    Dorival Guimares Pereira

    Maria Elza de Campos ZettelJos Nepomuceno da Silva * Presidente da Cmara

    Desembargadores

    Jos Domingues Ferreira Esteves*

    Ernane Fidlis dos SantosManuel Bravo Saramago

    Edilson Olmpio FernandesCarlos Batista Franco

    Stima Cmara CvelSegundas-feiras

    Oitava Cmara CvelSegundas-feiras

    Quarto Grupo de CmarasCveis

    3 quarta-feira do ms(Stima e Oitava Cmaras,

    sob a Presidncia do Des. Pinheiro Lago)

    - Horrio: 13 horas -

    Desembargadores

    Armando Pinheiro Lago*Antnio Marcos Alvim SoaresEdivaldo George dos Santos

    Wander Paulo Marotta MoreiraBelizrio Antnio de Lacerda * Presidente da Cmara

    Desembargadores

    Roney Oliveira*

    Fernando Brulio Ribeiro TerraSilas Rodrigues Vieira

    Jos Edgard Penna Amorim PereiraGeraldo Jos Duarte de Paula

  • Primeira Cmara CriminalTeras-feiras

    Segunda Cmara CriminalQuintas-feiras

    Grupo de Cmaras Criminais (2 segunda-feira do ms) - Horrio: 13 horasPrimeira, Segunda e Terceira Cmaras, sob a Presidncia do Des. Gudesteu Biber

    Desembargadores

    Gudesteu Biber SampaioEdelberto Lllis Santiago

    Mrcia Maria Milanez CarneiroTibagy Salles Oliveira*

    Srgio Augusto Fortes Braga

    * Presidente da Cmara

    Desembargadores

    Luiz Carlos Biasutti

    Reynaldo Ximenes Carneiro*Joaquim Herculano Rodrigues

    Jos Antonino Baa BorgesClio Csar Paduani

    Conselho da Magistratura (Sesso na primeira segunda-feira do ms) - Horrio: 14 horas

    Mrcio Antnio Abreu Corra de MarinsPresidente

    Hugo Bengtsson Jnior Primeiro Vice-Presidente

    Srgio Antnio de ResendeSegundo Vice-Presidente

    Isalino Romualdo da Silva LisbaCorregedor-Geral de Justia

    Desembargadores

    Desembargadores

    Kelsen do Prado Carneiro*Jane Ribeiro Silva

    Antnio Carlos Cruvinel

    Erony da Silva

    Paulo Czar Dias

    Terceira Cmara CriminalTeras-feiras

    Procurador-Geral de Justia: Dr. Nedens Ulisses Freire Vieira

    Corte Superior (Sesses nas segundas e quartas-feiras do ms - Horrio: 13 horas)

    Mrcio Antnio Abreu Corra de MarinsPresidente

    Hugo Bengtsson JniorPrimeiro Vice-Presidente

    Srgio Antnio de ResendeSegundo Vice-Presidente

    Antnio Hlio SilvaTerceiro Vice-Presidente

    Isalino Romualdo da Silva LisbaCorregedor-Geral de Justia

    Francisco de Assis FigueiredoGudesteu Biber Sampaio

    Edelberto Santiago

    Orlando Ado de CarvalhoCludio Renato dos Santos Costa

    Presidente do TRE

    Kelsen do Prado CarneiroVice-Presidente do TRE

    Armando Pinheiro LagoRoney Oliveira

    Nilo Schalcher VenturaLuiz Carlos Biasutti

    Reynaldo Ximenes CarneiroJoaquim Herculano RodriguesMrio Lcio Carreira MachadoJos Tarczio de Almeida Melo

    Jos Antonino Baa BorgesLucas Svio de Vasconcellos Gomes

    Jos Francisco Bueno

    Clio Csar Paduani

    Kildare Gonalves CarvalhoTibagy Salles Oliveira

    Desembargadores

    Hyparco de Vasconcellos ImmesiMrcia Maria Milanez Carneiro

    Nilson Reis

    Dorival Guimares Pereira

    Jarbas de Carvalho Ladeira FilhoJos Altivo Brando Teixeira

  • Escola Judicial Des. Edsio Fernandes

    SuperintendenteDes. Srgio Antnio de Resende

    Superintendente-AdjuntaDes. Jane Ribeiro Silva

    Comit Tcnico

    Des. Srgio Antnio de ResendeDes. Jane Ribeiro SilvaDr. Maria Ceclia Belo

    Des. Nilson ReisDes. Vanessa Verdolim Hudson Andrade

    Des. Antnio Carlos CruvinelDr. Selma Maria Marques de Souza

    Dr. Pedro Carlos Bitencourt MarcondesDes. Caetano Levi Lopes - Assessor Especial

    Diretora ExecutivaMaria Ceclia Belo

    Gerente de Documentao, Pesquisa e Informao EspecializadaPedro Jorge Fonseca

    Assessoria JurdicaMaria da Consolao Santos

    Maria Helena Duarte

    Coordenadora de Comunicao TcnicaEliana Whately Moreira

    Coordenador de Pesquisa e Orientao TcnicaFrancisco de Assis Machado

    Coordenadora de Documentao e BibliotecaDenise Maria Ribeiro Moreira

  • Comisso de Divulgao e Jurisprudncia

    Desembargadores

    Hugo Bengtsson Jnior - PresidenteEduardo Guimares Andrade - 1 Cvel

    Caetano Levi Lopes - 2 CvelKildare Gonalves Carvalho - 3 CvelLuiz Audebert Delage Filho - 4 Cvel

    Maria Elza de Campos Zettel - 5 CvelErnane Fidlis dos Santos - 6 Cvel

    Antnio Marcos Alvim Soares - 7 CvelSilas Rodrigues Vieira - 8 Cvel

    Srgio Augusto Fortes Braga - 1 CriminalClio Csar Paduani - 2 Criminal

    Jane Ribeiro Silva - 3 Criminal

  • SUMRIO

    MEMRIA DO JUDICIRIO MINEIRO

    Desembargador Andr Martins de Andrade - Nota biogrfica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

    O caso do cavalo Melado - Nota histrica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

    DOUTRINA

    A responsabilidade civil no pargrafo nico do art. 927 do Cdigo Civil e alguns apontamentos do direito comparado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

    A doutrina do direito natural em Toms de Aquino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

    Reflexes sobre a averbao das sentenas de separao judicial e de divrcio no Registro de Imveis . . . 39

    TRIBUNAL DE JUSTIA DE MINAS GERAIS

    1 Corte Superior . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

    2 Jurisprudncia Cvel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71

    3 Jurisprudncia Criminal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239

    SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 305

    SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 321

    NDICE NMERICO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 331

    NDICE ALFABTICO E REMISSIVO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 335

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    Desembargador ANDR MARTINS DE ANDRADE

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    MEMRIA DO JUDICIRIO MINEIRO

    Nota biogrfica

    Desembargador Andr Martins de Andrade

    Juiz a pessoa que, investida de autoridade pblica, tem por funo administrar justia em nome doEstado. Cumpre-lhe, porm, ser culto e operoso, sereno e humano, probo e independente. Essas qualidadesornaram o carter do Desembargador Andr Martins de Andrade e fizeram com que o seu nome venervel jamaisfosse olvidado nos meios forenses. A anlise de todas elas no caberia dentro dos limites deste rpido esboode sua vida. Cinge-se, pois, quela que o projetou como uma das glrias da Magistratura mineira - a sua cultura.

    Nascido em 20 de maio de 1871, na Cidade de Campanha, era filho do Dr. Andr Martins de Andrade e deD. Maria Marciliana Ferreira de Andrade, descendendo, pois, de ilustre e tradicional famlia montanhesa. Herdarade seu pai, que, promoo para a segunda instncia, preferiu exercer a judicatura em sua terra natal, o pendorpara os estudos das cincias jurdicas e as virtudes que sempre soube honrar, como anota Alfredo Valado, nacorrespondncia do nome ntegro juiz de que era filho.

    Revelara, na juventude, acentuada inclinao para as letras. Depois de concluir com invulgar brilhantismoo Curso de Humanidades do Colgio So Lus, em Itu, no Estado de So Paulo, de onde saiu conhecendo bemo latim e lendo no original obras de escritores ingleses, franceses e italianos, escreveu um poemeto em 1888,quando ainda se preparava, di-lo em seu prembulo, para encetar a srie das lutas acadmicas.

    Na Faculdade de Direito de So Paulo (1889-1893), destacara-se pela firmeza de atitudes, serenidade nocumprimento de seus deveres de estudante e raras qualidades de esprito e inteligncia. Suas composies poti-cas durante esse perodo propiciaram-lhe a entrada para os meios literrios. Magalhes de Azeredo, que foi maistarde um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, tecia em O Estado de S. Paulo os maiores encmiosa seus sonetos, que reputava primorosos. Adolfo Arajo, o futuro fundador e diretor d A Gazeta, fazia entusis-ticas referncias aos seus versos. Ezequiel Ramos Jnior, em publicaes no Correio Paulistano, inclua-o entreos maiores talentos poticos de ento.

    Mas no foi s na poesia que revelara o seu pendor. Tambm na prosa conquistou louros. Em concursode contos promovido pela Gazeta de Notcias, jornal que contava com Machado de Assis e Olavo Bilac dentreos seus colaboradores e que mais ligaes tinha com as letras, logrou obter o segundo lugar, apesar das muitasprodues de valor que concorreram aos prmios.

    Distinguira-se, ainda, como musicista, estudando os compositores clssicos, mas se deixando trair porespecial predileo pelas peras lricas. Se ao piano costumava executar msicas ligeiras, como flautista chegoua ser considerado um autntico virtuose. Ainda lembrado, em Campanha, o famoso quarteto de que fazia parte,organizado pelo maestro Pompeu e integrado pelos filhos deste, Samuel e Marcelo.

    A esse tempo j exercia naquela comarca as funes de Promotor de Justia, passando, em seguida, adesempenh-las em Alfenas, sobressaindo, sempre, pelo seu sentido agudo de observao e cuidado no tratodas questes a ele afetas.

    Casou-se, em 8 de dezembro de 1898, com D. Emiliana, filha do seu tio Dr. Manoel Eustachio Martins deAndrade, prestigioso chefe poltico no Sul de Minas e que fora deputado Assemblia Geral, ao tempo doImprio, pelo Partido Liberal (1878-1880), e, na Repblica, membro da Constituinte de Minas Gerais e senadorao Congresso Estadual (1891-1895), tendo sido sempre cercado da estima e considerao de seus Pares.

