Juízo Moral e Violência

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JUÍZO MORAL E VIOLÊNCI A: UM ESTUDO SOB A LUZ DA TEORIA PIAGETIANA Sabrina Sacoman Campos (UNESP-Marília) [email protected] Adrian Oscar Dongo Montoya (UNESP-Marília) Conflitos interpessoais na instituição educativa: fatores, complexidade, diversidade e manifestações como indisciplina, bullying, violência ou incivilidade A violência tem sido uma das pr incipais preocupações da sociedade brasileira nas últimas décadas. Ressalte-se que a violência está presente na vida dos sujeitos cada vez mais cedo. Então, vemos uma grande importância em estudos que, como este, colaborem para a compreensão do fenômeno da violência. A presente pesquisa trata-se de um estudo piloto e tem como objetivo compreender a relação existente entre a moral e a violência. Por acreditar que a moralidade está diretamente relacio nada com a questão da violência realizamos este estudo baseando-nos na teoria sobre a moral de Jean Piaget. Sendo a infância o período que a criança começa a desenvolver-se moralmente, em um processo que permanecerá ao longo de sua vida, e reconhecendo que a construção de uma sociedade melhor depende da formação de cidadãos autônomos e conscientes, é fundamental compreender aspectos que ligam a questão da violência à moralidade, pois assim poderemos chegar à busca de possíveis intervenções. Pelo levantamento bibliográfic o, e, pelas entrevistas realizada s junto a crianças de escola fundamental, com idade de sete a quatorze anos, chegamos à conclusão de que a violência apresenta relações diretas com a questão moral, em especial com a questão do respeito ao outro. O respeito ao outro, que para Piaget é fator essencial para o desenvolvimento moral, quando não valorizado em uma relação leva o indivíduo à situação de violência. Palavras-chave: juízo moral; violência; respeito. INTRODUÇÃO Crianças e adolescentes têm se mostrado extremamen te violentos, seja no ambiente escolar ou nos demais. Diante disso, vemos uma grande impor- tância em estudos que colaborem para a compreensão do fenômeno da violên- cia na escola.

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  • JUZO MORAL E VIOLNCIA: UM ESTUDO SOB A LUZ DA TEORIAPIAGETIANA

    Sabrina Sacoman Campos (UNESP-Marlia)[email protected]

    Adrian Oscar Dongo Montoya (UNESP-Marlia)

    Conflitos interpessoais na instituio educativa: fatores, complexidade,diversidade e manifestaes como indisciplina, bullying, violncia ou

    incivilidade

    A violncia tem sido uma das principais preocupaes da sociedade brasileiranas ltimas dcadas. Ressalte-se que a violncia est presente na vida dossujeitos cada vez mais cedo. Ento, vemos uma grande importncia em estudosque, como este, colaborem para a compreenso do fenmeno da violncia. Apresente pesquisa trata-se de um estudo piloto e tem como objetivo compreendera relao existente entre a moral e a violncia. Por acreditar que a moralidadeest diretamente relacionada com a questo da violncia realizamos este estudobaseando-nos na teoria sobre a moral de Jean Piaget. Sendo a infncia o perodoque a criana comea a desenvolver-se moralmente, em um processo quepermanecer ao longo de sua vida, e reconhecendo que a construo de umasociedade melhor depende da formao de cidados autnomos e conscientes, fundamental compreender aspectos que ligam a questo da violncia moralidade, pois assim poderemos chegar busca de possveis intervenes.Pelo levantamento bibliogrfico, e, pelas entrevistas realizadas junto a crianasde escola fundamental, com idade de sete a quatorze anos, chegamos conclusode que a violncia apresenta relaes diretas com a questo moral, em especialcom a questo do respeito ao outro. O respeito ao outro, que para Piaget fatoressencial para o desenvolvimento moral, quando no valorizado em uma relaoleva o indivduo situao de violncia.Palavras-chave: juzo moral; violncia; respeito.

    INTRODUO

    Crianas e adolescentes tm se mostrado extremamente violentos, sejano ambiente escolar ou nos demais. Diante disso, vemos uma grande impor-tncia em estudos que colaborem para a compreenso do fenmeno da violn-cia na escola.

