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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS Departamento de Filosofia Programa de Pós Graduação em Filosofia JULIANO XAVIER DA SILVA COSTA EDUCAÇÃO EM ARISTÓTELES CUIABÁ 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

Departamento de Filosofia

Programa de Pós Graduação em Filosofia

JULIANO XAVIER DA SILVA COSTA

EDUCAÇÃO EM ARISTÓTELES

CUIABÁ

2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

Departamento de Filosofia

Programa de Pós Graduação em Filosofia

JULIANO XAVIER DA SILVA COSTA

EDUCAÇÃO EM ARISTÓTELES

Dissertação apresentada ao Programa

de Pós Graduação em Filosofia da

Universidade Federal de Mato Grosso

como requisito para obtenção do título

de Mestre em Filosofia.

Linha de Pesquisa: Filosofia Social

Orientadora: Maria Cristina Theobaldo

CUIABÁ

2016

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“[...] a alma de quem aprende deve primeiro ser cultivada por meio de hábitos

que induzam quem aprende gostar e a desgostar acertadamente, à semelhança da

terra que deve nutrir a semente”.

(ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. X, 9, 1179b)

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AGRADECIMENTOS

Agradeço especialmente a Profa. Dra. Maria Cristina Theobaldo, minha

orientadora, pela sua dedicação e receptividade, que muito me ensinou com

suas observações e comentários, durante a construção deste trabalho.

Ao Prof. Dr. Angelo Aparecido Zanoni Ramos, pela sua generosidade e espírito

amigável, sobretudo pelas considerações referentes à melhoria de nossa

pesquisa.

Ao Prof. Dr. José Jivaldo Lima, pelas preciosas indicações de leitura e diversas

contribuições quanto à estrutura do trabalho.

Ao Professor Renato Caetano, da Faculdade Católica de Rondônia, pelo

incentivo à pesquisa.

À minha família, especialmente minha esposa Vanessa Marchioli Lopes, pela

paciência, compreensão e disposição em colaborar com meus estudos.

Ao grande amigo João Paulo Silva Martins, companheiro de caminhada e que

muito me auxiliou nessa pesquisa.

Aos professores e equipe gestora da Escola Alfredo José da Silva – Barra do

Bugres – MT. Pelo incentivo e apoio.

A todos, muito obrigado.

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RESUMO

O objetivo deste estudo é investigar a proposta educacional de Aristóteles e

sua finalidade a partir das obras Ética a Nicômaco e Política. Apoiados na

primeira obra, encontramos os princípios para a formação do caráter. Na

Política encontramos a estrutura do processo educativo aristotélico.

Entendemos que as concepções educacionais de Aristóteles estão diretamente

vinculadas à ação do legislador e intrinsecamente relacionadas com a ética e a

política com vistas a promover os meios para se atingir a excelência e, assim,

tornar a cidade eudaimonica.

PALAVRAS CHAVE: Aristóteles; Educação; Ética; Política.

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ABSTRACT

The purpose of this study is to investigate the educational proposal of Aristotle

and its purpose from the Nicomachean Ethics and Politics works. Supported in

the first work, we find the principles for the formation of character. In Politics we

find the structure of the Aristotelian educational process. We understand that

Aristotle's educational conceptions are directly linked to the action of the

legislator and intrinsically related to ethics and politics in order to promote the

means to achieve excellence and thus make the city eudaimonic.

KEYWORDS: Aristotle; Education; Ethics; Politics.

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Sumário

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 8

CAPÍTULO I .................................................................................................................................. 14

1. ÉTICA E EDUCAÇÃO ............................................................................................................. 15

1.1. Hábito, excelência e natureza humana ............................................................................ 16

1.2. Educação para a excelência .............................................................................................. 29

CAPÍTULO II ................................................................................................................................. 35

2. POLÍTICA E EDUCAÇÃO ............................................................................................................ 36

2.1. Aspectos da pólis .............................................................................................................. 36

2.2. Lei e a excelência .............................................................................................................. 42

2.3. Lei não escrita .................................................................................................................. 48

2.4. Lei escrita ......................................................................................................................... 49

CAPÍTULO III ................................................................................................................................ 52

3. ELEMENTOS DO PROCESSO FORMATIVO ............................................................................ 53

3.1. Música ......................................................................................................................... 53

3.2. Gramática ......................................................................................................................... 56

3.3. Ginástica ........................................................................................................................... 56

3.4. Retórica ............................................................................................................................ 58

3.5 Poética ............................................................................................................................... 60

CAPÍTULO IV ................................................................................................................................ 64

4. EDUCAÇÃO EM ARISTÓTELES .............................................................................................. 65

4.1. Nomóteta educador .................................................................................................... 67

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................................. 74

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................... 78

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem a intenção de analisar os elementos éticos e

políticos intrínsecos à educação proposta por Aristóteles. As obras aristotélicas

que utilizaremos são a Política1 e a Ética a Nicomâco2. Entres os comentadores

mais relevantes que nos auxiliam na análise dos problemas referente à

educação em Aristóteles temos: Pierre Aubenque, Marcos Zingano, Enrico

Betti, Otfried Hoffe, John B. Morrall, Solange Vergnières, Angelo Vitório Cenci e

João B. Carvalho.

Em Aristóteles o processo formativo é inerente à pólis que, por sua vez,

é apreendida como o centro de toda vivência formativa. A pólis aristotélica

pode ser concebida como uma comunidade política autossuficiente, cujo fim é

buscar a vida boa para seus cidadãos3 de tal modo que nela todos possam

exercer o que cabe à natureza de cada um de forma excelente.

A educação grega elementar tinha como cerne as leituras dos autores

gregos Homero e Demóstenes4. Os métodos educacionais ali estabelecidos

consistiam basicamente em ler, decorar e declamar os grandes poemas sob a

supervisão do mestre ou na presença de familiares e amigos. Já com

Aristóteles, nos deparamos com indagações de cunho educacional que ainda

hoje nos preocupam: a relação da educação com a eudaimonía5 como bem

1 A tradução adotada da Política é a de Antônio Campelo Amaral e Carlos Gomes, publicada

pela Vega, em 1998. 2 A tradução adotada da Ética a Nicômacos é a de Mário da Gama Kry, publicada pela Editora

UNB, em 1985. 3 SILVEIRA, Denis Coitinho. Ensaios sobre ética: complementaridade entre uma ética dos

princípios e das virtudes. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária, 2008. p. 199. 4 Cf. NUNES, Ruy Afonso da Costa. História da educação na antiguidade cristã: o

pensamento educacional dos mestres e escritores cristãos no fim do mundo antigo. São Paulo EPU: Ed. da Universidade de São Paulo, 1978. p. 22. 5 “Felicidade, prosperidade, abundância de bens. O verbo eudaimonéo significa: ter êxito, conseguir, ser feliz. Esta palavra é composta pelo prefixo eu- que indica: de origem nobre, algo bom ou justo, algo benevolente, em boa causa, a bondade, a perfeição – em suma, eu- dá um sentido positivo, bom, belo, justo às palavras que o acompanham. Daímonia (ver daímon) faz parte de um conjunto de palavras ligadas à relação entre as divindades e os homens: inspirações, presságios, prodígios, benfeitorias divinas para os homens. Como a ação dos deuses também pode ser malévola e vingativa, passa-se ao emprego do prefixo eu- e à palavra

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supremo, o como ensinar, o que ensinar e com qual prioridade. Segundo

Cenci, “com a elaboração de sua ética das virtudes e com a explicitação de sua

concepção política, Aristóteles recolhe a herança da paidéia grega em geral e

de seus antecessores, sobretudo de Sócrates, Platão e Isócrates, colocando-a

sobre bases mais amplas”6. Igualmente, podemos perceber nas obras de

Aristóteles que a paidéia7 grega está enraizada em saberes e artes como a

poética, a música, a filosofia, a retórica e, sobretudo, está em estreita

vinculação com a política, com o homem da pólis. Ao se juntar neste quadro as

“condições sociopolíticas adequadas”8, pode-se dizer que na Grécia Antiga

havia a possibilidade para a constituição de uma sociedade bem formada, com

uma cultura vigorosa.

As obras Política e Ética a Nicômaco destacam o papel da educação na

vida da pólis. De maneira geral, pode-se dizer que na Política encontramos a

estrutura do processo educativo e a inserção do indivíduo na vida da pólis. Na

Ética a Nicômaco são enfatizados os princípios para a formação do caráter

excelente, chegando, assim, a excelência perfeita do ser humano. O ser

humano nasceu para viver em sociedade, em interação com outras pessoas, e

para isso torna-se imprescindível a conduta ética (ethos9).

eudomanía para significar exclusivamente a ação boa, benevolente, favorável. A seguir, a palavra passa a referir-se às qualidades positivas e excelentes de alguém, isto é, passa a referir-se apenas aos próprios homens como capazes de felicidade e capazes de uma relação ativa e positiva com o divino. Eudaimonía é a felicidade como perfeição ética, como resultado da vida virtuosa. Relaciona-se com eupraxía: a ação boa, bela e justa; a ação virtuosa”. Ver. CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. 2002. p. 501. 6 CENCI, Angelo Vitório. Aristóteles e a educação. 2012. p. 61.

7 Werner Jaeger, em sua obra intitulada Paidéia, na introdução, ressalta que o termo paidéia

não pode ser entendido nos moldes modernos de educação como civilização, cultura, tradição, literatura ou educação. Na verdade, afirma Jaeger, o conceito abrange todos os outros significados atribuídos à educação pela modernidade. O termo Paidéia vem de paidos (crianças) e significa literalmente educação dos meninos. Porém, a partir do século V a.C. este conceito passou a incorporar um ideal de educação que tem como finalidade a formação do indivíduo para torna-se um bom cidadão. “É então que o ideal grego parece como Paidéia, na formação geral que tem por tarefa construir o homem como homem e cidadão”. Platão define Paideia da seguinte forma “(...) a essência de toda a verdadeira educação ou Paidéia é a que dá ao homem o desejo e a ânsia de se tornar um cidadão perfeito e o ensina a mandar e a obedecer, tendo a justiça como educação”. (Platão, Leis, 643 E). Ver. JAEGER, Werner. Paidéia: Formação do homem grego. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p.147. 8 REALE, Giovanni. História da filosofia antiga, 2003. v.1. p. 6. 9 “Nas éticas, o ethos aparece como forma particular de hekis. Esse termo, que já encontramos

em Protágoras, significa maneira estável de ser (ou um habitus), adquirido pela educação”. Ver Vergnières, Solange. Ética e política em Aristóteles. 1998. p.82. Para Pellegrin, “a ética, como parte da filosofia, é considerada por Aristóteles uma ciência prática – cujo resultado não é exterior ao agente – que, na ordem prática, está situada na dependência da política [...]. Com

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No que toca à natureza humana, Aristóteles visa demonstrar, segundo

Berti, que “a aspiração ao saber está enraizada na própria natureza do

homem”10, e dependerá exclusivamente do ser humano a reprodução desse

saber na pólis.

Segundo Aristóteles, o ser humano é “ser vivo político”11; não há como

escapar disso: o homem é por natureza direcionado a viver na pólis. A ética, a

política e a educação estão totalmente interligadas na dimensão do

desenvolvimento da natureza humana. Só o ser humano, dentre outras

espécies de seres vivos, tem o privilégio de mudar o rumo de sua vida para

melhor ou pior, conforme seus atos, isso porque possui o conhecimento do seu

modo de ser perante um determinado ambiente.

A relação entre a política e a educação nos remete ao tema do bem

supremo e da vida na pólis. O que é o bem supremo? E o que a cidade deve

oferecer para viabilizar uma boa convivência entre os cidadãos? A partir destas

questões nos é possível adentrar no tema da educação do cidadão.

A educação do cidadão depende totalmente do ambiente da pólis:

“formada a princípio para preservar a vida, a cidade subsiste para assegurar a

vida boa”12. É a própria organização da pólis que irá propiciar ao cidadão uma

boa educação, permitindo que ele se torne excelente e encontre a eudaimonía.

Segundo Oliveira, “a causa final que constitui e mantém a organização da pólis

é, portanto, a existência moral, ou, por outro, a realização a partir da

atualização da areté propriamente humana.”13.

Para o entendimento do modo como é engendrada a educação na

perspectiva aristotélica carece abordarmos vários aspectos que direta ou

indiretamente afetam a formação do cidadão: as atividades relacionadas à vida

ativa e à vida contemplativa, a relação da educação com o corpo e a alma, os

cuidados com a infância, uma educação adequada às fases da juventude, a

importância da formação cívica, os estudos liberais (a gramática, a ginástica e

efeito, são as leis justas que, em última instância, estabelecem os comportamentos corretos que dão os bons hábitos.”. Ver. PELLEGRIN, Pierre. Vocabulário de Aristóteles. 2010. p. 28. 10

BERTI, Enrico. Perfil de Aristóteles. São Paulo: Paulus, 2012. p. 98. 11 ARISTÓTELES. Política. III, 6, 1278b, 15. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 207. 12

Idem. Ibidem. ARISTÓTELES. Política. I, 2, 1252b, 30. p. 53. 13

Ver. OLIVEIRA, Richard Romeiro. Para além da cidade: uma reflexão acerca das relações entre política, excelência e racionalidade em Aristóteles. Síntese, Belo Horizonte, v. 38, n. 121, 2011.

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a música). Os estudos liberais são importantes nesse contexto para o

aproveitamento da vida enquanto um ser humano livre, se distinguindo, assim,

de um estudo utilitarista. Todos estes fatores possuem uma finalidade exclusiva

para o cidadão, qual seja, levá-lo a habituar-se na participação da

“administração da justiça e no governo da cidade”14.

A relação entre a política e os objetivos educacionais está descrita no

Livro VII da Política, capítulos XII a XV. Também no Livro VIII, do capítulo I ao

capítulo VII, encontramos a ênfase no controle da educação e nos elementos

que a constitui, principalmente a discussão sobre as matérias de ensino e suas

finalidades. A política e a educação caminham tão juntas que todo o processo

educacional para uma pólis bem governada começa com a ação atenta e

efetiva do legislador. Como já dito, Aristóteles defende a ideia de que “o

homem é por natureza um ser vivo político”15; com Berti podemos confirmar a

conexão entre a natureza do homem e sua plena realização na pólis: “se pode

afirmar que o homem é por natureza animal político, isto é, feito para viver

numa pólis, numa cidade, no sentido que pode realizar cabalmente o próprio

fim e, portanto, ser cabalmente homem somente na cidade”16. Ao encontro da

posição de Berti, arriscamos afirmar que em Aristóteles existe o firme propósito

de fazer com que cada cidadão se desenvolva plenamente a partir da formação

proporcionada pela pólis17.

A educação pode, então, ser entendida a partir da necessidade de

“transformar a práxis humana em eupraxia (boa ação)”18. É com a prática

habitual da boa ação que cada cidadão adquire a responsabilidade por sua

14

ARISTÓTELES. Política. III, 1, 1275a, 20. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 187. 15

Idem. Ibidem. III, 6, 1278b, 15. p. 207. 16 BERTI, Enrico. Perfil de Aristóteles. São Paulo, 2012. p. 187. 17

Para Pellegrin, “a cidade é a forma suprema das sociedades humanas naturais. Do ponto de vista “material”, ela é formada de povoados, eles mesmo constituídos de famílias. A família, que é uma realidade mais de linhagem do que familiar no sentido moderno do termo – ela é dirigida por um chefe que é a um só tempo esposo, pai e senhor de escravos -, satisfaz as “necessidades de todos os dias”, fundadas todas elas em duas necessidades naturais fundamentais: a reprodução – necessidade descrita como “uma tendência natural a deixar depois de si alguém semelhante a si” – e a “salvaguarda”. Essa esfera “econômica”, no sentido etimológico do termo – oikonomikós, que vem de oikía, a família, significa “relacionado com a administração familiar” -, não representa por si só a totalidade das tendências da natureza humana. [...] Mas nem todos os homens realizam sua natureza política. Somente os gregos têm esse privilégio, os outros ficam num estágio anterior do desenvolvimento humano”. PELLEGRIN, Pierre. Vocabulário de Aristóteles. 2010. p. 19-20 18 Lenilson A. dos Santos, Cesar R. Esteves e Carolina Fragoso. Ética, Política e Educação em Aristóteles. Niterói RJ: ANINTER-SH/PPGSD-UFF, setembro de 2012. p. 4

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comunidade, tornando-se capaz, paulatinamente, de bem governar a pólis, a si

mesmo e a família. Por isso, Aristóteles ressalta que “a cidade equilibrada não

é obra do acaso, mas do conhecimento e da vontade”19. É possível afirmar, a

partir dessa dimensão da práxis, que a ética e a política assumem a forma de

uma epistéme prática, “como princípio ou causa do homem enquanto agente

da ação, sendo sua finalidade o próprio homem”20. Ou seja, a ética e a política

sempre estarão se referindo ao que é próprio do ser humano no seu agir,

sobretudo o agir bem; contudo, Aristóteles nos adverte: “agir bem é raro,

louvável e nobilitante”21.

Assim, o desafio da presente dissertação é apresentar a finalidade da

educação na pólis, a qual nos parece estar intrinsecamente relacionada à ética

e à política e consoante ao bem viver do cidadão. O caminho a ser percorrido

neste estudo será apresentado da maneira seguinte.

No primeiro capítulo trataremos da relação entre a ética e a educação. A

ética aristotélica intenciona tornar os homens bons e a partir da prática

excelente levá-los ao autodomínio e, desse modo, ao encontro da eudaimonía

na convivência coletiva. A educação ética colabora na orientação de cada

cidadão para um agir prudente na pólis.

No segundo capítulo analisaremos a conexão entre a política e a

educação. Aristóteles, ao qualificar o ser humano como um ser da cidade - o

zoom-politikon - imprime à natureza do homem a necessidade de conviver em

comunidade, sendo a educação, neste sentido, interligada com a política na

medida em que promove as condições para a vida em sociedade.

No terceiro capítulo faremos algumas considerações sobre os elementos

que integram a formação aristotélica, os quais são denominados de estudos

liberais: a música, a gramática, a ginástica, a retórica e a poesia trágica nas

suas interlocuções com a educação.

No quarto capítulo, numa tentativa de síntese da finalidade educacional

aristotélica, buscaremos apresentar a relevância da ação do legislador no

sentido de normatizar a educação na pólis por meio de uma boa constituição.

19 ARISTÓTELES. Política. VII, 13, 1332a, 30. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 531. 20

SILVEIRA, Anis Coitinho. Ensaios sobre ética: complementaridade entre uma ética dos princípios e das virtudes. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária, 2008. p. 168. 21 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. II, 9, 1109a. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 46.