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    Nota histrica

    O caso do cavalo Melado

    Jnia Cavalcante Diniz (*)

    Apresentao

    Em atendimento a inmeros pedidos de estudantes, acadmicos de Direito, mormente de faculdades do

    Norte de Minas, que visitam a Memria do Judicirio Mineiro, publicamos o processo da Ao de Busca e

    Apreenso em que o objeto do litgio o cavalo por nome Melado, dado e passado na Comarca de Manga,

    sendo Juiz de Direito o Exmo. Doutor Osvaldo Oliveira Arajo Firmo, jovem e talentoso Magistrado, Mestre e

    Especialista em Direito Constitucional, dentre outros ttulos; de aprecivel cultura jurdica e humanstica e condu-

    ta funcional, pessoal e social pontuada pela elegncia, , o que os franceses definem, un homme dune belle

    prestance.

    Quem apresenta o referido processo o Exmo. Juiz de Direito, Doutor Marcelo Paulo Salgado.

    Estando respondendo pela Comarca de Manga, deparei com o Processo de n 2.238/92, da Ao de

    Busca e Apreenso, em que so partes Lourdes Pereira dos Santos x Jonas Torres Dourado, e que, segundo

    penso, poder ser de grande valia Memria do Judicirio Mineiro como registro da cultura desta regio.

    Cumpre destacar que se trata de questo pitoresca e comum nesta regio do Norte de Minas, onde o

    extrovertido e espirituoso advogado Helder Mota Ferreira (...) retrata com fidelidade e poesia o fato, no que

    acompanhado, tambm, com despachos e sentena de afinada cultura potica pelo brilhante Juiz Osvaldo

    Oliveira Arajo Firmo, cujo dinamismo, simpatia e sensibilidade ficaro para sempre anotados nos anais desta

    aprazvel e hospitaleira Comarca.

    Marcelo Paulo Salgado - Juiz de Direito

    Manga, 10 de janeiro de 2001.

    (*) Assessora da Superintendncia da Memria do Judicirio Mineiro.

  • Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 55, n 168, p. 11-19, abril/junho 200416

    Petio

    Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da Comarca de Manga-MG.

    Lourdes Pereira dos Santos, (...) agricultora, residente e domiciliada na Fazenda Boa Vista, distrito de

    Panelinha II, Municpio e Comarca de Manga-MG, por Seu Procurador infra-assassinado (...) vem, respeitosamente,

    perante V. Exa propor a Ao de Busca e Apreenso contra o Sr. Jonas Torres Dourado, (...) lavrador, residente e

    domiciliado na Fazenda Tapicuru, no lugar denominado Japur, Municpio e Comarca de Manga-MG (...).

    Que a requerente proprietria de uma cavalo Melado, com estrutura grande, troncho da orelha esquer-

    da, com aproximadamente 12 anos de idade, com crina e rabo tambm da cor melada, cujo animal se encontra-

    va na Fazenda Boa Vista, prxima propriedade do requerido.

    Todavia, no dia 08 de julho do corrente ano, o animal acima qualificado, adentrou a propriedade do requeri-

    do, danificando pequena plantao de milho e causando insignificante prejuzo.

    Acontece, V. Exa., que ao invs de o requerido procurar a requerente para receber sua plantao danifi-

    cada pelo animal irracional, preferiu o exerccio arbitrrio das suas prprias razes, pegando o cavalo infrator e

    levando-o para sua propriedade, buscando a seu bel-prazer compensar os prejuzos alegados, como se a justia

    fosse aplicada ao seu inteiro critrio.

    No menos absurdo o requerido submeter o pobre e inocente animal aos mais variados tipos de violn-

    cias, privando-o de comida e usando-o de maneira exclusiva para todo tipo de tarefas, a fisionomia do animal j

    causa piedade em pessoas literalmente insensveis.

    Na realidade, V. Exa., o valor econmico do animal nem sequer corresponde s despesas processuais.

    (...), vrias e infrutferas providncias j foram tomadas, mas o requerido at hoje nem ao menos foi intimado para

    comparecer Delegacia de Polcia (...).

    Por outro lado, a requerente poderia usar do desforo imediato no sentido de defender o legtimo direito do

    seu patrimnio, mas, como pessoa de boa ndole que , preferiu trilhar o caminho da justia, que, sabe, lograr xito.

    Termos em que p. deferimento.

    Manga, 21 de outubro de 1992.

    Helder Mota Ferreira - Advogado.

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    Despacho

    Comarca de Manga. Proc. n 2.238/92Ao Busca e ApreensoReqda.: Lourdes Pereira dos SantosReqdo.: Jonas Torres Dourado

    Lourdes Pereira dos Santos,mulher que trabalhadora,envolvida em muitos prantos:brasileira, casada e agricultoratem um cavalo farrista,talvez uma parelha de bois...,na Fazenda Boa Vista,l em Panelinha II.

    Mas seu querido cavalo,que trazia coisas pra cidade,o grande e fiel Meladotroncho da orelha esquerda,e com doze anos de idade,se viu numa enrrascada,de arrepiar cauda e crina,por uma causa explicada,que por certo pequenina.

    que Jonas Torres Dourado,lavrador em Japur,tambm brasileiro e casado,teve seu milho pisadosob as patas do pangar.

    O bravo Torres Dourado,sequer se fez de rogado,ou quis merecer suplcio:estando bem chateado,fez arbitrrio exercciode suas prprias razes -coisa incomum na cidade,mas sabida nos grotes.

    Levou Melado pra casa,pra Fazenda Tapicuru.De milho de cova rasahoje ele come angu.

    Dona Lourdes s saudade,do Melado prestativo.Tem notcias que ele sofrenas mos de quem cativo.

    E to injusto o confisco,que as lgrimas de saudadetm enchido o So Francisco...

    Dizem os que o conhecem,ao Melado, de verdade,que sua fisionomiacausa a todos piedade.

    Triste a sina de Melado,quadrpede inesquecvel...cuja sorte, alardeado,abala gente insensvel.

    Mas sua dona e patroa,prefere as vias da lei,tem f na Constituio,e pede em liminal,sua busca e aprenso,sem muito alarde geral.Que tudo se faa partedo autor de vil priso,e, inaudita altera parte,liberte-se o cavalo peo.

    Mas no ficou acertado,das provas como convm,ao juzo confirmado,que dona daquilo que tem,de seu cavalo Melado,que no puro alazo,mas bom no arado e canga,e amado na regio,de Panelinha a Manga,enfim por todo o serto.

    Em face disso, precisoouvirem-se testemunhas,pessoas de muito sisoem prvia justificao,onde confirmem ao Juzo:Dona Lourdes tem razo.

    Pela urgncia do pedidodo eqino esperado,o dia 13 se alinha,azado que eu o entendo,sexta-feira na folhinha,do corrente ms - novembro -,para a audincia marcado,sem muito fazer alarde,que o dia macabro,s duas horas da tarde.

    E venha a gente amiga,de a p ou sobre barca,ao Frum Dr. Ortiga,na sede deta Comarca.

    E o dia ser de sorte,para o Melado azaro,que, comendo milho alheio,cumpre pena desde ento.

    Intime-se por mandadoa quem de direito queirae ao douto Advogado,Dr. Helder Mota Ferreira,por ordem deste togadoda Magistratura Mineira,e que vem abaixo-assinado, em Manga, com o sol rompendo,no dia 10 de novembro.

    Certido

    Certifico que expedi mandado de intimao, entregando-o ao Oficial Judicirio, para o devido cumpri-mento. Dou f, Manga, 10 de novembro de 1992. O Tcnico Judicirio.

  • Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 55, n 168, p. 11-19, abril/junho 200418

    Pedido de arquivamento

    Excelentssimo Juz,poeta bem adornado,aqui venho, procurador,nos autos, e abaixo-assinado,narrar o fim deste feito,que mal se viu comeado,e pedir o arquivamento,por ordem deste Togado.

    Melado j est em casa,na Fazenda Boa Vista,descansando do sofrimento,de que por certo foi vtima.Corre atrs de touro bravo,sem ter o menor cuidado,no pode ver p de milho,que fica desesperado...

    A chegada de Melado,foi marcada de emoo,do lado de Dona Lourdes,autora desta Ao,e com eles, seu marido,e Zequinha no violo,sanfona de oito baixos,tocada por Z Paixo.

    Foi grande felicidade,na Regio de Japur,Melado chegou com festa,forr e arrasta-p.

    Agora s ter cuidado,e um pouco de maldade,pois os momentos vividosno lhe deixaram saudade.

    Dona Lourdes, com notrioar de ter satisfao,j veio a meu escritrio,manifestar gratido,confiada na Justia,que provocou a solturae ps a fora submissa.Louvou a Magistraturae vai mandar rezar missa.

    Pelo Motivo exposto,de pouca fundamentao,se perdeu o objeto,acabou tambm a ao.Aos autos, adeus: ao arquivo,como a Lei determina,mas sem antes pagar as custas(por certo so pequeninas).

    O Despacho de V. Exa.,alm de bem fundamentado,mostrou a enorme competnciadeste Jovem Magistrado,que, com pouco tempo em Manga,nos causa admirao:culto e inteligente,age com dedicao.

    Desfeito todo o tormento,aguardam os autos despachos,pondo fim ao sofrimentodo Melado feito capacho.Pede, pois, deferimento,do pedido de arquivamento,em Manga, muito chovendo,no dia 17 de dezembro.

    Helder Mota Ferreira - Advogado, OAB: 75.584.

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    Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 55, n 168, p. 11-19, abril/junho 2004 19

    Concluso

    Aos dezoito de dezembro de milnovecentos e noventa e dois,at eu, escrivo, que lhefao concluso,j me acho entendiado como caso do Melado.Peo a V. Exa. permisso,com respeito e admirao,que profira uma deciso,acabe com a brincadeirae mande o processo para a prateleira.

    Assino eu, Ulisses Ferreira.

    Do ilustre Advogado,um combativo Doutor,nas lides gabaritado,e da poesia bom cultor,recebo em conclusopedido de arquivamentoem mtrica petio.

    Melado, neste juzo, histria que tem final.Laborou em prejuzoao pisar no milharal.

    Voltou pra casa contente,para alegria geralde todo e qualquer parente,dos instrudos aos sem grau.

    De Manga a Japur,foi tudo uma festa pois:motivo de arrasta-pl em Panelinha II.

