JOYCE PALHA COLAÇA...JOYCE PALHA COLAÇA Trabalho apresentado como pré-requisito para obtenção...

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE JOYCE PALHA COLAÇA O GUARANI COMO LÍNGUA OFICIAL E A PROMOÇÃO DE UM BILINGUISMO IMAGINÁRIO NO PARAGUAI Trabalho apresentado como pré- requisito para obtenção do título de doutor ao programa de pós- graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal Fluminense. ORIENTAÇÃO: Prof.ª Dr.ª Bethania Sampaio Corrêa Mariani UFF CO-ORIENTAÇÃO: Prof.ª Dr.ª María Teresa Celada USP UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Março de 2015

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

    INSTITUTO DE LETRAS

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    JOYCE PALHA COLAÇA

    O GUARANI COMO LÍNGUA OFICIAL E A PROMOÇÃO DE

    UM BILINGUISMO IMAGINÁRIO NO PARAGUAI

    Trabalho apresentado como pré-

    requisito para obtenção do título de

    doutor ao programa de pós-

    graduação em Estudos da

    Linguagem da Universidade

    Federal Fluminense.

    ORIENTAÇÃO: Prof.ª Dr.ª Bethania Sampaio Corrêa Mariani – UFF

    CO-ORIENTAÇÃO: Prof.ª Dr.ª María Teresa Celada – USP

    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    Março de 2015

  • JOYCE PALHA COLAÇA

    Trabalho apresentado como pré-

    requisito para obtenção do título de

    doutor ao programa de pós-

    graduação em Estudos da

    Linguagem da Universidade

    Federal Fluminense.

    Defendido em ____________________________

    BANCA EXAMINADORA

    _________________________________________________________________

    Prof.ª Dr.ª Bethania Sampaio Corrêa Mariani (orientadora) – UFF

    _________________________________________________________________

    Prof.ª Dr.ª María Teresa Celada (co-orientadora) – USP

    _________________________________________________________________

    Prof.ª Dr.ª Carolina María Rodríguez Zucolillo – UNICAMP

    _________________________________________________________________

    Prof.ª Dr.ª Fabiele Stockmans De Nardi - UFPE

    _________________________________________________________________

    Profª. Dr.ª Marcia Paraquett Fernandes – UFBA

    _________________________________________________________________

    Prof.ª Dr.ª Vanise Gomes de Medeiros – UFF

    _________________________________________________________________

    Prof.ª Dr.ª María Aurora Consuelo Alfaro Lagorio – UFRJ (suplente)

    _________________________________________________________________

    Prof. Dr. Xoán Carlos Lagares Diez – UFF (suplente)

    UFF

    Niterói, 2015

  • Ao meu pai Francisco, uma saudade presente.

    E aos meus avós, Zuleide e Sebastião,

    pelos sonhos que guardavam. Todos em memória.

    Também ao Gui, meu príncipe, que partiu depois da defesa desta tese, em memória e no meu

    coração.

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, pela força que me move. Pode ser que seja fé.

    A CAPES pela bolsa que me permitiu desenvolver esta tese com certa tranquilidade.

    A Bethania Mariani, que me despertou para os sentidos possíveis, com afeto e dedicação, sem

    nunca desistir de mim, apesar de toda a deriva.

    A minha família: minha mãe, que sempre me disse que eu podia; A Jeca, que me presenteou

    com o Gui e o Bubu, meus príncipes; Também ao Anderson que, na simplicidade, nos

    acompanha nesta jornada; A Ronaldo e Rosane, mesmo distantes.

    Aos colegas do Departamento de Letras Estrangeiras da UFS pelo incentivo na forma do

    afastamento concedido, que possibilitou a conclusão desta tese. Muito em especial à Doris,

    Acacia, Sabrina, Acassia, pelo companheirismo, amizade e trocas diárias no trabalho e na

    vida. Ao Paulo e à Karina, pela afetuosidade e acolhimento. A Raquel, Célia e Melanie, pelas

    palavras de apoio e pelo porvir.

    A Doris e Walla, Acacia e Jeff, por serem minha família naquelas terras sergipanas.

    Aos professores Xoán Lagares, Fabiele Stockmans e María Teresa Celada pela leitura e

    colaboração na versão para qualificação desta tese. A Maite também por aceitar continuar de

    perto o caminhar e pelo afeto nas conversas de orientação.

    As professoras Carolina Rodríguez, Fabiele Stockmans, Márcia Paraquett e Vanise Medeiros

    por aceitarem fazer parte no momento da defesa e pela leitura final. Também a Márcia por

    mostrar-me o caminho da pesquisa, o amor à profissão e à vida.

    Aos professores Consuelo Alfaro e Xoán Lagares, por aceitarem a leitura desta tese como

    suplentes.

    Aos meus amigos que entendem minha ausência, em especial, as minhas amigas que, mesmo

    de longe, me acompanham e me ancoram: Aline, Andreia, Ceiça, Fabi, Jackie, Line, Mah,

    Thaina e Vivi.

    A Valéria, pelo amor, companheirismo, irmandade. Também por me adotar nos últimos

    momentos de escrita desta tese.

    Aos amigos do Laboratório Arquivos do Sujeito, para além da teoria, pelo afeto que nos une:

    Alexandre Zanella, Ana Carnevale, Diego Barbosa, Felipe Dezerto, Juciele Dias, Fernanda

    Lunkes, Marcos Sá, Márcia Cirigliano, Phellipe Marcel, Raphael Trajano e Thaís Costa.

    A Lívia, amiga e comadre, pelo apoio incondicional e ouvidos generosos neste percurso.

    A Ângela Baalbaki, pelo carinho e pelas conversas que resultaram nesta pesquisa.

  • Aos meus gatos que, alheios a qualquer tese, são motivo da minha alegria e do meu amor.

    Ao Derlis, por todas as conversas sobre o guarani, por sua luta pela língua e por compartilhar

    seu tereré.

    Ao Padre Genaro e a Estela, pela afetuosa acolhida no Paraguai, e a toda a família Meza,

    pelos momentos que compartilhamos.

    A Professora Manuela Romero e a toda a equipe do Colégio Nacional de Assunção por terem

    me recebido e colaborado com a pesquisa do arquivo.

    A Miguel Angel de Verón e a Arnaldo Casco pela cessão do material com as ações da

    Secretaria de Políticas Linguísticas do Paraguai.

  • El subdesarrollo no es una etapa del desarrollo. Es su

    consecuencia. El subdesarrollo de América Latina proviene

    del desarrollo ajeno y continúa alimentándolo. Impotente

    por su función de servidumbre internacional, moribundo

    desde que nació, el sistema tiene pies de barro. Se postula a

    sí mismo como destino y quisiera confundirse con la

    eternidad. Toda memoria es subversiva, porque es diferente,

    y también todo proyecto de futuro. Se obliga al zombi a

    comer sin sal: la sal, peligrosa, podría despertarlo. El

    sistema encuentra su paradigma en la inmutable sociedad de

    las hormigas. Por eso se lleva mal con la historia de los

    hombres, por lo mucho que cambia. Y porque en la historia

    de los hombres cada acto de desconstrucción encuentra su

    respuesta tarde o temprano, en un acto de creación.

    Galeano, Las venas abiertas de América Latina, 2012 [1971]

    No se nace bilingüe; se hace uno bilingüe.

    Melià, La tercera lengua del Paraguay, 2013

  • RESUMO

    Nesta tese, temos como objetivo compreender os processos de produção de sentidos

    sobre as línguas guarani e espanhola em contexto de bilinguismo no Paraguai. Filiamo-nos às

    pesquisas desenvolvidas no âmbito da História das Ideias Linguísticas (AUROUX, 1998,

    2009 [1992], 2010 [1994]; ORLANDI, 1983, 1988, 2008 [1990]), em seu entrelaçamento com

    Análise do Discurso de linha francesa (PÊCHEUX, 1988 [1975], 1990 [1969]; 2010 [1994]),

    para construir nossa reflexão e avançar nos estudos referentes ao tema. Para compor nosso

    arquivo de análise, tomamos os textos das Cartas Magnas desde o primeiro Regulamento de

    Governo, de 1813, até a atual Constituição da República do Paraguai, de 1992, que

    oficializou a língua guarani. Também fazem parte do nosso arquivo os textos da Lei Geral de

    Educação nº 1264/1998 e da Lei n° 3231/2007 e da Lei de Línguas nº 4251/2010. Para

    compreender os sentidos produzidos acerca do imaginário de bilinguismo, analisamos as

    ações da Secretaria de Políticas Linguísticas, a partir da descrição de três projetos, dentre os

    quais selecionamos o intitulado Rohayhu Che Ñe'ẽ: una semana en lengua guaraní.

    Observamos o funcionamento dos discursos sobre o guarani no espaço de enunciação

    (GUIMARÃES, 2005) paraguaio e, também, no latino-americano, por sua incorporação como

    língua oficial de trabalho do Mercosul. Pela análise empreendida no decorrer desta tese,

    verificamos como a memória (PÊCHEUX, 2007) sobre as línguas se inscreve nas

    discursividades das leis de educação e na produção de políticas de línguas sobre o

    bilinguismo, pela promoção de um bilinguismo imaginário, que significa a língua guarani

    num lugar de tradição, de patrimônio e de identidade nacional em oposição à língua

    espanhola, significada, pela historicidade dos processos de produção de sentidos, como a

    língua de civilização e de conhecimento. No jogo das relações de forças travadas no embate

    entre as línguas, nas textualidades analisadas, se materializam os efeitos de sentidos

    produzidos ideológica e historicamente, em um processo que segue promovendo a língua

    espanhola e silenciando a língua guarani no Paraguai.

    PALAVRAS-CHAVE: História das Ideias Linguísticas; Análise do Discurso; Paraguai;

    Língua guarani; Língua oficial; Bilinguismo imaginário.