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Neste estudo, em síntese, procuraremos mostrar que a importância da

educação aristotélica está diretamente interligada à ideia de que a vida humana

tem por objetivo a eudaimonía, o que nos permite considerar que a proposta

educativa aristotélica pode ser compreendida a partir de duas abordagens

fundamentais, a ética e a política.

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CAPÍTULO I

“[...] a excelência moral estão permanentemente preocupadas

com o que é difícil, pois até as coisas boas são melhores

quando são difíceis”.

(Aristóteles. Ética a Nicômaco. II, 1105a, 1985, p. 38).

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1. ÉTICA E EDUCAÇÃO

Consideramos relevante para a compreensão da educação aristotélica

ter presente que o objetivo da vida humana é o bem viver, sendo este objetivo

possível somente na pólis. A ética, além de estar intimamente interligada com

essa formação do indivíduo, é também o que o leva ao cultivo da excelência

voltada para bem viver. Aristóteles afirma:

A ética é parte da ciência política e lhe serve de introdução. O objetivo da ética seria então determinar qual é o bem supremo para as criaturas humanas (a felicidade) e qual é a finalidade da vida humana (fruir esta felicidade de maneira mais elevada – a contemplação)22.

Aristóteles, segundo Vergnières, foi o primeiro filósofo “a ter feito do

ethos um conceito filosófico integral, dando lugar ao estudo específico

(pragmateia) da virtude ética”23. A ética é, nesta perspectiva, o estudo da

prática cotidiana, “da conduta ou fim do homem como indivíduo”24, intimamente

ligada, ao nosso ver, com a forma que o sujeito é educado.

Associada à ação particular de cada homem, podemos perceber a

preocupação de Aristóteles com a conduta ética no âmbito da cidade, ou, em

outras palavras, com a pertinência da ética junto às “instituições políticas e

sociais; a uma ética pertencente, em entendimento amplo a política”25. Dessa

forma, ampliando o campo da ética para a política, no qual estão expressos

traços “teleológicos”, ou seja, “uma doutrina daquele ethos (hábito, costume)”26.

22

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 11. Vale ressaltar que as obras aristotélicas dedicadas às questões referentes à ética são a Ética a Nicômaco, a Grande Ética, a Ética Eudêmica e a Política, entre elas a mais conhecida é a Ética a Nicômaco: “Os estudiosos de Aristóteles em geral e das obras morais em particular gastaram e continuam a gastar muita erudição e tinta na tentativa de estabelecer uma cronologia definitiva para as três Éticas e de definir-lhes a fidelidade à doutrina do estagirita, bem como na discussão da autenticidade da Ética a Êudemos e da Ética Maior (a Ética a Nicômaco é geralmente considerada autêntica)”. Ver em Ética a Nicômacos. Mário da Gama Kry, publicada pela Editora UNB, em 1985. p. 9. 23

VERGNIÉRES, Solange. Ética e política em Aristóteles: phsis, ethos, nomos. 1998. p. 5. 24

REALE, Giovanni. História da filosofia antiga, 2003. v.1. p. 203. 25 HOFFE, Otfried. Aristóteles. Porto Alegre: Artmed, 2008. p. 169. 26

Idem. HOFFE, Otfried. Aristóteles. p. 169.

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Temos, por conseguinte, duas dimensões da ética que se complementam: uma

voltada para a convivência na comunidade, e outra, voltada para a formação do

caráter de cada homem27.

No presente capítulo apresentamos o percurso necessário para que o

indivíduo possa se desenvolver eticamente. Procuramos, para tanto, apontar as

conexões entre a natureza humana e as condições para o hábito e a

excelência, o agir bem e a importância da deliberação28. Entendemos que

todos estes aspectos são constitutivos da educação aristotélica. Para tratar da

formação ética concentraremos nossa abordagem, prioritariamente, no Livro II

da Ética a Nicômaco.

1.1. Hábito, excelência e natureza humana

Esse tópico pretende tratar de dois aspectos da ética aristotélica: o que

diz respeito à excelência e ao hábito29, e outro, que concerne à dimensão da

natureza30 humana em sua intersecção com a formação do caráter31.

27

La ética de Aristóteles es el primer análisis de lo que, de una manera muy general, podríamos denominar estructura del comportamiento humano. Con el mismo cuidado y originalidad con que analiza, en sus investigaciones sobre los animales, la organización y funcionamiento de la vida, mira también al hombre como productor de <<actos>> que no se solidifican y <<realizan>>, como los de la téchne, en algo objetivo, en <<cosas>>. Ver. Ética Nicomáquea / Ética Éudemia. Editorial Gregos Madri. 1998. p. 28 28

“Consideração das alternativas possíveis que certa situação oferece à escolha. É o que Aristóteles quer dizer ao falar dos limites da Deliberação, excluindo do âmbito dela não só o necessário (que não pode não ser), mas também o fim. Com efeito, Aristóteles observa que o médico não se pergunta se quer ou não curar o doente, o orador não se pergunta se quer ou não persuadir, nem o político se quer ou não instituir boa legislação. Ao contrário, uma vez posto o fim, examina-se como e por quais meios se poderá atingi-lo; sobre esses meios, por tanto, versará a deliberação. A Deliberação conclui-se e culmina na escolha”. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 275. 29

. Essa palavra foi introduzida na linguagem filosófica por Aristóteles (Met., V, 20, 1022b, 10), que a definiu como uma disposição para estar bem ou mal disposto em relação a alguma coisa, tanto em relação a si mesmo quanto a outra coisa, por exemplo, a saúde é um hábito, porque é uma dessas disposições. Nesse sentindo, Aristóteles julga que a virtude é um hábito, por não ser “emoção” (como a cupidez, a ira, o medo etc.), nem “potência”, como seria a tendência à ira, ao sofrimento, à piedade etc. A virtude é, antes, a disposição para enfrentar, bem ou mal, emoções e potências; por exemplo, dobrar-se aos impulsos da ira ou moderá-los (Et. Nic., II, 5). Ver, também, a definição do conceito em ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 2007. p. 576. 30

A natureza de uma coisa é o estado de pleno desenvolvimento para o qual ela tende. Ver. PELLEGRIN, Pierre. Vocabulário de Aristóteles. Tradução Claudia Berliner; revisão técnica Marcos Ferreira de Paula. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. – (Coleção vocabulário dos filósofos). p. 48.

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Aristóteles afirma que os “homens são por natureza capazes de

excelência”32. Na Ética a Nicômaco encontramos várias espécies de

excelência33, as quais podem ser adquiridas pelo hábito de praticar boas ações.

Aqui nos debruçaremos sobre as excelências moral e intelectual sempre tendo

no horizonte a dinâmica do processo formativo do indivíduo na pólis. Quanto à

natureza humana, partiremos de uma questão que diz respeito ao núcleo do

nosso estudo: o que faz com que nos tornemos singulares em relação às

demais espécies da natureza? Em outros termos: o que é a natureza humana?

A concepção de natureza humana aristotélica ressalta que os humanos são

seres racionais; o fato de termos razão nos torna singulares em relação às

outras espécies de seres vivos, assegurando “aos homens mais facilmente o

que é necessário à vida”34. Vida aqui entendida em seu sentido intelectual e

moral, a ser desenvolvida em comunidade e a partir da educação.

No primeiro Livro da Metafísica Aristóteles afirma que “todos os homens

tendem por natureza ao saber”35. Ainda na Metafísica, a marca distintiva da

espécie humana em relação às outras é: “enquanto os outros animais vivem

com imagens sensíveis e com recordações, e pouco participam da experiência,

o gênero humano vive também da arte e de raciocínio”36. O que auxiliará na

realização do “télos” do homem é a convivência na comunidade. Caso o

31

“Propriamente o sinal, ou o conjunto de sinais, que distingue um objeto e permite reconhece-lo facilmente entre os outros. Em particular, o modo de ser ou de comportar-se habitual e constante de uma pessoa, à medida que individualiza e distingue a própria pessoa. [...] Os antigos possuíam essa noção. Heráclito diz que o Caráter de um homem é o seu destino. E o aristotélicos Teofrasto deixou-nos, no texto intitulado Os caracteres, a descrição de trinta tipos de caráter morais (importuno, vaidoso, descontente, fanfarrão etc.), descritos precisamente com base em suas manifestações habituais”. Ver. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 2007. p. 133-134. 32

A obra Ética a Nicômacos, na tradução para o português de Mário da Gama Kry, 1985. Trata o conceito de “virtude” como “Excelência”. O tradutor, em nota diz, “uma das acepções de areté, tradicionalmente traduzida por “virtude”, cremos que “excelência” corresponde melhor ao sentido do original, e evita a ambiguidade de “virtude” na linguagem corrente”. p. 213. 33 No livro Retórica, Aristóteles apresenta as principais virtudes, são elas: “a justiça, a coragem, a temperança, a magnificência, a magnanimidade, a liberalidade, a mansidão, a prudência e a sabedoria”. Ver ARISTÓTELES. Retórica. I, 9, 1366b. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes. 2012. p. 46. 34 SANTOS, Lenilson Alves dos. Ética, Política e Educação em Aristóteles. Participantes, Julio Cesar Ramos Esteves, Carolina Fragoso Gonçalves. Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades. Niterói RJ: ANINTER-SH/ PPGSD-UFF, 03 a 06 de Setembro de 2012. p. 5. 35 ARISTÓTELES. Metafísica. I, 980a 25. Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2002. p. 3. 36

Metafísica. I, 1, 980b 25. Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2002. p. 3.

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18

indivíduo não tenha uma participação na comunidade, declara Aristóteles, “será

um ser decaído ou sobre humano”37.

Em outra passagem que caracteriza exclusivamente a natureza humana,

temos:

A razão pela qual o homem, mais do que uma abelha ou um animal gregário, é um ser vivo político em sentido pleno, é óbvia. A natureza, conforme dizemos, não faz nada ao desbarato, e só o homem, de entre todos os seres vivos, possui a palavra38.

Aristóteles observa que o ser humano é o único animal que possui a

capacidade da fala, consecutivo, o senso da excelência e do ato de deliberar.

O ser humano se torna singular dentre as espécies de seres vivos com a ajuda

da linguagem. No Livro I da Política encontramos uma breve distinção entre

logos e a phoné.

Enquanto a voz indica prazer ou sofrimento, e nesse sentido é também atributo de outros animais (cuja natureza também atinge sensações de dor e de prazer e é capaz de as indicar) o discurso, por outro lado, serve para tornar claro o útil e o prejudicial e, por conseguinte, o justo e o injusto39.

O logos é linguagem articulada, diversamente da simples voz, na qual se

produzem apenas sons. Os animais não humanos produzem alguns sons

significativos, mas é somente a prática da phoné. Por esse meio somente

podem “atingir sensações de dor e prazer”, diferentemente da natureza

humana que pode estabelecer, a partir da linguagem40, “o justo e o injusto”.

Com a linguagem o ser humano pode se comunicar, se expressar e

engendrar valores na comunidade. Para Aristóteles “o homem tem as suas

peculiaridades: só ele sente o bem e o mal, o justo e o injusto; é a comunidade

37

ARISTÓTELES. Política. I, 2, 1253a, 5. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 55. 38 Idem. Ibidem. Política. I, 2, 1253a, 10. p. 55. 39

Idem. Política. I, 2, 1253a, 10. p. 55. 40

A linguagem diferencia o homem dos outros animais por indicar a capacidade de se comunicar por conceitos e proposições e dessa capacidade deriva o senso moral que só é existente nele. A linguagem permite a percepção comum do justo e do injusto, ou seja, o senso e as qualidades morais. Ver. CENCI, Angelo Vitório. Aristóteles e a educação. 2012. p. 70.

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destes sentimentos que produz a família e a cidade”41. Nesse sentido, “a

natureza tem a ver com a essência do ser humano e da auto-realização”42;

essa realização e sintonia com a essência humana está, justamente, em poder

se expressar politicamente em uma polis. O bem do indivíduo é, pois,

inseparável do bem da pólis, o que nos leva a conclusão de que o ser humano

só alcança sua excelência e perfeição no interior de corpo político devidamente

organizado.

No tocante às excelências, estas não são engendradas naturalmente e

nem contra a natureza, mas, como explica o próprio Aristóteles “somos

naturalmente aptos a recebê-las, e assim, aperfeiçoar o hábito”43.

Na Ética a Nicômaco, ao introduzir a definição de excelência, fica claro

que é a melhor coisa que o homem pode adquirir tem por fim último a

excelência: “com efeito, o louvor convém à excelência, pois é esta que torna o

homem capaz de praticar ações nobilitantes, ao passo que os panegíricos

exaltam tanto as atividades do corpo quanto as da alma”44. O que se põe em

questão aqui são as contribuições que tanto o corpo quanto a alma podem

oferecer na consecução da excelência, sendo a alma a parte responsável por

engendrar as ações dignas:

É evidente que a excelência a examinar é a excelência humana, pois o bem e a felicidade que estamos procurando são o bem humano e a felicidade humana. A excelência humana significa, dizemos nós, a excelência não do corpo, mas da alma, e também dizemos que a felicidade é uma atividade da alma45.

Nota-se que Aristóteles situa a alma acima do corpo, no entanto, sem

dar uma transcendência para ela. A excelência da alma traz consigo a

eudaimonía, e isso é o que efetivamente conta na perspectiva aristotélica.

41

ARISTÓTELES. Política. I, 2, 1253a, 15. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 55. 42 HOFFE, O. Aristóteles. Tradução Roberto Hofmeister Pich. – Porto Alegre: Artmed, 2008. p. 212. 43

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. II, 1, 1103a. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 35. 44 Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. I, 12, 1102a. p. 31. 45

Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. I, 13, 1102a. p. 32.

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Aristóteles estabelece duas partes da alma, “a racional e a irracional”46.

Consideramos pertinente mencionar estes dois aspectos da alma pois o

conhecimento humano que levará ou não aos atos virtuosos estão conjugados

ao desenvolvimento “racional ou irracional” da alma. A divisão da alma

apresentada na Ética a Nicômaco, Livro I, ressalta que:

Se estas duas partes são realmente distintas, à maneira das partes do corpo ou de qualquer outro todo divisível, ou se, embora distintas por definição, elas na realidade são inseparáveis, como os lados côncavo e convexo da periferia de um círculo, não faz diferença alguma no caso presente”47.

Importa assinalar que a parte irracional é subdivida entre alma

“vegetativa, nutritiva e apetitiva”48. A “natureza vegetativa” é o que há de mais

comum entre todos os seres vivos, significando a dimensão da nutrição e do

crescimento de qualquer espécie. Em seguida, aparece a “faculdade nutritiva,

que por sua própria natureza ela não faz parte da excelência humana”49; sendo

por isso descartada por Aristóteles no que concerne à excelência porque a

“eficiência deste impulso parece comum a todas as espécies de seres vivos, e

não somente à espécie humana”50. Na sequência, parece haver um importante

elemento da alma que, de certa forma, contribui para o desenvolvimento da

razão, o qual é chamado de “alma apetitiva”. Aristóteles justifica a unidade dos

elementos irracionais: “o elemento apetitivo e em geral o elemento

concupiscente participam da mesma em certo sentido, até o ponto em que a

ouvem e lhe obedecem”51. Todas as partes da alma precisam ser trabalhadas,

cultivadas de forma acertada, e no tempo certo de cada ser humano. Tais

partes e suas subdivisões de uma forma ou de outra participam da razão,

mesmo que os homens não percebam:

Participa da razão, aquilo que é dotado de razão (tanto quanto o que não é) será dúplice, e uma de suas subdivisões participa

46

Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. I, 13, 1102b, p. 32. 47 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. I, 13, 1102b. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 32. 48

Idem. Ética a Nicômacos. I, 13, 1102b, p. 32. 49

Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. I, 13, 1102b, p. 33. 50 Idem. Ética a Nicômacos. I, 13, 1102b, p. 33. 51

Idem. Ética a Nicômacos. I, 13, 1102b, p. 33.

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da razão no sentido próprio e em si, enquanto a outra terá uma tendência para obedecer no sentido em que se obedece a um pai.52

Todavia, Aristóteles continua sua análise em busca da excelência, pois é

evidente que não encontraremos a excelência na alma irracional.

Dando um passo adiante, e finalizando o Livro I da Ética a Nicômaco,

Aristóteles comenta:

A excelência também se diferencia em duas espécies, de acordo com esta subdivisão, pois dizemos que certas formas de excelência são intelectuais e outras são morais (a sabedoria, a inteligência e o discernimento, por exemplo, são formas de excelência intelectual, e a liberalidade e a moderação, por exemplo, são formas de excelência moral)53.

No desenvolvimento do Livro II da Ética a Nicômaco continua o esforço

em estabelecer as espécies de excelências intelectual e moral. Prossegue

dizendo que “a excelência intelectual deve tanto o seu nascimento quanto o

seu crescimento à instrução”54. Para a excelência intelectual ser adquirida há

necessidade de tempo, de um processo de formação, de uma “experiência”.

Por isso não se pode adquirir excelência intelectual sem antes alguns anos de

experiência a ser acumulada durante a formação. Vale ressaltar que a pólis

deve oferecer o ambiente adequado para que o processo educacional proposto

pelo legislador venha favorecer uma boa formação que ajude atingir a

excelência.

Aqui consideramos pertinente algumas observações sobre o conceito de

dýnamis55, pois é na excelência intelectual que encontraremos suas raízes. A

potencialidade é a capacidade que o sujeito tem de adquirir a excelência.

52

Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. I, 13, 1103a, p. 33. 53

Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. I, 13 1103a, p. 33. 54

Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. II, 1 1103a, p. 35. 55 “Aptidão, capacidade, faculdade, potencialidade ou possibilidade para alguma coisa. Força da natureza, força moral, fecundidade do solo, eficácia de um remédio, valor de uma moeda, valor ou significado de uma palavra. Força militar. Força militar. Força e poder para influenciar o curso de alguma coisa. É da mesma raiz do verbo dýnamai, que significa: 1) ter poder para, ter capacidade e autoridade para; 2) ter valor, ter significação; 3) na matemática: elevar um número ao quadrado, ao cubo, aumentando sua potência; 4) poténcia. Quando usado como verbo impessoal significa “é possível”. A dýnamis se refere a um poder, a uma força ou potência de alguém ou de alguma coisa a quem torna possível certas ações. É possibilidade ou capacidade contida na natureza da coisa ou da pessoa. Em Aristóteles, significa aquilo que um ser pode vir a tornar-se no tempo, graças a uma potencialidade que lhe é própria. Na filosofia

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Aristóteles, ao tratar da potencialidade na Ética a Nicômaco, enfatiza

que “em relação a todas as faculdades que nos vêm por natureza recebemos

primeiro a potencialidade, e somente mais tarde exibimos a atividade”56. Ou

seja, temos a faculdade57 ou capacidade de adquirir o aprendizado

antecedendo qualquer dimensão prática, no entanto, a potência em si é

alcançada com o hábito das atividades, “as ações humanas devem ser

desenvolvidas de uma maneira predeterminada, ou seja, orientadas de modo

prévio e consciente, uma vez que as ações correspondem aos hábitos”. Nesse

sentido, pode-se dizer que embora seja pertinente a formação para excelência

intelectual, o hábito ainda deve ser a principal forma para se educar o

indivíduo.