    No Juzo fez sucessosem nunca aparecer.Iniciada a porfia,no pedido de regressodo Melado de valia,teve despacho impresso

    em forma de poesia(jocosa que eu a confesso).

    Devolvido o bom Melado,melou-se toda a lide:est o pedido acatadoe sem merecer revide;Melado est no campopastando capim nativo,e seu processo, portanto,que v repousar no arquivo.

    At o Escrivo se apanha,sem muito trazer seno,fazendo versos com manha,de cantador do serto.

    Cumpra-se este despacho,arquivando-se o processo,pela perda de objeto.E as custas, sem profuso,depois do feito contado,includa a inflao,pague a dona de Melado.Est o caso encerrado.

    Em manga, com o rio enchendo,carregando porco e bois,em 18 de dezembro,do ano de 92.

    Deciso

    Sentena

    Segue a minha decisono feita com muita arte,mas com toda ateno,em 2 (duas) laudas parte.

    Manga, 18 de dezembro de 1992.

    Osvaldo Oliveira Arajo Firmo - 127 Juiz de Direito Substituto.

    -:::-

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    DOUTRINA

    A responsabilidade civil no pargrafo nico do art. 927 do Cdigo Civil e alguns apontamentos do direito comparado

    Dr. Leonardo de Faria Beraldo*

    SUMRIO: 1 Introduo. 2 Independentemente de culpa. 3 Nos casos especificados em lei. 4 Atividade normalmentedesenvolvida pelo autor do dano. 5 Por sua natureza. 6 Risco para os direitos de outrem. 7 Excludentes de ilicitude. 8Questo processual. 9 Nossas crticas com relao inovao e alguns exemplos prticos. 10 Concluso. 11 Bibliografia.

    1 Introduo

    Com o advento do novo Cdigo Civil Brasileiro-CCB, muitas inovaes ocorreram em nosso ordenamen-to, algumas representaram avanos, j outras, verdadeiros retrocessos. E a mudana sobre a qual nos propuse-mos a fazer uma breve anlise no tocante ao pargrafo nico do art. 927, que versa sobre a responsabilidadecivil. Ou, como alguns doutrinadores vm dizendo, uma verdadeira clusula geral ou aberta de responsabilidadeobjetiva, reflexo dos princpios da eticidade e da socialidade, pilares bsicos do novo Cdigo Civil.

    Dispe aquele dispositivo legal que:

    haver obrigao de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a ativi-dade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, riscos para o direito de outrem.

    Talvez seja esta uma das inovaes que mais vm preocupando as pessoas de modo geral, haja vista que oCdigo adotou, neste artigo, a responsabilidade objetiva, devendo ser analisada com bastante cautela.

    Adotou-se, assim, com esta novidade no campo do direito positivo, a teoria do risco criado, tendo em CAIOMRIO DA SILVA PEREIRA o seu maior defensor. Trata-se de uma questo de socializao dos riscos, pois odano decorrente da atividade de risco recair, sempre, ou no seu causador (que se beneficia do risco auferindolucro), ou na vtima (membros da sociedade). Porm, no justo que, dentre estas duas pessoas, a prejudicadaseja aquela que no teria como evit-lo.1

    GEORGES RIPERT, ao se referir teoria do risco criado, explica muito bem que no por ter causado orisco que o autor obrigado reparao, mas sim porque o causou injustamente, o que no quer dizer contra oDireito, mas contra a justia.2

    Assim, para uma melhor compreenso deste novo dispositivo, achamos melhor dividi-lo em partes, sendo quetodas elas so pequenos trechos do prprio artigo, que, basicamente, se compe dos seguintes elementos: a) responsa-bilidade independentemente de culpa; b) nos casos especificados em lei; c) atividade normalmente desenvolvida peloautor do dano; d) por sua natureza; e) geradora de riscos para direito de outrem.

    2 Independentemente de culpa

    Pela expresso independentemente de culpa, no resta dvida de que estamos falando de responsabilidadeobjetiva. Lembremos que os requisitos da responsabilidade subjetiva so aplicveis responsabilidade objetiva, comexceo do elemento culpa.

    Assim, para que haja a obrigao de reparar o dano, em se tratando de responsabilidade objetiva, faz-semister a demonstrao, pela vtima, do nexo de causalidade entre a conduta ilcita do autor do fato danoso e odano por ela sofrido.

    Trata-se, portanto, de uma clusula geral de responsabilidade objetiva. Particularmente, no somos a favorde uma clusula geral igual a esta no mbito da responsabilidade civil, uma vez que deixa ao alvedrio do juiz aindicao de quais seriam os casos de aplicao da responsabilidade objetiva.

    (*) Advogado em Belo Horizonte. Ps-Graduado em Direito Processual Civil. Professor substituto de Direito Processual Civil na Faculdade deDireito Arnaldo Janssen, em Belo Horizonte.1 Neste sentido, confira: RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigaes civis. 2 ed. Traduzido por OLIVEIRA, Osrio de. Campinas: Bookseller,2002, n 116, p. 215.2 Op. cit., p. 216.

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    3 Nos casos especificados em lei

    Quando o dispositivo menciona que haver obrigao de reparar o dano, nos casos especificados em lei,nos parece evidente que o legislador quis deixar claro que as leis especiais continuam em vigor, tais como oCdigo de Defesa do Consumidor.

    Podemos lembrar aqui que o acidente do trabalho (Lei 6.367/76) e os danos praticados pelas pessoasjurdicas de direito pblico e as de direito privado prestadoras de servio pblico (art. 37, 6, da CF/88) socasos de responsabilidade objetiva.

    Os empresrios e as sociedades respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelosprodutos postos em circulao, ex vi do disposto no art. 931 do Cdigo Civil.

    As pessoas elencadas no art. 932 do CCB, nos termos do art. 933, tambm do CCB, tm responsabilidadeobjetiva perante terceiros.

    O dono ou o detentor do animal que causar danos a terceiros tambm tem responsabilidade civilindependentemente de culpa, conforme dispe o art. 936 do CCB.

    A responsabilidade civil do transportador objetiva, segundo o art. 734 do CCB e do Decreto 2.681/12(ferrovias). O Cdigo Brasileiro de Aeronutica tambm trata desta matria (transporte areo).

    Os danos causados ao meio ambiente (Lei 6.938/81) e os danos nucleares (Lei 6.453/77) igualmente.

    Existem ainda outros casos de responsabilidade objetiva previstos em legislao especial, que, com todacerteza, continuam em vigor.

    4 Atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano

    Aqui, importante atentar para duas coisas, quais sejam: a) o conceito de atividade; e b) que esta sejanormalmente desenvolvida pelo autor do dano.

    A palavra atividade, a nosso ver, deve ser entendida como sendo os servios praticados por determinadapessoa, seja ela natural ou jurdica. Exemplo disso est estampado no prprio Cdigo,3 quando, no art. 966, con-ceitua empresrio como sendo aquela pessoa que exerce profissionalmente atividade econmica organizadapara a produo ou a circulao de bens ou de servios. Ou seja, exerce ou presta servios econmicos de formaorganizada, habitual, reiterada e profissional, e no de forma isolada por algum.

    E, ainda, preciso que esta atividade seja normalmente desenvolvida pelo autor do dano, significando,ento, que ela no pode ser meramente espordica ou momentnea, devendo, ainda, guardar ligao direta como objeto social por ela desenvolvido.

    Assim, por exemplo, imagine-se uma sociedade cujo nico objeto a venda de flores e plantas. At aqui, v-se que no existe nenhuma atividade de risco normalmente desenvolvida, certo? Mas vamos supor que ela tivesseum pequeno gerador de energia, movido a diesel, para o caso de falta de energia eltrica e ela pudesse continuartrabalhando e, principalmente, manter refrigerado o seu estoque. Certo dia, o mencionado gerador explode, acar-retando danos nos prdios vizinhos. Dessa forma, seria possvel a aplicao da regra do art. 927, pargrafo nico,do CCB, tendo em vista a utilizao de gerador de energia movido a diesel, que sabidamente um produto alta-mente inflamvel? Temos que a resposta seria negativa, uma vez que na atividade normalmente desenvolvida poresta sociedade no era necessrio o uso de diesel, mas apenas e to-somente em casos de emergncia, que eraforoso o uso do gerador. Contudo, claro que o dono do empreendimento deve responder pelos danos ocasiona-dos nos prdios vizinhos, mas no com base no disposto do art. 927, pargrafo nico, do CCB.

    Quem, portanto, explora habitualmente uma grande mquina de escavao e terraplanagem est perma-nentemente gerando situao de risco para operrios e terceiros que convivam com sua atividade. Quem, poroutro lado, usa eventualmente um veculo de passeio (automvel, motocicleta ou bicicleta etc.) no se pode dizerque desempenhe atividade normalmente desenvolvida. J o mesmo no se passa com a sociedade que explo-ra os veculos automotores como instrumento habitual de sua atividade econmica.

    3 No livro do Direito de Empresa, a palavra atividade aparece por diversas vezes, v. g., nos arts. 971 a 973, 1.156, 1.168 e 1.194.

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    5 Por sua natureza

    Esta expresso, no nosso entendimento, deve ser trabalhada com bastante cuidado. A palavra naturezapossui conceito relativamente vago, da a perplexidade de alguns doutrinadores com relao ao seu real signifi-cado no contexto do dispositivo legal em comento.

    Por questo de concordncia da lngua portuguesa, podemos extrair a primeira assertiva, qual seja, a deque a natureza da atividade normalmente desenvolvida.

    Dando prosseguimento, resta elucidar, mais precisamente, o que seria esta tal natureza da atividade.Entretanto, antes disso, faz-se imperioso relembrar que no existem palavras mortas no texto da lei, ou seja, no sepode afirmar que esta expresso desprovida de significado.

    E, no presente texto legal, qual poderia ser o conceito da expresso por sua natureza?

    Ratificando o que j foi dito, a natureza do risco da atividade normalmente desenvolvida, devendo (aatividade) implicar, por si s, risco para os direitos de outrem.

    Destarte, faz-se mister ressaltar que toda atividade pode implicar, por menor que seja, algum tipo de riscoa terceiros. Por outro lado, no toda e qualquer atividade que o legislador pretendeu abranger no pargrafonico do art. 927 do CCB, mas, apenas e to-somente, aquelas cujo risco inerente, intrnseco.

    Assim, a importncia da expresso em comento , exatamente, restringir o rol das atividades querealmente implicam risco para os direitos de outrem. Desta feita, no basta que a atividade normalmente desen-volvida pelo autor do dano crie risco a terceiros, sendo imprescindvel que, na natureza da atividade, ou seja, nasua essncia, exista uma potencialidade lesiva fora dos padres normais.