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    A presente pesquisa tem como objetivo compreender a relao exis-tente entre a moral e a violncia junto a crianas e adolescentes de escolas doensino fundamental. Para isso analisamos num primeiro momento a questoda violncia na sociedade contempornea, a noo de moralidade na teoria deJean Piaget e a relao de violncia e moralidade na perspectiva de Jean Piaget.O nosso estudo experimental se configura no sentido de estudar a relao daviolncia e a moralidade junto a crianas do ensino fundamental.

    A VIOLNCIA

    A violncia tem sido um assunto amplamente discutido, atualmente,em nossa sociedade. Notcias sobre violncia so constantemente divulgadaspelos meios de comunicao, em especial pela mdia televisiva, causando es-panto, medo, indignao e dor, entre outros. A violncia tem tomado uma di-menso grandiosa, alastrando-se para todos os lugares, atingindo todos os gru-pos sociais e causando muitos problemas. At mesmo as instituies de educa-o ou de recuperao tm sido tomadas por ela. Nas ltimas dcadas, o au-mento absurdo deste fenmeno tem preocupado a sociedade contempornea.

    Desde meados da dcada de 1970, vem-se exacerbando, no Brasil,o sentimento de medo e insegurana. No parece infundado essesentimento. As estatsticas oficiais de criminalidade indicam, apartir dessa dcada, a acelerao do crescimento de todas asmodalidades delituosas. Crescem mais rpido os crimes queenvolvem a prtica de violncia, como os homicdios, os roubos,os seqestros, os estupros. Esse crescimento veio acompanhadode mudanas substantivas nos padres de criminalidadeindividual bem como no perfil das pessoas envolvidas com adelinqncia. (ADORNO, 2002a, p. 07)

    Uma grande dificuldade encontrada logo de incio: definir o que violncia. A dificuldade encontra-se na complexidade deste fenmeno. Trata-se de algo muito amplo, cheio de facetas, de autores, de lugares e de possibili-

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    dades. Para Pino (2007, p.764) o fenmeno da violncia suficientementecomplexo para resistir s analises superficiais que por vezes so feitas dele.Ele envolve questes sociais, econmicas e polticas nacionais mal resolvidasou ainda no resolvidas. uma tarefa difcil, portanto, chegar a uma defini-o objetiva do que seja violncia, a uma definio que alcance toda sua am-plitude.

    Grande parte da complexidade deste fenmeno diz respeito aos maisdiversos vieses pelos quais se manifesta. Isso porque, diferentemente do quemuitas pessoas pensam, a agresso fsica apenas um aspecto da violncia.Claro que talvez seja o que mais chame a ateno, afinal ocorre muito frequen-temente em nossa sociedade e seus resultados so muito visveis. Mas, a vio-lncia transpassa a agresso fsica chegando a formas extremas e sutis. Essasformas correspondem a aes, atitudes, pensamentos, verbalizaes e omis-ses. Portanto, indo alm das agresses fsicas, a violncia pode ser encontra-da nas palavras, nos silncios, nos descasos, nas discriminaes, nas atitudesegostas, enfim, em todos os casos em que o outro no considerado.

    Os fenmenos da violncia difusa adquirem novos contornos,passando a disseminar-se por toda a sociedade. Essamultiplicidade das formas de violncia presentes nas sociedadescontemporneas violncia ecolgica, excluso social, violnciaentre os gneros, racismos, violncia na escola configuram-secomo um processo de dilaceramento da cidadania. (TAVARESDOS SANTOS, 2004, p. 5)

    Um exemplo pertinente de violncia em que a agresso fsica nemsempre utilizada diz respeito ao bullying. O bullying tem se tornado um fen-meno muito comum nas escolas e na sociedade em geral, causando muitosconflitos interpessoais e intrapessoais. Segundo Pingoello (2009, p.13) obullying [...] caracterizado como uma variedade de comportamentos de maus-tratos adotados por um ou mais indivduos em relao a outro, podendo ser decarter fsico e/ou psicolgico. Este fenmeno, que tem sido recentemente

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    estudado em nosso pas, engloba um tipo de violncia em que, alm da agressofsica, a discriminao e insultos verbais, por exemplo, atingem a vtima. Con-forme Pingoello (2009), as vtimas de bullying sofrem, entre outros problemas,com o isolamento e rejeio, o que ocasiona conseqncias graves e muitasvezes a escola no est preparada para lidar com o problema.