Ao se tratar dos sentidos, presente no processo de desenvolvimento da

excelência intelectual, Aristóteles apresenta algo importante: “pois não foi por

ver repetidamente ou repetidamente ouvir que adquirimos estes sentidos; ao

contrário, já os tínhamos antes de começar a usufruí-los, e não passamos a tê-

los por usufruí-los”58. O ser humano não está pronto ao nascer, precisa buscar

se efetivar já que as potencialidades por si só não trazem segurança na

realização da completude do homem. Tal realização está totalmente interligada

com a pólis e com o processo formativo:

A atualização das potencialidades humanas depende em boa parte de fatores externos ao indivíduo. A ação educativa, desenvolvida mediante os preceptores ou as instituições da pólis, constitui-se num dos mais importantes de tais fatores. Aristóteles identifica dois tipos de potências, as inatas e as adquiridas. As primeiras são oriundas, por exemplo, dos sentidos. As que são adquiridas advêm pela prática.59

aristotélica, é a razão e racionalidade do devir, o poder para ser, fazer ou tornar-se alguma coisa”. Ver CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. 2002. p. 499. 56

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. II, 1, 1103a. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 35. 57 “Faculdades: os poderes da alma [...] Aristóteles distingui: a) parte vegetativa, que é a potência nutritiva e reprodutiva própria dos seres vivos, a começar pelo homem; b) parte sensitiva, que compreende a sensibilidade e o movimento e é próprio o animal; c) parte intelectiva (dianoética), que é própria do homem [...] Por sua vez, o princípio dianoético ou alma intelectiva divide-se em duas partes que são, respectivamente, a parte apetitiva ou prática (a vontade) e a parte intelectiva ou contemplativa (o intelecto) (Ibid. III, X, 433a 14; Et. Nic. VI, 1, 1139a 3; Pol., 1133a). Essa divisão seria aceita e difundida durante muitos séculos”. Ver. Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano. 2007, p. 493. 58 Idem. Ética a Nicômacos. II, 1, 1103a, p. 35. 59

CENCI, Angelo Vitório. Aristóteles e a educação. 2012. p. 81.

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Segundo Aristóteles, na Metafísica, “ulteriormente, elas são ditas

potências (a) ou porque são potência de agir ou padecer simplesmente, ou (b)

de agir e padecer de determinado modo: portanto, mesmo nas definições

destas está presente o conceito da potência no sentido originário”60. Nossa

intenção é marcar que de alguma forma a potencialidade está presente no ser

humano durante seu processo de formação.

Retornando à excelência intelectual, nota-se que ela vai se constituindo

no homem a partir das experiências vivenciadas na pólis em colaboração com

sua potencialidade desenvolvida. A excelência intelectual está em sintonia com

o desenvolvimento e atuação da razão61 para sua atualização; evidencia-se,

assim, que “[...] o aspecto cognitivo é indissociável da virtude moral, sem o qual

ela não se forma no agente”62. Em certa medida a excelência moral se interliga

com a excelência intelectual.

A excelência moral está em conexão com o conhecimento prático e tem

como princípio buscar canalizar as boas ações na esfera da vida prática:

Não estamos investigando apenas para conhecer o que é a excelência moral, e sim para nos tornarmos bons, pois se não fosse assim nossa investigação viria a ser inútil, e cumpre-nos examinar a natureza das ações, ou seja, como devemos praticá-las; com efeito, as ações determinam igualmente a natureza das disposições morais63.

Aristóteles ressalta a necessidade de entendermos melhor a natureza

das ações que levam o homem a ter bons hábitos uma vez que elas estão

diretamente interligadas com as disposições morais. Existe “três espécies de

disposições morais, duas delas são deficiências morais e implicam em excesso

60 ARISTÓTELES. Metafísica. IX, 1, 1046a, 15. Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2002. p. 397. 61 A razão sempre realizará um papel imprescindível na realização da ação. Segundo Priscilla Tesch, sem a razão “nossos desejos seriam como os dos animais e, assim, também seriam os nossos movimentos: não racionais. Isso significa que nossas ações e reações às coisas seriam vias de mão única; aos nossos desejos e sentimentos poderíamos responder apenas de uma única maneira, não teríamos a potência de fazer e não fazer: não poderíamos, assim, ser responsabilizados pelos nossos atos”. Ver. Priscilla Tesch Spinelli. A prudência na Ética Nicomaquéia de Aristóteles. Porto Alegre, 2005. p. 36. 62

Priscilla Tesch Spinelli. A prudência na Ética Nicomaquéia de Aristóteles. Porto Alegre, 2005. p. 63. 63 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. II, 2, 1104a. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 36.

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e falta respectivamente, e uma é excelência moral, ou seja, o meio termo”64.

Aristóteles define meio termo como:

Por meio termo quero significar aquilo que é equidistante em relação a cada um dos extremos, e que é único e o mesmo em relação a todos os homens; por meio termo em relação a nós quero significar aquilo que não é nem demais nem muito pouco, e isto não é único nem o mesmo para todos65.

Temos, nesta passagem, dois pontos relevantes em relação ao meio

termo: de um lado uma referência ao que é comum a todos, e, de outro, o que

é próprio de cada homem. Um exemplo na Ética a Nicômaco apresenta bem o

ponto que desejamos ressaltar: “se dez é muito e dois é pouco, seis é o meio

termo, considerado em relação ao objeto, pois este meio termo excede e é

excedido por uma quantidade igual; este é o meio termo de acordo com uma

proporção aritmética”66. Nesse sentido, o meio termo se estabelece com certa

facilidade quando se tem um objeto de estudo como o número, algo “contínuo e

divisível”. No entanto, temos o outro aspecto, quando se trata de entender o

meio termo “em relação a nós”67, ao que explica Aristóteles:

Mas o meio termo em relação a nós não deve ser considerado de maneira idêntica; se dez minas de alimento são demais para uma pessoa ingerir e duas minas são muito pouco, não se segue necessariamente que o treinador prescreverá seis minas, pois isso também pode ser demais para as pessoas que ingere o alimento, ou então pode ser muito pouco para Mílon e demais para um principiante em exercícios atléticos.68

No caso do ser humano, a aplicação do meio termo se torna mais

complexa, pois o que está em jogo são as emoções e ações de cada indivíduo.

O desafio em determinar a mediania entre as ações e as emoções está no

compromisso de “agir de acordo com a reta razão”69, por isso, os critérios do

meio termo da excelência é dado a partir da razão; daí, mais uma vez, a

importância do cidadão ser educado na reta razão. A reta razão já está

64

Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. II, 8, 1108b, p. 45. 65 Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. II, 6, 1106a, p. 41. 66

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. II, 6, 1106a. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 41. 67

Idem. Ética a Nicômacos. II, 6, 1106a, p. 41. 68 Idem. Ética a Nicômacos. II, 6, 1106a, p. 41. 69

Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. II, 2, 1104a, p. 36.

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potencialmente no ser humano; ela acompanha a trajetória da vida por meio

das escolhas traduzidas em boas ações, assim, mantendo atualizada tal

potência do ser humano. Para isso, a deliberação exige do indivíduo

consciência e discernimento, acompanhada de uma predisposição para a

mediania. Sempre é a reta razão que orienta a ação do indivíduo para que se

torne excelente. “A reta razão é o próprio ponto de articulação entre as virtudes

no campo da praxis humana. Quem age com a reta razão, articula

racionalmente de modo prático e correto as suas ações”70. E a reta razão que

ordena racionalmente o que é conveniente fazer ou evitar em determinada

situação ou circunstância.

Aristóteles busca definir o meio termo ressaltando que, “embora de

natureza imprecisa”71 o meio termo não está no excesso ou na deficiência de

nossas ações. Um exemplo visa esclarecer nossa compreensão sobre a

mediana:

Os exercícios excessivos ou deficientes destroem igualmente o vigor, e de maneira idêntica as bebidas e os alimentos de mais ou de menos destroem a saúde, ao passo que seu uso em proporções adequadas produz, aumenta e conserva aquele e esta72.

O certo é que em nossas ações deve existir a mediania vinculada com a

reta razão, por isso, afirma Aristóteles, situa-se entre o “excesso e a falta, e

que o meio termo é conforme à reta razão”73.

Os objetos tratados por Aristóteles também demonstram a relação entre

excelência moral e deficiência, são eles: “Há três objetos de escolha e três de

repulsa: o nobilitante, o vantajoso e o agradável, e seus contrários – o ignóbil, o

nocivo e o penoso”74. O temperamento de cada indivíduo, a forma de como foi

educado em sua comunidade, as circunstâncias em que se encontra irão

engendrar a conduta diante do que se deve fazer em relação às ações. Temos,

a todo o momento, a oportunidade da deliberação, a escolha é de cada ser

70 CHIU YI CHIH. A eudaimonia na polis excelente de Aristóteles. Dissertação. São Paulo: USP, 2009. p. 98. 71

Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. II, 2, 1104a, p. 37. 72

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. II, 2, 1104a. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 37. 73 Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. VI, 1, 1139a, p. 113. 74

Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. II, 3, 1105a, p. 38.

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humano. A prática de um ato bom ou mau é o ponto forte de cada deliberação,

cuja instrução está bem marcada no Livro II da Ética a Nicômaco: “deve agir

deliberadamente, e ele deve deliberar em função dos próprios atos”75.

Um aspecto importante presente na deliberação diz respeito ao prazer:

Ninguém qualificará de justo um homem que não sinta prazer em agir justamente, nem de liberal um homem que não sinta prazer em ações liberais, e similarmente no caso de todas as formas de excelência. Sendo assim, as ações conformes à excelência devem ser necessariamente agradáveis. Mas elas são igualmente boas e belas, e tem cada um destes atributos no mais alto grau, se o homem bom julga bem a respeito de tais atributos76.

É justo, segundo Aristóteles, que o homem tenha prazer em executar

boas ações. Nossas escolhas deliberadas estão intimamente ligadas com o

prazer em exercê-las, e embora o prazer não seja a razão da ação ou da

escolha, ele será sua consequência inevitável, pois, as ações excelentes são

praticadas com prazer. No entanto, o prazer exige cautela: o indivíduo deve ter

uma boa formação para que consiga discernir de modo correto, não apenas

pelo prazer em si. A finalidade da ação do homem bom é a excelência não o

prazer, o homem excelente deve sempre jugar qual a melhor atividade a ser

realizada e não qual lhe proporciona prazer. A dificuldade maior consiste em

deliberar a favor de algo que não é prazeroso ou mesmo que causa sofrimento.

O prazer tem papel importante na formação do caráter e na regulação de

nossas ações cotidiana, ficando esse ponto evidente quando Aristóteles afirma

que “a excelência moral se relaciona com o prazer e o sofrimento; é por causa

do prazer que praticamos más ações, e é por causa do sofrimento que

deixamos de praticar ações nobilitantes”77. Isso justifica o quanto é relevante

educar a criança desde cedo a gostar e a desgostar do que se deve, “esta é a

verdadeira educação”78. Seja para o bem ou para mal, nossas ações estão

envolvidas com o prazer e o sofrimento, sendo muito mais difícil optar por

aquilo que causa sofrimento ou mesmo lutar contra o prazer:

75

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. II, 4, 1105a, Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 39. 76 Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. I, 8, 1099a, p. 26. 77 Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. II, 3, 1104b, p. 37. 78

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. II, 3, 1104b, p.37.

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É mais difícil lutar contra o prazer do que contra a própria cólera, para usar a frase de Heráclito, mas tanto a arte quanto a excelência moral estão permanentemente preocupadas com o que é difícil, pois até as coisas boas são melhores quando são difíceis.79

As atividades difíceis de executar são, para Aristóteles, as que provocam

o crescimento da excelência moral no ser humano. É na superação das coisas

difíceis que nos tornamos melhores80. Em suma, o comportamento do indivíduo

em relação aos prazeres e dores é determinante na formação da disposição

moral. O que se faz evidente em relação à excelência moral é que ela só se

efetiva a partir de boas ações: “devemos tornar-nos justos praticando atos

justos, e moderados praticando atos moderados, e de fato, se os homens

praticam atos justos e moderados eles já são justos e moderados”81. Esse é, a

nosso ver, o problema central relacionado à excelência moral: o que garante

que a ação seja boa? Ou moderada? O que valida a ação como boa? Segundo

o estagirita: “o agente também deve estar em certas condições quando os

pratica; em primeiro lugar ele deve agir conscientemente: em segundo lugar ele

deve agir deliberadamente e ele deve provir de uma disposição moral firme e

imutável”82. Nota-se que conhecimento e ação se cruzam, no entanto, o que

parece mesmo estar em jogo é o agir justo. Por isso, para Aristóteles:

as ações são chamadas justas e moderadas quando são como as que o homem justos e moderados praticaria, mas o agente não é justo e moderado apenas por praticá-las, e sim porque também as pratica como as praticariam homens justos e moderados. É correto, então, dizer que é mediante a prática de atos justos que o homem se torna justo, e é mediante a prática de atos moderados que o homem se torna moderado; sem os praticar ninguém teria sequer remotamente a possibilidade de tornar-se bom.83

A excelência moral também está intimamente ligada com o hábito. No

início do Livro II da Ética a Nicômaco, Aristóteles enfatiza a importância do

79 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. II, 3, 1105a. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 38. 80

Idem. Ética a Nicômacos. II, 3, 1105a, p. 38. 81

Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. II, 4, 1105a, p. 39. 82 Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. II, 4, 1105b, p. 39. 83

Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. II, 4, 1105b, p. 39.

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hábito na formação da excelência moral: “quanto à excelência moral, ela é o

produto do hábito”84. Contudo, adverte: “nada que existe por natureza pode ser

alterando pelo hábito”85. O hábito tem, portanto, função limitada dentro da

natureza humana, isso fica expresso na seguinte passagem do Livro X:

Alguns estudiosos pensam que a natureza nos fez bons, outros que nos tornamos bons pelo hábito, outros pela instrução. Os dotes naturais evidentemente não dependem de nós, mas em decorrência de alguma causa divina estão presentes nas pessoas verdadeiramente favorecidas pela sorte; quanto às palavras e à instrução, receamos que elas não sejam eficazes em relação a todas as pessoas, mas que a alma de quem aprende deve primeiro ser cultivada por meio de hábitos que induzam quem aprende a gostar e a desgostar acertadamente, à semelhança da terra que deve nutrir a semente.86

Na medida em que os dotes naturais não dependem de nós, ficamos

vulneráveis e à mercê do destino ou do que é estabelecido pela “divindade”.

Porém, o processo formativo pode interferir e cultivar bons hábitos, desde que

em acordo com aquilo que cada indivíduo quer ou pode aprender, ou seja, a

educação pode não ser eficaz em todos os homens. Para Vergnières, a

questão do hábito em Aristóteles está diretamente relacionada com o caráter

de cada indivíduo, e assim, diferentes são os resultados alcançados a partir do

processo formativo oferecido a cada cidadão:

Quando Aristóteles considera que o hábito é o meio de formar precocemente o caráter, evoca um acostumar-se doce e progressivo, e não uma repetição mecânica e forçada: também se frequentemente é necessário endireitar, corrigir, punir, esse meio é só um mal menor, que traz mau presságio sobre o futuro da criança.87

Então, muito mais que mera repetição mecânica, o hábito pode provocar

mudanças progressivas quando praticado o mais cedo possível na vida da

criança: “o habitus não é causa do ato, mas de sua qualidade”88. No entanto, é

84

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. II, 1, 1103a. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 35. 85

Idem. ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. II, 1, 1103a, p. 35. 86

Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. X, 9, 1179b, p. 207. 87

VERGNIÉRES, Solange. Ética e política em Aristóteles: phsis, ethos, nomos. 1998. p. 87. 88

Idem. Ibidem. Ética e política em Aristóteles: phsis, ethos, nomos. p. 111.

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preciso tomar algumas precauções, pois existem os bons e os maus hábitos. À

medida que o caráter é trabalhado a partir de uma boa educação, haverá uma

probabilidade maior de se chegar ao caráter virtuoso.

O hábito do ser humano em fazer boas ações é o que ajuda na formação

de um bom caráter. Contudo, é necessário certa cautela quanto à relação entre

hábito e excelência. Segundo Hoffe, “a virtude de caráter é definida de modo

clássico, através de gênero e espécie. Segundo gênero, ela vale como uma

atitude ou hábito (hexis), de acordo com a espécie como um meio para nós

(meson pros hêmas)”89. E Hoffe completa: “as virtudes de caráter não são fuga

dos costumes de uma comunidade, mas esquematizações de práxis moral que

cresceram historicamente, assumidas com respeito a certos tipos de paixões e

domínios de ação”90; em outras palavras, por um lado, a formação do caráter

tem sua base na vida prática e, por outro, visa fomentar e alimentar a

excelência moral entre os membros da comunidade.

O desafio da educação e de cada cidadão consiste em promover e em

exercitar bons hábitos. Em síntese, o que buscamos demonstrar a partir da

natureza humana vinculada com a excelência intelectual e a excelência moral,

é que ambas estão presentes na formação do cidadão da pólis aristotélica.

1.2. Educação para a excelência

Como educar para a excelência? Esta pergunta nos conduz ao cerne da

investigação sobre a importância da educação para o exercício das ações que

levam à excelência. No geral todos os homens que participam da pólis têm as

condições para a excelência ética, sendo missão da educação fazer

desenvolver as boas tendências que estão presentes na natureza do ser

humano. O desafio formativo consiste em adequar de modo eficiente os

processos educacionais a fim de favorecer o exercício de ações que levem à

prudência e, logo, à excelência. Para Aristóteles só o homem prudente91 pode

89 HOFFE, Otfried. Aristóteles. Porto Alegre: Artmed, 2008. p. 198. 90

HOFFE, Otfried. Aristóteles. Porto Alegre: Artmed, 2008. p. 201. 91

“ [...] a prudência aristotélica é a virtude, isto é, a excelência do intelecto prático. É, portanto, uma virtude intelectual e não uma virtude ética. No entanto, de certo ponto de vista, ela é o coroamento da ética. [...] Aristóteles define a prudência: “uma disposição prática, acompanhada de uma regra verdadeira, que concerne ao que é bom e ruim para o homem” (VI, 5, 1140b5). O

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30

alcançar a excelência. A prudência é uma dimensão importante na

argumentação aristotélica porque mesmo pertencendo à excelência intelectual,

na qual devemos pensar no bem antes de agir, ela está presente no âmbito da

moralidade; ela se concretiza, portanto, na prática de boas ações. Vejamos por

quais motivos a prudência é importante no processo da formação da

excelência.