    Com efeito, nos sbios dizeres do jurista italiano C. MASSIMO BIANCA, aquela atividade que por suaprpria natureza ou por caractersticas dos meios utilizados contm uma intensa possibilidade de provocar umdano em razo de sua acentuada potencialidade ofensiva.4 No mesmo diapaso o magistrio dos portuguesesPIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA.5

    Por derradeiro, faz-se pertinente registrar a opinio de SRGIO CAVALIERI FILHO no tocante expressopor sua natureza implicar risco, a qual estaria ligada s obrigaes de resultado, idia esta que, data venia, nocorresponde adequadamente aos ditames do pargrafo nico do art. 927 do CCB,6 posio da qual pedimos vniapara divergir.7

    Portanto, concluindo este tpico, no resta dvida de que deve haver, na atividade normalmentedesenvolvida pelo autor do dano, uma intrnseca potencialidade lesiva.8 Isto, sim, representa a natureza do riscoda atividade.

    6 Risco para os direitos de outrem

    4 "attivit che per la loro stessa natura o per le caratteristiche dei mezzi adoperati comportano la rivelante possibilit del verificarsi di un danno perla loro spiccata potenzialit offensiva". In: Diritto civile. (ristampa). v. 5. Milano: Giuffr, 1994. p. 705.5 "No se diz, no n 2, o que deve entender-se por actividade perigosa. Apenas se admite, genericamente, que a perigosidade derive da prprianatureza da actividade". In: Cdigo Civil anotado. v. I. 4 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1984, p. 495.6 "Logo, o bom senso est a indicar que a obrigao de indenizar no decorrer da simples natureza da atividade, ainda que tenha uma perigosi-dade inerente. Para no chegarmos a uma inteligncia absurda, devemos entender que a expresso 'por sua natureza' no diz respeito naturezado servio, tampouco ao risco que ele produz, mas sim natureza da obrigao assumida por aquele que presta o servio. H uma clssica econhecida distino entre obrigao de meio e de resultado, devida a Demogue. (...). Em nosso entender, a responsabilidade objetiva prevista nodispositivo em exame s se configura quando a natureza do servio (atividade desenvolvida) gera para o fornecedor uma obrigao de resulta-do, e no apenas de meio" (Programa de responsabilidade civil. 5 ed. So Paulo: Malheiros, p. 174-175).7 Acontece que, ao tratar da natureza da atividade, SRGIO CAVALIERI FILHO a examina apenas do ponto de vista da responsabilidade con-tratual, no fazendo nenhum comentrio acerca da responsabilidade extracontratual. Inclusive, da maneira pela qual foi discorrido por ele o tema,deixa a entender que o dispositivo s aplicvel em se tratando de responsabilidade contratual, o que, com toda certeza, no procede. Alis,temos que seria at mesmo dispensveis maiores comentrios sobre a responsabilidade contratual, pois o seu mero inadimplemento j gera aoinadimplente o dever de indenizar. E notrio que a responsabilidade dos profissionais liberais, no nosso Direito, sempre de meio, e no deresultado, salvo algumas raras excees, como a do mdico-anestesista e a do cirurgio plstico. Ademais, por fora do art. 14, 4, do CDC, aresponsabilidade dos profissionais liberais subjetiva. A propsito, importante lembrar que todos os artigos do CDC continuam plenamente emvigor, no tendo sido revogado com a entrada em vigor do novo Cdigo Civil.8 Expresso utilizada por BIANCA, C. Massimo. Op. cit., p. 708.

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    Importante observar que, atualmente, quase todas as atividades implicam algum tipo de risco, e, no tendo olegislador definido quais seriam essas atividades de risco, caber doutrina e jurisprudncia, com extrema cautela,definir quais atividades seriam estas, para evitar uma banalizao do instituto. Lembrando que determinada atividadeempresria pode no ser de risco, assim como certa atividade no-empresria pode ser de risco.9 Dessa forma, er-rado querer estabelecer uma regra vinculando as atividades de risco ao fato de o empresrio ou a sociedade exerceremuma atividade empresria ou no-empresria, dependendo, portanto, do caso concreto.

    Primeiramente, cumpre destacar que o risco da execuo da atividade, e no de qualquer ao ou omis-so. E atividade, como vimos, o servio profissional desenvolvido por algum, no se confundindo com ao ouomisso. Com isso, queremos dizer que, ao contrrio de algumas opinies10, no entendemos que osparticulares que dirigem seus automveis poderiam estar enquadrados no pargrafo nico do art. 927 do CCB,pois, como bem salientou ALVINO LIMA, a teoria do risco no se justifica desde que no haja proveito para oagente causador do dano, porquanto, se o proveito a razo de ser da justificativa de arcar o agente com osriscos, na sua ausncia deixa de ter fundamento a teoria.11 Ora, dirigir veculos motorizados,12 data venia, meraao ou conduta que pode vir a trazer riscos a terceiros, mas, nunca, uma atividade, salvo nos casos desociedades empresrias cujo objeto o transporte de pessoas ou de coisas.

    E o taxista que atropelar um pedestre, estaria ele enquadrado no pargrafo nico do art. 927 do CCB? Aresposta tormentosa e vai depender de um detalhe, qual seja, se ele pode ser equiparado a profissional liberal ouno.13 Caso seja o taxista, ento, considerado um profissional liberal, a sua responsabilidade ser subjetiva, tendo emvista que o art. 14, 4, do Cdigo de Defesa do Consumidor, exige a apurao de culpa dos profissionais liberais.Como visto, a discusso gira em torno do fato de haver ou no a necessidade de a pessoa ser graduada em algumcurso superior. Na nossa opinio, apenas podem ser considerados profissionais liberais aqueles que possuem cursosuperior. Logo, os taxistas esto sujeitos responsabilidade objetiva do dispositivo em anlise, uma vez que exercem,habitualmente, atividade intrinsecamente perigosa.

    Na Espanha, segundo MANUEL ALBALADEJO, a responsabilidade do condutor de um veculo objetiva.14Por outro lado, em Portugal, subjetiva.15

    Destarte, acreditamos, ento, que atividade de risco aquela que possui, por exemplo, correlao diretacom produtos inflamveis, explosivos,16 txicos, trabalho em minas ou no subsolo, produtos nucleares ou radioa-tivos, armas de fogo, explosivos, manuseio de energia eltrica acima daquela utilizada nas casas das pessoas,17

    9 Exemplo de atividade no-empresria de risco aquela cujo objeto cientfico, nos moldes do art. 966, pargrafo nico, do CCB, pois poder haveralguma que manipule produtos explosivos e radioativos constantemente, gerando, assim, uma probabilidade de dano muito maior para terceiros do queoutras atividades. Em contrapartida, uma loja especializada na venda de balas e chocolates empresria, mas no representa risco algum a terceiros.10 Entendendo que "a direo de veculos motorizados pode ser considerada como atividade que envolve grande risco para os direitos de outrem",confiram GONALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 8 ed. So Paulo: Saraiva, 2003, p. 25. 11 LIMA, Alvino. Culpa e risco. 2 ed. So Paulo: RT, 1999, p. 198.12 Sem falar que um direito constitucionalmente garantido a todos, o de ir e vir.13 Para alguns, s pode ser considerado como profissional liberal o autnomo, independentemente do nvel de escolaridade, que exera atividade porconta prpria (MIRANDA, Gilson Delgado. Cdigo de Processo Civil Interpretado. So Paulo: Atlas, 2004, p. 824). GILSON MIRANDA exemplifica comosendo o advogado, o mdico, o dentista, o pintor, o msico, o eletricista, o desenhista, o veterinrio, o encanador etc., informando, ainda, que PONTESDE MIRANDA tambm pensa desta forma. Por outro lado, existem doutrinadores que entendem haver a necessidade de curso superior para que umautnomo possa ser considerado um profissional liberal, dentre eles: SANTOS, Ernane Fidlis dos. Manual de Direito Processual Civil. 9 ed. So Paulo:Saraiva, 2002, p. 718; e ASSIS, Araken de. Procedimento sumrio. So Paulo: Malheiros, 1996, p. 34. Veja, ainda, a revista Ajuris, v. 16, julho, 1979,Porto Alegre, p. 24-29.14 Ao comentar o art. 1 da Ley 122/1962 (e que sofrera algumas modificaes), que versa sobre o uso e circulao de veculos de motor, ALBALADE-JO salienta que "por lo que toca a los daos a las personas, la responsabilidad del causante de los mismos es objetiva, de modo que procede de lapropria produccin Del dano, omisin hecha de que se deba o no a culpa de su autor. Y solo no hay que indemnizarlo cuando se pruebe que fuedebido nicamente a culpa o negligencia del perjudicado o a fuerza mayor extraa a la conduccin o al funcionamiento del vehculo", in Derecho civil.v. II. 10 ed. Barcelona: Jose Maria Bosch Editorial, 1997, 153, p. 504. Acrescenta ainda que "el condutor de vehculos a motor es responsable, emvirtude del riesgo creado por la conduccin del mismo de los daos causados a las personas o en los bienes con motivo de la circulacin", in idem,ibidem. E, para JOS PUIG BRUTAU, no se consideram como casos de fora maior os defeitos "de ste ni la rotura o fallo de algunas de su piezaso mecanismos", in Compendio de derecho civil. v. II. 3 ed. actualizada e revisada por CHARLES J. MALUQUER DE MOTES BERNETT. Barcelona:Bosch, 1997, p. 653.15 LIMA; VARELA. Op. cit., p. 496.16 "O fabricante de produto de limpeza, que coloca no mercado produto perigoso (diabo verde), cujo contato com a gua provoca gases explo-sivos, resultando em cegueira da consumidora, deve reparar os danos materiais decorrentes da incapacidade permanente e estticos, posto quea venda de tais produtos deve ser efetuada com suficiente advertncia em relao s transformaes qumicas, produzindo a formao de gases,com exploso da embalagem. Em tal situao de perigo, no basta a simples recomendao quanto ao modo de uso, mas tambm de advertn-cias, relativas s transformaes qumicas. Aplicao dos artigos 9 e 10 do Cdigo de Proteo do Consumidor. Recurso conhecido e no provi-do" (TJPR, AC 0070691-2 - (18667), 3 C.Cv., Rel. Des. Conv. Srgio Rodrigues, DJPR de 08.12.2000).17 Responsabilidade civil. Rompimento de cabo de alta tenso. Acidente em virtude de forte descarga eltrica. Responsabilidade objetiva da con-cessionria de energia eltrica. Dano material estabelecido em um salrio mnimo mensal. Valor adequado espcie. Dano moral e esttico.Admissibilidade de cumulao. Valores igualmente corretos. Denunciao da lide. Seguradora. Responsabilidade por danos morais e estticos,uma vez que esto compreendidos nos danos pessoais. Recursos desprovidos" (TJPR, Ap Cv 0118660-3 - (140) - Toledo, 8 C.Cv., Rel. Des.Campos Marques, DJPR de 13.05.2002).