    Falar de violncia para algumas pessoas significa, tambm, falar emclasses econmicas e sociais baixas. A pobreza por diversas vezes relaciona-da violncia e vice-versa. No negamos que as pessoas que se encontramnesse nvel de vida, onde a luta pela sobrevivncia uma constante, so talvezas maiores vtimas ou autores deste fenmeno. No livro organizado por VOLPI(1997), por exemplo, encontramos uma pesquisa realizada com adolescentesque cometeram algum tipo de crime ou de violncia, privados de liberdade noBrasil, onde a maioria destes adolescentes pertence a famlias sem renda oucom renda baixssima. Tais adolescentes ainda possuem nvel muito baixo ounenhum de escolaridade. Porm, dizer que a violncia exclusividade destaspessoas inseridas em classes sociais e econmicas baixas, ou que a pobrezaseja causa da violncia trata-se de uma afirmao errnea j que a encontra-mos em meio as mais variadas classes. Autores como Zaluar (1994 e 1999),Coelho (1988), Beato (1998) e Sapori e Wanderley (2001) contestam essa as-sociao entre pobreza e violncia.

    Outro equvoco, quando se fala em violncia, encontra-se na costu-meira forma de associar os conceitos de violncia e crime. A violncia trata-sede algo mais amplo que o crime, afinal, o crime pode englobar algum tipo deviolncia, mas nem toda violncia considerada um crime de acordo com asleis e regras de nossa sociedade. Assim, o crime diz respeito ao fato legal e,nesse sentido, Pino esclarece que,

    Crime um conceito de natureza legal que, em si mesmo, significaapenas um ato de transgresso da lei penal, o que assujeita seuautor a penas legais variveis segundo as sociedades. Enquantoato de transgresso, o crime no tem, em si mesmo, qualquer

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    conotao de violncia fsica, social ou moral, embora possa seragregada a alguns desses atos em razo da forma de que eles serevestem. (PINO, 2007, p.767)

    A violncia tem entrado na vida dos indivduos cada vez mais cedo,crianas e adolescentes tem sido vtimas e autores de situaes extremamenteviolentas. A escola e seus sujeitos encontram-se perdidos dentro de um cenrioque cada dia apresenta cenas mais violentas. Neste sentido,

    Em segundo lugar, os jovens envolvidos nos fatos de violnciaso cada vez mais jovens. Os alunos de 8 a 13 anos, s vezesrevelam-se violentos at frente aos adultos; professoras da escolamaternal dizem que elas tambm se defrontam com fenmenosnovos de violncia em crianas de quatro anos. a representaoda infncia como inocncia que atingida aqui, e os adultos seinterrogam hoje sobre qual ser o comportamento dessas crianasquando se tornarem adolescentes. H igualmente a uma fontede angstia social face violncia escolar. (CHARLOT, 2002,p.433)

    A este respeito, Adorno, ao falar sobre violncia, em um estudo reali-zado em So Paulo durante dois perodo, ressalta o aumento do nmero decrimes violentos cometidos por adolescentes:

    Aumentou a proporo de adolescentes representados nacriminalidade violenta. No primeiro perodo, era menor aproporo de crimes violentos cometidos pelos adolescentes face proporo de crimes violentos cometidos na populao emgeral. No segundo perodo, esta tendncia se inverte. (ADORNO,2002 b, p. 94)

    Recentemente lanado pelo Ncleo de Estudos da Violncia (NEV)da USP, o 4 Relatrio Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil, trazdados importantes relacionados questo da violncia no pas. Quanto aosadolescentes o relatrio indica o aumento de adolescentes em conflito com alei cumprindo medida de internao no pas no perodo analisado que vai de2004 a 2006.