Segundo Aubenque, a prudência “não é nem ciência nem arte, resta que

seja uma disposição (o que a distingue da ciência) prática (o que a distingue da

arte)”92. Essa definição de Aubenque é dada pelo próprio Aristóteles na Ética a

Nicômaco:

[...] uma vez que o conhecimento científico envolve demonstração, mas não pode haver demonstração de coisas cujos primeiros princípios são variáveis, porque tudo nelas é variável, e porque é impossível deliberar acerca de coisas que são por necessidade, o discernimento não pode ser conhecimento científico nem arte; ele não pode ser ciência porque aquilo que se refere às ações admite variações, nem arte, porque agir e fazer são coisas de espécies diferentes93.

A prudência é uma disposição relacionada às práticas do cotidiano que

visam uma “regra verdadeira”94. Nota-se ainda ser demasiado ampla essa

definição de prudência, e a pista de Aubenque para maior clareza sobre este

conceito nos remete para a Ética a Nicômaco: “A melhor forma de

compreender o que é a prudência é considerar quais são os homens que

chamamos prudentes”95. O homem prudente deve ter um bom discernimento

prudente, cuja meta não é um conhecimento teórico da virtude e da felicidade, é portanto o homem da avaliação justa de situações singulares. Sua capacidade primeira é de bem deliberar. A deliberação, que precede a escolha racional, evidentemente não se aplica ao que não depende de nós. Tampouco parece se aplicar, contrariamente ao que pensaram alguns intérpretes, ao fim, mas sim, dado o fim, aos meios de alcançá-lo. Por isso, Aristóteles designa à prudência uma parte especial da alma. A alma racional, que se opõe à alma irracional, divide-se em duas: a parte “científica” “por meio da qual contemplamos os seres cujos princípios não podem ser diferentes do que são” (1139a 7) e a parte “calculadora”, que Aristóteles caracteriza também como faculdade de deliberar ou de opinar, “por meio da qual conhecemos as coisas contingentes”. Dessa parte calculadora, opinativa ou deliberativa da alma, a prudência é a virtude”. Ver. PELLEGRIN, P. Vocabulário de Aristóteles. 2010. p. 52-54. 92

AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. 2003. p. 61. 93

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. VI, 5, 1140a.Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p.116-117. 94 AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. 2003. p. 61. 95

AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. 2003. p. 63.

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nas escolhas cotidianas, condição fundamental para ser tornar excelente a

partir da prudência:

“Com referência ao discernimento, chegaremos à sua definição se considerarmos quais são as pessoas dotadas desta forma de excelência. Pensa-se que é característico de uma pessoa de discernimento ser capaz de deliberar bem acerca do que é bom e conveniente para si mesma, não em relação a um aspecto particular”96.

Ao nos reportarmos à definição geral de excelência proposta no Livro II da

Ética a Nicômaco, encontraremos:

A excelência moral, então, é uma disposição da alma relacionada com a escolha de ações e emoções, disposição esta consistente num meio termo (o meio termo relativo a nós) determinado pela razão (razão graças à qual um homem dotado de discernimento o determinaria).97

A definição apresentada nesta passagem é bastante densa, pois retoma

todos os elementos aristotélicos sobre a excelência. O que está em jogo na

excelência é a boa deliberação, com atenção a mediedade relativa a nós,

disposição dada pela razão. O homem prudente tem bom discernimento ao

escolher entre o bem e o mal, dessa forma, se torna excelente.

Na Ética a Nicômaco temos as disposições como um estado da alma em

função das quais nos portamos bem ou mal em relação às emoções98.

Entendemos ser a possibilidade da educação dos desejos que colabora na

firmeza de caráter do ser humano virtuoso. Neste sentido, manter a razão à

frente do desejo é o grande desafio. A razão guia as ações dos agentes,

fazendo com que o homem aja de formar determinadamente certa. No entanto,

há circunstâncias nas quais o agente, mesmo sabendo o modo certo de agir,

por conta do desejo, escolhe contra aquilo que já conhece como correto,

falhando, assim, no momento de aplicação da ação.

96

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. VI, 5, 1140a.Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 116. 97 Idem. Ibidem. ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. II, 6, 1106b, p. 42. 98

Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. II, 4, 1105b. p. 39.

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O que conduz o ser humano ao caminho certo diante de todas as

circunstancia da vida é o exercício da moderação, a chave que conduz à

prática da excelência:

“A medida entre os extremos contrários, a moderação entre os dois extremos, o justo e meio, nem excesso nem falta. Como vimos [...] a medida não tem apenas um sentido quantitativo, mas sobretudo qualitativo, significando moderação. Moderar é pesar, ponderar, equilibrar e deliberar, é a ação que institui a medida”99.

O homem prudente não possui uma régua para medir o justo meio, no

entanto, sua razão é seu guia; a partir do raciocínio deve conhecer o que é

certo e, sobretudo, praticar a ação correta. No Livro III da Ética a Nicômaco,

Aristóteles nos apresenta a importância da ação na “excelência moral”100,

sendo que as melhores ações são as voluntárias: “ações voluntárias são

louvadas”101.

Aristóteles se preocupa exclusivamente com o bem do homem em

sociedade. E, neste sentido, a política assume um papel central na pólis na

medida em que pode vir a engendrar os meios para gerar certo caráter nos

cidadãos com a intenção de ajudá-los a se tornarem excelentes:

“pois afirmamos que a finalidade da ciência política é a finalidade suprema, e o principal empenho desta ciência é infundir um certo caráter nos cidadãos – por exemplo, torná-los bons e capazes de praticar boas ações”102.

A boa ação é o fundamento para se viver bem na comunidade. São,

então, estabelecidas algumas condições que possibilitam o agir moral:

o agente também deve estar em certas condições quando os pratica; em primeiro lugar ele deve agir conscientemente; em segundo lugar ele deve agir deliberadamente, e ele deve

99 CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. 2002. p. 446. 100

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. III, 1, 1110a. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 49. 101 Idem. Ética a Nicômacos. III, 1, 1110a, p. 49. 102

Idem. Ética a Nicômacos. Ibidem. I, 9, 1099b, p. 28.

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deliberar em função dos próprios atos; em terceiro lugar sua ação deve provir de uma disposição moral firme e imutável.103

O homem pode se tornar excelente na medida em que executar suas

ações de forma a saber o que está fazendo, “necessita, pois, escolher o que

está fazendo a partir de si próprio, agir por e com opção, em tais circunstância,

é o que deve ser feito”104. Para ter o domínio de si próprio no desenrolar da vida

cotidiana é de suma importância que seja bem educado, e, sobretudo, que o

mais cedo possível se habitue a praticar boas ações: “devemos considerar

aviltantes todas as tarefas, artes e disciplinas que não preparam o corpo, a

alma, e a mente do homem livre, para o exercício e a prática da virtude”105. Por

isso, toda educação está direcionada “ao fato de se dever ensinar as coisas

úteis absolutamente e indispensáveis”106. É necessário que o indivíduo tenha

uma percepção educada para saber discernir e praticar a excelência em todas

as situações.

Entretanto, podemos ainda insistir, perguntar qual a finalidade última de

ser educado para a prática de boas ações e, consequentemente, se tornar

excelente. A resposta para essa questão está na busca pela eudaimonía: “a

condição fundamental da vida feliz consiste na atividade em conformidade com

a excelência”107. Isso não significa que todo indivíduo excelente seja feliz; pode

acontecer que não, a excelência é uma dentre as condições para eudaimonía.

O homem bom, que zela pelas boas ações, tem a possibilidade de ter uma vida

mais eudaimonica e de sucesso. Aristóteles ressalta que “grandes e frequentes

sucessos tornam a vida mais feliz, pois eles, por sua própria natureza, realçam

a beleza da vida e também podem ser usados nobremente e de conformidade

com a excelência”108. O indivíduo que está disposto a encontrar a eudaimonía

deve se pôr a praticar boas ações.

103 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. II, 1, 1105b, 4. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 39. 104

CENCI, Angelo Vitório. Aristóteles e educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. p. 56. 105 ARISTÓTELES. Política. VIII, 2, 1337b, 10. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 563. 106

Idem. Política. VIII, 2, 1337b, 5, p. 563. 107

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. I, 10, 1100b, p. 29. 108 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. I, 10, 1100b. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 29.

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Por fim, o papel da educação para a excelência consiste em formar um

ser humano “cujo interesse individual consista na realização da salvação

pública”109. Trata-se de educar para a excelência visando o bom cidadão na

pólis. É o que procuraremos abordar a seguir.

109

HOBUS, João. Ética das Virtudes. 2011. p. 259.

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CAPÍTULO II

“[...] Mais do que uma abelha ou um animal gregário, é um

ser vivo político em sentido pleno”.

(Aristóteles. Política. I, 1, 1153a, 10.)

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2. POLÍTICA E EDUCAÇÃO

Para Aristóteles, a política é o motor e o fundamento da convivência em

comunidade, daí a relevância da vinculação entre a política e a educação e

desta com a boa conduta e a participação ativa na pólis com vistas ao bem

viver. Tal vinculação fica explícita no Livro VII da Política, capítulos XII a XV,

quando Aristóteles nos apresenta o sistema educacional da pólis, seus,

objetivos e pontos de partida. Também na Política, Livro VIII, do capítulo I ao

VII, encontramos a ênfase no controle da educação e de seus elementos

constitutivos, principalmente a discussão sobre as matérias de ensino e suas

finalidades. O desenvolvimento deste capítulo da dissertação está apoiado em

estudos norteados pelas seguintes indagações: qual a relação entre política e

educação para Aristóteles? Qual o sistema educacional adequado para a pólis

aristotélica? O que é o bem viver?

2.1. Aspectos da pólis

A educação do cidadão depende totalmente do ambiente da pólis; sua

organização é o que dá possibilidade para que o indivíduo tenha ou não uma

boa formação que, por sua vez, pode vir a colaborar para a ação moral e,

sobretudo, indicar as condições para a eudaimonía110. Vale ressaltar, a partir de

F. Wolff, o profundo vínculo entre a educação e a política em Aristóteles:

Para os gregos, toda a esfera da vida pública é, num certo sentido, política, e a esfera privada é muito mais estreita do que para nós: nem a “moral”, nem a religião, nem a educação das crianças, por exemplo, estão fora do campo da política.111

110 Traduzido para o português como felicidade. “A eudaimonía é o bem principal tanto para o indivíduo como para a comunidade política, que deve garantir a auto-suficiência para a vida boa (Pol. I, 2, 1252 b 28-30), não sendo um estado interiorizado (subjetivo) do indivíduo, mas, sim, uma condição de possibilidade para a cidadania. Já é importante ressaltar que a fundamentação do ornamento político para a vida boa, como fim supremo, insere Aristóteles no esquema de uma ética universalista, pois não está em questão, aqui, a identificação de um bem particular da comunidade, mas uma idéia universal que serve de referência para as comunidades particular”. Ver. SILVEIRA, Denis Coitinho. Ensaios sobre ética: complementaridade entre uma ética dos princípios e das virtudes. 2008. p. 199. 111

WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política. 2001. p.10.

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Tudo que diz respeito à pólis é envolvido pela política, por exemplo,

segundo Aristóteles, a possibilidade da pólis se tornar melhor só acontecerá a

partir da educação que os legisladores disponibilizarem aos jovens. Dessa

forma, a eudaimonía é um tema totalmente interligado com o bem viver do

indivíduo na comunidade, estando também aí implicada a relação entre o

cidadão e a educação.

Segundo Cenci, “o sistema educativo de Aristóteles é articulado tendo

em vista um modelo de vida a ser aspirado por todos os homens livres, a

eudaimonia ou bem viver”112. O bem viver tem como base um conjunto de

condições que permitem entender que a vida é valiosa e que a eudaimonía

pode ser alcançada na cidade. Cabe aos governantes engendrarem os

elementos que venham favorecer a cidade se tornar adequada para a boa

convivência, e assim, encontrar o bem supremo. Antes, porém, de tratarmos do

tema do bom governo, vejamos o que Aristóteles entende por bem supremo.

O bem supremo é algo de bom que todos desejam e que está acima de

tudo, que é único. Zingano ressalta que “tem-se discutido muito para saber se

deve interpretar o bem supremo como um bem ‘inclusivo’ ou ‘dominante’”113.

Nesse trabalho tomamos o bem supremo como “inclusivo”, posição defendida

por Zingano. Ou seja, para se chegar ao bem supremo como eudaimonía nota-

se em nossas ações várias atividades que visam um bem menor corroboram e

devem estar em harmonia com o bem supremo, a eudaimonía. Para Zingano:

Desejar a eudaimonia como último fim não significa desejar um certo fim em detrimento de outros, mas sim desejar uma harmonia entre nossos fins; a eudaimonia é, assim, a realização completa e harmoniosa de fins primários, fins primários sendo aqueles fins em vista dos quais todas as outras coisas são feitas. Nossas ações dirigem-se todas à realização de fins primários; a eudaimonia é a harmonia destes fins primários num todo coerente114.

Aristóteles na Ética a Nicômaco, Livro I, afirma: “Toda arte e toda

indagação, assim como toda ação e todo propósito, visam a algum bem; por

112

CENCI, Angelo Vitório. Aristóteles e a educação. 2012. p. 43. 113 ZINGANO, Marco. Estudos de ética antiga. 2009. p. 73. 114

ZINGANO, Marco. Estudos de ética antiga. 2009. p. 74.

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isso foi dito acertadamente que o bem é aquilo a que todas as coisas visam”115.

O bem ao qual todas as coisas tendem, dito nessas primeiras linhas da Ética a

Nicômaco, não é um único bem, mas sim os fins relacionados a cada uma; os

argumentos que justificam isso são os próprios exemplos apresentados na

Ética a Nicômaco no que se refere às finalidades: a “finalidade da medicina é a

saúde, a da construção naval é a nau, a da estratégia é a vitória, a da

economia é a riqueza”116. A preocupação de Aristóteles consiste em encontrar

algo ao qual tudo possa estar vinculado, constituindo o bem supremo.

Aristóteles defende explicitamente na Ética a Nicômaco, Livro X, que o

bem supremo é exclusivamente certa atividade da vida contemplativa.

Mas se a felicidade consiste na atividade conforme à excelência é razoável que ela seja uma atividade conforme à mais alta de todas as formas de excelência, e esta será a excelência da melhor parte de cada um de nós. Se esta parte melhor é o intelecto, ou qualquer outra parte considerada naturalmente dominante em nós e que nos dirige e tem o conhecimento das coisas nobilitantes e divinas, se ela mesma é divina ou somente a parte mais divina existente em nós, então sua atividade conforme à espécie de excelência que lhe é pertinente será a felicidade perfeita. Já dissemos que esta atividade é contemplativa117.

A atividade contemplativa, tendo essa característica de superioridade em

relação às demais atividades que visam algum bem, também é compatível com

outros fins ou mesmo outros bens que favoreçam a contemplação, sempre em

harmonia entre os bens. O Livro X da Ética a Nicômaco mostra, segundo

Zingano, “que aqueles bens que incluem a contemplação constituem a

felicidade primeira, outras séries constituindo a felicidade segunda, a partir da

tese geral de que a eudaimonia é a atividade segundo a virtude perfeita”118.

Na Política Aristóteles afirma que “a cidade melhor é simultaneamente

feliz e próspera.”119. À finalidade da pólis bem governada está vinculada à

possibilidade do indivíduo atingir o bem supremo, se tornando eudaimônico: “é

115

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. I, 1, 1194a.Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 17. 116

Idem. Ética a Nicômacos. I, 1, 1194a, p.17. 117

Idem. Ibidem. Ética a Nicômacos. X, 7, 1177a, p. 201. 118

ZINGANO, Marco. Estudos de ética antiga. 2009. p.110. 119 ARISTÓTELES. Política. VII, 1, 1323b, 30. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p.483.

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natural que sejam os povos mais bem governados que, em dada circunstância,

tenham a melhor vida, a menos que suceda algo de anormal.”120. Assim, o

vínculo entre bom governo e boa vida fica selado: a garantia de uma boa vida

ou uma vida eudaimonica na pólis reside nela ter bons governantes e ser bem

governada por estes de tal modo que seus cidadãos possam ter as condições

de atingir o bem supremo.

Outro aspecto do bem viver ao qual os governantes carecem estar

atentos diz respeito os critérios da identidade cívica, pois ela está ligada à

forma utilizada por Aristóteles para identificar as características de cada povo

da Grécia Antiga: “o caráter natural dos cidadãos”121 de uma localidade permite

o entendimento do modo de ser e agir de cada indivíduo dali. Aristóteles dirige

sua atenção para as cidades mais afamadas da Grécia e as do “outro mundo”

(expressão aristotélica para a forma como os povos estavam distribuídos); seu

objetivo é encontrar os traços de caráter de cada população.

Os povos situados nas regiões frias, particularmente os europeus, são cheios de brio mas carecem de inteligência e de habilidade técnica; por isso vivem em liberdade mas desprovidos de organização política e sem capacidade para governar”. Os povos da Ásia são dotados de inteligência e espírito técnico, mas sem nenhum brio, sendo essa a razão pela qual vivem num estado de sujeição e servidão.122

A região de nascimento, por seus elementos constitutivos, pode

influenciar no caráter de seus habitantes. Essa conclusão permite a Aristóteles

apresentar as características da “raça helénica”:

a raça helénica ocupa geograficamente uma situação intermédia participa das qualidades de ambos os povos: não é só briosa e inteligente, mas usufruindo de uma existência livre, e a raça que melhor se governa e, no caso de atingir a unidade política, a mais apta para governar todos os povos.123

120

Idem. Ibidem. Política. VII, 1, 1323a, 15, p. 479. 121

Idem. Ibidem. Política. VII, 7, 1327b, 20, p. 505. 122

Idem. Política. VII, 7, 1327b, 25, p. 505. 123 Idem. Política. VII, 7, 1327b, 30. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 505.

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Permite, também, segundo Aristóteles, atribuir o título da melhor raça

aos helênicos: o que se diz nascido para governar, por terem uma natureza

“briosa e inteligente”.

