Julieta

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Julieta Quando ela passava à minha porta, num passo trémulo, arrastado, eu ficava a olhá-la , até o seu vulto esguio desaparecer, lá em baixo, entre o arvoredo. Vinham-me à ideia aqueles versos tristes e maravilhosos de António Nobre, intitulados «Pobre Tísica», e lamentava-a baixinho. Era sempre à hora do pôr-do-sol que Julieta saía de casa. Os últimos raios de luz bailam nas vidraças da sua humilde habitação, tingindo- as de mil cores diferentes. Caminhava, sempre em direção à praia, parecendo uma sombra vagueando à doce luz crepuscular. Vejo-a ainda alta, esguia, frágil como a gavinha viçosa de certa videira, o rosto macerado por longas insónias dum infindo penar, os olhos negros, febris, brilhantes como estrelas cadentes, as tranças escuras caídas ao longo das costas. Vestida de luto, uma mantinha branca cobrindo-lhe os ombros, quando a aragem marinha era mais fria, ela passava olhando o Sol, que se escondia, rubro e dourado, nas águas prateadas do Oceano. Sentada na areia, ficava a olhar o mar, que se desfazia a seus pés em rendilhados de espuma. Os seus dedos secos rabiscavam, na areia solta, risos indefiníveis, que as ondas viriam apagar. Sorria ao mar, cantando com ele canções dum sonho que os dois sonhavam, enquanto que ele lhe ia roubando a vida, pouco a pouco, tornando os seus dias em folhas de Outono, que o tempo arrastava. E eu via-a regressar, somente quando a Lua brilhava no céu pálida e indecisa. Parecia-me, então, mais débil, mais doente, que nunca... Os olhos brilhavam, mais que faróis na sombra; os lábios sem cor estremeciam em suspiros lentos e curtos; os cabelos negros e despenteados pareciam um manto de luto. E a tosse seca, que lhe punha no rosto esgares de dor, faziam lembrar o eco do mar quebrando-se contra os rochedos. Olhava para a minha janela, esperando que eu lhe sorrise. Nunca me sorria... Muitas vezes, tentei descobrir, naquele olhar parado e distante, qualquer brilho diferente, mesmo que fosse estranho. Mas o tempo passou, e eu ainda hoje pergunto a mim própria se Julieta não seria também uma doente mental. Um dia perguntei-lhe pela saúde, via-a a empalidecer, olhar-me com aquele olhar indecifrável e murmurar resignada: - «Estou pior, menina, Deus não quer...»

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Julieta Quando ela passava à minha porta, num passo trémulo, arrastado, eu ficava a olhá-la , até o seu vulto esguio desaparecer, lá em baixo, entre o arvoredo. Vinham-me à ideia aqueles versos tristes e maravilhosos de António Nobre, intitulados «Pobre Tísica», e lamentava-a baixinho. Era sempre à hora do pôr-do-sol que Julieta saía de casa. Os últimos raios de luz bailam nas vidraças da sua humilde habitação, tingindo-as de mil cores diferentes. Caminhava, sempre em direção à praia, parecendo uma sombra vagueando à doce luz crepuscular. Vejo-a ainda alta, esguia, frágil como a gavinha viçosa de certa videira, o rosto macerado por longas insónias dum infindo penar, os olhos negros, febris, brilhantes como estrelas cadentes, as tranças escuras caídas ao longo das costas. Vestida de luto, uma mantinha branca cobrindo-lhe os ombros, quando a aragem marinha era mais fria, ela passava olhando o Sol, que se escondia, rubro e dourado, nas águas prateadas do Oceano. Sentada na areia, ficava a olhar o mar, que se desfazia a seus pés em rendilhados de espuma. Os seus dedos secos rabiscavam, na areia solta, risos indefiníveis, que as ondas viriam apagar. Sorria ao mar, cantando com ele canções dum sonho que os dois sonhavam, enquanto que ele lhe ia roubando a vida, pouco a pouco, tornando os seus dias em folhas de Outono, que o tempo arrastava. E eu via-a regressar, somente quando a Lua brilhava no céu pálida e indecisa. Parecia-me, então, mais débil, mais doente, que nunca... Os olhos brilhavam, mais que faróis na sombra; os lábios sem cor estremeciam em suspiros lentos e curtos; os cabelos negros e despenteados pareciam um manto de luto. E a tosse seca, que lhe punha no rosto esgares de dor, faziam lembrar o eco do mar quebrando-se contra os rochedos. Olhava para a minha janela, esperando que eu lhe sorrise. Nunca me sorria... Muitas vezes, tentei descobrir, naquele olhar parado e distante, qualquer brilho diferente, mesmo que fosse estranho. Mas o tempo passou, e eu ainda hoje pergunto a mim própria se Julieta não seria também uma doente mental. Um dia perguntei-lhe pela saúde, via-a a empalidecer, olhar-me com aquele olhar indecifrável e murmurar resignada: - «Estou pior, menina, Deus não quer...»

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... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... O sino toca a finados. O eco das notas tristes, plangentes quebra-se no espaço e vai morrer no rumor das ondas do mar, maravilhosamente azul. - Dlim, dlão!... Julieta morreu! Os meus olhos estão toldados de lágrimas, e eu murmuro uma oração pela alma branca de Julieta. Nunca mais a verei passar à minha porta, pálida, magra, como uma sombra vagueando à doce luz do entardecer. Julieta morreu!... Aquela tosse... Aqueles olhos febris... Aquele rosto pálido... Aquele ar distante... E parece-me vê-la em verdadeira incarnação de anjo, com as suas asas de pureza voando até ao Infinito, até Deus, o único ente sabedor daquele olhar parado e distante, que parecia atravessar as almas... Maria Helena Amaro In, «Maria Mãe», 1973. Data da conclusão da edição no blogue - 13 de janeiro de 2012. http://mariahelenaamaro.blogspot.com/