  • RESUMEN

    En esta tesis, tenemos como objetivo comprender los procesos de producción de

    sentidos sobre las lenguas guaraní y española en contexto de bilingüismo en Paraguay. Nos

    remitimos a las investigaciones desarrolladas en el ámbito de la Historia de las Ideas

    Lingüísticas (AUROUX, 1998, 2009 [1992], 2010 [1994]; ORLANDI, 1983, 1988, 2008

    [1990]), en su entrelazamiento con el Análisis del Discurso de línea francesa (PÊCHEUX,

    1988 [1975], 1990 [1969]; 2010 [1994]), para construir nuestra reflexión y avanzar en los

    estudios referentes al tema. Para componer nuestro archivo de análisis, tomamos los textos de

    las Cartas Magnas desde el primer Reglamento de Gobierno, de 1813, hasta la actual

    Constitución de la República de Paraguay, de 1992, que oficializó la lengua guaraní.

    También forman parte de nuestro archivo los textos de la Ley General de Educación nº

    1264/1998 y de la Ley n° 3231/2007 y de la Ley de Lenguas nº 4251/2010. Para comprender

    los sentidos producidos acerca del imaginario de bilingüismo, analizamos las acciones de la

    Secretaría de Políticas Lingüísticas del Paraguay, a partir de la descripción de tres proyectos,

    de los que seleccionamos el intitulado Rohayhu Che Ñe'ẽ: una semana en lengua guaraní.

    Observamos el funcionamiento de los discursos sobre el guaraní en el espacio de enunciación

    (GUIMARÃES, 2005) paraguayo y, también, latinoamericano, por su incorporación como

    lengua oficial de trabajo del Mercosur. Por el análisis hecho en el decurso de esta tesis,

    verificamos como la memoria (PÊCHEUX, 2007) sobre las lenguas se inscribe en las

    discursividades de las leyes de educación y en la producción de políticas de lenguas sobre el

    bilingüismo, por la promoción de un bilingüismo imaginario, que significa la lengua guaraní

    en un lugar de tradición, de patrimonio y de identidad nacional en oposición a la lengua

    española, significada, por la historicidad de los procesos de producción de sentidos, como la

    lengua de civilización y de conocimiento. En el juego de las relaciones de fuerzas, trabadas en

    el embate entre las lenguas, en las textualidades analizadas, se materializan los efectos de

    sentido producidos ideológica e históricamente, en un proceso que sigue promoviendo la

    lengua española y silenciando la lengua guaraní en el Paraguay.

    PALABRAS-CLAVE: Historia de las Ideas Lingüística; Análisis del Discurso; Paraguay;

    Lengua guaraní; Lengua oficial; Bilingüismo imaginario.

  • SUMÁRIO

    1. INTROUÇÃO .............................................................................................................................. 11

    1.1 PRIMEIRAS PALAVRAS .................................................................................................... 11

    1.2 O NOME DA LÍNGUA E O NOME NA LÍNGUA: A MARCA DA HISTÓRIA NO

    GUARANI ...................................................................................................................................... 15

    1.2.1 O nome da língua: che ñe' ẽ, ava ñe' ẽ; guarani, guarani paraguaio, jopará ............ 16

    1.2.2 O nome na língua: a história no corpo do sujeito ........................................................ 22

    1.3 A ORDEM DA ESCRITA E A ORGANIZAÇÃO DA TESE ......................................... 26

    2. A HISTÓRIA DAS IDEIAS LINGUÍSTICAS E O ESTADO PARAGUAIO ............. 28

    2.1 UMA HISTÓRIA DAS IDEIAS LINGUÍSTICAS ........................................................... 30

    2.2 O POLÍTICO NA LÍNGUA E AS POLÍTICAS DE LÍNGUA ........................................ 53

    2.3 SOBRE NAÇÕES E NACIONALISMO ............................................................................ 63

    2.4 ENTRE O MATERNO, O OFICIAL E O NACIONAL, UMA DIVISÃO

    IMAGINÁRIA ............................................................................................................................... 69

    3. HISTÓRIA, LÍNGUA, SUJEITO: OS SENTIDOS NO (DIS)CURSO DA HISTÓRIA

    ................................................................................................................................................................ 88

    3.1 SOBRE A HISTÓRIA E A HISTORICIDADE ................................................................. 89

    3.2 O DISCURSO DA HISTÓRIA SOBRE O PARAGUAI .................................................. 95

    3.2.1 A colônia, os jesuítas e as reduções .............................................................................. 98

    3.2.2 O século XIX: da Independência à Guerra da Tríplice Aliança ............................. 112

    3.2.3 Stroessner: nacionalismo e identidade nacional ....................................................... 131

    3.3 OS ECOS DO DISCURSO DA HISTÓRIA NA CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO

    NACIONAL ................................................................................................................................. 138

    4. SENTIDOS SOBRE O GUARANI E O ESPANHOL: POLÍTICAS DE LÍNGUAS DO

    ESTADO PARAGUAIO .............................................................................................................. 142

    4.1 UMA HISTÓRIA DAS IDEIAS LINGUÍSTICAS DO GUARANI: O GUARANI

    PARAGUAIO, A GRAMATIZAÇÃO E AS POLÍTICAS DE LÍNGUAS ........................ 145

    4.2 AS CARTAS MAGNAS DO PARAGUAI, DE 1813 A 1992 ....................................... 152

    4.3 OS DIZERES SOBRE A EDUCAÇÃO NA FORMA DA LEI ..................................... 166

    4.3.1 A Lei Geral de Educação nº 1264/1998 ...................................................................... 168

    4.3.2 A Lei n° 3231/2007, que cria a Direção Geral de Educação Escolar Indígena .... 178

    4.4 A LEI DE LÍNGUAS Nº 4251/2010 .................................................................................. 183

    4.4.1 A Academia da Língua Guarani e a Secretaria de Políticas Linguísticas .............. 193

    5. A CONSTRUÇÃO DE UMA NAÇÃO BILÍNGUE? ....................................................... 197

  • 5.1 A COMISSÃO NACIONAL DE BILINGUISMO .......................................................... 199

    5.1.1 Decreto nº 6588/1994 .................................................................................................... 199

    5.1.2 Sobre os objetivos da Comissão Nacional de Bilinguismo ...................................... 204

    5.2 A SECRETARIA DE POLÍTICAS LINGUÍSTICAS E AS POLÍTICAS DE LÍNGUAS

    SOBRE O BILINGUISMO ........................................................................................................ 206

    5.2.1 "Rohayhu Che Ñe’ ẽ: Una semana en lengua guaraní" ........................................... 210

    6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: UM BILINGUISMO IMAGINÁRIO ........................... 213

    REFERENCIAS ............................................................................................................................ 219

    1. ARQUIVO ............................................................................................................................... 219

    2. BIBLIOGRAFIA CITADA E CONSULTADA ................................................................. 220

    3. ON LINE ................................................................................................................................... 231

    ANEXOS ......................................................................................................................................... 234

    I. Reglamento de Gobierno. Segundo Congreso (1813) .................................................... 235

    II. Ley que establece la administración política de la república del Paraguay, y demás

    que en ella se contiene / Constitución de la República del Paraguay (1844) ................. 237

    III. Constitución de la República del Paraguay (1870) ..................................................... 243

    IV. Constitución Nacional del Paraguay (1940) ................................................................ 255

    V. Constitución de la República (1967) ............................................................................... 266

    VI. Constitución de la República de Paraguay (1992) ...................................................... 290

    VII. Ley General de Educación nº 1264 /1998 ................................................................... 338

    VIII. Ley n° 3231/2007, que cria a Direção Geral de Educação Escolar Indígena ...... 358

    IX. Ley de Lenguas del Paraguay nº 4251/2010 ................................................................. 362

    X. Decreto nº 6588/1994 ........................................................................................................ 369

    XI. Decreto nº 588, por el cual se integra la Comisión Nacional de Bilingüismo del

    Ministerio de Educación y Cultura ....................................................................................... 372

    XII. Comissão Nacional de Bilinguismo I ........................................................................... 375

    XIII. Comissão Nacional de Bilinguismo II ........................................................................ 376

    XIV. Acto de presentación de informe de la Comisión Nacional de Bilingüismo y la Red

    de Cooperación Intercultural Multilingüe (Recim) ............................................................ 378

    XV. Ações da Secretaria de Políticas Linguísticas do Paraguai ....................................... 382

    XVI. "Rohayhu che ñe’ẽ: una semana en lengua guaraní" ............................................... 392

    XVII. Lengua Guaraní se convierte en idioma oficial de trabajo del Parlamento del

    Mercosur ................................................................................................................................... 394

    XVIII. Una nación bilingüe que rechaza los nombres guaraní ........................................ 395

  • 11

    1. INTRODUÇÃO

    1.1 PRIMEIRAS PALAVRAS

    Nessa longa caminhada, outros escreveram sobre algumas das coisas

    que eu estava observando. Mas não apressei meus passos, mesmo

    correndo o risco de não ser a primeira a dizer. Porque não aposto no

    "conteúdo", no "dado", na "informação", mas na construção dos

    sentidos, e esse meu texto será sempre este meu texto no seu modo de

    significar, com sua contribuição específica. (ORLANDI, 2008 [1990])

    Uma das partes mais difíceis ao se lançar no doutorado é a escolha do objeto. Um

    projeto de pesquisa passa a ser o projeto de nossas vidas durante determinado tempo e ocupa

    um espaço significativo em nossas relações com o mundo. Este projeto, que ora se transforma

    em uma tese, é resultado de um convite para uma mesa de políticas linguísticas. Naquela

    ocasião, uma colega pressupôs que eu, professora de espanhol, dada a diversidade linguística

    já conhecida no mundo hispânico, teria, sem dúvidas, o que dizer sobre o tema. Foi então que

    comecei a ler sobre a situação linguística de diversos países de fala hispana e me chamou a

    atenção o Paraguai, por sua singularidade na América Latina: o Paraguai é o único país em

    que uma língua de origem indígena, o guarani, ocupa o lugar de língua do Estado Nacional e é

    projetada dentro de uma situação de bilinguismo, resultando na produção de instrumentos

    linguísticos.