O território também é relevante para o bem viver na cidade: “o tamanho

e grandeza do território devem permitir que os habitantes vivam

despreocupados, com liberdade e moderação” 124. O que está em questão na

importância do território é sua interferência na constituição do caráter: o

cidadão, ao receber as influências da localização territorial, pode correr o risco

de cair nos extremos opostos, que são a “mesquinhez, outros para

dissipação”125. A configuração territorial deve, ainda, ser de “difícil acesso para

os inimigos” e, em caso de invasão, a cidade deve ter um esquema que facilite

a fuga de seus habitantes, para isso é necessário uma “quantidade de

população abarcável”. E ainda, fora dos tempos de guerra, a disposição

territorial deve facilitar o “transporte da colheita”. Esta é uma configuração

territorial capaz de favorecer a qualidade de vida da pólis.

Mas, o que temos em relação ao território é apenas um dos critérios a

serem adotados para facilitar e garantir a boa convivência e a qualidade da

pólis. Existem outros, como por exemplo, o contingente populacional: “A cidade

melhor é, necessariamente, aquela em que existe uma quantidade de

população suficiente para viver bem numa comunidade política”126. Nesse

sentido, viver bem significa que cada indivíduo deve “realizar uma vida

autossuficiente comum a todos”127. Por trás da autossuficiência entendemos

residir a preocupação de que a pólis não seja demasiadamente populosa, o

que poderia dificultar o andamento político da comunidade.

Então, mesmo que existam conjuntos diferenciados de pessoas no

interior da cidade128, e nem todos sejam considerados cidadãos, Aristóteles

não os desassocia do sistema político: cada um exerce sua função conforme

sua própria natureza. Tomemos a escravidão como exemplo; segundo Morrall,

124

ARISTÓTELES. Política. VII, 5, 1326b, 30, p. 499-501. 125

Idem. Política. VII, 5, 1326b, 35, p. 501. 126 Idem. Política. Ibidem. VII, 4, 1326b, 5, p. 499. 127

Idem. Política. VII, 4, 1326b, 25, p. 499. 128

Ver. Theml, Neyde. O Público e privado na Grécia do VIII ao IV séc. a.C.: O Modelo Ateniense. 1988. p. 39. Mulheres, crianças, velhos, escravos e metecos não eram compreendidos como um conjunto em si mesmo, distinto e exterior à pólis. Eles eram bem heterogêneos e desigualmente integrados, mas eles eram indissociáveis do sistema políade.

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41

para Aristóteles existe um “caráter natural da escravidão, pois alguns homens

estão destinados, por sua dotação natural, a suplementar a falta de razão de

outros, para o bem daqueles que foram menos bem dotados”129. Ao final, todos

possuem uma função que visa garantir o bem viver da pólis e do cidadão. As

funções exigidas na organização da cidade implicam em um complexo

exercício de práticas solicitadas na constituição da pólis.

Perceber-se que o homem é um animal social, e mais social do que as

abelhas e os outros animais que vivem juntos, pois, tem capacidade racional de

decidir viver bem e fazer o bem para sua comunidade. Pode-se dizer que o

todo tem relevância antes das partes, é neste sentido que Aristóteles aponta as

partes constitutivas da pólis: a pólis não é simplesmente um agrupamento

casual de indivíduos sem nenhuma finalidade, há, portanto, uma série de

aspectos que devem constar na vida comunitária ou de uma boa pólis:

para que exista cidade deve, antes de mais, existir alimentação; depois ofícios, já que a vida necessita de muitos instrumentos; em terceiro lugar armamento, na medida em que os membros da comunidade têm necessariamente que possuir armas para usar, quer para manter a autoridade contra os que se sublevam internamente, quer para repelir as ameaças externas; também deve possuir certa abundância de recursos não só para colmatar as carências próprias como para manter o esforço de guerra; em quinto lugar, mas primeiro em importância, o zelo para com as divindades, a que chamamos culto; em sexto lugar, e é o que há de mais necessário, uma autoridade capaz de discernir o que é conveniente e justo para os cidadãos.130

Na organização da pólis muitos outros fatores são, ainda, exigidos para

seu funcionamento de modo a propiciar a boa convivência para os cidadãos.

Como, então, devem ser divididas as funções na cidade? Todos devem

desempenhar alguma função “na agricultura, nas artes, na assembleia, e na

justiça”131. Aristóteles destaca a participação nos cargos públicos e suas

diferentes funções, contudo é preciso lembrar que as “funções não é a mesma

129

MORRALL, John B. Aristóteles. 1985. p. 57. 130

ARISTÓTELES. Política. VII, 8, 1328b, 5. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 509-511. 131 ARISTÓTELES. Política. VII, 9, 25, 1328b. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 511.

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em todos os regimes”132. Por exemplo, “nas democracias todos os homens

tomam parte em todas as funções, nas oligarquias sucede o contrário”133,

sendo que o “melhor regime é aquele em que a cidade é mais feliz”134.

Por fim, para retornar ao nosso tema central, percebemos que

Aristóteles elabora um sistema educacional a partir da organização política da

pólis. Segundo Hourdakis:

Atingir o fim supremo da vida não significa para ele, de modo algum, afastar-se da realidade. Pelo contrário, em virtude da imperfeição da natureza humana, a vida necessita de uma série de bens e entre estes se situa também a Educação, que cobrirá suas insuficiências e imperfeições.135

A educação vem, assim, a constituir parte da organização da cidade,

tendo por finalidade participar, conjuntamente com outros fatores, dos

procedimentos capazes de conduzir a cidade à eudaimonía.

2.2. Lei e a excelência

De que forma a lei136 pode auxiliar na formação do caráter excelente?

Aristóteles nos apresenta uma associação entre a lei e a razão ao mencionar

132 Idem. Política. VII, 9, 1328b, 30, p. 511. 133

Idem. Política. VII, 9, 1328b, 30, p. 511-513. 134

Idem. Política. VII, 9, 1328b, 35, p. 513. 135

HOURDAKIS, A. Aristóteles e a Educação. Tradução de Albertina Pereira Leite Piva. São Paulo: Loyola, 1998. p. 147. 136

, Segundo Abbagnano, no seu Dicionário de Filosofia, 2007, p. 693-694. “Uma regra dotada de necessidade, entendendo-se por necessidade: 1º. impossibilidade (ou improbabilidade) de que a coisa aconteça de outra forma; ou 2º. uma força que garanta a realização da regra. [...] Conquanto Platão (cf. Tim., 83 e) Aristóteles (Decael., I, 1, 268 a 13) usem só excepcionalmente a expressão “L. natural”, foi graças a eles que o conceito de racionalidade da natureza e de exprimibilidade dessa racionalidade em proposições universais e necessárias acabou prevalecendo na história da filosofia”. Numa outra definição que pode contribuir com nossa pesquisa, temos: “a palavra grega antiga para lei, thesmos, expressa essa convicção; deriva de um verbo que significa “estabelecer permanentemente”. Assim, as leis eram sagradas e imutáveis, porque divinamente instituídas. As modificações econômicas e sociais na comunidade grega entre 700 e 500 a.C. levaram a uma concepção menos estática da lei; e é importante notar que em Atenas uma nova palavra, nomos, substitui completamente thesmos, por volta do ano 500. [...] essa modificação de terminologia foi resultado direto da revolução comandada por Clístenes por volta de 509, a qual transformou a constituição de Atenas de aristocrática em democrática. Nomos, trazia uma conotação de elaboração legal consciente e deliberada, que refletia a insistência da nova democracia no direito do povo de plasmar as leis sob as quais deveria viver. À luz do que vimos a respeito da suspeita de Aristóteles quanto à democracia irrestrita, podemos talvez sugerir a verdadeira razão de sua

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que “a lei é, pois, a razão liberta do desejo”137, deixando claro o elo entre a

ética, a lei e a política: “A lei parece o veículo privilegiado desta ‘politização’ do

ethos”138. Aristóteles demonstra que a formação de bons hábitos está

intimamente interligada com a lei, e quem deve assumir a elaboração e a

revisão de boas leis para comunidade é o legislador: “é referido que o

legislador deve estabelecer as leis”139.

Aristóteles defende que “é preferível que seja a lei a governar e não um

dos cidadãos”140. A intensão é que a lei seja o centro condutor da vida na polis

já que o ser humano pode errar em suas decisões por estar envolvido em

desejos e paixões: “o desejo cego é semelhante a um animal e o predomínio

da paixão transforma os que ocupam as magistraturas, mesmo se forem os

melhores dos homens”141. Sendo a lei um âmbito racional para as decisões dos

homens, o risco de errar pela influência dos desejos se torna menor. Aristóteles

ressalta, ainda, no Livro III da Política: “tudo o que a lei parecer ser incapaz de

resolver, também não pode ser conhecido por um só indivíduo”142. Observa-se,

assim, a superioridade da lei na pólis, ela é o núcleo que rege tudo e todos, “a

lei que formou adequadamente os magistrados, encarrega-os de decidir e

resolver ‘do modo mais equitativo possível’ as restantes questões.”143.

Ao continuamente induzir o cidadão a se tornar ético, a lei assinala sua

importância na pólis no diz respeito à interface entre a ética e a política, sem,

não obstante, deixar de estar em conformidade com a distinção de seus

habitantes uma vez que eles “não tem a mesma dignidade política”144; escravos

defesa da superioridade da lei não-escrita. Deseja evitar o erro (do qual a democracia ateniense frequentemente era acusada) de transformar a lei em instrumento puramente pragmático da vontade do povo; para Aristóteles, como para Platão, ela deve ser mais que isso: deve incorporar princípios imutáveis de conduta correta, os quais têm de estar idealmente no controle de toda a atividade legislativa. Aristóteles ressuscita a antiga concepção da thesmos racionalizando-a”. Ver. MORRALL, John B. Aristóteles. Trad. de Sérgio Duarte. 2 ed., Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 71. 137

ARISTÓTELES. Política. III, 16, 1287a, 30. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 259. 138 VERGNIÈRES, Solange. Ética e política em Aristóteles: physis, ethos, nomos. 1998. p. 162. 139

Idem. Ibidem. Política. II, 6, 1265a, 20, p. 127. 140

Idem. Ibidem. Política. III, 16, 1287a, 20, p. 257. 141 Idem. Política. III, 16, 1287a, 30, p. 259. 142

Idem. Política. III, 16, 1287a, 25, p. 259. 143

ARISTÓTELES. Política. III, 16, 1287a, 25. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 259. 144 VERGNIÈRES, Solange. Ética e política em Aristóteles: physis, ethos, nomos. 1998. p. 162.

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e mulheres não vivem na forma da lei da cidade, antes, seguem a lei segundo

imposição dos seus senhores. A lei para a população laboriosa serve como

instrumento impositivo de repressão os desejos e emoções, nunca será

apresentada nesse meio como elemento educativo. Já para o homem livre

temos a lei como uma “politização do ethos”, uma lei interiorizada a partir de

bons costumes, cumprindo, dessa forma, sua função ética:

“o ethos dos cidadãos é, pois, fortemente condicionado pelas leis da cidade. Estas assumem, junto aos adultos, o espaço do pedagogo – e isso tanto melhor, quanto sua formação tiver sido conduzida conforme o espírito da constituição”145.

O indivíduo deve ser formado para que possa encaixa-se na vida cidadã;

contudo, a socialização do cidadão não requer meios repressivos. Se na lei há

repressão não acontecerá a educação para o ethos.

No Livro VII da Política, Aristóteles nos apresenta de que forma os

homens são educados: “resta considerar os outros dois aspectos e determinar

sobre qual deve recair a precedência na educação: se no hábito se na

razão”146. Como já pudemos analisar no primeiro capítulo deste trabalho, os

homens se tornam bons com práticas habituais de boas ações, uma pólis

preocupada com a educação cria os meios para que tais ações ocorram. A lei,

neste sentido, é um dispositivo da cidade para educar seus cidadãos na prática

habitual de ações excelentes. Aristóteles deixa claro o quanto é importante

desde cedo desenvolver na criança o hábito de boas ações147, esta tarefa cabe

à família. No âmbito doméstico a lei tem sua primeira representação na figura

paterna, que por sua vez também segue os preceitos da cidade.

Na Política temos que “os assuntos relativos à educação devem ser

objeto de legislação, tais assuntos concernem a toda cidade”148. As

considerações de Silveira são aqui esclarecedoras:

145

VERGNIÈRES, Solange. Ética e política em Aristóteles: physis, ethos, nomos. 1998. p. 195. 146

ARISTÓTELES, Política. VII, 15, 1334b, 10, p. 543. 147

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. II, 1, 1103b, p.35; II, 2, 1104b, p.37; X, 10, 1179b, p.206 e Política. VII, 17, 1336a, p. 553. 148 ARISTÓTELES, Política. VIII,1, 1337a, 30. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 563.

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“Esse bem a que a comunidade política visa é compreendido a partir da soberania da lei (constituição) e da necessidade de educação dos cidadãos de acordo com a lei, a partir do respeito aos princípios de liberdade, igualdade e diferença, que se constituem como princípios equitativos de justiça”149.

Especialmente, é responsabilidade do legislador promover o bem por

meio de boas leis, boas leis são como que “obras de arte políticas”150. A tarefa

do legislador consiste em forjar leis que contribuam para o bem comum; deve

ele, consequentemente, ter o discernimento necessário para conduzir leis que

promovam a formação dos homens. Segundo Zingano, leis capazes de

engendrar o bem comum requerem um legislador, além de inteligente,

prudente151:

“Pode-se compreender muito facilmente por que emana da prudência: para que a lei produza o bem social, é preciso que o legislador vise ao bem; para que vise ao bem, é-lhe preciso prudência”152.

Aristóteles recomenda que na educação do jovem se atente para a

relação entre a formação do caráter e a ação das leis. Preservada esta relação,

o indivíduo dispõe de melhores chances para atingir a excelência moral. Por

outro lado, a ausência de lei inibe uma formação adequada:

Mas é difícil proporcionar desde a adolescência uma preparação certa para a prática da excelência moral se os jovens não são criados sob leis certas; de fato, viver moderada e resolutamente não é agradável para a maioria das pessoas, especialmente quando se trata de jovens. Por esta razão sua educação e suas ocupações devem ser reguladas por lei, pois elas não serão penosas se tiverem tornado habituais. Mas certamente não é bastante que desde jovens as criaturas humanas recebam a educação e os cuidados certos [...].153

149

SILVEIRA, Denis Coitinho. Ensaios sobre ética: complementaridade entre uma ética dos princípios e das virtudes. 2008. p.199. 150

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. X, 9, 1180b. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 210. 151

ZINGANO, Marcos. Particularismo e universalismo na ética Aristotélica. UFRGS. Analytica, volume 1, número 3, 1996. p. 91. 152

Idem. Particularismo e universalismo na ética Aristotélica. 1996. p. 91. 153 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. X, 9, 1180a. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 207.

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A aliança entre a educação e a intervenção da lei gera a base para que

o jovem se habituar ao que é certo. Por isso a lei tem por compromisso formar

o ser humano desde o momento de sua infância, seguindo até a fase adulta,

“de modo para cobrir toda a duração da vida”154.

A tríade educação, leis e hábitos reivindica, primeiramente, a

intervenção do legislador. É o legislador que estabelece, via constituição, que

os cidadãos sejam educados o mais rápido possível na lei. Aristóteles também

salienta a importância da participação da família nesse processo educativo ao

incentivar o cuidado da infância no seio da família e “supervisionado pelo

legislador”. Nesse sentido, notamos uma ação conjunta entre a família e o

legislador na educação da criança.

O fato de Aristóteles investir nas leis como parte do processo formativo

está fundamentado na percepção de que “as pessoas em sua maioria

obedecem mais à compulsão do que às palavras e mais às punições do que no

sentimento daquilo que é nobilitante”155. A assimilação das leis se torna

benéfica para aquele que sabe controlar suas emoções e paixões, ou seja, “no

ser humano virtuoso, as leis experimentam uma concordância livre, de modo

que o seu momento de pressão fica menor e a pólis não tem de recorrer

permanentemente aos seus meios de pressão”156. A lei, nessa perspectiva, é

interiorizada em forma de bons costumes, cumprindo uma função ética.

Tanto na Política quanto na Ética a Nicômaco a lei não está

necessariamente vinculada à coerção: ao exercer seu papel normativo funciona

também como instrumento educativo, levando o homem a desenhar sua função

ética. No entanto, deve-se aqui fazer uma distinção pertinente à população

para a qual é direcionada a lei e seu modo de aplicação, pois também temos a

perspectiva repressiva da lei.

Aristóteles diferencia “a população livre masculina”157 que depende

diretamente da lei em dois grupos na pólis: “os notáveis e a massa”158. Através

154

Idem. Ética a Nicômaco. X, 9, 1180a, p. 207. 155 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. X, 9, 1179b, p. 206. 156

HOFFE, Otfried. Aristóteles. Tradução Roberto Hofmeister Pich. – Porto Alegre: Artmed, 2008. p. 220. 157

VERGNIÈRES, Solange. Ética e política em Aristóteles: physis, ethos, nomos. 1998. p. 176. 158

Idem. VERGNIÈRES, Solange. 1998. p. 176.

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47

de uma “educação liberal”159, o grupo dos notáveis vê a lei como um meio de

liberdade para “poder se ocupar da vida pública”160, na outra ponta, o grupo da

massa, constituída pelo povo trabalhador161, vê a lei como coerção, isso porque

para Aristóteles:

“as pessoas em sua maioria não obedecem naturalmente ao sentimento de honra, mas somente ao de temor, e não se abstêm da prática de más ações por causa da baixeza destas, mas por temer a punição; vivendo segundo os ditames das emoções elas buscam seus próprios prazeres e os meios para chegar a eles, e evitam os sofrimentos contrários, e não têm sequer uma noção do que é nobilitante e verdadeiro agradável, já que elas nunca experimentaram tais coisas”162.

A passagem é bastante esclarecedora ao enfatizar a dificuldade da

maioria em viver em conformidade com a excelência, “Aristóteles não acredita

absolutamente no valor formador do trabalho como não crê na virtude dos que

são explorados”163. Por isso, em alguns casos deve-se aplicar a lei e fazê-la ser

respeitada através do castigo. Percebe-se que os que vivem sob a obrigação

do trabalho164 têm mais chance de conhecer uma regra moral por meio das

obrigações advindas do exterior, tendo, assim, que se habituar às boas ações

não por uma formação liberal, mas, antes, por meio da organização da pólis e

de sua constituição.

