Judiaria Da Guarda

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Judiaria da Guarda António Marujo 22/04/2000 O Público Uma cultura, um gueto, uma história. A judiaria da Guarda renasceu no museu da cidade. Ali se mostram objectos, documentos, pinturas que reflectem a religião, o quotidiano, a riqueza cultural dos judeus da região. E que retratam também a perseguição que os vitimou durante séculos. É no chão que está desenhada a planta da antiga judiaria da Guarda. No Museu da cidade, o gueto onde viveram os judeus renasceu agora em traços, documentos, roupas, alfaias, pinturas. "A dificuldade maior foi encontrar objectos", diz ao PÚBLICO Maria Antonieta Garcia, comissária da exposição "Guarda - História e Cultura Judaica", que ali estará patente até Setembro. E aquela dificuldade traduz de imediato uma triste realidade: perseguidos, os judeus esconderam todos os sinais e artefactos que os pudessem denunciar. Sobrou muito pouco. É possível, mesmo assim, mostrar alguns dos aspectos da vida da comunidade judaica da Guarda, de cuja existência há sinais pelo menos desde o século XII. Na transição para o século XIII, o rei Afonso II confirmou o foral da cidade, outorgado por D. Sancho I, e referiu-se aos costumes já ali existentes. "Judeus e mouros não lavrem ao domingo e, se lavrarem, paguem dois maravedis [moeda] aos alcaides", decretava o monarca. A organização comunitária dos judeus expressa-se na sinagoga, explica Rita Costa Gomes, da Universidade Nova de Lisboa, no catálogo da exposição. E é em função da religião e do calendário das principais festas que o tempo se organiza, tal como acontece com todas as comunidades judaicas. Desde o Rosh Hashaná, a festa do Ano Novo (Setembro), quando se toca o "shoffar" a convidar à penitência e ao perdão (como se vê na foto), até ao Shavuot, a festa das colheitas (entre Maio e Junho), passando pela Pessah, a Páscoa judaica que celebra a libertação da escravidão egípcia, com a liderança de Moisés (entre Março e Abril). A Pessah "é o tempo do reafirmar da consciência judaica", escreve Maria Antonieta Garcia no catálogo, "o evento seminal do povo judeu,

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Judiaria da Guarda

António Marujo

22/04/2000

O Público

Uma cultura, um gueto, uma história. A judiaria da Guarda renasceu no museu da cidade. Ali se mostram objectos, documentos, pinturas que reflectem a religião, o quotidiano, a riqueza cultural dos judeus da região. E que retratam também a perseguição que os vitimou durante séculos.

É no chão que está desenhada a planta da antiga judiaria da Guarda. No Museu da cidade, o gueto onde viveram os judeus renasceu agora em traços, documentos, roupas, alfaias, pinturas. "A dificuldade maior foi encontrar objectos", diz ao PÚBLICO Maria Antonieta Garcia, comissária da exposição "Guarda - História e Cultura Judaica", que ali estará patente até Setembro. E aquela dificuldade traduz de imediato uma triste realidade: perseguidos, os judeus esconderam todos os sinais e artefactos que os pudessem denunciar. Sobrou muito pouco. É possível, mesmo assim, mostrar alguns dos aspectos da vida da comunidade judaica da Guarda, de cuja existência há sinais pelo menos desde o século XII. Na transição para o século XIII, o rei Afonso II confirmou o foral da cidade, outorgado por D. Sancho I, e referiu-se aos costumes já ali existentes. "Judeus e mouros não lavrem ao domingo e, se lavrarem, paguem dois maravedis [moeda] aos alcaides", decretava o monarca. A organização comunitária dos judeus expressa-se na sinagoga, explica Rita Costa Gomes, da Universidade Nova de Lisboa, no catálogo da exposição. E é em função da religião e do calendário das principais festas que o tempo se organiza, tal como acontece com todas as comunidades judaicas. Desde o Rosh Hashaná, a festa do Ano Novo (Setembro), quando se toca o "shoffar" a convidar à penitência e ao perdão (como se vê na foto), até ao Shavuot, a festa das colheitas (entre Maio e Junho), passando pela Pessah, a Páscoa judaica que celebra a libertação da escravidão egípcia, com a liderança de Moisés (entre Março e Abril). A Pessah "é o tempo do reafirmar da consciência judaica", escreve Maria Antonieta Garcia no catálogo, "o evento seminal do povo judeu, da conquista da liberdade". A sagração do tempo é intrínseca ao judaísmo. Afinal, o sábado - o descanso semanal, em celebração do descanso divino após a criação - foi introduzido pelos judeus. Escreve Yehuda Halevi: "O ritmo da vida judaica é profundamente influenciado pelo curso do tempo. Alegria e pesar, exaltação e serenidade, trabalho e descanso, tudo tem a sua hora regulada pelos marcos do calendário. Até as menores unidades do tempo têm o seu momento culminante, a saber: para as horas do dia, as três orações; para a semana, o Sábado; para o mês a lua nova; para as estações as festas da peregrinação; acima de todas as festas o Yom Kipur, dia do perdão."O Yom Kipur é a mais solene de todas as festividades no ciclo do tempo judaico, destinada à expiação e ao perdão, e culminando "os dez dias de penitência iniciados em Rosh Hashaná". Há outras celebrações importantes: o Sukot, festa das cabanas (Setembro/Outubro), recorda a errância dos filhos de Israel pelo deserto depois da saída do Egipto. A Simhat Torá é a "festa de exaltação da Lei revelada por Deus ao povo escolhido". Hanuká assinala, durante oito dias (Setembro/Outubro), a vitória dos irmãos Macabeus, em 165 a.C., sobre Antíoco Epifanes, um governador grego que proibira "a prática do judaísmo e pretendia helenizar os judeus". Na