  • 12

    Assim começou esta tese, por um convite que se transformou em nossa primeira

    questão: como a língua guarani alcançou o status de língua oficial no/do Paraguai? Durante o

    percurso de nossa pesquisa, muitos foram os trabalhos a que tivemos acesso sobre o tema, e,

    pela situação singular já exposta, pesquisadores de diversas áreas de estudo se lançaram nesta

    investigação, entre elas a antropologia, a história, a sociolinguística e, também a Análise do

    Discurso de linha materialista, campo em que se inscreve esta tese. Entretanto, como aponta

    nossa epígrafe, em Análise do Discurso, apostamos na "construção dos sentidos" e, por esta

    perspectiva, "esse meu texto será sempre este meu texto no seu modo de significar"

    (ORLANDI, 2009 [1990], p. 13). Partindo, então, da aposta de contribuir na compreensão da

    situação linguística do Paraguai, nos lançamos nesta jornada que é a escrita de uma tese, que

    se desenvolveu a partir do escopo teórico da História das Ideias Linguísticas (AUROUX

    2009, [1992]; ORLANDI, 2008 [1990], 2010 [1994]) em seu encontro com a Análise do

    Discurso de linha francesa (PÊCHEUX, 1990 [1969]; 1988 [1975]; ORLANDI, 2002; 2009),

    tal como vem se desenvolvendo no Brasil.

    Com relação às condições de produção (PÊCHEUX & FUCHS, 1990 [1969]) desta

    pesquisa, é preciso ressaltar sua especificidade pelo fato de que focaliza o caso do Paraguai e

    seu desenvolvimento se deu no Brasil. Outra questão que devemos ressaltar se relaciona ao

    recorte de nossas sequências discursivas. Como nos lembra Orlandi (1984), as sequências

    discursivas são recortes de linguagem e situação que o analista opera em determinado corpus,

    a partir de um gesto de interpretação (ORLANDI, 2010 [1994]), que busca as regularidades

    no arquivo. Nesta tese, trabalhamos com sequências recortadas de um corpus heterogêneo.

    Em um primeiro momento de análise, no capítulo 4, mobilizamos textualidades do arquivo

    jurídico do Paraguai: as Cartas Magnas (Anexos I a VI1), a Lei Geral de Educação nº 1264

    /1998 (Anexo VII), a Lei n° 3231/2007, que cria a Direção Geral de Educação Escolar

    Indígena (Anexo VIII) e a Lei de Línguas nº 4251/2010 (Anexo IX) e o Decreto nº 6588/1994

    (Anexo X), Decreto nº 588, por el cual se integra la Comisión Nacional de Bilingüismo del

    Ministerio de Educación y Cultura (Anexo XI).. Na sequência, para compor nossa análise, no

    quinto capítulo, mobilizamos textualidades de instituições governamentais: a Comissão

    Nacional de Bilinguismo (Anexos XII e XIII), o Ato de apresentação do relatório da

    Comissão Nacional de Bilinguismo e a Rede de Cooperação Intercultural Multilíngue (Anexo

    1 Como veremos no final deste capítulo, todos os arquivos que compõem este corpus foram disponibilizados, em

    anexo, organizados em números romanos do I ao XIV. Ao longo da tese, indicaremos o número de cada anexo

    para facilitar sua consulta.

  • 13

    XIV), as Ações da Secretaria de Políticas Linguísticas (Anexo XV2), o cartaz do projeto

    "Rohayhu che ñe’ẽ: una semana en lengua guaraní" (Anexo XVI) e o texto do parlamentar

    presidente da delegação paraguaia no Parlasul3

    (Anexo XVII) para compreender o

    funcionamento do discurso sobre o bilinguismo no Paraguai no âmbito das políticas de

    línguas promovidas pelo governo.

    O arquivo jurídico se constitui “a partir de materiais preexistentes” (COURTINE,

    2009 [1981]), e, em nosso trabalho, podemos afirmar que é um arquivo cuja ordem já estava

    explicitada, pois fizemos um recorte a partir da organização cronólógica já existente: as

    Cartas Magnas seguem a ordem da sua promulgação e as leis referentes à educação também

    são apresentadas na ordem de sua publicação, bem como a Lei de Línguas que encerra este

    primeiro grupo de textualidades do arquivo jurídico, por haver sido publicada no ano de 2010.

    O segundo tipo de corpus, que colocamos em relação ao primeiro, foi construído a partir de

    nossa entrada no objeto e nossa aproximação à noção de "bilinguismo". Buscamos, deste

    modo, reunir materiais com o objetivo de compor um arquivo para compreender o

    funcionamento do imaginário de bilinguismo paraguaio, constituído pelos projetos da

    Secretaria de Políticas Linguísticas do Paraguai. Tanto no arquivo jurídico como naquele que

    tivemos de compor, nossa entrada no corpus foi a partir de materiais em língua espanhola.

    Decidimos, portanto, manter a língua dos originais dos textos que compõem o arquivo, visto

    que, como analistas de discurso, operamos sobre a materialidade da língua (ORLANDI,

    2009), o que resulta em não utilizar os textos traduzidos em nossa pesquisa. Justificamos

    nossa posição teórica também por concordar com Dezerto (2013) quando afirma existir um

    efeito de traduzibilidade, que sustenta uma prática tradutória e afeta o ensino de línguas

    estrangeiras, apontando para o seu funcionamento, que produz uma imaginária relação direta

    entre as línguas e entre o referente e o objeto. Ou seja, por não haver uma relação direta entre

    referente e objeto em determinada língua, a tradução se produz como efeito. Por conseguinte,

    nossas sequências discursivas serão apresentadas em espanhol, língua original dos

    documentos, no corpo do texto, e uma tradução auxiliar será disponibilizada em nota de

    rodapé. Por sua vez, as referências bibliográficas em língua estrangeira serão traduzidas ao

    2 As ações da Secretaria de Políticas Linguísticas do Paraguai, no momento de nossa pesquisa, ainda não estavam

    disponíveis on line, na página da instituição (www.spl.gov.py. Acesso em: 10 de agosto de 2014). O órgão

    tampouco contava com um arquivo físico organizado sobre o tema. Portanto, agradecemos a construção deste

    arquivo ao Assessor de Comunicação desta instituição à época, o Sr. Arnaldo Casco, que nos disponibilizou os

    dados, e ao Sr. Miguel Ángel Verón, que nos facilitou o contato. 3 Parlamento do Mercosul.

  • 14

    português no corpo do texto, como sugere o manual da Universidade Federal Fluminense,

    local de produção desta tese, e, em nota de rodapé, seguirão seus textos originais.4

    Em Análise do Discurso, consideramos construção do arquivo como um gesto

    (ROMÃO, FERREIRA e DELA-SILVA, 2011), em que suas condições de produção são

    significativas, tanto na conformação do arquivo jurídico como daquele construído ad hoc para

    a realização de determinada pesquisa. A construção do arquivo que será objeto de análise

    nesta tese sofreu alterações durante o percurso de pesquisa e de escrita, por duas questões

    fundamentais. Por um lado, pela condição do próprio arquivo no Paraguai, que teve seus

    prédios públicos destruídos - e com isso alguns de seus documentos - durante os confrontos

    da Guerra da Tríplice Aliança (MELIÀ, 2003), da qual trataremos no terceiro capítulo. Ainda

    com relação ao arquivo, muitos documentos referentes ao Paraguai, inclusive alguns

    produzidos em língua guarani, estão na Espanha e em Buenos Aires, em virtude do seu

    domínio em tempos remotos sobre o Paraguai (ibidem). Essa questão foi fundamental por ter

    direcionado nossa pesquisa significativamente.

    Por outro lado, este trabalho foi se encaminhando para um lugar outro, a partir de

    nossas leituras e de nossa própria escrita sobre o objeto. À medida que íamos avançando no

    estudo do tema, a recorrência do nome "bilinguismo" nas pesquisas sobre o Paraguai foi se

    apresentando como uma questão e se colocou para nós a necessidade de sua compreensão.

    Sobre esta questão, lembramos o trabalho de Mariani (2012), ao afirmar que

    no conjunto dos textos arquivados e no conjunto de leituras que vai fazendo, o

    pesquisador se depara com uma dispersão, de processos de produção de sentidos,

    cabendo a ele, pesquisador, recortar e organizar as redes de enunciados pertinentes à sua temática. (ibidem, p. 124. Grifos nossos)

    Nesse caminhar em meio à dispersão, nos deparamos com este seu "aspecto

    labiríntico", num infinito jogo de idas e vindas, cuja historicidade se marca em cada entrada

    que fazemos no arquivo. É fundamental compreender que, neste percurso, como afirma

    Mariani (ibidem, p. 123), "nós construímos o arquivo de pesquisa". Neste caminhar teórico-

    analítico, nossas perguntas foram se transformando e passamos a reunir documentos que, de

    nosso lugar teórico, julgamos fundamentais no que diz respeito à produção de saberes e à

    4 Cf. Apresentação de trabalhos monográficos de Conclusão de Curso. 10ª ed. revisada e ampliada por Estela dos

    Santos Abreu e José Carlos Abreu. Niterói, RJ: EdUFF, 2012. 90p.

  • 15

    circulação de ideias sobre as línguas guarani e espanhola no Paraguai. Duas perguntas nos

    direcionaram nesta jornada: como o Estado atua pela promoção da língua guarani em sua

    disputa pelo espaço de enunciação paraguaio com a língua espanhola? O que significa para a

    língua guarani estar em situação de bilinguismo com a língua espanhola no Paraguai?

    Por fim, foi na tentativa de compreender o imaginário que se produz sobre um

    Paraguai bilíngue no contexto latino-americano e mundial que construímos esta tese, cuja

    organização apresentamos na última seção deste capítulo.

    1.2 O NOME DA LÍNGUA E O NOME NA LÍNGUA: A MARCA DA HISTÓRIA NO

    GUARANI5

    La conquista rompió las bases de aquellas civilizaciones.

    (Galeano, 2012 [1971])

    O ato de nomear marca em si uma história. Nomear, na perspectiva discursiva, é

    estabelecer limites, criar fronteiras e inscrever a língua no processo de produção de sentidos.