159 Idem. Ética e política em Aristóteles: physis, ethos, nomos. 1998. p. 176. 160

Idem. Ética e política em Aristóteles: physis, ethos, nomos. 1998. p. 176. 161

Aristóteles não vê como bons olhos o fato do ser humano ter que trabalhar excessivamente. “Logo, o sentimento que prevalece em Aristóteles é que há incompatibilidade entre a vida de labor e a participação ativa nos assuntos da cidade. Com efeito, a aprendizagem de um ofício, pela especialização e a finalidade utilitária que implica, é contrária à formação liberal do futuro cidadão. A vida laboriosa, produtiva ou mercantil, deforma o corpo e a alma, forjando caráter e pensamento vis. Assim, a baixeza não é somente a qualidade natural daquele que tem alma servil, é qualidade adquirida por atividade servil”. Ver. VERGNIÈRES, Solange. Ética e política em Aristóteles: physis, ethos, nomos. 1998. p. 177-178. 162

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. X, 9, 1179b. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 206. 163

VERGNIÈRES, Solange. Ética e política em Aristóteles: physis, ethos, nomos.1998. p. 178. 164

“Não há também, na visão greco-aristotélica, nenhuma concepção de progresso pelo trabalho. Esse fator é digno de consideração, pois é exatamente a ideia de progresso que está na essência da concepção iluminista moderna do trabalho e é o que ajuda este a assumir uma conotação positiva a partir da modernidade. A ideia de progresso pelo trabalho não está presente entre os gregos porque a história para eles é entendida de modo cíclico. Se a história se volta eternamente sobre si mesma, o trabalho não possui a característica de ser uma atividade transformadora do mundo. Para o trabalho ser transformador se faz necessário o advento de uma visão linear da história”. Ver. CENCI, Angelo Vitório. Aristóteles e a Educação. 2012. p. 76.

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Passaremos agora a outra consideração pertinente ao nosso tema: a

diferença entre a lei escrita e a lei não escrita e a interferência de cada uma

delas na formação do cidadão.

2.3. Lei não escrita

As leis são fundamentais para a organização da pólis, ao que Aristóteles

corrobora: “o ordenamento dos assuntos públicos é obviamente efetuado

através das leis, e o bom ordenamento é efetuado através das boas leis”165. A

condição para a elaboração das leis ocorre na experiência prática das

atividades políticas: “as pessoas que aspiram a conhecer a arte da política

necessitam também de experiência”166. Um mero repertório de leis não

contribui para a formação educativa do indivíduo, carece aí se fazer presente a

experiência qualificada do legislador; ele estará atento aos costumes e também

às normatizações que conduzem a melhor forma de convivência na pólis.

Aristóteles expressa sua preferência pela lei não-escrita:

“As leis fundadas nos costumes têm supremacia e referem-se a questões ainda mais importantes do que as leis escritas. Deste modo, se o governo de um só é mais seguro do que o exercido pela lei escrita, não é mais seguro do que o governo das leis fundadas nos costumes”167.

Em diversas passagens da Ética a Nicômaco nos deparamos com a

comparação entre a lei não-escrita e a lei escrita; tais comparações sinalizam

um valor moral que na maioria das vezes está relacionado à justiça, por

exemplo: “há duas espécies de justiça – uma não escrita e outra definida por lei

[...]”168.

Aristóteles deixa claro no Livro III da Política que “não é fácil que um só

indivíduo tenha debaixo dos olhos muitos assuntos ao mesmo tempo”, por isso

165

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. X, 9, 1180b. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 208. 166

Idem. Ibidem. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. X, 9, 1181a, p. 210. 167

ARISTÓTELES. Política. III, 16, 1287b, 5. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 259-261. 168 ARIRSTÓTELES. Ética a Nicômacos. VIII, 13, 1162b, Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 169.

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49

a necessidade de trazer a lei escrita. Contudo, a relevância da lei não-escrita é

significativa: está vinculada a valores que a lei pode proporcionar ao homem

consciente de suas ações, ou seja, as pessoas agem voluntariamente,

sabendo o que estão fazendo sem se sentirem coagidas por uma lei a executar

ações boas e justas, dessa forma atingem espontaneamente a conduta moral.

O senso do que é justo ultrapassa, assim, o alcance da lei escrita.

2.4. Lei escrita

Embora a lei não-escrita tenha relevância para Aristóteles, com o

crescimento da pólis a diversidade de pensamentos sobre o certo e o errado se

torna complexo, levando à “necessidade de se encarregar de fixar um modelo

de conduta pelo qual os homens devem se pautar e aplicar os exercícios

virtuosos a serem desenvolvidos”169. Na Ética a Nicômaco uma das acepções

sobre a lei é apresentada da seguinte maneira:

“E a lei determina igualmente que ajamos como agem os homens corajosos (ou seja, que não desertemos de nosso posto, nem fujamos, nem nos desvencilhemos de nossas armas), e como os homens moderados (ou seja, que não cometamos o adultério nem ultrajes), e como os homens amáveis (ou seja, que não agridamos os outros, nem falemos mal deles), e assim por diante em relação às outras formas de excelência moral, impondo a prática de certos atos e proibindo outros; as determinações das leis bem elaboradas são boas e as das leis elaboradas apressadamente não chegam a ser igualmente boas”170.

Não se trata de qualquer lei e de qualquer finalidade, mas sim de leis

boas que possa conduzir os homens a praticar boas ações. Para além disso, a

finalidade da lei escrita não é “mudar o ethos da massa: assegura

169

CHIU YI CHIH. A eudaimonia na polis excelente de Aristóteles. Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009. p. 185. 170 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. V, 1, 1129b. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 92.

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50

simplesmente as condições que permitem a esses homens viverem juntos na

cidade, dado o que são, dado sua ausência de virtude moral e política”171.

A educação produzirá bons frutos quando estiver apoiada em boas leis,

que, sobretudo, dependem de uma boa constituição. “E as prescrições da lei

serão sempre necessárias, admite Aristóteles, por mais educada que seja a

cidade. A pólis não pode depender apenas da virtude de seus cidadãos”172.

Essas leis lembram algo como uma receita ou sumário de exercícios a ser

praticado no dia-dia, visando uma conduta moral diante das circunstâncias nas

quais nos encontramos. Nesse sentido, para Aristóteles “a lei tem este poder

de compulsão, e ela é ao mesmo tempo uma norma oriunda de uma espécie

de discernimento e de razão”173.

Mais uma vez, no estabelecimento das leis se destaca a figura do

legislador, sendo ele o responsável pelas boas leis que devem organizar a

pólis, pois, será a partir da experiência do legislador que a contribuição para

educação acontecerá, ou seja, a “mera compilação das leis não contribui para

a educação na virtude, se não for acompanhado da experiência qualificada,

das disposições éticas e práticas do agente político”174.

Por fim, entendemos que a educação é instrumento fundamental para a

prática excelente, ela é capaz de gerar uma percepção social ética e assim

colaborar na construção uma comunidade virtuosa, a lei busca, justamente,

garantir essa boa convivência:

“[...] a lei deve consistir em uma garantia da liberdade e da igualdade, tanto do ponto de vista aritmético quanto do ponto de vista geométrico, isto é, a lei deve garantir o princípio da igualdade/liberdade e o princípio da diferença. É por isso que, nas relações públicas, quem deve possuir primazia é a lei e não um indivíduo isolado, para evitar que se crie uma ordem pública com base apenas na vontade um indivíduo”175.

171

VERGNIÈRES, Solange. Ética e política em Aristóteles: physis, ethos, nomos.1998. p. 183. 172

Ver. CARVALHO, João B. Educação, ética e tragédia: ensaios sobre a filosofia de Aristóteles. 2009. p. 55. 173

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. X, 9, 1180a. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 208. 174

CHIU YI CHIH. A eudaimonia na polis excelente de Aristóteles. 2009. p. 187. 175

SILVEIRA, Denis Coitinho. Ensaios sobre ética: complementaridade entre uma ética dos princípios e das virtudes. 2008. p. 242.

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Entendemos, dessa forma, que o legislador não comanda a pólis a partir

de suas intenções e interesses próprios, mas sim, alguém que represente a

igualdade e a liberdade entre os cidadãos. Livre no sentido em que obedece ao

que está prescrito na lei, garantindo os direitos que estão estabelecidos por lei.

No próximo capítulo buscaremos apresentar os elementos que

constituem a formação do cidadão na pólis.

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CAPÍTULO III

“Tendo toda a cidade um único fim, é evidente que a educação

deve necessariamente ser uma e a mesma para todos, e que o

cuidado posto nela deve ser tarefa comum”.

(Aristóteles. Política. VIII, 1, 1337a, 20, p.561).

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3. ELEMENTOS DO PROCESSO FORMATIVO

Apresentaremos neste breve capítulo os estudos liberais que cooperam,

segundo Aristóteles, para a boa educação do cidadão. Na Política, “a finalidade

educativa é a formação de homens livres com excelências éticas e dianoéticas

através dos saberes liberais”176. A ação educativa se traduz na presença da

música, da gramática, da ginástica, da retórica e da poesia no processo

formativo. Consideramos pertinente observar que o sentido da educação

aristotélica é amplo e transcende a simples posse de conhecimentos: o “tema

da educação não se restringe ao que acontece na escola, mas engloba

também a casa, a praça, a assembleia, o teatro”177.

3.1. Música

O plano geral da educação ateniense consiste no ensino de saberes

com reconhecida utilidade para a vida na cidade; entre eles podemos identificar

a música. Aristóteles entende que a atividade musical deve ser transmitida às

crianças não pelo fato de ser uma prática recorrente na formação, mas por ser

uma atividade relacionada ao ócio dos homens livres:

[...] a música na educação não o fizeram verem nisso qualquer necessidade (pois não há mesmo nenhuma) ou qualquer necessidade, tal como acontece com a leitura e a escrita em relação às atividades comerciais, econômica, ensino e mesmo em relação às diversas atividades políticas, ou como acontece com o desenho para apreciar melhor as produções dos

176

Ver. Introdução. ARISTÓTELES. Política. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 35. 177 CARVALHO, João B. Educação, ética e tragédia: ensaios sobre a filosofia de Aristóteles. 2009. p. 6.

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artífices, ou com a ginástica em relação ao bem estar e à boa forma do corpo. Ora, não vemos, com efeito, a música visar estes resultados [...]. Parece óbvio, portanto, que no intuito de ocupar o ócio se tenha introduzido a música na educação, considerando-a divertimento à altura dos homens livres.178

Na compreensão aristotélica não é, de fato, imediata a percepção da

importância da música na formação da criança, “quanto à música, é caso para

perguntar por que razão se inclui na educação”179; neste sentido, ressalta

Oliveira: “pergunta–se se a sua eficácia está na esfera da vida educativa, ou no

campo da diversão, ou ainda, no entretenimento”180.

A importância da música no processo formativo está diretamente

relacionada com sua finalidade, ou seja, quando praticada para o deleite de um

auditório ou quando diz respeito exclusivamente ao prazer de quem a executa;

faz, assim, parte do ócio e da formação de um homem livre ou da instrução e

manutenção da sobrevivência de um trabalhador:

Rejeitamos a instrução técnica tanto no que se refere à escolha dos instrumentos como à execução, entendendo por técnica a instrução musical que se destina aos concursos, visto que através dela o executante não tem em vista a sua virtude, mas deleite do auditório, que não passa de mero vulgo. Nesse sentido julgamos que tal tarefa não é digna de homens livres, mas de remunerados. E torna-se prejudicial devido ao alvo que tomam como fim. Na verdade, a vulgaridade do espectador altera a música, de tal forma que acaba por afectar os profissionais que se preocupam em agradar ao ouvinte, e degrada também os corpos devido aos movimentos impostos.181

Aristóteles, porém, surpreende ao apresentar um sentido diverso do que

pode significar a música no processo formativo do indivíduo: a música

“contribui para a formação do caráter e da alma. É evidente que será assim, no

178

ARISTÓTELES. Política. VIII, 3, 1338a, 15. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 567. 179

Idem. Ibidem. ARISTÓTELES. Política. VIII, 3, 1337b, 25. p. 565. 180

OLIVEIRA, José Sílvio de. A paideia grega: A formação omnilateral em Platão e Aristóteles. São Carlos: UFSCar, 2015. p. 247. 181

ARISTÓTELES. Política. VIII, 6, 1341b, 10, p. 587.

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caso de a música influenciar a qualidade dos nossos caráteres.”182. A partir

dessa passagem percebemos que a música passa a ser entendida de modo

peculiar no que se refere a sua contribuição formativa.

Por outro lado, a música é capaz de provocar prazer ao homem, por isso

Aristóteles adverte sobre a necessidade de se tomar cuidado na escolha da

melodia: [...] “como veremos que a música se compõe de melodia e ritmo, não

devemos ignorar a virtualidade de cada um destes elementos em termos

educativos [...] importa usar melodias éticas e harmonias da mesma

espécie”183. Portanto, a música tem um papel educativo relevante na formação

do cidadão; é concebida como uma atividade liberal cujas representações

provocam mudança na alma e no caráter moral do indivíduo, transformando-o,

quando sob adequada orientação, em alguém melhor.

Os efeitos da ação educativa da música tem início na infância:

As crianças transferem os prazeres da música para o gosto ou admiração pelos caracteres nobres e as belas ações que ali encontram. Elas estariam no caminho certo para adquirirem, com o tempo, um caráter com disposições semelhantes184.

A educação musical está preocupada em desenvolver na criança

habilidades que podem ajudá-la a se tornar um indivíduo excelente a partir do

exemplo de boas ações. Aristóteles enfatiza que “é evidente que nada é mais

necessário aprender e tornar em hábito do que julgar com retidão e alegra-se

com costumes dignos e belas ações”. Eis o sentido fundamental da formação

musical, a formação do caráter moral a partir das emoções de quem executa e

de quem ouve uma boa música.

Partiremos agora para a gramática ou escrita, que diferentemente da

música, tem uma presença maior no campo das utilidades para a pólis.

182

Idem. Ibidem. Política. VIII, 5, 1340a, 5, p. 577. 183

ARISTÓTELES. Política. VIII, 7, 1341b, 25. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 587. A passagem continua dando sequência no VIII, 7, 30, p. 591. 184

CARVALHO, João B. Educação, ética e tragédia: ensaios sobre a filosofia de Aristóteles. 2009. p. 66.

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3.2. Gramática

Para Aristóteles “ninguém coloca reservas, é certo, ao fato de se dever

ensinar as coisas úteis absolutamente e indispensáveis”185, sendo este o caso

da gramática. A leitura e a escrita são consideradas imprescindíveis, pois

possibilitam aos jovens chegarem aos demais conhecimentos, além de “[...]

serem úteis para a vida e terem múltiplas aplicações”186. A gramática tem uma

função direta e imediata na sociedade na medida em que é útil nas “atividades

comerciais, economia, ensino, e mesmo em relação às diversas atividades

políticas”187. Segundo Oliveira, “o uso da escrita é para Aristóteles uma das

primeiras coisas para atingir a sabedoria, da mesma forma que a leitura, o grau

de dificuldade é o mesmo”188, fica, assim, comprovada sua relevância na

educação.

3.3. Ginástica

Segundo Aristóteles, a prática da ginástica estimula a bravura e o vigor

físico nos jovens. O tema da formação física é de grande relevância visto que

faz parte da tradição educacional grega: “de entre as cidades que, no presente,

mais parecem preocupar-se com a educação das crianças, grande parte

procura dotá-las de uma disposição atlética, em detrimento das formas e do

desenvolvimento harmonioso do corpo.”189. Embora o desenvolvimento atlético

seja importante, Aristóteles trata com precaução a maneira como a ginástica

deve ser ensinada, principalmente para os mais jovens:

185

ARISTÓTELES. Política. VIII, 2, 1337b, 5, p. 563. 186 Idem. Ibidem. Política. VIII, 3, 1337b, 25, p. 565. 187

Idem. Ibidem. Política. VIII, 3, 1338a, 15, p. 567. 188

OLIVEIRA, José Sílvio de. A paideia grega: A formação omnilateral em Platão e Aristóteles. São Carlos: UFSCar, 2015. p. 245. 189 ARISTÓTELES. Política. VIII, 4, 1338b, 10. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 569.

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Os que sobrecarregam as crianças com demasiados exercícios, privando-as de aprender aquilo que é necessário, na verdade reduzem-lhes as capacidades, pois tornam-nas úteis para exercer uma só função de cidadão, e mesmo essa fica interior a outras, como atrás se referiu190.

Por detrás da advertência presente na passagem acima está a crítica

aos procedimentos educacionais dos espartanos: crianças preparadas apenas

para a guerra, sem o cuidado essencial na formação. Esse não é o ideal

aristotélico, cuja finalidade, sabemos, é a formação cidadãos com o corpo e a

alma saudáveis:

A mente e o corpo não podem ser duramente exercitados ao mesmo tempo; na verdade, trata-se de duas práticas opostas, visto que o trabalho do corpo é um obstáculo para a mente, e o da mente também o é para o corpo.191

A ginástica envolve a educação da criança a partir dos seus primeiros

anos de vida, tendo por responsabilidade desenvolver harmoniosamente o

corpo. Faz-se necessário a moderação tanto nos exercícios quanto na

alimentação das crianças e dos jovens. A regra geral dessa formação é que a

mente e o corpo em hipóteses alguma possam ser exercitados ao mesmo

tempo.

Deste modo, a prática da ginástica é útil desde que ensinada com

moderação e acompanhada da atenção com a alimentação e demais cuidados

relacionados à saúde; enfim, evitar o que de alguma forma possa vir a

prejudicar o desenvolvimento físico da criança e criar empecilho para o

desenvolvimento de sua mente.

190

Idem. Ibidem. Política. VIII, 4, 1338b, 30, p. 571. 191 ARISTÓTELES. Política. VIII, 4, 1339a, 10. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 573.

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3.4. Retórica

Entendemos que a retórica, igualmente, desempenha papel significativo

na formação do cidadão. A partir dela tem-se a possibilidade de atingir um grau

elevado de participação na política da cidade. Tendo por referência a obra

Retórica192, procuramos entender a influência da retórica na educação do

cidadão e sua repercussão no que concerne à convivência na pólis.

É sabido que na sociedade grega antiga a participação na esfera pública

política é primordial para o cidadão. Podemos nos perguntar em que medida a

retórica se aproxima da política da pólis, influenciando na formação do cidadão.