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    ou pela velocidade incomum da tarefa desempenhada. Lembrando que risco no quer dizer incerteza, mas proba-bilidade de dano. No direito comparado,18 a caa (tanto a esportiva quanto a recreativa) includa dentre as ativi-dades perigosas, embora no seja propriamente uma atividade no sentido econmico ou empresarial, conformedemonstramos no item 4.

    Atividades de risco so, portanto, aquelas que criam para terceiros um estado de perigo, isto , a possibilidade, ou, aindamais, a probabilidade de receber um dano, probabilidade esta maior do que a normal derivada das outras atividades.19

    Veja como a jurisprudncia de Portugal se tem manifestado sobre quais atividades seriam perigosas.20 Ocurioso que a atividade da construo civil no considerada, em Portugal, como sendo de risco.21

    Confira tambm o entendimento da giurisprudenza italiana sobre atividades de risco.22

    Importante registrar que a palavra risco pode ter duplo sentido; seno, vejamos. O primeiro o j esposa-do por ns. O segundo aquele que as pessoas comumente gostam muito de dizer sobre a atividade comercial,que tem muitos riscos, ou seja, as coisas podem dar errado ou no funcionar como o esperado. Em voto pro-ferido pela Ministra Nancy Andrighi, do STJ, uma empresa de aviao foi condenada a indenizar um passageiropelo atraso de seu vo, ao fundamento de que o atraso por si s decorrente desta operao impe aresponsabilizao da empresa area, nos termos da atividade de risco que oferece.23 Est claro que o que elaquis dizer que so riscos desta atividade, v. g., o atraso, mas no que ela gere perigo a terceiros. O risco aoqual o CCB faz meno aquele por ns j explicado, sinnimo de perigo, e que este seja fora do comum, tendosido inclusive objeto de discusso no STJ.24 A atividade bancria sempre gera risco a terceiros.

    7 Excludentes de ilicitude

    Mesmo no pargrafo nico, possvel afirmar que existem algumas excludentes de ilicitude,25 tais como ocaso fortuito, a fora maior e a culpa exclusiva da vtima.26 Esta ltima excludente existe por motivo muito simples,qual seja, ningum pode responder por atos a que no tenha dado causa. Na culpa exclusiva da vtima, no

    18 Argentina, Espanha e Portugal, por exemplo.19 Cf. SERRA, Vaz. Responsabilidade civil. Separata do Boletim do Ministrio da Justia, n 85, Lisboa, p. 370.20 " de considerar como perigosa a utilizao de uma empilhadora, cujo operador, de noite, apenas tem a iluminao de dois faris fixos (um decada lado da mquina), a fim de sobrepor toros de madeira numa pilha com mais de cem metros de comprimento e seis, a sete metros de altura,perfazendo um peso de muitos milhares de quilos, sem que aquela iluminao lhe permitisse ver o topo da pilha em que colocava os toros"(Supremo Tribunal de Justia de Portugal, Recurso n 084068, Rel. Conselheiro Gelasio Rocha, j. em 27.10.92). No mesmo sentido: "Ora, semafastar a natural apreciao casustica, Ribeiro de Faria qualifica como perigosas certas actividades que impliquem o emprego de substnciasradioactivas, manipulao de lquidos corrosivos ou fabricao de explosivos. A jurisprudncia vem entendendo que, em certos casos concretos,ocorre perigosidade na actividade desenvolvida, quer pela sua natureza, quer pelos meios utilizados: por exemplo, a abertura de uma vala numarua de uma cidade, designadamente na Cidade de Lisboa, a utilizao de armas de fogo, a utilizao de energia elctrica de alta tenso, o lana-mento de foguetes, a utilizao de um termo-ventilador industrial alimentado por duas botijas de gs, o armazenamento e manuseamento deresinas naturais, a abertura de um tanque de condensados com o uso de uma rebarbadeira elctrica, a actividade de uma escavadora no sopde uma encosta com acentuado declive, o emprego de um compressor com ponteiro de ao na demolio e perfurao de estruturas de cimentoe ferro, o funcionamento de um catterpilar" (Supremo Tribunal de Justia de Portugal, Recurso n 04B025, Rel. Conselheiro Arajo Barros, j. em12.02.2004). Por outro lado, estas so algumas atividades que no so consideradas, em Portugal, como sendo de risco: "Em contrapartida, temtambm sustentado que no constituem actividades perigosas a conduo de gua para abastecimento pblico atravs de conduta resguardada,a actividade de secagem de madeiras feita por um conjunto de composto de uma caldeira, um gerador elctrico e uma estufa a funcionar em cir-cuito fechado, a actividade de conduo de automvel. Concretamente no que respeita actividade de construo e obras, s por si e se abstrair-mos dos meios utilizados, estamos em crer que no uma actividade que revista perigo especial para terceiros, e, conseqentemente, no cons-titui actividade perigosa" (Supremo Tribunal de Justia de Portugal, Recurso n 04B025, Rel. Conselheiro Arajo Barros, j. em 12.02.2004).21 Superior Tribunal de Justia de Portugal, Recurso n 033883, Rel. Conselheiro Moreira Camilo, j. em 11.06.03.22 Na Itlia consideram-se de risco, para efeitos de responsabilidade civil, "atividade edilcia, operaes porturias, a produo e distribuio deenergia eltrica e de gs, produtos farmacuticos, organizao e gesto de atividade esportiva e recreativa, tais como futebol, ski, kartes e car-ros de corrida etc". In: BIANCA. Op. cit., p. 705-706. Por outro lado, no so consideradas atividades de risco: empreendimento de embarcaes,arar o solo, corridas ciclsticas em estradas, o servio bancrio de cofre etc. Cf. BIANCA. Op. cit., p. 707.23 STJ, 3 T., REsp n 401.397/SP, Relatora Ministra Nancy Andrighi, j. em 27.06.2002, RSTJ, 161/310.24 "1. responsvel aquele que causa dano a terceiro no exerccio de atividade perigosa, sem culpa da vtima. 2. Ultimamente vem conquistandoespao o princpio que se assenta na teoria do risco, ou do exerccio de atividade perigosa, da h de se entender que aquele que desenvolve talatividade responder pelo dano causado. 3. A atividade de transporte de valores cria um risco para terceiros. Neste quadro, conforme o acrdoestadual, no parece razovel mandar a famlia do pedestre atropelado reclamar, dos autores no identificados do latrocnio, a indenizao devi-da, quando a vtima foi morta pelo veculo da r, que explora atividade sabidamente perigosa, com o fim de lucro. Inexistncia de caso fortuitoou fora maior. 4. Recurso especial, quanto questo principal, fundado no art. 1.058 e seu pargrafo nico do Cdigo Civil, de que a Turma noconheceu, por maioria de votos" (STJ, 3 T., REsp n 185.659/SP, Rel. p/o ac. Min. Nilson Naves, DJU de 18.09.2000, p. 126).25 Isto porque o dispositivo legal em comento versa sobre a teoria do risco criado, e no sobre a teoria do risco integral.26 Vide art. 393 do CCB.

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    existiu conduta antijurdica, mas sim uma autoleso. J o caso fortuito e a fora maior incidem sobre o nexo decausalidade entre o dano e a conduta do agente, mas, por ser o fato inevitvel ou imprevisvel, no pode eleresponder civilmente pelos danos causados a terceiros, uma vez que no deu causa ao resultado danoso.27

    Alguns doutrinadores entendem que a culpa exclusiva de terceiro faz parte do rol j elencado de exclu-dentes, mas, nos contratos de transporte, por exemplo, isto no possvel, haja vista a vedao expressa do art.735 do CCB. J o Cdigo de Defesa do Consumidor a admite, ex vi do disposto no art. 14, 3, II.

    Destarte, no direito estrangeiro h uma hiptese excludente de ilicitude que no foi contemplada pelo nossolegislador. Existe uma ressalva no direito portugus nos seguintes termos: quem causar danos a outrem no exercciode uma actividade, perigosa por sua prpria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, obrigado a repar-los,excepto se mostrar que empregou todas as providncias exigidas pelas circunstncias com o fim de os prevenir.28Reserva quase idntica existe no Cdigo Civil Italiano.29 O Cdigo Civil de Porto Rico tambm possui norma similar sj mencionadas.30 H ainda, segundo GEORGES RIPERT, o disposto no art. 403 do Cdigo Civil Sovitico, que tratada teoria do risco.31

    Por outro lado, pases como Argentina,32 Espanha33 e Peru34 tm em seus respectivos ordenamentos normasimilar do nosso Cdigo, ou seja, sem ressalvas como nos pases supramencionados.

    H, ainda, pases que no possuem normas que prevem a responsabilidade por atividades de risco emseus Cdigos, tendo preferido o mtodo da legislao especial, tais como Alemanha35 e Frana.36

    Para parte da nossa doutrina, a pessoa no ser obrigada a reparar o dano se comprovar ter adotado todasas medidas idneas para evit-lo. Dentre eles, destacamos SILVIO RODRIGUES, ao asseverar que o texto justificadamente tmido, pois a responsabilidade s emergir se o risco criado for grande e no houver o agentecausador do dano tomado medidas tecnicamente adequadas para preveni-lo.37 RONALDO BRTAS DE CAR-VALHO DIAS, que tambm comunga deste mesmo entendimento, afirmou que, uma vez definida perigosa, emconcreto, a atividade, responde aquele que a exerce pelo risco, ficando a vtima obrigada apenas prova do nexocausal, exonerando-se o autor do dano se comprovar que adotou todas as medidas idneas ou preventivas etecnicamente adequadas para evit-lo, ou que o resultado decorreu de caso fortuito.38

    Data venia, entendemos que o legislador, quando quer criar uma excludente de ilicitude, o deveria fazer deforma expressa, assim como ocorre na Itlia e em Portugal. No Brasil, entretanto, parece que o legislador optou pormanter apenas as excludentes tradicionais,39 no podendo, assim, utilizar-se daquela existente nos ordenamentositaliano e portugus.