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    Quando comparado com 2004, o nmero de adolescentescumprindo medida em meio fechado no Brasil subiu 17,1%. Aregio norte foi onde houve a maior alta, 70%, e a regio Sudestea menor, 6,9%. Entre os estados Rondnia (750%) e Tocantins(276,9%) foram os que tiveram a maior alta percentual, embora,em nmeros absolutos, correspondam a um crescimento de 30para 255 (Rondnia) e de 13 para 49 (Tocantins) adolescentesem regime de internao. Ainda entre as maiores altas,principalmente em nmeros absolutos, est Minas Gerais, ondehouve um aumento de 123,3%. (ALVES; SALES, 2010, p. 21)

    No s as escolas, mas, tambm, as instituies voltadas para a recu-perao ou tratamento de sujeitos que foram ou so vtimas ou autores dealgum tipo de violncia tambm apresentam diferentes formas de violncia emseu contexto. O que prova que a existncia de regras no suficiente para quea violncia no ocorra. Principalmente se tais regras so impostas ao sujeito,pois nesse caso tais regras podem se transformar justamente em formas deviolncia. Justo (1997), ao analisar instituies que abrigam ou internam cri-anas e adolescentes, verifica que tais instituies apresentam uma forma deviolncia prpria, ligada obedincia e imposio das regras. De acordo comeste autor, [...] perseguir um ideal de pessoa fundado na disciplina, trabalho eobedincia. Basicamente, esse o trip, sob o pano de fundo do culto bonda-de e resignao, que fundamenta toda orientao educacional e o cotidiano devida no interior das instituies. (JUSTO, 1997, p.88)

    Notamos, portanto, que a violncia um tema extremamente atual echeio de questes a serem estudadas. A violncia um problema que atinge asociedade como um todo e ao mesmo tempo cada indivduo em particular,assim, a responsabilidade em resolver o problema coletivo e, tambm, indi-vidual.

    DESENVOLVIMENTO MORAL SEGUNDO PIAGET

    A Psicologia Gentica trouxe contribuies fundamentais para a com-preenso da moral. O psiclogo suo Jean Piaget, baseado nos clssicos e

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    pautando-se em suas prprias pesquisas, formulou uma importante teoria sobrea moral. Uma forte influncia na teoria da moralidade de Piaget diz respeito aofilsofo alemo Immanuel Kant. Para este filsofo o agir moral de acordo como bem no significa seguir as regras determinadas pela sociedade, mas seguirregras segundo os princpios possuam validade universal, ou seja, o que bomdeve o ser para a humanidade em geral. Para Kant, o agir moralmente bemsignifica obedecer ao princpio incondicional e universal chamado por ele deImperativo Categrico: age apenas segundo uma mxima tal que possa que-rer que ela se torne lei universal. (KANT, 1974, p, 223)

    Para este autor, ainda, existem duas grandes tendncias morais: aheteronomia, que significa a obedincia sem questionamento s regras impos-tas por outros, visando o bem estar e o interesse prprio; e a autonomia, querequer uma descentralizao, de forma que, fundamentando-se no ImperativoCategrico, o sujeito seja capaz de se colocar no lugar do outro para agir mo-ralmente de acordo com o bem. Segundo Kant, a autonomia a nica forma dese obter a dignidade humana: age apenas de tal maneira que uses a humanida-de tanto na sua como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente,como fim e nunca simplesmente como meio. (KANT, 1974, p.229)

    Segundo Freitag, a teoria da moralidade de Piaget possui fortes influ-ncias das idias de Kant:

    Em Le jugemente moral chez lenfant (1932) Piaget ecolaboradores desenvolveram uma teoria da moralidade que, nomeu entender, se baseou no modelo de Kant. O cerne da teoriamoral de Piaget coincide com a de Kant. Piaget no se interessapela gnese, na criana, de conceitos como felicidade, carinho,temperana ou prudncia que provam as teorias ticas no-kantianas. Piaget centra sua ateno na autonomia da razo,no respeito norma e na idia de justia, temas centrais datica kantiana. (FREITAG, 1990, p. 60)

    Mas, Piaget vai alm da teoria de Kant, conceituando a autonomiadiferentemente, pois para ele a autonomia construda pelo sujeito e no inata;

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    reformulando a idia presente no Imperativo Categrico, pois, para Piaget, auniversalizao de princpios de valor no proveniente somente do indiv-duo, mas do grupo, atravs da cooperao; e, por fim, para Piaget, a razoprtica e a razo conceitual esto ligadas.