    Como afirma Mariani,

    entendemos, nesta perspectiva, que o denominar não é apenas um aspecto do caráter

    de designação das línguas. Denominar é significar, ou melhor, representa uma

    vertente do processo social geral de produção de sentidos. O processo de

    denominação não está na ordem da língua ou das coisas, mas organiza-se na

    ordem do discursivo, o qual relembrando mais uma vez, consiste na relação entre o

    linguístico e o histórico-social, ou entre linguagem e exterioridade. (1998, p. 118.

    Grifos nossos.)

    De acordo com a autora, então, "denominar é significar", o ato de denominar

    "organiza-se na ordem do discursivo", por inscrever-se entre o linguístico e o histórico-social.

    Partindo destas considerações, nossas reflexões sobre o gesto de nomear, nesta seção, se darão

    em dois caminhos. Em uma primeira parte, levantamos algumas questões referentes ao nome

    5 Chamamos a atenção aqui para o guarani, língua e sujeito.

  • 16

    da língua guarani, ou melhor, aos nomes que se produziram historicamente e que são

    significados em relação à unidade imaginária desta língua. Posteriormente, direcionamos

    nossa discussão ao ato de nomear os sujeitos em língua guarani, ou seja, de como o nome do

    sujeito se inscreve na história de sua língua.

    1.2.1 O nome da língua: che ñe' ẽ, ava ñe' ẽ; guarani, guarani paraguaio, jopará

    "No começo era tudo igual" - nos conta Egufo - "mas

    não deu certo. Aí, depois que Xixi fez os kura [gente],

    fez a divisão do mundo dando uma língua para o índio e

    uma língua para o karaiwa [não-índio]; deu também

    flecha para o índio e arma de fogo para o karaiwa.6"

    O mito contado por Egufo, na epígrafe que inicia esta seção, coloca o nome na ordem

    do divino: "Xixi fez os kura [gente], fez a divisão do mundo dando uma língua para o índio e

    uma língua para o karaiwa [não-índio]". Queremos retomar essa divisão das línguas e, mais

    especificamente, dos nomes das línguas para discorrer sobre o ato de nomear e sobre quem

    nomeia7. Apresentaremos, nesta seção, algumas denominações sobre as línguas guarani, por

    concordar que denominar é inscrever sentidos entre o "linguístico e o histórico-social"

    (Mariani, 1998). De acordo com o Melià8,

    Numerosos grupos indígenas que serão contatados pouco a pouco ao longo de várias

    décadas de expedições, entradas e conquistas coloniais falavam uma língua, à que se

    dará o nome de Guarani, por se chamar assim o primeiro grupo conhecido à

    entrada do Rio da Prata.9 (MELIÀ, 2010a, p. 11. Tradução nossa. Itálico do autor.

    Grifos em negrito nossos.)

    6 Trecho de um mito Bakairi retirado do artigo Mito e discursividade: um processo metonímico (SOUZA, 2008,

    p. 23). 7 Agradecemos à professora Tânia Conceição Clemente de Souza (UFRJ), que, na ocasião do Congresso

    Internacional de História das Ideias Linguísticas (ICHOLS), em Portugal, no ano de 2014, nos perguntava sobre

    o nome da língua guarani em guarani.Tal conversa resultou nesta discussão, quando a professora nos chamou a

    atenção sobre o nome do projeto da Secretaria de Políticas Linguísticas do Paraguai, "Rohayhu Che Ñe' ẽ",

    questionando-nos sobre a referência ao nome da língua no projeto em análise. 8 Bartomeu Melià é um padre jesuíta e conhecido pesquisador da língua guarani.

    9 "Numerosos grupos de indígenas que serán contactados popo a poco a lo largo de varias décadas de

    expediciones, entradas y conquistas coloniales hablaban una lengua, a la que se dará el nombre de Guaraní, por

    llamar-se así el primer grupo conocido a la entrada del Río de la Plata". (MELIÀ, 2010a, p. 11)

  • 17

    Conforme o autor (ibidem), durante as expedições, o primeiro encontro dos europeus

    no Rio da Prata foi com um grupo que dizia "chamar-se Guarení"10

    (ibidem) e assim, pouco a

    pouco, a denominação Guarani foi sendo aplicada "àqueles indígenas do rio Paraná e do rio

    Paraguai, aos que estavam além dos Saltos do Guairá e aos que habitavam a ambas margens

    do rio Uruguai"11

    (ibidem). Melià (ibidem) acrescenta que foram encontrados diversos grupos

    com características culturais comuns, e que "todos eles foram chamados de Guarani". Para o

    autor, "por estas e outras características comuns se pode falar de uma língua e cultura guarani

    geral, ainda que não uniforme nem idêntica. Há varias línguas guaranis, não uma só"12

    (ibidem, p. 11-12.)

    Interessa-nos, da perspectiva discursiva, ressaltar que o nome "guarani" traz a marca

    da conquista, a marca do outro. O nome da língua em guarani Ñe' ẽ, que significa "palavra

    individual" (VILLAGRA-BATOUX, 2002), aparece no projeto da Secretaria de Políticas

    Linguísticas do Paraguay: "Rohayhu Che Ñe' ẽ: una semana en lengua guaraní". "Che ñe' ẽ " -

    minha língua - minha palavra individual - aponta para o fato de o processo de nomeação

    funcionar de modo diferente em língua indígena e em língua espanhola, em que a língua em

    guarani é representada pelo termo "palavra" e não como um nome relacionado ao grupo13

    . O

    ato de nomear as línguas indígenas em referência aos grupos que as falam é um gesto no

    político (GUIMARÃES, 2005) por produzir saberes sobre as línguas e sobre os povos nesta

    divisão que significa, organizando o desconhecido ao europeu. Vale destacar, também, que,

    ao longo desta tese, partindo de como os autores designavam a língua falada no Paraguai,

    utilizamos "língua indígena", "língua guarani" e "guarani", como paráfrase (ORLANDI,

    2009), tal como funciona no discurso do colonizador, cujos sentidos ressoam no nome da

    língua, reconhecendo, entretanto, que a língua guarani da atualidade não é uma língua

    indígena, sendo falada pela comunidade paraguaia em geral, como aponta Niro (2010).

    Para além do nome da língua em si, entre "guarani" e "ñe' ẽ ", também é preciso dizer

    que este processo de nomeação, seja em guarani, seja em língua espanhola, limita os sentidos

    10

    "llamarse Guarení" (ibidem). 11

    "a aquelllos indígenas del río Paraná y río Paraguay, a los que estaban más allá de los Saltos del Guairá y a los

    que habitaban a ambas márgenes del río Uruguay" (ibidem). 12

    "Por estas características a todos ellos se los llamó Guaraní. Por estas y otras características comunes se puede

    hablar de una lengua y una cultura guaraní general, si bien no uniforme ni idéntica. Hay varias lenguas

    guaraníes, no una sola" (ibidem, p. 11-12). 13

    Segundo a professora Tânia Conceição Clemente de Souza, este é um funcionamento similar com relação ao

    nome da língua Bakairi.

  • 18

    para a língua guarani, como se esta fosse uma, como se fosse una. Neste ponto, lembramos

    que

    não há país que não seja multilíngue. Dito de outro modo: não há país monolíngue.

    Não há Estado que, embora em sua institucionalidade apresente sua ou suas línguas

    oficiais, nacionais, não se faça no contato com múltiplas línguas. E a língua não é

    una, não é uma, não é pura. (ORLANDI, 2012, p. 6. Grifos nossos.)

    "A língua não é una". Como nos ensina a autora, a língua de que tratamos, em nosso

    estudo, a língua guarani, é uma construção imaginária das várias línguas que foram

    designadas como sendo uma língua. Cabe- nos, então, avançar a partir de uma distinção e

    formulação que realiza Guimarães e que nos parece, aqui, produtiva e pertinente:

    A nomeação é o funcionamento semântico pelo qual algo recebe um nome (não

    vou aqui discutir esse processo). A designação é o que se poderia chamar de

    significação de um nome, mas não enquanto algo abstrato. Seria a significação

    enquanto algo próprio das relações de linguagem, mas enquanto uma relação

    lingüística (simbólica) remetida ao real, exposta ao real, ou seja, enquanto uma

    relação tomada na história. (GUIMARÃES, 2005, p. 9. Itálicos do autor. Grifos em

    negrito nossos.)

    A designação, segundo o autor, tem sua espessura histórica por ser uma construção no

    simbólico. A designação "guarani", de que tratamos nesta tese, no que tange os discursos

    sobre a língua guarani, nos documentos oficiais e nos projetos da Secretaria de Políticas

    Linguísticas, é a língua imaginária guarani, sistematizada e gramatizada (AUROUX, 2009

    [1992]), e não uma língua indígena, tirada do seu espaço e transposta diretamente aos

    documentos. Por esta discussão, podemos afirmar que o sintagma "língua guarani" - que, de

    nosso ponto de vista, funciona como uma designação - reúne em si a história do processo de

    construção da sociedade paraguaia como bilíngue, em que os nomes das línguas significam

    frente à relação de forças estabelecida ideológica, social e historicamente.

    No caso, entram no embate do nome da língua, pela historicidade de cada designação,

    "guarani", "guarani paraguaio", "jopará", assim como "espanhol", "espanhol guaranizado",

    "guarañol" e "castelhano guaranizado". Há muita discussão sobre os nomes das línguas e

    sobre o que seriam as línguas faladas atualmente no Paraguai (MELIÀ, 2003; 2010, 2013;

    VILLAGRA-BATOUX, 2002; GÓMEZ, 2007, 2009 [2006]; JIMÉNEZ, 2011; ZARRATEA,

    2011), contudo, não pretendemos entrar neste campo e discutir qual nome seria mais

  • 19

    adequado mobilizar, por reconhecer que toda designação carregará em si uma historicidade.

    Entretanto, deixamos nossas considerações sobre o tema, para explicitar que caminhos

    tomaremos ao longo desta tese, uma vez que as políticas de língua não se constituem apenas

    nos documentos oficiais, mas as teses, os especialistas, enfim, os teóricos também fazem,

    direta ou indiretamente, políticas de língua. Ou seja, nossa decisão em utilizar uma outra

    designação é também um gesto no político.