    Sem embargo da inconteste autoridade doutrinria de SILVIO RODRIGUES e RONALDO BRTAS DE CAR-VALHO DIAS, a posio por eles adotada diante do dispositivo em comento,40 se nos afigura, data venia, est em atri-to com a norma do direito positivo brasileiro. Isto porque, pelo que se pode facilmente depreender do referido artigo delei, no estamos, sequer, discutindo culpa, conforme nos manifestamos no item 2. Logo, pelo fato de no ser possvel

    27 Importante registrar a opinio de CSAR FIUZA, pois, para ele, o nexo de causalidade entre a conduta culpvel do agente e o dano por ele provo-cado, logo, por no ser possvel discutir o elemento culpa na responsabilidade objetiva, no se poderia, ento, falar no seu rompimento pelo caso for-tuito e pela fora maior. Acrescenta ainda que deve incidir sobre a prpria autoria. Assim, apenas se restar devidamente comprovado que o fato ocor-reria de qualquer maneira, que se poder utilizar destas duas excludentes (cf. Direito civil. 7 ed. atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 617).28 Art. 493, 2, do Cdigo Civil de Portugal.29 Art. 2.050: "Chiunque cagiona danno ad altri nello svolgimento di un'attivit pericolosa, per sua natura o per la natura dei mezzi adoperati, etenuto al risarcimento, se non prova di avere adottato tutte le misure idonee a evitare il danno". Traduo livre do artigo: "Aquele que ocasionarprejuzo a outrem no exerccio de uma atividade perigosa, pela sua natureza ou pela natureza dos meios adotados, ficar obrigado indenizao,se no provar ter adotado todas as medidas idneas para evitar o dano".30 "Igualmente respondern los propietarios de los daos causados: (1) Por la explosin de mquinas que no hubiesen sido cuidadas con ladebida diligencia, y la inflamacin de sustancias explosivas que no estuviesen colocadas en lugar seguro y adecuado".31 Op. cit., p. 213, nota 548.32 Vide art. 1.113 do Cdigo Civil Argentino e art. 33 da Ley 24.441.33 Vide art. 1.908 do Cdigo Civil Espanhol.34 Vide art. 1.970 do Cdigo Civil Peruano. E, nos termos do art. 1972, o autor do dano estar desobrigado de repar-lo nos casos de caso fortuito,fora maior, culpa exclusiva da vtima e fato determinante de terceiro.35 A responsabilidade civil est regulada no BGB, dentro do 25 ttulo, entre os 823 e 853.36 Cf. SILVA, Joo Calvo da. Responsabilidade civil do produtor. (Reimpresso). Lisboa: Almedina, 1999, n 70, p. 409, nota 1.37 Direito civil. v. 4. 17 ed. So Paulo: Saraiva, 1999, n 57, p. 161.38 Responsabilidade civil extracontratual: parmetros para o enquadramento das atividades perigosas. Revista Forense, n 296, p. 132.39 Caso fortuito, fora maior (quando for possvel) e culpa exclusiva da vtima.40 Ambos os autores, cujas obras j foram devidamente citadas, comentaram o pargrafo nico do art. 929 do anteprojeto do Cdigo Civil, quepossui redao idntica do pargrafo nico do art. 927 do atual CCB.

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    debater o elemento culpa, v-se, claramente, que estamos diante de responsabilidade objetiva, e no subjetiva. Emface disso, tem-se que a asseverao daqueles juristas incorre em erro, tendo em vista que eles esto admitindo,como hiptese excludente de ilicitude, a comprovao feita pelo autor do dano de que tomou todas as medidasidneas para evit-lo. E o que que isso quer dizer? Simples, o autor do dano estaria, em outras palavras, dizendoque no teve culpa. Mas, como j exaustivamente dito, no cabvel a discusso de culpa em sede de responsabi-lidade objetiva. Ora, se esta tese fosse acatada no nosso ordenamento jurdico atual, estaramos contradizendo oprprio pargrafo nico do art. 927 do CCB, que, expressamente, determinou que a reparao dever ser feita, nestescasos, independentemente de culpa, ou seja, a responsabilidade objetiva.

    No direito portugus, onde existe expressamente esta ressalva,41 conforme j salientamos, pode-se repararque no se fala em responsabilidade independentemente de culpa. O que ocorre, naquele ordenamento, apenase to-somente caso de culpa presumida. Estabelece-se neste artigo, como nos dois anteriores, a inverso do nusda prova, ou seja, uma presuno de culpa por parte de quem tem a seu cargo a vigilncia de coisas ou de ani-mais42 ou exerce uma actividade perigosa.43 JOO CALVO DA SILVA, em recente trabalho, partilha deste mesmoentendimento, ao magistrar que o art. 493, n 2, em virtude de nele se encontrar a consagrada inverso do nusda prova ou presuno de culpa na responsabilidade pelo exerccio de actividades perigosas.44

    Na Itlia,45 por sua vez, no pacfico, como em Portugal, este entendimento. L, existem autores cujoposicionamento no sentido de que a responsabilidade civil do art. 2.050 um risco objectivamente evitvel ouuma responsabilidade objectiva por risco evitvel. Mas, a que nos parece a melhor interpretao seria a de quea responsabilidade no objetiva e nem subjetiva. Adoptou-se, antes, uma soluo intermdia pela qual,mantendo sempre a culpa na base da responsabilidade, no s se ps a cargo do lesante a prova liberatria, masse ampliou o contedo do dever de diligncia seu cargo.46 Recomendamos ao leitor a obra de C. MASSIMOBIANCA,47 onde ele exemplifica vrias atividades que so consideradas perigosas e outras que no so. BIANCAinforma que a doutrina dominante defende que o art. 2.050 do Codice Civile caso de responsabilidade objetiva,embora entenda que se trate de culpa presumida.48 Importante ressaltar que no direito Italiano, para que o autordo dano possa se eximir da responsabilidade de indenizar a vtima, no basta a demonstrao de ausncia deculpa; sendo necessria a comprovao de uma organizao tcnica abstratamente idnea para prevenir aci-dentes: o denominado fato tcnico.49

    Particularmente, no vemos grandes diferenas entre o art. 2.050 do Cdigo Civil Italiano e o art. 493, 2,do Cdigo Civil Portugus. Acreditamos ser, em ambos, caso de culpa presumida, tendo em vista que os dois dis-positivos permitem que o autor do dano se isente da responsabilidade de indenizar a vtima se comprovar queadotou todos os meios idneos, possveis e exigveis para se evitar a ocorrncia do dano. Haver, ento, umaverdadeira inverso do nus da prova. Em ambos os ordenamentos vm sendo aceitos como causas excludentesde ilicitude, o caso fortuito, a fora maior, e, por razes bvias, a culpa exclusiva da vtima.

    Portanto, concluindo esta parte, v-se claramente que a excludente de ilicitude defendida pelos ilustres juris-tas mencionados no condiz com o nosso ordenamento jurdico, seja pela falta de disposio legal expressa, sejapela contradio que criaria no prprio dispositivo, de se discutir a existncia ou no de culpa onde no possvel,por se tratar de responsabilidade objetiva ou sem culpa.

    8 Questo processual

    Durante o estudo deste trabalho, nos atentamos para uma questo, de natureza processual, digna de tecerbreves comentrios.

    Como se depreende da leitura do dispositivo em comento, a responsabilidade objetiva dispensa a demons-trao de culpa do autor do dano, mas requer, apenas e to-somente, a comprovao, pela vtima, da condutailcita, do dano sofrido e do nexo de causalidade entre um e outro.

    41 Art. 493, 2, do Cdigo Civil.42 Atente-se para o fato de que, no Brasil, a guarda de animais caso de responsabilidade objetiva, ex vi do disposto no art. 936 do CCB.43 LIMA, Pires de; VARELA, Antunes. Op. cit., p. 495.44 Responsabilidade civil do produtor. (Reimpresso). Lisboa: Almedina, 1999, n 70, p. 402. 45 L tambm no se fala em "independentemente de culpa" na lei.46 SILVA, Calvo da. Op. cit., p. 404, nota 1.47 Diritto civile. v. 5. Milano: Giuffr, 1994, n 301, p. 704-712.48 Cf. op. cit., p. 709.49 Cf. VISINTINI, Giovanna. Tratado de la responsabilidad civil. v. 2. traduzido por CARLUCCI, Ada Kemelmajer. Buenos Aires: Astrea, 1999, p. 416.

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    Dessa forma, se A prope uma ao em face de B, com fulcro no art. 927, pargrafo nico, do CCB, ele nose preocupar em demonstrar a culpa de B, haja vista a sua desnecessidade. Mas, pensem na hiptese de o juiz,na sentena, entender que a atividade normalmente desenvolvida por B, por sua natureza, no de risco, sendo,portanto, caso claro de responsabilidade subjetiva. Logo, pergunta-se: como ficaria A se, ultrapassada a fase deinstruo do processo, e sem nenhuma manifestao de sua parte, haja vista que ele estava contando com o fatode se tratar de atividade de risco normalmente desenvolvida por B? Apenas lembrando, o juiz ir prolatar, in casu,sentena de mrito, sendo acobertada, assim, pelos efeitos da coisa julgada material, ou seja, nem outra ao Apoder propor.

    Portanto, para se evitarem problemas como este narrado, recomenda-se que o juiz, no despacho saneadore cumprindo o disposto do art. 331, 2, do Cdigo de Processo Civil, se manifeste sobre se a lide caso de respon-sabilidade objetiva ou subjetiva (ponto controvertido) e determine as provas a serem produzidas. Dessa forma, aspartes podero saber, de antemo, de quem ser o nus probante.50 Esta deciso desafiaria o recurso de agravo.

    9 Nossas crticas com relao inovao e alguns exemplos prticos

    Do nosso ponto de vista, a inovao bastante tnue, haja vista o fato de o prprio artigo ter ressalvadoque as demais leis especiais continuam em vigor. Destarte, como j existem diversas leis especficas regulandoa responsabilidade sem culpa, nos mais distintos campos do Direito,51 achamos muito difcil este artigo ser uti-lizado, na prtica, pelos aplicadores do Direito. No obstante, vemos com bons olhos esta novidade, pois quemtem os bnus deve arcar com os nus tambm. Ratificando o que j foi dito, esta novidade veio consagrar osprincpios da socialidade e da eticidade do CCB.