    Piaget realizou um belo estudo sobre a moral, que resultou em suagrande obra intitulada O juzo moral na criana (1932/1994), que at hoje considerada referncia nos estudos sobre moralidade. Levaremos em conside-rao, neste estudo, a definio de moral instituda por Piaget, para quem Todamoral consiste num sistema de regras, e a essncia de toda moralidade deve serprocurada no respeito que o indivduo adquire por essas regras (PIAGET,1932/1994, p. 23). Piaget deixa claro, todavia, que a questo principal para secompreender a moral no se trata do porque, mas do como o sujeito constriesse respeito.

    Na Prtica da Regra, Piaget (1932/1994) identificou a presena dequatro estgios sucessivos: motor e individual, egocntrico, cooperao ecodificao da regra. Na Conscincia da Regra identificou trs estgios: o derituais e regularidades, conscincia da regularidade e conscincia da obriga-o-obedincia. Tais estgios no so fechados, ou seja, no possuem umaidade definida. Tambm no h uma correspondncia fiel de estgios em rela-o prtica e conscincia.

    Assim, Piaget, identificou, de maneira mais geral, relacionando estesestgios, trs perodos que correspondem s fases do desenvolvimento moraldos indivduos: anomia, heteronomia e autonomia. A anomia corresponde aum perodo em que a criana desconhece as regras. Nessa fase a ao da crian-a voltada satisfao de seus prprios impulsos motores e fantasias. Piagetno trata muito desta fase, afinal, no se pode falar aqui de uma moral propri-amente dita. Na heteronomia a criana j age de maneira moral, mas essa mo-ral exterior ao indivduo, as regras so consideradas sagradas, imutveis eobrigatrias, sendo impostas por uma autoridade. A relao entre os sujeitos,

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    ento, baseada na coao. Para essas crianas os valores a serem seguidosso aqueles que a sociedade adulta lhes impe. A heteronomia consideradapor Piaget como sendo a moral do dever j que as crianas obedecem sregras no por compreenderem ou concordarem com elas, mas por sentiremobrigao em relao ao mais velho. A prtica das regras se d em funo daimitao do modelo adulto. Na autonomia a criana age moralmente de acordocom uma moral que construda por ela prpria dentro de um acordo mtuocom o coletivo. As regras so consideradas obrigatrias quando compreendi-das e aceitas. A relao entre os indivduos baseada na cooperao. Os valo-res vo alm daqueles impostos pela sociedade e tornam-se universais. Assim,a autonomia consiste, ainda, em ser capaz de se colocar no lugar do outro, ouseja, fazer com que as leis sejam universais e os ideais sejam coletivos, dife-rentemente do egocentrismo encontrado na heteronomia.

    Em seus resultados, Piaget tambm nos mostra que, nos julgamentosmorais realizados pelas crianas, as mais novas e heternomas, tendem a fazeruso de uma responsabilidade objetiva, que produto da coao moral, nela acriana, ainda egocntrica, julga os atos em funo das suas conseqnciasmateriais e no das intenes, o dever e a obedincia s regras estabelecidaspelo adulto so fatores fundamentais e as sanes sugeridas pelas crianas soseveras. Para Piaget (1996) existe um realismo moral que caracterizado pelaheteronomia e pela obedincia, sem reflexo ou questionamento, ordem ou regra estabelecida pelo mais velho. O realismo moral, para o autor, resulta daunio do prprio pensamento infantil, o realismo infantil neste caso, com acoao do adulto. J, as crianas mais velhas e autnomas, tendem a fazer usode uma responsabilidade subjetiva, que marcada pela descentrao e, nessecaso, o sentimento de dever est ligado cooperao. O julgamento realizadopela criana passa a considerar as intenes ao invs das conseqncias mate-riais. Assim, as punies, quando existem, so bem mais amenas. Estas duasformas da noo de responsabilidade, para Piaget, no caracterizam dois est-gios, mas uma decorrente da outra de acordo com o desenvolvimento moral.