    No que diz respeito às diferentes designações que circundam a língua guarani nos

    documentos oficiais são necessárias algumas considerações. Zarratea (2011, p. 157) defende

    que o jopará não é o guarani paraguaio, porque aquele guarda características da oralidade, não

    tem uma escrita e tampouco teria sido sistematizado. O autor afirma ainda que "o jopará está

    muito longe de constituir-se em dialeto do idioma guarani. É apenas um fenômeno da fala. É a

    forma mais precária de falar o castelhano pelos guarani-falantes do castelhano."14

    (Ibidem.

    Itálico do autor.) Para nós, essas divisão que diz da língua, entre o guarani paraguaio e o

    jopará é produtiva para manter a língua espanhola no seu status, por sustentar que a língua

    falada no cotidiano, o jopará, é "a forma mais precária de falar o castelhano", colocando a

    língua no lugar do erro e, assim, discriminando os falantes que dela se valem. Para compor

    esta discussão, lembramos, aqui, o trabalho de Mariani (2011b) sobre as línguas em

    Moçambique. De acordo com a autora,

    a oposição entre português e pretoguês15

    demarca um modo de significar a

    língua através da tradição de uma língua gramatizada, com escrita estabilizada,

    com instrumentos linguísticos que tentam assegurar a forma imaginária dessa

    língua. É, nesse sentido, é um uso asséptico da língua, em detrimento da língua que

    foi se historicizando, modificando-se e incorporando traços da cultura do outro. Ou

    seja, a língua imaginária se aprende na escola, mas a maior parte da produção

    moçambicana, como vimos, dela estava ausente, em função do modo como se

    processa a colonização linguística. (MARIANI, 2011b, p 123-124. Grifos nossos.)

    Na relação de forças entre as línguas em Moçambique, como aponta a autora, o

    português é significado "através da tradição de uma língua gramatizada" em detrimento da

    14

    "el jopará está muy lejos de constituirse en dialecto del idioma guaraní. Es apenas un fenómeno del habla. Es

    la forma más precaria de hablar el castellano por los guaraní- hablantes del castellano." (ZARRATEA, 2011, p.

    157) 15

    "Pretoguês" é a maneira como os portugueses designavam a forma de falar português realizada pelos

    colonizados negros em Moçambique.

  • 20

    outra, o pretoguês, resultado do confronto histórico e linguístico ocorrido naquelas terras. No

    Paraguai, o jopará é significado pela via do erro, também "em função do modo como se

    processa a colonização linguística (ibidem, p. 123-124). Entretanto, nessa relação, é preciso

    salientar que o guarani paraguaio tampouco escapa dessa determinação do confronto histórico

    e se marca na relação com a língua espanhola neste processo. Como apontaremos no capítulo

    4, a disputa entre puristas e modernos discute a inserção deste guarani paraguaio nas políticas

    de línguas do Estado.

    Consideraremos, nesta tese, as distinções que faz Melià (2013) entre o guarani dos

    povos indígenas, o guarani jesuítico, o guarani paraguaio e o jopará. Para este autor, no

    Paraguai, não se trata de discutir o bilinguismo entre o guarani e o espanhol, mas de uma

    situação em que entra em jogo uma "terceira língua do Paraguai16

    ", o jopará ou o guarañol,

    que seria o resultado do processo histórico das duas línguas envolvidas.

    De sua parte, o jopará não é tampouco uma realidade equidistante entre o

    espanhol e o guarani, porque sua relação linguística com os dois sistemas não é

    da mesma ordem. Sua relação com o espanhol, ainda que o espanhol paraguaio,

    está definida como relação com uma norma estandarizada, sustentada pela literatura

    e pela educação escolar; se há "code switching", este se faz por referência a um dos

    termos realmente codificado, que é uma invocada correção normal do espanhol.

    Entre o guarani e o jopará, entretanto, não há propriamente "code switching",

    o jopará é o guarani historicamente hispanizado (...)17

    (MELIÀ, 2013, p.82-83.

    Aspas do autor. Grifos nossos.)

    Como afirma o autor, a relação entre o jopará e o espanhol não é da mesma ordem que

    a relação entre o jopará e o guarani, por haver uma manutenção na relação de forças que

    historiciza uma hierarquia em que o espanhol aparece como a língua estandarizada. Dos

    estudos discursivos, tomamos emprestadas as noções de língua fluida e língua imaginária de

    Orlandi e Souza (1988) para afirmar que o guarani paraguaio, por sua sistematização,

    funciona como língua imaginária, cujo sistema foi estabelecido pelo processo de gramatização

    (AUROUX, 2009 [1992]) pelo qual passou desde a colônia. Com relação a este processo de

    16

    Cf. MELIÀ, Bartomeu. La tercera lengua del Paraguay y otros ensayos. Colección Academia Paraguaya de la

    Lengua Española. Asunción, Paraguay, 2013. 207 p. 17

    "Por su parte, el jopará no es tampoco una realidad equidistante entre el español y el guaraní, porque su

    relación lingüística con los dos sistemas no es el del mismo orden. Su relación con el español, aun el español

    paraguayo, queda definida como relación con una norma estandarizada, sostenida por la literatura y la educación

    escolar; si hay "code switching", este se hace por referencia a uno de los términos realmente codificado, cual es

    una invocada corrección normal del español. Entre el guaraní y el jopará, sin embargo, no hay propiamente

    "code switching", el jopará es el guaraní históricamente hispanizado (...)"

  • 21

    gramatização, não estamos afirmando que o processo iniciado pelos jesuítas forjaria a língua

    guarani da atualidade e sim afirmar que houve, nas condições de produção específicas das

    reduções jesuíticas, um processo de gramatização de uma variedade da língua guarani, o

    guarani jesuítico das reduções.

    Por sua vez, o jopará, a língua da população, principalmente aquela com menor acesso

    à educação em língua espanhola, é significada como a língua fluida, língua não contida nos

    "sistemas", não submetida à organização, como diria a própria Orlandi (2009). De nossa

    posição, trataremos do guarani paraguaio e do jopará em sua relação de proximidade. Isto

    porque, se nos debruçamos sobre os registros sobre a situação linguística no Paraguai, de

    acordo com o censo paraguaio de 2002, é possível verificar que o jopará não entra como

    opção para a escolha do falante18

    . Por este motivo, trataremos como guarani, guarani

    paraguaio e jopará, lembrando que a língua dos documentos produzidos pelo Estado

    paraguaio se referem a este guarani - língua imaginária - e que, para nós, este também é

    resultado da colonização linguística (MARIANI, 2004).

    Com relação à outra língua oficial, nos limitamos a fazer um esclarecimento, pois não

    é nosso intuito realizar uma análise nesse sentido. Nos documentos que trabalhamos, aparece,

    majoritariamente, a designação castelhano, com alguma variação em que se pode ler

    "espanhol" e "língua espanhola". Como exemplo deste uso, temos o texto da Carta de 1967,

    em que se lê: "Los idiomas nacionales de la República son el español y el guaraní. Será de uso

    oficial el español"19

    (Art. 5. Constituição da República do Paraguai, 1967. Anexo V.). Assim,

    retomaremos a designação "castelhano" sempre que ela aparecer nos recortes do corpus objeto

    de análise20

    . Em nosso texto, prevalecerão "espanhol" e "língua espanhola", formas mais

    regulares no contexto brasileiro, sinalizando para as condições de produção específicas deste

    trabalho.

    18

    As opções são: Guarani falantes, guarani bilíngues, castelhano bilíngues, castelhano falantes. (Censo de

    población y vivienda, 2002.) 19

    "Os idiomas nacionais da República são o espanhol e o guarani. Será de uso oficial o espanhol " (Art. 5.

    Constituição da República do Paraguai, 1967. Tradução nossa.). 20

    A alternância do nome da língua nos documentos - que se dá também em outros países que tenha o espanhol

    como língua oficial - não seria uma questão fácil de resolver, além de não ser nosso objetivo nesta pesquisa. De

    fato, essa análise nos distanciaria dos objetivos centrais. Sobre este tema existem muitos estudos. Mencionamos

    apenas um clássico: ALONSO, Amado. Castellano, español, idioma nacional. (Historia espiritual de tres

    nombres). 3ª ed. Buenos Aires: Losada, 1958.

  • 22

    1.2.2 O nome na língua: a história no corpo do sujeito

    Ao nascer, a criança cai dentro de uma língua e nela fica plantada mais

    profundamente pelo nome que lhe é dado ou imposto.21

    (MELIÀ,

    2010b)

    Dar nome a uma criança se significa, em nossa sociedade, pelo efeito de obviedade

    que traz este gesto, como um ato de simples escolha entre os nomes de uma lista. Entretanto,

    baseados nos estudos de Guimarães (2005), podemos afirmar que a escolha do nome próprio

    se constitui também como um gesto no simbólico. Ao nomeá-lo, o sujeito é inscrito numa

    rede de relações de sentidos com os demais sujeitos22

    e com o Estado. Sim, com o Estado. No

    gesto de nomear, a língua do Estado é questão fundamental, como nos ensina Guimarães

    (ibidem):

    O sentido do nome próprio lhes constitui, em certa medida, O sentido constitui o

    mundo que povoamos. E o constitui enquanto produz identificações sociais que são

    o fundamento do funcionamento do indivíduo enquanto sujeito. E aqui é preciso

    lembrar que este processo de identificação se faz no espaço de enunciação da

    Língua do Estado, e assim identifica o indivíduo como cidadão. (ibidem, p. 41.

    Grifos nossos.)

    Pelo que afirma este autor, o processo de nomeação se faz "no espaço de enunciação

    da língua do Estado", por identificar o indivíduo como cidadão em determinada língua e

    espaço. Após o nascimento, os pais devem registrar o bebê para dar-lhe existência frente ao

    Estado e isto deve ser feito em uma língua. Não raro nomes são proibidos por serem

    diferentes do que se aceita como normal ou porque, supostamente, ofenderiam à criança. E em

    que o gesto de nomear uma criança se vincularia a um estudo sobre as políticas de línguas?