Hoffe aqui nos auxilia quando comenta que:

A retórica, por sua vez, aproxima-se da ética e da política porque o orador quer influenciar decisões e, nesse sentido, ela perfaz uma parte da práxis política. Além disso, ela não quer convencer, mas servir ao fim último tanto da práxis ética quanto da política, a felicidade, mas no conceito neutro em termos de valor daquela.193

A arte retórica não é uma técnica charlatã cuja finalidade é somente

persuadir, mas, sobretudo, diz respeito aos meios apropriados para uma boa

persuasão, sendo de grande utilidade nas deliberações dos assuntos públicos,

pois “contém fundamentos para uma teoria de um “discurso civil”, isto é, para 192

Aristóteles entende a retórica como uma arte, ou seja, uma técnica. Segundo Manuel Alexandre, um dos tradutores da obra Retórica: “a retórica é um saber que se inspira em múltiplos saberes e se põe ao serviço de todos os saberes”. Com isso, a retórica é uma arte de pensar e de saber expressar esse pensamento de uma forma interdisciplinar e transdisciplinar. Interdisciplinar por que ela se envolve com todas as disciplinas: lógica, direito, matemática; e transdisciplinar porque vai além da ciência. Ver. ARISTÓTELES. Retórica. Prefácio e introdução de Manuel Alexandre Júnior; tradução e notas de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Aberto e Abel do Nascimento Pena. - São Paulo: Editora WMF; Martins Fontes, 2012. Outra explicação sobre a Retórica que vale ter presente é a trazida por Pellegrin: “Para Aristóteles, a retórica é uma espécie da dialética, porque não constitui uma ciência particular no sentido estrito do termo – fundamentada em princípios próprios - , e porque utiliza as mesmas formas específica. No lugar do silogismo, a retórica utiliza o entimema, que é um silogismo que parte de premissas verossímeis ou de signos e que vai dos efeitos para as causas e não das causas par os efeitos. No lugar da indução, a retórica utiliza o exemplo, que concerne tão somente a certos casos e não alcança o universal. [...] A retórica aristotélica é um exemplo de técnica axiologicamente neutra. O que importa é adquirir os meios para convencer, ainda que seja inculcando opiniões falsas ou vergonhosas. [...] Logo, é na Retórica que Aristóteles nos oferece seu verdadeiro” “tratado das paixões da alma”. Ver. PELLEGRIN, Pierre. Vocabulário de Aristóteles. 2010. p. 55-56. 193

HOFFE, Otfried. Aristóteles. Porto Alegre: Artmed, 2008. p. 64.

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uma teoria do discurso e do contradiscurso entre cidadãos.”194. A retórica se

constitui, ainda, como uma ferramenta que, diferentemente da dialética

platônica, é formulada justamente para atingir aquele público menos capaz de

captar conexões lógicas. Cabe aqui a elucidação oferecida por Berti:

“as argumentações retóricas, ou seja, os entimemas e os exemplos, devem ser constituídos por número de proposições muito reduzido e muitas vezes até menor que aquelas do silogismo da primeira figura, caso contrário, de modo algum serão persuasivas em relação a ouvintes não especializados.

Como uma arte de se comunicar bem na comunidade, a retórica não

trata somente de apresentar discursos, mas, antes, de construir argumentos

que tenham condições de convencer qualquer interlocutor. Na perspectiva

aristotélica, especialmente, a retórica pode proporcionar ao auditório de

ouvintes algum tipo de ensinamento e, consequentemente o encontro com a

verdade: “a retórica é útil porque a verdade e a justiça são por natureza mais

fortes que os seus contrários.”195. Ainda neste sentido, vale ressaltar a

importância da relação entre a retórica e a moral: a vinculação entre o caráter

do orador e a argumentação é, para Aristóteles, um importante elemento no

processo persuasivo.

São três as formas de discurso:

Umas residem no caráter moral do orador; outras, no modo como se dispõe o ouvinte, e outras, no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece demostrar196.

No caráter moral do orador está em questão a conduta desse cidadão na

convivência na polis, pois, antes mesmo de falar algo excepcional é preciso ser

exemplo de vida a partir de ações moralmente aceitas.

O que aqui se torna primordial é a qualidade da educação que é

oferecida pela cidade posto que quanto melhor a educação, melhor será a

percepção de cada cidadão no que se refere à caracterização dos

194

HOFFE, Otfried. Aristóteles. Porto Alegre: Artmed, 2008. p. 66 195 ARISTÓTELES. Retórica. I, 1,1355a. Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 10. 196

Idem. Ibidem. Retórica. I, 2, 1356a, p. 13.

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conhecimentos morais, ou seja, das excelências e dos vícios: o auditório

percebe o caráter do orador e julga se é um cidadão “digno de fé.”197. Por outro

lado, para perceber a disposição do ouvinte, também o orador necessita ter

uma boa percepção para notar se o que diz está atingindo de forma eficaz o

seu público.

O objetivo da arte retórica é suscitar emoções e paixões, fazendo com

que o interlocutor crie um juízo sobre o conteúdo do discurso. O orador precisa

demonstrar que está totalmente convicto de seus argumentos para que o

auditório venha a confiar em seus argumentos. O orador persuadi “pelo valor

intrínseco do discurso são as que mostram aquilo que é verdadeiro e aquilo

que parece tal a partir daquilo que é persuasivo acerca de cada coisa”198.

Aristóteles propõe uma breve definição de retórica ao dizer que se trata

da “capacidade de descobrir o que é adequado a cada caso com o fim de

persuadir”199. No entanto, é apropriado ressaltar que é o próprio orador que

escolherá defender o bem ou o mal utilizando a retórica. O cidadão educado

em retórica tem como resultado de sua formação um bom preparo na

elaboração, exposição e debate de seus pontos de vista, pois sua atuação

política depende em muito da capacidade de argumentação nos conflitos e nas

diversas decisões da pólis.

3.5 Poética

A arte poética tal como conhecemos (trágica, lírica, cômica e épica) é

distinguida por Aristóteles na obra Poética:

Falemos da poesia – dela mesma e das suas espécies, da efetividade de cada uma delas, da composição que se deve dar aos mitos200.

197

BERTI, Enrico. Perfil de Aristóteles. São Paulo, 2012. p. 90. 198

Idem. Ibidem. Perfil de Aristóteles. São Paulo, 2012. p. 90. 199

ARISTÓTELES. Retórica. I, 2,1355b. Editora WMF Martins Fontes, 2012. p. 12. 200 ARISTÓTELES. Poética. I, 1, 1447a, 1. São Paulo: Nova Cultura, 1987. (Os Pensadores). p. 201.

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Percebe-se de antemão que existem várias formas ou espécies de poesia: epopeia, tragédia, comédia201.

Parece-nos ser possível inferir que a poesia trágica também tem

potencial para auxiliar na formação moral do cidadão202.

Aristóteles lhe atribui elevado grau de importância:

a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular. Por “referir-se ao universal” entendo eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e ações que, por liame de necessidade e verossimilhança, convêm a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes às suas personagens; particular, pelo contrário, é o que fez Aleibíades ou o que lhe aconteceu203.

A poética tem uma aproximação maior da filosofia que a história por

apresentar situações e decorrências que podem vir a acontecer conforme a

necessidade de cada personagem, pois o poeta, nas perspectivas e nas

possibilidades da representação, tem o poder de “modelar das possibilidades

humanas”204.

Sobretudo, o que nos interessa observar na tragédia é a ação, sua

decorrência e o seu componente moral, ou seja, uma possível orientação para

201 Idem. Ibidem. Poética. p. 233. O livro de Aristóteles Poética, dedicado à poesia esteve, segundo Berti, por longo tempo esquecido ou ignorado durante a antiguidade, sendo retomado a partir da Idade Média. BERTI, E. Perfil de Aristóteles. p. 94. Para Chauí, podemos perceber que existe na Poética “dois tipos de prova ou demonstração: a filosofia, de um lado, e a história, de outro; e o restante trata da tragédia, uma vez que as outras partes da obra se perderam”. CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. 2002. p. 483. 202

“Do ponto de vista do conteúdo, as tragédias teriam um claro papel de educação política do povo. Como apontado por Aristóteles, nem todos os cidadãos recebiam a educação moral e ética necessária para o exercício político – motivo, aos olhos de Aristóteles, da fragilidade do regime democrático. Aos comerciantes, artesãos e pequenos agricultores faltava a paidéia artística e moral recebida pelos filhos da aristocracia desde a infância. Segundo Meier, a encenação da tragédia servia à finalidade de preencher o vácuo deixado pela ausência da paidéia infantil e juvenil e educar os adultos politicamente”. Segundo Humberto Brito, todas as formas de poesia exercem algum papel formativo. “assistir a boas tragédias permite que os espectadores treinem as suas emoções e aptidões intelectuais e morais que os prepara para a vida moral”. Brito, H. A Poiêtikê Technê como instrumento meta-filosófico. Kriterion, Belo Horizonte, nº 125, Jun./2012. p. 43. Ver também CARVALHO, João B. Educação, ética e tragédia: ensaios sobre a filosofia de Aristóteles. João B. Carvalho e Susana de Castro. – Rio de Janeiro: Nau, 2009. p. 100. 203

ARISTÓTELES. Poética. IX, 50, 1451b, 36. São Paulo: Nova Cultura, 1987. (Os Pensadores). p. 209. 204

HOFFE, O. Aristóteles. Porto Alegre: Artmed, 2008. p. 68.

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a conduta a partir da encenação das peripécias dos personagens tem o poder

de demonstrar até que ponto o ser humano pode chegar205.

A encenação da tragédia permite que os espectadores viagem num

mundo de peripécias, vibrando e se emocionando em cada momento206. O ideal

nessa dimensão da viagem trágica é que não exista nada irracional, e se

houver que seja fora da tragédia, exemplo disso vem do próprio Aristóteles: “o

irracional também não deve entrar no desenvolvimento dramático, mas se

entrar, que seja unicamente fora da ação, como no Édipo de Sófocles207.

A tragédia está relacionada ao sofrimento humano dramatizado, do qual

sempre podemos extrair lições de vida: “em resumo, a função da tragédia seria

alcançar um entendimento e uma ‘clarification’ no que se refere às experiências

lamentáveis e assustadoras.”208.

A poesia é, para Aristóteles, a arte da imitação que simula as

características das paixões e ações por meio das narrativas na poesia e dos

gestos no teatro. Posta como formativa, a poesia trágica é a representação do

sofrimento humano dramatizado, do qual é possível extrair lições morais de

vida a partir das experiências das pessoas. Segundo Aubenque, Aristóteles

encontra o trágico nos limites entre a metafísica e a ética209, o que nos permite

sugerir a tragédia como componente formativo na pólis na medida em que

pode colaborar na educação das emoções e das aptidões intelectuais e morais;

e mais, colaboração essa que se dá de forma não repressiva e repetitiva:

É pois a tragédia imitação de uma ação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama],

205 “numa boa tragédia, tal corresponde a uma viragem da felicidade para a infelicidade dos caracteres produzida por uma “mudança dos acontecimentos para o seu reverso”, a que Aristóteles dá a designação técnica de peripécia, peripeteia.”. BRITO, H. A Poiêtikê Technê como instrumento meta-filosófico. Kriterion, Belo Horizonte, nº 125, Jun./2012, p. 47. O conceito de “peripécia” é definido por Aristóteles como “mutação dos sucessos no contrário, efetuado do modo como dissemos; e esta inversão deve produzir-se, também o dissemos verossímil e necessariamente”. ARISTÓTELES. Poética. XI, 60, 1452a, 21. São Paulo: Nova Cultura, 1987. (Os Pensadores). p. 210. 206

BRITO, H. A Poiêtikê Technê como instrumento meta-filosófico. p. 47. 207

ARISTÓTELES. Poética. XV, 89, 1454b, 33. São Paulo: Nova Cultura, 1987. (Os Pensadores). p. 215. 208

CARVALHO, João B. Educação, ética e tragédia: ensaios sobre a filosofia de Aristóteles. 2009. p. 31. 209

AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. 2003. p.280.

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[imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o terro e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções210.

210

ARISTÓTELES. Poética. VI, 27, 1449b, 24. São Paulo: Nova Cultura, 1987. (Os Pensadores). p. 28.

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CAPÍTULO IV

“Educar em conformidade com o regime consiste em atingir

não o que satisfaz as veleidades dos oligarcas ou dos

partidários da democracia, mas atingir, sim, o que capacita

aqueles a governar de modo oligárquico, e estes

democraticamente”.

(ARISTÓTELES. Política. V, 9, 1310a, 20, p. 401).

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4. EDUCAÇÃO EM ARISTÓTELES

O desafio em estudar a proposta educacional aristotélica reside,

primeiramente, na não existência de um tratado específico sobre o tema da

educação neste pensador211. No entanto, a ausência de um projeto pedagógico

aristotélico sistematizado em um único escrito de modo algum implica que a

educação não assuma papel significativo no âmbito da moral e da política

aristotélicas; muito pelo contrário, ela, a nosso ver, constitui um dos vértices da

organização da pólis e da formação do caráter. A proposta deste estudo está,

justamente, na tentativa de recolher elementos que permitam compreender o

papel da educação entre as proposições aristotélicas sobre ética e política.

A relevância da educação para Aristóteles pode ser imediatamente

percebida na ação do legislador em relação à normatização da educação na

pólis e na interface entre a educação e a constituição do caráter moral. De

outra parte, os efeitos da educação vão muito além da adequação passiva dos

cidadãos à pólis. De bons procedimentos formativos se espera “uma educação

consciente que pode até mudar a natureza física do homem e suas qualidades,

elevando-lhe a capacidade a um nível superior”212 e a coligando à ação moral,

tornando-o, assim, um ser humano excelente.

Procuramos, neste sentido, construir um trajeto que reúne os aspectos

relativos à educação aristotélica e o papel que ela desempenha na

estruturação e manutenção de uma pólis cujo fim é a eudaimonía. Tais

aspectos, que entendemos importantes para alcançar a finalidade educativa,

são: de um lado, os que dizem respeito ao homem – hábito e excelência, e

consequentemente, uma educação para a excelência; de outro, aqueles que se

referem à pólis - a lei e o legislador; e, por fim, os elementos educativos que

fazem parte do processo formativo - música, gramática, ginástica, retórica e a

poesia.

211

Alguns comentadores de Aristóteles, tais como Hoffe (2008), Ross (1987) concedem menos de três páginas a esse tema. Ver. CENCI, Angelo Vitório. Aristóteles e a educação. 2012. p. 27. 212

JAEGER, Werner. Paidéia: Formação do homem grego. 2010. p. 3.

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66

Quanto à fundamental ação do legislador, claramente na Política

observamos a necessidade do legislador se atentar para as finalidades e meios

educacionais: “ninguém questiona que a educação dos jovens deva constituir

preocupação premente do legislador”213. Na perspectiva ética, a contribuição

educacional está relacionada à ideia do cultivo das excelências, tendo por

objetivo o bem viver. Por isso, para Aristóteles, “a cidade equilibrada não é

obra do acaso, mas do conhecimento e da vontade. Uma cidade é equilibrada

quando os cidadãos que participam no seu governo também são

equilibrados”214. A educação se torna fundamental na medida em que fomenta

no cidadão esse processo de equilíbrio: um homem sensato e harmonioso para

participar ativamente da pólis. Para que o equilíbrio seja provocado no

indivíduo, é necessário que:

[...] para além dos bens exteriores que sucedem de modo fortuito (tykhe) à cidade, o legislador deve cuidar do cultivo da virtude (arete) que exige saber (episteme) como tornar a cidade virtuosa e feliz por um lado, e esforço de vontade (proairesis) para atingir esse fim por outro215.

Nota-se um conjunto de preocupações educacionais por parte do

legislador: saberes, excelências, boas deliberações que precisam estar

presentes na formação do cidadão para que o equilíbrio possa vir a acontecer.

É formando homens para uma vida equilibrada e excelente que o legislador

garantirá o equilíbrio de seu trabalho como governante da pólis. E é nesta

perspectiva que entendemos que a ação do legislador deve estar atenta ao

problema da educação e ao modo que a pólis pode se servir dela para efetivar

da eudaimonía.

Consideramos, assim, que os objetivos da educação aristotélica estão

na consolidação de uma formação para a convivência na pólis216. Neste

sentido, temos a educação como uma eupraxia, uma boa ação que deve ser

ensinada a partir de uma prática cotidiana, para tanto não basta somente

saber, mas também exercer a excelência e a boa convivência. Os elementos

213

ARISTÓTELES. Política. VIII, 1, 1337a, 10. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 561. 214

Idem. Ibidem. ARISTÓTELES. Política. VII, 13, 1332a, 30, p. 531. 215 Ver. ARISTÓTELES. Política. 1998. p. 645. 216

CENCI, Angelo Vitório. Aristóteles e a educação. 2012. p. 9.

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67

que garantem uma possível efetivação da educação na pólis são postos pelo

legislador a partir das leis e do ensino e aprendizado da música, da gramática,

da ginástica, da retórica e da poesia.

4.1. Nomóteta educador

A educação em Aristóteles, na Política, destaca a tríade necessária à

formação do homem: “natureza, hábito e razão”217, sendo estes os fatores que

podem engendrar a excelência moral.

Quanto à natureza humana, fica evidente que somente nossa espécie

tem a oportunidade de se organizar e de se expressar politicamente numa

pólis218, para isso a educação é fundamental.

O hábito é capaz de modificar certas qualidades do corpo e da alma:

“[...] a natureza fê-las capazes de serem modificadas, pela força do hábito, para

melhor ou pior”219. O hábito aponta para o agir de um determinado modo, algo

que encontrar-se desenvolvido, incorporado e estável para além das

necessidades naturais do ser humano, permanecendo como uma capacidade.

Na outra ponta, a perspectiva aristotélica pretende que o hábito esteja sempre

voltado para boas ações e boas escolhas, visando a excelência.

Ainda ao que toca à natureza humana e ao hábito, segundo Silveira, é

necessário entender por natureza, “uma potencialidade que exige atualização,

isto é, uma atitude ativa de construção do homem. A expressão ‘por natureza’

não está identificada com uma determinação necessária, pois, antes, significa a

atualização de uma potência”220. Com isso, nota-se que o hábito tem papel

fundamental no aprimoramento das potencialidades.

217

ARISTÓTELES. Política. VII, 14, 1332a, 40. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 533. 218 “De acordo com o significado intermediário, a natureza tem a ver com a essência do ser humano e da auto-realização. Aristóteles não afirma que a humanidade já se organiza sempre em repúblicas-estados, mas certamente que o ergon tou antrôpou, o desempenho característico do ser humano, só se realiza plenamente em uma pólis-comunidade”. Ver. HOFFER, Otfried. Aristóteles. 2008. p. 212-213. 219 Idem. Ibidem. ARISTÓTELES. Política. VII, 13, 1332b, 5, p. 533. 220 SILVEIRA, Denis Coitinho. Ensaios sobre ética: Complementaridade entre uma ética dos princípios e das virtudes. 2008. p. 215.

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68

E a razão? Afirma Aristóteles que o homem: “para além da natureza e do

hábito, é também guiado pela razão que só ele possui”221. A natureza humana,

o hábito e a razão são apresentados como condições necessárias para a

realização da educação: “a razão e a inteligência são o fim da natureza, de

modo que é para a razão e inteligência que se orientam a origem e o exercício

do hábito”222.