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    Ao falarmos das sanes sugeridas pelas crianas ao realizarem seusjulgamentos morais, remetemo-nos ao estudo sobre a noo de justia, realiza-do por Piaget. O autor verificou que a criana passa por trs fases na constru-o desta noo: em primeiro lugar, a da justia imanente, em que a crianaacredita que uma falta ser castigada, inevitavelmente, mesmo que por umafora exterior, mas aliada, ao adulto. Assim, as punies so consideradas au-tomticas e vindas diretamente das coisas. Essa noo de justia est ligada anomia e heteronomia. Em segundo lugar, a justia retributiva, em que acriana julga haver necessidade de que a falta e a punio apresentem sofri-mentos proporcionais. s sanes, neste caso, podem ser expiatrias ou porreciprocidade. Em terceiro e ltimo lugar, a justia distributiva, em que ascrianas baseiam-se na igualdade para realizar seus julgamentos, buscando,ento, a sano mais justa situao.

    O essencial, contudo, para compreender a moralidade, segundo Piaget,est na questo do respeito. O respeito a base filosfica da moralidade paraeste autor. Esta forma de compreender a moralidade uma conquista da Psico-logia e da Epistemologia Gentica. Pierre Bovet contribui essencialmente como estudo da moralidade quando demonstra que o respeito pelo outro se consti-tui fator primordial para a moral e que a lei ser conseqncia deste respeito.Piaget vai alm da teoria de Bovet, distinguido as formas de relaes sociais eas formas de respeito.

    Piaget (1932/1994) deixa claro que o valor de uma ao ou um julga-mento moral no est ligado s regras que se respeita, mas de que forma estasregras so respeitadas. o respeito que a criana constri pela regra e pelapessoa que a transmite que justifica o valor moral do ato ou do juzo e combase nesse respeito que a criana evolui moralmente.

    O como as regras so respeitadas um assunto da psicologia e o enfoque do trabalho piagetiano. Segundo o autor, a essnciada moral est contida na forma do respeito que os indivduospassam a ter pelas regras e pelas pessoas; em suas formas

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    diferentes que as tendncias morais definem-se como Autnomasou Heternomas. (MENIN, 1985, p.10)

    Para Piaget, um fato primordial para entendermos a moralidade acompreenso de que a sociedade no homognea e que as relaes podemocorrer de diferentes formas. Existem, ento, as relaes onde o que prevalece a coao, ou seja, as relaes em que um indivduo considerado superiorexerce sua autoridade de forma coercitiva sobre um indivduo consideradoinferior; e, as relaes de cooperao, onde os indivduos se tratam como iguaise se ajudam mutuamente. Estas duas formas de relao social conduzem aresultados diferentes. De acordo com a relao estabelecida o respeito entreestes indivduos pode ser Respeito Unilateral, quando ocorre relao de coa-o entre os indivduos, ou Respeito Mtuo, quando ocorre relao de coope-rao:

    Em primeiro lugar, h o respeito que chamaremos unilateral,porque ele implica uma desigualdade entre aquele que respeita eaquele que respeitado: o respeito do pequeno pelo grande, dacriana pelo adulto, do caula pelo irmo mais velho. Esserespeito, o nico em que normalmente se pensa e no qual Bovettem insistido muito especialmente, implica uma coao inevitveldo superior sobre o inferior; , pois, caracterstico de uma primeiraforma de relao social, que ns chamaremos de relao decoao. Mas existe, em segundo lugar, o respeito que podemosqualificar de mtuo, porque os indivduos que esto em contatose consideram como iguais e se respeitam reciprocamente. Esserespeito no implica, assim, nenhuma coao e caracteriza umsegundo tipo de relao social, que ns chamaremos de relaode cooperao. (PIAGET, 1996, p. 04)

    Piaget esclarece, no entanto, que no existem relaes puramente decoao ou puramente de cooperao. No havendo relaes puras de coaoou de cooperao, no h respeito unilateral puro ou respeito mtuo puro. Oque existe uma maior prevalncia de um dos dois tipos de respeito.