    Para nós, o gesto de nomear se vincula à memória das línguas, em que se impõe uma

    relação do cidadão com o Estado. Tomamos como ponto de partida, para abordar esta questão,

    uma notícia publicada recentemente em páginas de jornais on line do Paraguai, da qual

    21

    "Al nacer, el niño cae dentro de una lengua y en ella queda plantado más profundamente por el nombre que le

    es dado o impuesto." (MELIÀ, 2010b, p. 197. Tradução nossa.) 22

    Sobre esta questão, cf. Nome e constituição do sujeito (MARIANI, 2014).

  • 23

    apresentamos um recorte em nota de rodapé.23

    Na notícia, lê-se que uma funcionária do

    Registro Civil do Paraguai teria se negado a registrar uma criança com o nome de Lautaro

    Ñamandú. Tal nome, segundo a funcionária, ofenderia à criança ao que os pais explicaram

    que ambos os nomes eram de origem indígena: Lautaro dos Mapuches do Chile e Ñamandú

    da mitologia24

    guarani, que representariam a força da criança, nascida prematura. Depois do

    ocorrido, a Secretaria de Políticas Linguísticas do Paraguai se pronunciou e apresentou um

    projeto que tem como proposta elaborar, juntamente com o Registro Civil paraguaio, uma

    lista de nomes possíveis no país, incluindo os nomes em língua guarani.

    Tomados pelo enunciado-título de Mariani (2007a), "Quando as línguas eram corpos",

    a veiculação da notícia, com a proibição do registro de um nome em língua indígena no

    Paraguai, nos fez refletir sobre a marca da história no corpo do sujeito, em que nomear é um

    gesto no simbólico, que produz efeitos de sentidos sobre o próprio sujeito, escrevendo sua

    história pessoal e social, a partir do seu nome. Interessa-nos, então, retomar a questão de

    Mariani sobre o nome próprio. Como afirma a autora,

    a ausência do nome próprio 'conveniente e racional', nas palavras do colonizador,

    remete para o lugar eurocêntrico de onde se fala nessa época histórica. Afinal, o que

    seria um nome próprio conveniente? Conveniente pra quem? E racional, para o

    europeu do século XV? (ibidem, p. 103. Aspas simples da autora. Grifos nossos.)

    Como questiona a autora sobre o nome dos línguas na África, "o que seria um nome

    próprio conveniente? Conveniente pra quem?" Voltando ao nome Lautaro Ñamandú, por

    extensão, nos perguntamos: ofensivo pra quem?

    23

    Neste recorte, trazemos parte da notícia veiculada sobre o nome da criança: "El nombre de Lautaro Ñamandú,

    con el que una pareja quiso inscribir a su hijo recién nacido en Asunción, provocó una reacción airada por parte

    de una funcionaria del Registro Civil, que se negó a inscribir al niño alegando que 'odiaría a sus padres' por los

    apelativos elegido. 'La funcionaria se puso muy violenta, nos maltrató, y se negó a inscribir a nuestro hijo. Nos

    dijo que ése no era un nombre para una persona, y nos preguntó qué clase de padres íbamos a ser', relató a Efe

    Rubén Cáceres, el padre del niño. Cáceres explicó que Lautaro es el nombre de un guerrero indígena de la etnia

    de los mapuches chilenos, mientras que Ñamandú es un nombre sagrado en la mitología de los guaraníes, que

    hace referencia al origen del universo." Disponível em: http://www.ultimahora.com/paraguay-una-nacion-

    bilinge-que-rechaza-los-nombres-guarani-n864863.html. Publicada em: 17 de janeiro de 2015. Acesso em: 20 de

    janeiro de 2015. (Anexo XVII) 24

    Não vamos aqui tomar a discussão religiosa, mas queremos apontar que dizer, neste contexto, "mitologia

    guarani" é inscrever os sentidos em uma rede que afirma haver uma religião católica aceita em que a religião

    indígena passa a ser significada como da ordem da fantasia, do mitológico.

  • 24

    Num estudo sobre as comunidades indígenas tupinambás, Melià e Temple25

    (2004)

    afirmam que, nesse contexto:

    ser filho, ou irmão ou do mesmo sangue, é compartilhar uma mesma identidade

    com seus parentes; é participar do ser comum. Desde esse momento o recém-

    nascido assume a morte de seu parente e esta morte lhe outorga uma alma de

    vingança.

    O nome da criança, significa uma consciência muito precisa: uma consciência de

    matar; ou seja, a consciência de um ato contrário à morte do parente com o qual se

    identifica a criança, morte que é devida também a um homicídio. O nome é uma

    promessa de vingança.26

    (Ibidem, p. 89-90. Tradução nossa. Itálicos dos autores.

    Grifos em negrito nossos.)

    O gesto de nomear tem historicidade. Como afirmam os autores sobre os tupinambás,

    nomear no seio desta comunidade indígena significa vingar o nome do parente morto. A

    criança carrega a simbologia que significa no interior da comunidade.

    No caso referido nesta seção, do nome indígena negado à criança paraguaia, a

    interdição do nome marca a interdição da própria língua. A individualização pelo Estado

    (ORLANDI, 2009), marcada também pela entrada do sujeito na sociedade, a partir de seu

    nome - ou da interdição deste - mostra como o discurso do europeu se inscreve na sociedade

    paraguaia. Como postula Orlandi (2008 [1990], p. 59. Aspas da autora.), "o silêncio do

    nomear faz intervir o 'interdiscurso' do outro (o europeu), fazendo-nos significar (quer

    queiramos quer não) na história dos 'seus sentidos'."

    A interdição do nome em mapuche e em guarani nos conduz a trazer, na introdução

    desta tese, os diversos silenciamentos aos quais foram impostos - e aos quais continuam sendo

    - os povos americanos, neste efeito de evidência, inclusive quando se trata de nomear. Como

    resume Mariani, em seu estudo sobre os línguas 27

    ,

    25

    Os autores retomam os estudos de Hans Staden e Forestan Fernandes para tratar dos tupinambás brasileiros. 26

    "Ser hijo, o hermano o de la misma sangre, es compartir una misma identidad con sus parientes; es participar

    del ser común. Desde ese momento el recién nacido asume la muerte de su pariente y esta muerte le otorga un

    alma de venganza.

    El nombre del niño significa una conciencia muy precisa: una conciencia de matar; es decir, la conciencia de un

    acto contrario a la muerte del pariente con el cual se identifica el niño, muerte que es debida también a un

    homicidio. El nombre es una promesa de venganza." (MELIÀ e TEMPLE, 2004, p. 89-90) 27

    Trataremos da questão dos "línguas" no terceiro capítulo.

  • 25

    atribuir um nome próprio associado a um nome de família, e batizar de acordo

    com os preceitos cristãos, são atos de linguagem, dizeres que significam visando

    atribuir identidade unívoca, ou ainda, conferir uma individuação ligada a uma

    linhagem. Por extensão são atos que permitem a inserção e a produção de

    imaginários para aquele indivíduo designado com aquele nome. O nome próprio

    carrega consigo o nome do pai e, no nome do pai, o nome da nação e da língua

    dessa nação. Língua e traços histórico-culturais, como linhagem, inserção na fé

    católica e, até mesmo, nacionalidade, se materializam nesse gesto de

    nomeação/interpretação para os povos ocidentais. (MARIANI, 2007a, p. 103.

    Grifos nossos.)

    Segundo Mariani, no contexto da colonização, o gesto de nomear dos africanos não

    era reconhecido pelos portugueses, que significavam suas formas de nomeação pela

    irracionalidade. Para os portugueses, o nome próprio deveria representar uma "linhagem" e a

    "inserção na fé católica". Em nosso estudo, no Paraguai atual, na sociedade civil, o gesto de

    nomear também recorre a esta memória da colonização, em que se recupera uma "linhagem".

    "O nome próprio carrega consigo o nome do pai e, no nome do pai, o nome da nação e da

    língua dessa nação" (ibidem). E quando esta língua nacional é uma língua de origem

    indígena? E quando não é possível nomear em língua guarani? A partir da notícia veiculada,

    pela impossibilidade de nomeação da criança, podemos afirmar que o próprio gesto de

    nomear explicita as marcas da colonização, tanto com relação à língua com que se escreverá o

    nome da criança, como na própria ordem - nome do pai / nome da mãe28

    . Neste contexto, o

    nome Lautaro Ñamandú não teria sido reconhecido pela funcionária tanto pela materialidade

    da língua, por não ser um nome comum em língua espanhola, como pela falta de referência a

    uma "linhagem" explicitada pelos nomes das famílias do pai e da mãe.

    Com estas questões que apresentamos, objetivamos dar início à discussão que

    queremos propor nesta tese, de como o político se inscreve nos diversos gestos e de como a

    língua guarani é interditada e, como consequência, silenciada, pela memória da colonização

    inscrita no simbólico.

    28

    No Paraguai, o nome do pai aparece primeiro dentre os sobrenomes da família.

  • 26

    1.3 A ORDEM DA ESCRITA E A ORGANIZAÇÃO DA TESE

    Nesta seção, buscamos apresentar de maneira panorâmica os capítulos desta tese. A

    escrita tem sua própria ordem e não é linear. Nosso trabalho como analistas do discurso é

    buscar compreender os processos de produção de sentidos, na relação que se coloca pela

    ordem da língua na ordem da história. Sendo assim, esta organização é um gesto, que nos

    possibilitou produzir seis capítulos - entre os quais estão esta introdução e aquele que

    funciona como conclusão. Passamos a descrevê-los.

    Este primeiro capítulo de introdução está dividido em três seções. Nas Primeiras

    palavras, apresentamos a motivação que nos levou a construir este trabalho e a pergunta que

    direcionou nossa pesquisa até sua conclusão. Nesta seção, também justificamos nossa opção

    teórica de manter o corpus em língua espanhola, bem como algumas questões sobre a

    construção do arquivo. Na segunda seção deste capítulo, O nome da língua e o nome na

    língua: a marca da história no guarani, trazemos algumas questões sobre o nome da língua

    guarani e o próprio ato de nomear em língua guarani. Nesta terceira seção, A ordem da escrita

    e a organização da tese, objetivamos apresentar os capítulos para situar, de modo geral, o

    trabalho que ora se apresenta.