    Com efeito, um exemplo52 em que se poder aplicar esta nova norma legal pode ser o seguinte. Imagine-se uma pessoa que est passeando por uma avenida, e, de repente, ocorre uma exploso, dentro de um postode gasolina, causando-lhe ferimentos. Dessa forma, salvo comprovao de caso fortuito ou fora maior, ter-se-a responsabilidade objetiva, na forma do art. 927, pargrafo nico, do CCB.

    Outro exemplo que poderia ser dado com relao responsabilidade de empresas especializadas naorganizao de shows, pois, na compra do ingresso, est implcita uma clusula de incolumidade; alis, mesmonos eventos cuja entrada franca, existe esta responsabilidade.

    Um ltimo exemplo, este, sim, bastante ousado e inovador, pode ser trazido a lume. J faz algum tempoque estamos refletindo sobre uma hiptese que, a nosso ver, com o advento do pargrafo nico do art. 927 doCCB, passa a ser possvel e defensvel, conforme demonstraremos a seguir. Dois fatos so notrios:53 1) que asinstituies financeiras esto, a cada ano, aumentando ainda mais os seus lucros,54 e 2) o nmero de chequesfalsos e cheques sem fundos est crescendo de forma espantosa no Brasil. Assim sendo, levando-se emconsiderao essas assertivas, convidamos o leitor a refletir sobre a possibilidade de as instituies financeirasresponderem, solidariamente, perante terceiros lesados que recebem cheques falsos ou cheques sem fundos.A princpio, pode parecer absurda a idia,55 mas, ser que a atividade normalmente desenvolvida pelos bancos,por sua natureza, no representa risco a terceiros? Particularmente, acreditamos que a resposta seja positiva. Notocante aos cheques falsos, v-se que h vrios anos as instituies financeiras no se preocupam em criarmecanismos para dificultar a sua falsificao; selos tridimensionais e marcas dgua, por exemplo, so idias decomo inibir falsificadores e proteger a sociedade como um todo. J com relao aos ditos cheques sem fundos,cremos que os bancos poderiam ter critrios mais rgidos e severos antes de abrirem novas contas bancrias edistribuir tales de cheque aos seus clientes. Ora, por que que as instituies financeiras no podem serpenalizadas ao invs de pessoas comuns, que, muitas vezes, no tm dinheiro nem mesmo para pagar suaalimentao? Desse modo, repetindo, convidamos o leitor a meditar a este respeito, tendo em vista a inovaoobjeto deste trabalho e, ainda, em homenagem ao princpio da socializao do risco.

    Noutro norte, faz-se imperioso recordar que o progresso de extrema importncia para a humanidade, tornandonossas vidas, a cada dia, mais cmodas e fceis. S que, para se chegar a determinadas solues, muitos anos, eta-pas e riscos so necessrios. E a objetivao da responsabilidade civil cria, muitas vezes, grandes bices.

    50 Assim como ocorre nos casos de inverso do nus da prova em relaes de consumo.51 Vejam o item 3 deste trabalho.52 Notem que neste exemplo esto presentes todos os requisitos exigidos pela lei, conforme destacamos no item 10, infra.53 No possumos nenhum dado cientfico para comprovar as seguintes afirmaes, mas o que os telejornais e os jornais vm divulgando.54 Somente no ano de 2003, conforme foi amplamente divulgado pela imprensa, os cinco maiores bancos do Pas obtiveram lucro superior a R$1.000.000.000,00 (um bilho de reais). Dentre eles destacamos: Ita, Bradesco e Banco do Brasil. E, apenas no 1 trimestre de 2004, o Bradescoteve lucro superior a R$ 600.000.000,00.55 E, com toda certeza, haver opinies no sentido de que, ao se responsabilizar os bancos solidariamente conforme dissemos, ter-se- umaumento das taxas de administrao, juros etc., mas, mesmo que seja verdade, ainda assim, temos que ser melhor para todos.

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    E, como bem salientou JOO BAPTISTA VILLELA a este respeito,

    como quer que seja, no parece teoricamente absurda a hiptese de que do risco, alm de lucros e danos imediatos,possam advir resultados sociais teis. Para essa eventualidade, cabe ao Direito desenvolver respostas que neutralizemou reduzam a responsabilidade civil dos agentes que puseram em marcha a atividade arriscada. No, evidentemente,por modo a encurtar os direitos dos que tenham sido lesados. Mas, quem sabe, na linha de uma compensao por partedo Estado, que exprime os interesses da coletividade. Ser esta, com efeito e em resumo, a beneficiria dos proveitosderivados do risco. Se o acaso serve para condenar, por que no poderia originar-se dele tambm a premiao? Ondefica o princpio da igualdade, se o dano, mesmo involuntrio, impe o dever de reparao, mas o benefcio casual nogera recompensa? Uma ou outra forma de retribuio pareceria, no caso, algo sobre que pensar. Estabelecendo-a,talvez se pudesse, sem restringir em nada os direitos dos prejudicados, contribuir para que a incontida expanso daresponsabilidade civil no tenha a conseqncia indesejvel de inibir a produo de novas tecnologias, Afinal, elas soindispensveis ao progresso humano.56

    A viso de JOO BAPTISTA VILLELA muito interessante. Destarte, gostaramos de responder s inda-gaes ali propostas, e por ele no respondidas, o que, via de conseqncia, nos leva a discordar, um pouco, deseu posicionamento. Quando se questiona, invocando o princpio da igualdade, sobre o porqu de no sepremiarem os acertos e avanos derivados do risco, acreditamos que a premiao ser o prprio sucesso de ven-das e a aceitao pelas pessoas daquele determinado produto. E disso, vrias conseqncias surgem, tais como oengrandecimento do nome da sociedade ou do empresrio, caso seja uma sociedade por aes de capital aberto,o valor de suas aes poder subir na Bolsa de Valores, aumento e interesse maior de investidores etc. Querem veroutra recompensa? O simples (que na realidade no nada simples) fato de no ser incomodado com demandasjudiciais tambm outro grande prmio.

    Dessa forma, no acreditamos que uma determinada descoberta ou inveno, independentemente de suarelevncia para o progresso, deva receber prmios de parte do Estado, uma vez que, como j dito, o seu suces-so de vendas j o grande prmio.

    Mas a advertncia de JOO BAPTISTA VILLELA no deve ser desprezada, muito pelo contrrio. Ou seja,a responsabilidade civil no deve inibir o avano da pesquisa e da tecnologia, indispensveis ao nosso progresso.Contudo, nos Estados Unidos da Amrica, pas onde, talvez, esteja a maior e melhor tecnologia de ponta domundo e onde as indenizaes so, literalmente, milionrias, inclusive alvo de crticas severas por parte do ex-presidente Bill Clinton, no houve este retrocesso. Mas a surge importante indagao: no ocorreu esta inibiopor que os fabricantes e inventores esto cada vez mais cuidadosos, ou por que os locais onde so testados eproduzidos produtos de risco so fora dos Estados Unidos? Infelizmente, no poderemos responder a esta per-gunta, uma vez que no temos subsdios para tanto, mas notrio que milhares de produtos americanos soproduzidos em pases de Terceiro Mundo, subdesenvolvidos, onde a mo-de-obra muito mais barata.

    10 Concluso

    Concluindo este trabalho, entendemos que a responsabilidade civil no CCB continua sendo, em princpio,subjetiva. E a responsabilidade objetiva ainda exceo regra, embora esteja mais freqente no nosso orde-namento, em homenagem socializao dos riscos.

    A mens legis (esprito da lei) deste dispositivo, ou seja, o dever de indenizar aqui mais rigoroso, tendoem vista a presuno de que, quando se atua com a ntida previso dos danos que podem vir a surgir, a pessoadeve, ento, mesmo que com sacrifcios, se precaver e tomar medidas de segurana acima da mdia.

    Assim, salvo os casos expressos em lei,57 somente haver a responsabilidade objetiva do pargrafo nico doart. 927 do CCB, se todos aqueles requisitos estiverem presentes, quais sejam, que a) se trate de atividade normal-mente desenvolvida pelo autor do dano e que, b) por sua natureza, c) apresente riscos para os direitos de outrem. bvio que se far necessrio demonstrar, alm desses, o nexo de causalidade entre o dano sofrido e a atividade.

    No sabemos se esta inovao, no campo do direito positivo, ir, de fato, representar grandes revoluesno campo da responsabilidade civil, pois, mesmo antes dele, doutrina e jurisprudncia j falavam emresponsabilidade objetiva de certas atividades de risco, como, por exemplo, das empresas distribuidoras deenergia eltrica e das instituies financeiras. Sem falar no fato de que todas as leis especiais continuamplenamente em vigor.

    56 Para alm do lucro e do dano: efeitos sociais benficos do dano. Repertrio IOB de Jurisprudncia, So Paulo, n 11/91, jun. 1991.57 Vide item 3.

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    Finalmente, diante das inovaes do CCB e dos rumos e das tendncias da responsabilidade civil, recomen-da-se o uso, cada vez maior, de contratos de seguro facultativo para se evitar qualquer tipo de imprevisto ou contra-tempo que possa acarretar srios abalos na estrutura financeira do empresrio ou da sociedade empresria.58

    Portanto, s o tempo dir e demonstrar a eficcia ou no deste dispositivo que vem preocupando muitoas pessoas de modo geral.

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    VISINTINI, Giovanna. Tratado de la responsabilidad civil. v. 2. Traduo Ada Kemelmajer Carlucci. Buenos Aires:Astrea, 1999.

    58 Vide: ROITMAN, Horacio. El seguro de la responsabilidad civil. Buenos Aires: Lerner, 1974, p. 59-87.

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    A doutrina do direito natural em Toms de Aquino

    D. Odilo Moura*

    Foi afirmada repetidas vezes pela tradio catlica a existncia de um direito natural. No obstante ser elenegado pela generalidade dos homens de hoje, , contudo, assunto de grande atualidade, sendo objeto de discussesentre juristas, filsofos e telogos.

    Desde o incio da civilizao ocidental, foi reconhecido um direito imediatamente decorrente das exign-cias da natureza humana, facilmente reconhecido pelos gregos, pelos romanos e pelos medievais. Essa tradiomais que milenar sofreu forte abalo no sculo XVI, provocado por Lutero. Este, ao afirmar a corrupo da naturezahumana pelo pecado original, obviamente no aceitaria um direito fundamentado numa natureza m. Por isso,para ele, os primeiros direitos do homem procedem da palavra de Deus, revelada na Bblia. Os primeiros direitose deveres do homem no mais efluem espontaneamente do reconhecimento imediato das exigncias da essn-cia humana, mas sero a ela extrinsecamente acrescidos.