    O respeito unilateral leva regra coercitiva. Nesse caso, portanto, preciso se conformar com as regras, pois as regras so obrigatrias, tendo ori-

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    gem no adulto ou no divino. O respeito unilateral marcado, ainda, peloegocentrismo infantil. Do respeito unilateral, ento, resulta uma forma de juzomoral heternoma. J o respeito mtuo leva autonomia da conscincia. Quandoas crianas praticam e vivenciam as regras de acordo com a cooperao, socapazes de elaborar a regra de maneira diferente, percebendo que elas no soimutveis, mas dependem do acordo mtuo e da reciprocidade. Do respeitomtuo resulta, ento, uma forma de juzo moral autnoma.

    A VIOLNCIA E A MORAL

    Ao buscarmos relacionar a violncia e a moral encontramos muitadificuldade no que se refere busca por outros estudos que tenham realizadotal relao. A maioria dos estudos tem enxergado a violncia como um fenmenoque envolve apenas aspectos do conhecimento social. Justiniano (2000) realizouum importante estudo sobre a violncia e a comunicao. Neste estudo,observamos uma forma de enfocar a violncia a partir da teoria da moralidadede Jean Piaget. Partindo da definio de moral instituda por Piaget, tal estudomostra que as regras impostas pela sociedade, ou pelas instituies, ao sujeitoso vistas como uma forma de violncia e, portanto, um desenvolvimento moralneste sentido s possvel atravs de relaes baseadas no respeito mtuo, nacooperao, e, portanto, em trocas verdadeiras na comunicao. Sobre taistrocas, vemos ainda neste estudo, a possibilidade de dilogo entre a teoria daao comunicativa de Habermas e a teoria da moralidade de Piaget, indicandoas competncias necessrias para que a troca comunicativa verdadeira aconteae as possveis violncias oriundas do processo comunicativo.

    Assim como no estudo anteriormente citado, acreditamos que a violnciaseja um fenmeno que tenha aspectos importantes ligados questo moral.Afinal, os indivduos vivem em sociedade e devem buscar viver e conviver deforma harmoniosa e pacfica; para isso, ento, devem construir regras que

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    possibilitem esse convvio, respeitando tais regras e tambm o outro. Acooperao, o respeito mtuo e, ento, a autonomia, so condies para que,moralmente, a sociedade se desenvolva. Tal ideal no facilmente alcanado.E, se considerarmos a justia, ou at mesmo a paz, como indicador dedesenvolvimento, seja ele social ou moral, notamos a discrepncia entre o quedeveria acontecer e o que realmente acontece.

    La Taille, importante estudioso da moralidade, por diversas vezes temexplicitado a questo da violncia dentro da moralidade (La Taille 2000, 2002a,2002b e 2005). O autor busca nestes textos demonstrar a relao existenteentre a moral e, tambm, a tica e a violncia, enfatizando a atualidade doassunto e a necessidade de que seja estudado.

    La Taille (2005) ao tratar da violncia busca seu significado nos dici-onrios e encontra como uma das definies a coao, ou seja, o emprego dafora para constranger uma ou mais pessoas, de forma fsica ou psicolgica.Desse modo, a violncia aproxima-se estreitamente da questo moral, j queest baseada no respeito unilateral s regras e tambm no respeito a quemtransmite ou constri tais regras. Assim, as aes que envolvem a coaodirecionam a um respeito unilateral que acarreta heteronomia moral.

    Ao coagir o outro, estamos desrespeitando sua integridade, estamostratando-o no mais como um sujeito que possui sentimentos e merece atitudesde respeito, igualdade e cooperao, mas sim como um objeto que pode sermanipulado e agredido. O desrespeito integridade do outro se trata de violn-cia, afinal, quando se age assim pensa-se somente no bem prprio e no nobem do outro.