    No segundo capítulo, A História das Ideias Linguísticas e o Estado paraguaio,

    apresentamos o escopo teórico que norteia esta tese, a partir dos apontamentos realizados na

    base de nosso campo de pesquisa, seguido de uma seção que visa discutir as políticas de

    línguas sobre o guarani e o espanhol no Paraguai, além das discussões teóricas travadas sobre

    Nações e nacionalismo e sobre a divisão imaginária que diz das línguas como maternas,

    oficiais, nacionais ou estrangeiras.

    Em História, língua, sujeito: os sentidos dos (dis)cursos da história, o terceiro

    capítulo, seguimos a produção de sentidos sobre as línguas do/no Paraguai a partir do discurso

    da História escrita sobre o Paraguai. Explicamos nossa concepção de história como discurso e

    como a historicidade dos processos de produção de sentidos nos levou a selecionar três

    períodos que dão nome a três subseções: 3.2.1 A colônia, os jesuítas e as reduções; 3.2.2 O

    século XIX: da Independência à Guerra da Tríplice Aliança; e 3.2.3 Stroessner: nacionalismo

    e identidade nacional. Na última seção, deste terceiro capítulo, 3.3 Os ecos do discurso

  • 27

    histórico na construção do imaginário nacional, buscamos discutir como o que se diz na

    história sobre o Paraguai ressoa e produz sentidos que se repetem no imaginário social sobre o

    Paraguai.

    No quarto capítulo, Sentidos sobre o guarani e o espanhol: políticas de línguas do

    Estado paraguaio, propomos Uma História das Ideias Linguísticas do guarani, e passamos,

    na sequência para a análise de documentos oficiais do Paraguai: as Cartas Magnas, de 1813 a

    1992; a Lei Geral de Educação nº 1264/1998; a Lei n° 3231/2007; e a Lei de Línguas nº

    4251/2010, além de questões referentes ao papel da Academia da Língua Guarani e da

    Secretaria de Políticas Linguísticas do Paraguai.

    Em A construção de uma nação bilíngue?, nosso quinto capítulo, objetivamos

    compreender a situação do bilinguismo a partir da análise de documentos referentes à

    Comissão Nacional de Bilinguismo e à Secretaria de Políticas Linguísticas, além de analisar

    um projeto proposto por este órgão do governo, o "Rohayhu Che Ñe’ẽ: Una semana en lengua

    guaraní".

    No capítulo 6, Considerações finais: um bilinguismo imaginário, a partir de nossas

    análises, propomos a noção de "bilinguismo imaginário" por verificar que o governo

    paraguaio, a partir dos projetos que implementa, tem promovido uma imagem de bilinguismo

    sem que realmente os projetos consigam desvincular-se da memória da colonização em que a

    língua espanhola é significada como a mais adequada no espaço de enunciação paraguaio e

    mundial na atualidade.

    Por fim, na sequência, apresentamos as Referências e os Anexos, em que trazemos os

    documentos do arquivo em sua íntegra.

  • 28

    2 A HISTÓRIA DAS IDEIAS LINGUÍSTICAS E O ESTADO PARAGUAIO

    A atual Constituição da República do Paraguai, promulgada em 1992, oficializou a

    língua guarani, juntamente com o espanhol, produzindo novos dizeres sobre as línguas deste

    país e sobre o próprio país, significando-o como bilíngue. Vale lembrar o que afirma Niro

    sobre esta situação: "o guarani é uma língua que resulta majoritária em uma vasta zona da

    América do Sul e que conta com a particular característica de ser, diferente de outras línguas

    ameríndias, também falada pela população não indígena."29

    (2010, p. 209. Tradução nossa.)

    Por estas questões, podemos afirmar que, no panorama histórico e linguístico da América

    Latina, o reconhecimento oficial do guarani inaugura a possibilidade de uma nova rede de

    sentidos, que inscreve, discursivamente, a língua guarani no lugar da instituição, da lei e de

    um jogo político novo que implica relações de inclusão e de exclusão - e até de interdição, em

    determinados espaços - das demais línguas do país, com as línguas indígenas, com a língua

    de fronteira - na relação específica que aí se trava com o português do Brasil - ou, ainda, com

    as línguas de imigração. De acordo com Zarratea,

    estão identificados dentro do país 17 grupos étnicos de origem americana; é um

    grupo amplamente majoritário (94%) resultante da intensa interação humana entre

    guaranis e europeus; 6 grupos minoritários portadores de línguas e culturas

    europeias e 4 grupos de origem asiática. Com relação às línguas, são faladas dentro

    29

    "El guaraní es una lengua que resulta mayoritaria en una vasta zona de América del Sur y que cuenta con la

    particular característica de ser, a diferencia de otras lenguas amerindias, también hablada por la población no

    indígena." (NIRO, 2010, p. 209)

  • 29

    país um total de 16 línguas através de dialetos.30

    (ZARRATEA, 2011, p. 71. Grifos

    nossos. Tradução nossa.)

    O autor acrescenta afirmando que há, no total, 29 grupos culturais, somados os grupos

    de falantes das duas línguas oficiais. Nesta realidade pluricultural, o guarani é a única língua

    de origem indígena oficializada em proporção nacional no continente americano falada

    também pela população não indígena31

    . Baseados, então, nas determinações da Carta Magna

    de 1992, nos perguntamos:

    1. O que significa para o guarani ser língua oficial da república paraguaia?

    2. Quais são, então, as ações no âmbito político, econômico e social que possibilitam que a

    língua guarani funcione no real como língua oficial?

    3. Como o Estado atua pela promoção da língua guarani em sua disputa pelo espaço de

    enunciação paraguaio com a língua espanhola?

    4. Como as leis paraguaias promulgadas após a Constituição de 1992 significam as línguas

    guarani e espanhola no Paraguai?

    5. Como são significados o guarani e o espanhol nos projetos da Secretaria de Políticas

    Linguísticas do Paraguai?

    6. O que significa para a língua guarani estar em situação de bilinguismo com a língua

    espanhola?

    Estas questões foram se delineando ao longo de nossa pesquisa, quando, frente aos

    diversos documentos que visam garantir o lugar do guarani na sociedade paraguaia,

    analisamos os dizeres sobre esta língua e sobre a possibilidade de uma língua de origem

    indígena ocupar todos os espaços institucionais daquele país. Assim, pretendemos fazer, neste

    capítulo, um percurso que objetiva compreender os modos de produção dos sentidos sobre as

    línguas guarani e espanhola no Paraguai, trazendo para este estudo algumas questões

    formuladas no campo da História das Ideias Linguísticas, em sua vertente discursiva, que

    30

    "Se hallan identificados dentro del país 17 grupos étnicos de origen americano; es un grupo ampliamente

    mayoritario (del 94%) resultante de la intensa interacción humana entre guaraníes y europeos; 6 grupos

    minoritarios portadores de lenguas y culturas europeas y 4 grupos de origen asiático. En cuanto a las lenguas,

    son habladas dentro del país un total de 16 lenguas a través de dialectos." (ZARRATEA, 2011, p. 71.) 31

    No Peru, por exemplo, as línguas quíchua e aimará têm sua oficialidade reconhecida relacionada ao território

    onde são faladas.

  • 30

    discutem a formação do Estado Nacional paraguaio, as denominações sobre as línguas e o

    processo de gramatização de uma língua de origem indígena.

    Escrever uma História das Ideias Linguísticas sobre uma língua de origem indígena

    significa colocar em discussão as disputas históricas, territoriais e linguísticas, nas línguas e

    sobre as línguas, colocando em relação os sentidos que aparecem como evidentes nas

    formulações das políticas de línguas no Paraguai, e principalmente, aquelas que circulam no

    cenário linguístico nacional como políticas pró-bilinguismo.

    Dividimos o capítulo em quatro seções. Iniciaremos com Uma História das Ideias

    Linguísticas, com o propósito de expor o campo teórico no qual nos baseamos para analisar as

    discursividades sobre o guarani: a História das Ideias Linguísticas (AUROUX 2009 [1992];

    ORLANDI, 1988, 2008 [1990]) na aliança que vem fazendo com a Análise do Discurso de

    linha materialista no Brasil. Em seguida, em O político na língua e as políticas de língua,

    explicitaremos as políticas linguísticas sobre o guarani a partir do conhecimento produzido no

    campo da História das Ideias Linguísticas, com base em Orlandi (1998), Mariani (2004),

    dentre outros. Na seção 2.3, intitulada Sobre nações e nacionalismo, discorreremos sobre a

    relação entre língua, sujeito e nação em nosso campo teórico, pautados sobretudo em Orlandi

    (2008 [1990], 2003 [1993], 2009), Rodríguez Zuccolillo (2000) e Thiesse (1999); Para

    encerrar o capítulo com a seção 2.4, Entre o materno, o oficial e o nacional, uma divisão

    imaginária, analisaremos o funcionamento das designações entre língua materna, língua

    oficial e língua nacional.

    2.1 UMA HISTÓRIA DAS IDEIAS LINGUÍSTICAS

    Como já dissemos, no capítulo introdutório, nos filiamos teoricamente aos estudos da

    História das Ideias Linguísticas, mais especificamente, no caminho iniciado por pesquisadores

    brasileiros como Orlandi, Guimarães, Pessoa de Barros, entre outros, nos anos 1980, e que a

    partir do convênio estabelecido com Auroux, com o projeto L'hiperlangue brésilienne (1998),

    ganhou âmbito internacional. Com os estudos sobre a língua brasileira (ORLANDI, 2009), o

    projeto coordenado pela professora Orlandi objetivava analisar os sentidos de “brasilidade”32

    32

    O projeto se intitulava “Discurso, Significação, Brasilidade” (ORLANDI, 2001b).