A escolha também é uma ação típica da natureza do homem223; já uma

boa escolha, escolher o que é bom, depende de uma boa educação. Deste

modo, não se trata de qualquer escolha, mas da escolha racional e deliberada,

que engrandece o homem na medida em que ele escolhe o que é melhor para

si:

[...] como o objeto da escolha é algo ao nosso alcance, que desejamos após deliberar, a escolha será um desejo deliberado de coisas ao nosso alcance, pois quando, após a deliberação, chegamos a um juízo de valor, passamos a desejar de conformidade com nossa deliberação224.

Neste sentido, é importante destacar a participação do homem prudente,

ou seja, aquele que consegue dominar suas paixões e ter como princípio o

meio termo. Alcançar a prudência tem valor inquestionável para o processo

formativo na medida em que conduz à coragem, à temperança e à justiça,

segundo Albenque:

A prudência é um saber singular, mais rico em disponibilidade que em conteúdo, mais enriquecedor para o sujeito que rico em objetos claramente definíveis, cuja aquisição supõe não somente qualidades naturais, mas virtudes morais que este saber terá, por sua vez, a missão de guiar: a coragem, o pudor, e antes de tudo, a temperança, sobre a qual Aristóteles nos diz que é a salvaguarda da prudência [...].225

221

Idem. ARISTÓTELES. Política. VII, 13, 1332b, 5, p. 533. 222 Idem. Ibidem. ARISTÓTELES. Política. VII, 15, 1334b, 15. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998, p. 544. 223

“Nessa selva de imprevisibilidades e incertezas, o homem possui uma faculdade original – a da escolha racional e deliberada. A ênfase sobre esse atributo, que para Aristóteles é a base da diferença entre o homem e o restante da vida biológica, faz dele, nesse aspecto, um filósofo de liberdade tanto ética quanto política”. Ver. MORRAL, John B. Aristóteles. 1985. p. 51. 224

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. III, 3, 1113a. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 56. 225

AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. 2003. p. 100.

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69

Pode-se dizer que a prudência é a habilidade do ser humano excelente.

Aubenque, a partir da Ética a Nicômaco, enfatiza que “a prudência é uma

espécie de retomada ética da habilidade”226. A prudência como habilidade está

relacionada ao fato do cidadão conseguir aprimorar seu discernimento em

relação ao que é bom, a partir da excelência moral, na prática cotidiana. Ela

envolve a escolha dos meios em relação ao que é o fim efetivo do homem, a

eudaimonía.

Aristóteles ressalta que “a função de uma pessoa se realiza somente de

acordo com o discernimento e com a excelência moral, porquanto a excelência

moral nos faz perseguir o objetivo certo e o discernimento nos leva a recorrer

aos meios certos”227. A intensão de buscar os meios certos para fazer o que é

bom deriva da excelência moral, e é exclusivamente por ela que a habilidade

pode-se tornar prudência.

Há, desta forma, um vínculo entre prudência e excelência moral,

percebido na relação entre habilidade e prudência. Aristóteles ressalta: “Existe

uma faculdade que se chama habilidade, e tal é a sua natureza que tem o

poder de fazer as coisas que conduzem ao fim proposto e a alcançá-lo”228. Se a

prudência está ligada com as escolhas racionais, seguida pela vontade do

bem, a boa educação deve pretender encaminhar a juventude a realizar ações

que a torne excelente a partir de boas escolhas e por meios certos.

Outro aspecto relevante da educação aristotélica é a formação política.

Nesta formação estão implícitas as finalidades educacionais a serem postas

pelo legislador para educar com vistas a uma participação ativa na pólis,

tornando, dessa forma, a vida de cada homem um bem viver.

Sabemos que a vida política e comunitária é intrínseca ao ser humano,

somente nela é possível a eudaimonía. O desafio do legislador é proporcionar

um ambiente na pólis que garanta uma boa formação para seus cidadãos e

assim possam ter condições de se tornarem eudaimônicos e ativos

politicamente

226

AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. 2003. p. 102. 227

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. VI, 12, 1144a. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 125. 228

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. VI, 12, 1144a. São Paulo Nova Cultura, 1987. p. 112.

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70

O legislador, segundo Aristóteles, “deverá assegurar que os cidadãos se

tornem bons, averiguar as atividades que produzirão esse resultado, e qual o

fim da vida melhor”229. O legislador deve estar atento a todos esses fatores, o

que nos leva a indagar como ele pode obter êxito na educação coletiva dos

cidadãos. Embora não seja fácil estabelecer com clareza, tudo indica que

Aristóteles tenha procurado encaminhar, pelo menos em parte, a efetivação da

ação do legislador a partir da constituição. O papel do legislador consiste,

assim, em criar ou reforçar costumes e atitudes estabelecidos pelo espírito da

constituição vigente na pólis. As diversas fases da educação dos indivíduos

previstas na constituição230 tem por objetivo a busca pela eudaimonía:

De fato, Aristóteles afirma que a constituição melhor é aquela que realiza o bem viver, a felicidade dos cidadãos, isto é, que realiza o próprio fim pelo qual a sociedade política é constituída. A esse respeito evoca a concepção da felicidade exposta na Ética a Nicômaco, segundo a qual os bens externos e os corpóreos, embora necessários, são inferiores aos da alma, isto é, à virtude, e entre as virtudes, as éticas são inferiores às dianoéticas, por isso a felicidade consiste essencialmente em viver segundo as virtudes dianoéticas, isto é, no exercício da inteligência mediante a pesquisa, o estudo e a cultura231.

Sendo a finalidade da pólis a eudaimonía, Aristóteles, indiretamente, nos

aponta o melhor caminho a ser seguido pelo legislador:

[...] Se acreditarmos que nosso bem estar está na riqueza então defenderemos uma cidade que promova a riqueza, por exemplo, uma cidade oligárquica. Se acreditarmos que a felicidade está no maior poder que exercemos sobre os outros, então defenderemos que a melhor cidade será a tirânica, governada por um legislador despótico. Se, porém, acreditarmos que a felicidade reside na virtude, então defenderemos uma cidade virtuosa.232

229

ARISTÓTELES. Política. VII, 14, 1333a, 15. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amara e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 537. 230

“Após os cinco anos, as crianças deveriam passar os dois anos seguintes, até à idade dos sete, a assistir às lições que mais tarde terão que aprender. Os períodos de educação são dois: desde a idade de sete anos até à puberdade; desde a puberdade até aos vinte e um anos”. Ver. ARISTÓTELES. Política. VII, 17, 1337a, 5. 1998. p. 557. 231

BERTI, Enrico. Perfil de Aristóteles. 2012. p. 203. 232 CARVALHO, João B. Educação, ética e tragédia: ensaios sobre a filosofia de Aristóteles. 2009. p. 93.

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71

É na relação entre a eudaimonía e a excelência que encontramos o

cerne da educação aristotélica: os esforços direcionados à formação do

cidadão excelente resultam que a pólis se torne também excelente. Dessa

forma, o princípio posto pelo legislador para que a educação possa fazer

sentindo na vida dos indivíduos e atingir seu fim é que ela seja comum a todos

os cidadãos:

Tendo toda cidade um único fim, é evidente que a educação deve necessariamente ser uma e a mesma para todos, e que o cuidado posto nela deve ser tarefa comum e não do foro privado, como se tornou prático corrente (pois que cada um se preocupa em particular com a educação dos seus filhos, dando-lhes um ensino privado, segundo parece melhor a cada qual). O exercício daquilo que é comum deve ser também realizado em comum. Tão pouco nenhum cidadão deve julgar-se útil por si próprio, mas sim em função da cidade233.

A passagem acima nos indica o cerne do plano geral da educação cívica

aristotélica - uma mesma educação para todos - evidenciando que a educação

deve ser responsabilidade do legislador por abarcar todos os cidadãos, e nesta

medida, tornar comum a todos tudo que diz respeito à pólis.

Para que aconteça a efetivação da educação as leis são primordiais na

medida em que é tarefa delas organizar as condutas, legitimando aquelas que

convêm à pólis e proibindo as que desviam a pólis do seu fim. Tratamos deste

assunto no tópico Lei e a excelência, cujo intuito foi demonstrar de que forma a

lei pode auxiliar o legislador na formação do cidadão para a prática de bons

hábitos. Boa parte do Livro X da Ética a Nicômaco trata das leis, ali Aristóteles

é bastante claro ao reportar que a educação pública é objeto de interesse de

toda a pólis, e sua realização é exercida a partir de boas leis; exclusivamente

assim estas podem favorecer uma boa educação: “Certamente uma pessoa

que deseja, graças aos seus cuidados, tornar as outras melhores, sejam estas

muitas ou poucas, deve tentar capacitar-se para legislar, na presunção de que

podemos tornar-nos melhores graças às leis”234. A constituição da cidade deve,

portanto, prescrever o processo formativo, amparando-o em boas leis.

233

ARISTÓTELES. Política. VIII, 1, 1337a, 20. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998. p. 561. 234 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. X, 9, 11180b. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 209.

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72

Sobre as leis escritas e não escritas é preciso ficar claro que enquanto

elemento formador, a lei não pode ter apenas conotação punitiva. É importante

que todos consigam agir de forma consciente, deliberando sobre suas ações,

tendo as leis como parâmetros e não apenas como instrumento de coação. A

finalidade da lei é, sobretudo, o ordenamento dos assuntos públicos,

favorecendo a justiça para todos na polis.

Por fim, a efetivação do processo formativo também se realiza no

aprendizado da música, da gramática, da ginástica, da retórica e da arte da

poesia. A maior parte desses elementos é apresentada por Aristóteles na

Política, Livro VIII, e embora a obra esteja incompleta, nota-se a perspectiva

aristotélica de vincular e complementar a educação com a cultura235. Pode-se

dizer que “se a existência da cidade depende de circunstâncias materiais

externas, também depende do esforço educativo”236. Isso permite afirmar que a

finalidade educativa, a busca da excelência e do bem viver estão vinculados,

também, aos estudos liberais ensinados na pólis.

Os estudos liberais direcionados aos cidadãos visam “ensinar as coisas

úteis absolutamente indispensáveis”237. A finalidade é que todas as tarefas dos

homens visem preparar e desenvolver as “artes, o corpo e a alma [...] para o

exercício e a prática da virtude”238. Os estudos liberais têm como propósito o

pleno desenvolvimento das faculdades, estas últimas tratadas na Ética a

Nicômaco239. Aristóteles ressalta que “as prescrições para uma educação que

prepara as pessoas para a vida comunitária são as regras produtivas da

excelência moral como um todo”240, o que inclui certos saberes e a saúde do

corpo.

Aristóteles sistematiza sua proposta educacional buscando rever e

equilibrar o processo formativo dos jovens pelo caminho da civilidade. A ideia

de cultura que se tinha antes de Aristóteles, ao que Cenci chamou de “herança

235

“São praticamente quatro os estudos liberais que se podem ensinar: a leitura e a escrita, a ginástica, a música e desenho”. Ver. Aristóteles. Política. VIII, 3, 1337b, 25. 1998, p. 565. 236

Ver. Parte introdutória da Política. 1998. p. 35. 237

ARISTÓTELES. Política. VIII, 2, 1337b, 5. Edição bilíngue. Tradução: António Camelo Amaral e Carlos Gomes. Vega Universidade/Ciências Sociais e Políticas, 1998, p. 563. 238 Idem. ARISTÓTELES. Política. VIII, 2, 1337b, 5, p. 563. 239

Passagens em que Aristóteles aborda as questões das faculdades e das aptidões: 1101 b 12; 1102a 33,34, b 5, 11; 1103 a 26; 1105 b20 – 1106 a 12; 1127 b 14; 1129 a 12; 1143 a 28; 1144 a 29; 1153 b 25, 1168 a 7; 1170 a 17. Ver. Aristóteles. Ética a Nicômaco. 1985. p. 231. 240 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. V, 2, 11130b. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 95.

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73

da paidéia grega e de seus antecessores”, é ampliada por Aristóteles a partir

da concepção de que “educar o cidadão é educar nas virtudes”241. Entendemos

que para a educação aristotélica alcançar sua finalidade, a eudaimonía, é

preciso mais que a conformidade entre o cidadão, a lei e o regime político da

polis. Tal educação se efetiva por meio da formação para a excelência;

solicitando, ainda, que a própria polis, a partir da ação do legislador, se

estabeleça sobre boas leis e bons costumes.

241

CENCI, Angelo Vitório. Aristóteles e a educação. 2012. p. 61.

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74

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo procurou compreender a estreita vinculação entre ética,

política e a educação na organização da pólis aristotélica, na qual, julgamos, os

cidadãos devem ser educados para atingir suas potencialidades, ou seja,

tornarem-se excelentes e eudaimônicos.

No primeiro capítulo buscamos apontar o entrelaçamento entre a ética e

a educação a partir de alguns aspectos constitutivos da ética aristotélica

segundo os preceitos exigidos na pólis. Sobre a natureza humana, vimos que o

que nos tornar singulares em relação às outras espécies é, sobretudo, a

linguagem. A capacidade que o ser humano tem de se comunicar a partir de

um pensamento racional torna-o apto a adquirir e expressar valores, podendo

atingir a autorrealização quando participando ativamente na pólis.

Na Ética a Nicômaco nos limitamos a trabalhar as excelências moral e

intelectual tendo em vista nelas o processo dinâmico da educação dos homens.

A excelência não está engendrada naturalmente e nem mesmo contra a

natureza do homem, mas somos “capazes de recebê-la e aperfeiçoá-la”. As

excelências moral e intelectual estão interligadas, e ambas fazem parte do

processo educativo. Na dimensão prática a busca pela excelência se faz

através de bons hábitos, fruto da boa deliberação e do aprendizado de vários

saberes.

A pista que temos para alcançar um bom processo formativo reside no

núcleo da excelência: a prudência. A relevância da prudência em relação às

excelências é enfatizada claramente por Hobuss:

“A associação da prudência (que concerne à correção dos meios) e da virtude moral (que concerne à correção dos fins), constituindo a virtude própria, explicita a preocupação aristotélica em elaborar os requisitos através dos quais podemos nos tornar bons, bem como de que modo podemos viver bem. Nesse sentido, necessitamos – através de uma disposição correta, fruto de bons hábitos e de uma boa educação”242.

242

Idem. Ibidem. HOBUSS, João. Ética das virtudes. 2011. p. 8-9.

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Neste sentido, se faz importante o cultivo da reta razão juntamente com

a prática habitual de ações virtuosas, visando uma disposição de caráter. Cabe

ao sistema educativo e seus agentes engendrarem as condições para as boas

ações:

“O papel do educador é, pois, orientar o educando a executar ações em consonância com determinados atos, pois o habituar-se a praticar determinadas ações virtuosas cria as condições para que, com o tempo, desapareça o sofrimento e este dê lugar ao prazer na prática de tais ações”243.

Vale ter presente as dificuldades que o indivíduo pode encontrar para

chegar às boas escolhas, e mais uma vez “a prudência será a virtude dos

homens votados à deliberação num mundo obscuro e difícil [...]”244. O processo

educacional visa, justamente, guiar o melhor possível cada cidadão com vistas

a escolher em concordância com os fins estabelecidos na vida comunitária.

Em seguida, no segundo capítulo, observamos a relação entre a política

e a educação. O tópico sobre os aspectos da pólis nos mostra a preocupação

de Aristóteles com vários elementos constitutivos da polis de forma que

venham a favorecer as finalidades da vida comunitária, entre elas a educação.

Nesta perspectiva, a finalidade última da educação é que todos ajam

moralmente e, assim, se tornem eudaimonicos. Segundo Cenci, “a vida

eudaimônica é comunitária, faz-se na comunidade política, pois sua essência

só pode ser desenvolvida ali”245. A eudaimonía só pode ser alcançada numa

cidade com condições para levar seus cidadãos a perceberem que a vida é

valiosa e somente possível no bem viver coletivo. Para isso acontecer,

compete aos governantes ter atenção para com a identidade cívica, o que inclui

aspectos concernentes à geografia, à economia, à população, à política e aos

costumes. A educação, neste contexto, assume papel primordial: é fruto e

também tem por finalidade contribuir para a organização de uma cidade

melhor.

243

CENCI, Angelo Vitório. Aristóteles e a educação. 2012. p. 60. 244 AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. 2003. p. 155. 245

CENCI, Angelo Vitório. Aristóteles e a educação. 2012. p. 67.

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76

Constitui tarefa do legislador conceber as leis, sendo ele o responsável

pelo bem-estar da cidade e dos cidadãos. Ainda no que se refere às leis,

destacamos que muitos homens não guardam a lei pelo bem que ela pode

proporcionar para a cidade e para a formação de cada cidadão, mas sim por

medo de punição no caso do seu não cumprimento. Não obstante, a educação

pode colaborar no sentido da assimilação das leis.

No terceiro capítulo buscamos sucintamente apresentar os saberes que

fazem parte do processo formativo: música, gramática, ginástica, retórica e

tragédia. Temos neles a base da educação grega e também aristotélica com

vistas a preparar o cidadão para a convivência na polis: desde a infância até a

maturidade os homens devem aprender o que é útil para a vida na cidade.

A música traz melodias e ritmos que não devem ser ignorados como

elemento para uma educação ética. Importa, sobretudo, que as melodias sejam

direcionadas de tal forma a engendrarem a conduta moral. A gramática tem

função direta e imediata na educação do cidadão e na pólis. O domínio da

escrita é para Aristóteles o primeiro passo para a sabedoria, assim como

acontece também com a leitura. A ginástica é considerada primordial;

componente que estimula a bravura e o vigor físico nos jovens. Não por acaso,

desde a infância ela deva ser praticada. Com a retórica o cidadão tem a

possibilidade de atingir um grau elevado na participação política da cidade. A

poética também busca alguma formar de saber ou conhecimento, auxiliando na

formação política e moral do cidadão a partir de orientações extraída da ação

dos seus personagens.

Por fim, no quarto capítulo buscamos assinalar uma possível

problematização da finalidade da educação em Aristóteles por meio dos

aspectos que consideramos mais relevantes na sua intersecção com a ética e

com a política. A responsabilidade pela boa educação dos cidadãos é

sobretudo do legislador, que normatiza a educação na pólis por meio de uma

boa constituição, visando sempre a excelência moral.

A partir de nosso estudo entendemos ser possível confirmar que a

finalidade da educação aristotélica é a eudaimonia. O processo formativo não

visa apenas modelar o cidadão conforme uma constituição; nele existe a

preocupação com o desenvolvimento da excelência. O papel de uma pólis

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educadora consiste, assim, em reforçar os bons costumes e atitudes conforme

a constituição.

A educação em Aristóteles revela-se como uma possibilidade para o

homem se tornar aquilo que ele realmente pode ser por natureza, ou seja, um

ser racional, excelente e habitante de uma polis eudaimonica:

as prescrições para uma educação que prepara as pessoas para a vida comunitária são as regras produtivas da excelência moral como um todo.246

246 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. V, 2, 1130b. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 95.

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