    Assim, La Taille chega a uma definio de violncia, da qual compar-tilhamos. Esta definio de violncia est relacionada moral e independe dequalquer tipo de classe econmica ou social, transpassa os aspectos de puraagressividade fsica e acopla todas as facetas que vivenciamos ou assistimosdesse fenmeno. Segundo este autor, Podemos, portanto, no plano moral, nos

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    inspirar no imperativo categrico kantiano e definir violncia como um ato quecoloca outrem como meio e no como fim. A violncia traduz um uso instru-mental de outrem, uma negao de seu estatuto de sujeito. (LA TAILLE,2005, p.12)

    Segundo o Imperativo Categrico Kantiano, j citado neste estudo,apenas devemos fazer ao outro aquilo que pode tambm ser feito conosco, ouseja, fazer o bem se esse bem puder ser aplicado tambm a ns e o mal igual-mente. Portanto, quando agimos de uma forma com o outro que no desejamosa ns mesmos estamos negligenciado a vida do outro, o seu estatuto de sujeito.Negligenciando esse outro, estamos tratando no mais como um individuo,mas como objeto; estamos, portanto, violentando-o.

    A violncia vista, ento, como uma forma de negao das relaesque se baseiam na justia, na cooperao, no respeito mtuo e na igualdade,fazendo com que um indivduo enxergue e trate o outro no como sujeito, mascomo um objeto, que pode ser manipulado. A violncia consiste em no respei-tar o outro, em coagi-lo, em negligenci-lo. Vista desta forma, a violnciatranspassa o aspecto da violncia fsica e corresponde a qualquer outro ato, ouat mesmo omisso, em que a negao do outro esteja presente.

    MTODO

    Este estudo se desenvolveu em duas partes. A primeira trata-se de umestudo bibliogrfico a respeito da temtica em questo. A segunda parte trata-se de uma entrevista piloto em que buscamos verificar se as crianas e adoles-centes avaliam de maneira diferente as situaes de violncia em funo deseu desenvolvimento do juzo moral. Os sujeitos foram crianas de sete aquatorze anos, que frequentam o ensino fundamental Para tal, realizamos, ini-cialmente, entrevistas utilizando as historinhas apresentadas por Piaget na obraO juzo moral (1932/1994), sobre justia, a fim de verificar em que nvel dedesenvolvimento moral encontravam-se os sujeitos. Depois, apresentamos as

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    entrevistas sobre violncia que constavam de historinhas contemplando dife-rentes formas de violncia e entrevista pessoal.

    RESULTADOS

    Os sujeitos que apresentaram um desenvolvimento do juzo moral maisautnomo, voltado para o respeito mtuo e cooperao, julgaram as situaesde violncia de maneira mais crtica, enxergando a violncia em situaes quevo alm da agresso fsica, ressaltando a questo da negao do outro e dacoao presentes nestas situaes. J, os sujeitos que apresentaram um desen-volvimento do juzo moral mais heternomo, voltado para a coao, julgaramas mesmas situaes de violncia de maneira muito superficial, enxergandocomo violncia apenas a agresso fsica e no percebendo a negao do outroe a coao.

    So exemplos das respostas dos sujeitos:

    GUI (8,3) [...] O QUE SENTE OU PENSA A PESSOA QUE PRATICA VIO-LNCIA? Que ela chata e mal criada. E POR QUE EXISTE VIOLNCIANO MUNDO? Por que as pessoas fica irritando e a outra pessoa fica nervosae bate.

    CAR (11,2) [...] O QUE SENTE OU PENSA QUEM PRATICA VIOLN-CIA? Pensa que o outro diferente, pode pensar que o outro nojento, ou egosta. Pensa que por que diferente tem que apanhar. No pensa na outrapessoa. POR QUE EXISTE VIONCIA? Por que uma pessoa no sabe res-peitar a outra, a diferena.

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    CONCLUSES

    A realizao deste estudo possibilitou-nos compreender que a violn-cia est diretamente ligada moral. As entrevistas mostram a existncia derelaes entre o desenvolvimento do juzo moral das crianas e adolescentes esuas avaliaes e atitudes diante de situaes de violncia. Na medida em queo respeito se desenvolve existe tendncia a avaliar criticamente os atos violen-tos.

    Precisamos, ento, seja na escola ou na sociedade, de relaes que sebaseiem no respeito mtuo, na cooperao e em vivncias que levem o sujeitoa se desenvolver moralmente e a valorizar e respeitar o outro, pois, assim,haver construo de sujeitos mais autnomos moralmente e, ao mesmo tem-po, menos violentos.

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