    Respeitado pelos povos primitivos, desde a mais remota antiguidade, um direito inseparvel do homem foi sendolentamente esclarecido atravs da Histria. Sfocles, no sculo V a.C., no seu famoso texto teatral, transmite-nos aspalavras de Antgona ao tirano, ao exigir ela o sepultamento do prprio irmo: Os decretos divinos, les no escritas eimutveis, no so de hoje, nem de ontem, e ningum sabe de que longnquo perodo procedem. Aristteles desenvolveuuma doutrina sobre o direito natural,1 mais tarde retomada pelos esticos, reassumida por Ccero, que a transmitiu aosromanos. So bem conhecidos Os trabalhos dos grandes mestres romanos, Ulpiano, Justiniano e Gaio, acentuando oprimado do direito natural. A rica tradio pag a respeito foi tranqilamente aceita pelos cristos, que a conciliaram comos dados da Revelao. Este trabalho foi aperfeioado pelos canonistas e telogos dos sculos XII e XIII.

    Os grandes mestres universitrios medievais dirigiram as vistas para a cincia jurdica, sobretudo a relativa aodireito natural. As lies deixadas por Isidoro de Sevilha, Graciano, Pedro Lombardo, Alberto Magno, Toms de Aquino,Boaventura, Guilherme de Auxerre, Filipe Cancelrio e por tantos outros testemunham o elevado grau atingido peloestudo do direito natural naqueles remotos tempos. Mais tarde, na mesma linha da tradio jurdica medieval. Vitria eSurez trazem as suas preciosas contribuies, sendo seguidos por Baez, Vasquez e Toledo.

    O protesto luterano do sculo XVI, como vimos acima, deu novos rumos para a cincia do direito. Os juris-tas das naes evanglicas, alicerados logicamente na doutrina da corrupo da natureza humana pelo peca-do, desvincularam dela o direito natural. Negou-se, ento, a noo at aquele tempo aceita, concernente existncia de um tal direito. No haver, para eles, um direito natural, mas um direito originado do critrio humano.Na realidade, todo direito ser direito positivo.

    Famosos mestres do direito, e at polticos, sero os formuladores da nova ordem jurdica, salientando-se, entreeles, Grotius, Puffendorf, Tomasius, Gurvitch, lhering, Kelsen. Contudo, diversos outros autores, como a personalidadempar de DeI Vecchio, reafirmam a doutrina tradicionalmente consagrada.

    Tambm os filsofos contriburam para a negao do direito natural. Pondo o dever como um princpio damoral, dever este impulsionado por um imperativo categrico da vontade, Kant tirou do direito fundamental a suaformalidade racional, elemento essencial reta noo do direito natural. A filosofia de Kant matou no direito naturalo conhecimento espontneo das suas normas, e o homem passa a operar por um impulso cego do cumprimento dodever.

    Outra corrente filosfica agiu da mesma forma em nosso sculo. Ao negar a prevalncia da essncia sobrea existncia, mas afirmando a desta sobre aquela, o existencialismo destruiu toda e qualquer norma fixa para o

    SNTESE - Nos tempos modernos, a doutrina do direitonatural tem sido negada por muitos autores. No foi assimentre os medievais e entre os antigos. Toms de Aquino,em diversas partes de sua obra, trata do tema e mostracomo a prpria racionalidade do homem o leva a descobriralgo que est nsito no mais ntimo de sua natureza.

    ABSTRACT - The doctrine of the natural law in our timeshas been denied by many authors, as opposed to medievaland ancient thinkers. In several parts of his work, ThomasAquinas deals with this subject and shows that the humanreason leads everyone to discover the natural law.

    (*) Mosteiro de S. Bento - Rio de Janeiro.1 Aristteles. Retrica I, cap. 25: tica a Nicmaco V, cap. VII: Poltica I,. C. 3. Cf. a respeito os respectivos comentrios de Toms de Aquino.

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    homem. Sartre ensina que, moralmente, o homem uma criao de si mesmo e as suas aes no derivam deregras preestabelecidas, mas ele mesmo, pelo seu arbtrio, as programa e as realiza. conhecida a enormeinfluncia do existencialismo sartreano em nossos dias, com a tese de que o homem um projeto, que est atodo o momento criando a si mesmo.2

    As linhas acima, nas quais tentamos, em traos largos, descrever a evoluo da doutrina sobre o direito natu-ral, serviro para bem situar o pensamento de Santo Toms sobre o mesmo e apresentam os motivos, segundo osquais muitos pensadores contemporneos ainda o tm como verdadeiro. Para estes, o direito natural no uma peaesquecida nos arquivos das cincias jurdicas, mas mostra-se de grande atualidade. Entre os catlicos, esta posiovoltou a evidenciar-se, por exemplo, em documentos da Igreja, como a recente encclica Veritatis splendor, de JooPaulo II.3 Nesse documento, o Papa conceitua a natureza de tal direito e recusa as teses dos que pretendem basearos direitos humanos em dados estatsticos, ou que definem o homem como um puro projeto. relevante, para o temadesta comunicao, observar que toda a encclica est embasada na doutrina apresentada por Toms de Aquino.Escreve o Papa: A Igreja referiu-se freqentemente doutrina tomista do direito natural, assumindo-a no prpria ensi-namento da moral.4 Esta frase condensa a tradio do magistrio pontifcio, anteriormente ensinado por Leo XIII5 epor Pio XI,6 e transmitido nas excelentes alocues de Pio XII durante a II Guerra Mundial. Na mesma linha man-tiveram-se Joo XXIII e Paulo VI.

    Aps esta introduo, consideremos o que propriamente nos ensinou o Doutor Anglico sobre o direitonatural, segundo esta ordenao:

    I - Trs esclarecimentos prvios

    II - Fontes doutrinrias do direito natural formulado por Santo Toms e a localizao do mesmo em suas obras

    III - Sntese da doutrina tomista sobre o direito natural

    IV - Concluso.

    I - Trs esclarecimentos prvios

    Trs esclarecimentos prvios so necessrios para a justa compreenso do pensamento jurdico tomista, comotambm para o de muitos mestres medievais. Focalizando-os, sero evitadas algumas leituras que obscurecem aquelacompreenso e que acarretam consigo conseqncias prticas desastrosas. Torna-se, pois, inevitvel estabelecer distin-o entre direito e moral, entre direito e lei e entre direito natural e direito primitivo. Consideremo-las separadamente:

    1. O objeto da moral so todos os atos do homem, enquanto dirigidos para o bem de si mesmo. O bemmoral do homem ele realizar-se seguindo as exigncias de sua natureza. A finalidade das aes do homem realizar-se ele perfeitamente, e isto faz que o homem se realize de forma superior dos seres sem vida, ou dosseres vivos sem razo. Cada ser criado existe segundo busca seu bem. O homem busca o seu bem agindo livre-mente, por ato imperado por sua vontade, que, por sua vez, segue a prpria razo. A razo humana dirige ohomem para que ele seja autenticamente humano. As virtudes morais levam o homem a sempre operar com per-feio. Por isso, a moral tomista uma moral de virtudes morais, conquistadas pelo prprio homem, masenriquecida pelas virtudes sobrenaturais e por outros dons concedidos por Deus.

    O objeto do direito mais restrito que o da moral, embora subordinado a ela.

    As leis morais estabelecem os princpios do direito. Porm, enquanto a moral abrange o exerccio de todas asvirtudes, o direito no ultrapassa o objeto da virtude da justia. Por isso, s cabe ao direito determinar o justum, isto ,aquilo que devido em estrita igualdade ao outro. Implicando no seu exerccio o outro, o scio, o direito, como tambma virtude da justia, essencialmente social.

    2 SARTRE, J. P. LExistencialisme est un Humanisme. Paris: Nagel, 1963. p. 23.3 Trad. portuguesa. So Paulo: Ed. Paulinas, 1993. p. 71, n 44.4 Id., ibid.5 Cf. Rerum novarum. AAS, 1, p. 109.6 Cf. Studiorum ducem (29.06.1923): Sendo ele (Santo Toms) o telogo perfeito, traou as regras certas e os preceitos de vida no apenas paraos individuos, bem como para a sociedade familiar e civil (...) Da aqueles magnficos captulos da Segunda Parte da Suma Teolgica sobre oregime paternal ou domstico, (...) sobre o direito natural e sobre o direito dos povos (...) Deve-se desejar que se estudem e cada vez mais osensinamentos do Aquinate sobre o direito dos povos e sobre as leis que regulam as relaes rntuas entre as naes (AAS. 1923 (XV), p. 711).

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    As outras virtudes morais visam ao bem do prprio homem; a justia, assim como o direito, visa ao bemdo outro. J ensinava Aristteles que o amor une as cidades, e os que estabelecem as leis mais se preocupamcom a justia.7 Seguindo a mesma trilha, escreve Santo Toms: A paz indiretamente obra da justia, direta-mente, da caridade (II-II, 29, 3, ad 3). A moral, pois, est na ordo amoris, o direito, na ordo justitiae.8

    A distino entre direito e moral e a subordinao deste quela vigoram no somente no plano dasociedade juridicamente estruturada dos povos civilizados, como tambm nos povos primitivos. Por isso, jamaiso direito positivo anular o direito natural.

    Convm, para melhor apreenso do pensamento jurdico medieval, levar em considerao que SantoToms, como os demais mestres de seu tempo, no trataram do chamado direito subjetivo, que hoje muitofocalizado. Eles consideraram apenas o direito objetivo, sem contudo desconhecerem o sentido anlogo daexpresso direito subjetivo.

    2. A lei - lex - como norma racional de ao (ordinatio rationis) - deve ser distinguida do direito e da moral.Os autores medievais, no entanto, usavam o termo lei como sinnimo de direito e de moral. Santo Toms, toexato e formal no modo de se expressar, por vezes usa esses termos como sinnimos, no fugindo regra cos-tumeira dos outros mestres medievais.

    Todavia, muito claro quando estabelece a distino entre as duas expresses, ao escrever: A lei no o mesmo que o direito, propriamente falando, mas uma certa razo do direito (II-II, 51, 1 ad 2). Moral e direitoimplicam sentido mais amplo que o da lei. A lei prope as normas de ao humana; a moral e o direito nosomente as reconhecem, como t