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exposição podem ver-se alguns dos objectos que a celebração das festas exigia. Candelabros e castiçais, rolos com os textos bíblicos ou edições de vários livros sagrados, "teflins" (pequenos estojos em pele contendo pergaminhos com orações) ou "talit" (xaile de oração). Também há documentos que atestam etapas fundamentais na vida das pessoas: a circuncisão, o "bar mitzva" (festa da maioridade religiosa), o casamento e a morte. Em cada "ketubá", o contrato de casamento escrito como se fosse uma iluminura, ficam registadas as obrigações dos noivos e o dote da noiva. Os primeiros indícios seguros da presença de judeus na Guarda coincidem com o período de formação da nacionalidade, como sublinha Rita Costa Gomes num texto sobre a judiaria da cidade. Nesse tempo, a Guarda recebeu foral (a exposição é uma das iniciativas que comemora os 800 anos da data) e tornou-se sede de diocese, em detrimento de Idanha-a-Velha (o acontecimento também já foi objecto de colóquios e realizações diversas). A presença de judeus na cidade era reflexo da complexidade urbana, nota ainda Rita Costa Gomes. "Já então, como é de resto característico nas sociedades medievais, os judeus se integravam na vida da cidade sob o signo da separação e da diferença." Reconhecidos como "comunidade separada" e protegidos pelos reis, os judeus da Guarda habitavam um bairro junto à Porta d'el Rei. A vida quase nunca foi fácil para a comunidade dos filhos de Israel. Se D. Sancho mandara que não lavrassem aos domingos, D. Fernando ordenou, século e meio depois, que eles andassem com um sinal ao peito. A marca da condenação seria confirmada por D. Manuel I, no decreto de expulsão dos judeus. "Porquê esta permanência do ódio do outro, que ressurge ciclicamente na história da humanidade, sempre com a mesma raiva insaciável?", pergunta o jornalista do PÚBLICO António Melo, num texto do catálogo sobre as origens do antisemitismo. "O que leva a capacidade intelectual de um homem a programar um conceito de "raça", que o coloca a ele na categoria de super-homem e o seu semelhante fora da espécie humana?"Aos cristãos-novos, judeus baptizados como cristãos para poder ficar no reino e evitar a perseguição, não restou outro caminho senão ocultar a sua religião. Uma rara mezuza portátil diz, na exposição, a perseverança com que tantos viviam: destinada a ser usada individualmente por judeus feitos cristãos-novos, ela continha o Shemah, a afirmação de fé do judaísmo - "Escuta, Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é Um."Da comunidade perseguida falam essas e outras peças - um cofre da Inquisição, por exemplo -, bem como diversas listas de processos do Tribunal do Santo Ofício respeitantes a judeus da Guarda publicadas no catálogo. E ganha-se consciência do valor cultural que atravessava as comunidades judaicas da Guarda e das Beiras. Antonieta Garcia cita nomes de médicos célebres, como Amato Lusitano, que nasceram e viveram na área do bispado da Guarda. E Judith Cohen (Universidade de Toronto, Canadá) recorda o "papel importante" dos judeus "no desenvolvimento da cultura musical da Pensínsula Ibérica". A propósito, refere as melodias usadas nas liturgias da sinagoga e as Cantigas de Santa Maria, de Afonso X. Até Setembro, o chão do Museu da Guarda faz de porta de entrada numa história e numa cultura que se julgaria perdida. As soluções arquitectónicas (da autoria de Salette Marques) usadas para a exposição - segredo da excelente concepção da mostra - fazem o visitante entrar pela Porta d'el Rey, circular pela Rua do Amparo, perscrutar a sinagoga, visitar a casa de algum judeu, sentir os indícios da perseguição e da clandestinidade. O êxito da afluência de público à exposição e da dramatização do grupo teatral Aquilo, realizada propositadamente para esta mostra (que teve 50 representações em Novembro), justificariam por inteiro a reposição teatral, mesmo que isso obrigue a um investimento suplementar da Câmara Municipal e do

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Museu. Tal como acontece com o catálogo, desenhado por Henrique Cayatte, cuja qualidade deveria apressar a sua reedição.