  • 31

    na perspectiva discursiva. Por este motivo, muitos dos trabalhos a que recorreremos tratam

    mais detidamente sobre a língua nacional do/no Brasil e a colonização portuguesa. A partir

    deste projeto e em sua articulação com os estudos em História das Ideias Linguísticas, outras

    pesquisas se desenvolveram, em que se passou a pensar em outras línguas nacionais e outros

    modos da relação língua-sujeito. Dentre outros, baseamo-nos nos trabalhos de Orlandi (1983,

    1988, 2009 [1990]); Mariani (2007a, 2011a) sobre as línguas na África; Rodríguez-Alcalá

    (2000, 2001a) sobre o guarani no/do Paraguai; Payer (2006, 2011) sobre a língua dos

    imigrantes italianos no Brasil, dentre outros. Deste modo, pretendemos contribuir para as

    reflexões dentro da teoria, pautados nestes estudos que nos norteiam e nos conduzem a

    desenvolver as reflexões sobre nosso objeto. A partir das colocações postas, desenvolveremos

    alguns pontos que nos parecem imprescindíveis para o desenrolar de nossa reflexões sobre

    certos aspectos sobre as línguas no Paraguai.

    Faremos, então, uma leitura sintomática (ALTHUSSER, 2003 [1971]) dos textos que

    compõem nosso corpus, a fim de compreender a constituição, a formulação e a circulação dos

    sentidos sobre língua e sujeito sempre em sua relação com o Estado no Paraguai. Althusser

    (ibidem) propôs o modo de leitura que tomamos aqui, sintomal (ou sintomática), baseado na

    leitura que fazia da obra de Marx. Para Althusser, era possível depreender no modo de escrita

    de Marx os seus próprios meios de leitura dos seus predecessores. Reformulando a questão da

    leitura sintomática em Althusser pela Análise do Discurso, Mariani (2008) afirma que este

    tipo de método serviria “para construir um modo de ler que trabalha nas lacunas, nas

    contradições, nos silêncios da materialidade do texto.” (ibidem, p. 4)

    Não se pode esquecer ainda de um ponto fundamental em Análise do Discurso: não há

    uma origem do dizer, não há um sentido anterior, nem um sujeito que domina aquilo que diz.

    Entendemos, desse modo, que sujeito e sentido se constituem mutuamente (PÊCHEUX, 1988

    [1975]; ORLANDI, 2009). Mariani (2006) propõe um deslocamento em que dirá que o sujeito

    do inconsciente e a cadeia significante se constituem na simultaneidade de uma temporalidade

    lógica (ibidem), ou seja, que a estrutura inconsciente em que se constitui o sujeito está

    diretamente relacionada a sua entrada na rede de significantes. É então no simbólico,

    compreendido na forma como Lacan define, que se constitui o sujeito e nessa constituição, em

    que os significantes não têm sentido, nessa cadeia significante, o real já está posto, ou seja, o

    real como impossível (Lacan, 1996 [1964], 1985; Pêcheux, 1988 [1975]). Esse deslocamento

    aponta para o fato de que, na constituição dos sentidos e do sujeito, do ponto de vista da

  • 32

    Análise do Discurso, o significante está colocado, assim como o real, por quanto, podemos

    afirmar que a língua se faz presente na constituição subjetiva, pois é pela relação do sujeito

    com sua língua materna33

    , que o sujeito constitui o seu dizer.

    Payer (2006), em seu estudo sobre a língua dos imigrantes italianos no Brasil, tratará

    da língua enquanto materialidade simbólica que estrutura o sujeito de linguagem. Para a

    autora, “o sujeito e o sentido se constituem ao mesmo tempo através da língua. Enquanto

    materialidade simbólica, a língua estrutura como tal o sujeito de linguagem”34

    . (ibidem, p.

    195). Com base na proposição de Orlandi, no deslocamento feito por Mariani e na afirmação

    de Payer, podemos afirmar que língua e sujeito se constituem mutuamente, visto que

    consideramos a língua no processo de constituição dos sentidos, deslocamento este que nos

    parece necessário para tratar da relação língua nacional/ sujeito nacional.

    Com base nas questões desenvolvidas pelo campo teórico em que nos inscrevemos,

    formulamos nossas perguntas de pesquisa, apresentadas anteriormente, com as quais

    buscamos compreender a relação do sujeito com a língua quando seu dizer está determinado,

    dentre outras questões, por uma língua oficial que não é sua língua materna, considerando,

    desse modo, a relação língua nacional/sujeito nacional e língua oficial/cidadão no processo de

    produção de sentidos sobre o guarani no Paraguai. Essas perguntas que fomos construindo

    apontam para a compreensão da relação língua e sujeito e os efeitos dessa relação na

    implementação das políticas de línguas do Paraguai. Também a partir destes questionamentos,

    confrontaremos as noções de língua nacional, língua oficial e língua materna, noções que se

    confundem e que se auto-recobrem pela instituição de uma língua oficial que se promove

    como nacional, silenciando as línguas maternas.

    Escrever uma História das Ideias Linguísticas discursivamente significa procurar

    equivocar os sentidos fixados na história, colocando-se criticamente frente aos dizeres sobre

    as línguas. Com nossa tese, almejamos compreender e analisar o processo de formulação e

    circulação dos saberes sobre o guarani e o espanhol, bem como compreender o processo de

    produção das políticas de línguas deste Estado na atualidade.

    33

    Consideramos relevante trazer aqui um esclarecimento: retomando os estudos de Serrani [1997], Payer (2006)

    ressalta que a língua materna não é, necessariamente, aquela falada pela mãe. A língua materna, de que tratam os

    estudos psicanalíticos, é uma função enquanto instrumento da estruturação simbólica e não se confunde com a

    materialidade da língua, falada pela mãe, que é a "matéria dessa estruturação" (PAYER, 2006, p. 133) 34

    Payer (2006) trabalha na relação que se estabelece no encontro da materialidade simbólica da língua materna -

    de imigrantes italianos - com o português como nacional no/do Brasil.

  • 33

    Durante o século XIX, considerar a história nos estudos linguísticos significava

    considerar a língua como produto da história, segundo analisa Orlandi (1983, p 14). Não

    propomos neste trabalho considerar a língua como produto, mas falar da língua para falar da

    história da sociedade paraguaia. Conforme ressaltou a autora (ibidem, p. 15-16) sobre o

    trabalho em História das Ideias Linguísticas no Brasil,

    (...) ao invés de fazer a história da sociedade brasileira aí incluindo a língua,

    procuro mostrar como o estudo sobre a história da língua e de seu

    conhecimento pode nos "falar" da sociedade e da história política da época,

    assim como do que resulta como ideias que se constituem e que nos acompanham ao

    longo de nossa história. (ibidem. Grifos nossos.)

    Segundo Orlandi (ibidem), um estudo sobre a história da língua fala "da sociedade e da

    história política da época" e nos aponta para a compreensão da constituição dos sentidos ao

    longo da história, incluindo aí a inscrição dos sentidos na produção de políticas sobre as

    línguas. Desse modo, fazer História das Ideias Linguísticas, na perspectiva tomada, é

    considerar que as ideias sobre as línguas fazem história e fazem circular sentidos sobre as

    línguas e sobre seus falantes. Trabalhar sob a perspectiva da História das Ideias Linguísticas

    permite que leiamos a história das línguas sabendo que há história na língua e que há língua

    na história, possibilitando também articular a história dos saberes metalinguísticos e das

    políticas de línguas com a história da construção da língua nacional.

    E como falar é um prática política (ORLANDI, 1988), pois inscreve diferenças, todo

    dizer sobre as línguas é também uma prática política, por estabelecer uma divisão de sentidos.

    Tomar a palavra é um ato político por fazer dizer certos sentidos e calar outros, por colocar na

    ordem da evidência certas questões e não outras, por possibilitar que alguns dizeres colem na

    história - do sujeito e da nação. Para poder ler de outro modo, a partir de uma perspectiva

    materialista da língua e da história, o analista do discurso poderá ler a história, interpretá-la a

    partir de um dispositivo teórico/analítico, que lhe possibilitará pôr em relação os sentidos,

    num gesto de leitura (ORLANDI, 2010 [1994]) que investiga os saberes sobre as línguas. Nas

    palavras de Orlandi, "organizamos uma reflexão que se inscreve nas chamadas novas práticas

    de leitura, propostas pela Análise do Discurso francesa e que trabalham de maneira

    característica a construção de arquivos, ou seja, a leitura da história, sua interpretação." (2001,

    p. 9)

  • 34

    Essa leitura da história só é possível porque tratamos a história também como

    discurso. Como trataremos mais adiante, no terceiro capítulo, a história também é contada e

    recontada a partir de uma interpretação, que faz com que alguns sentidos colem e passem a ser

    narrados como "verdade". E, ainda, pela leitura da história, a partir do que se diz sobre as

    línguas, é possível relacionar o dizer com todas as suas possibilidades: pela materialidade do

    texto podemos detectar as relações com o funcionamento da memória do dizer e, inclusive, o

    que não foi dito, o que está silenciado. São as marcas dos dizeres sobre a língua na história e

    nos textos que fazem história.

    O próprio dessas práticas é relacionar o dizer com o não dizer, com o dito em

    outro lugar e com o que poderia ser dito. Essa escuta tem de particular o ser

    sensível às relações de sentido - seja pelo trabalho da memória (o interdiscurso)

    seja pela menção (a intertextualidade). O que praticamos, então, são novos gestos

    de leitura, percorrendo os caminhos dos sentidos. Em nosso caso, os sentidos que

    sustentam a produção de um conhecimento linguístico que se foi produzindo junto à

    constituição de nossa língua. (ORLANDI, 2001, p. 9. Grifos nossos.)

    De acordo com o que nos diz Orlandi (ibidem), são gestos de leitura que nos fazem

    escutar as relações de sentidos, considerando as possibilidades de produção de sentidos sobre

    as línguas na história. Neste estudo é nosso objetivo compreender as relações de sentido na

    memória do dizer sobre as línguas guarani e espanhola e fazer uma história do conhecimento

    que foi produzido sobre elas, por meio de uma leitura discursiva do percurso histórico-

    linguístico, que se organizou em torno dessas línguas.

    No Paraguai, o guarani ocupa um lugar35

    de língua oficial/nacional/materna, entretanto

    é preciso desnaturalizar estes sentidos, no caso, através do suporte teórico-metodológico ao

    qual nos filiamos. Analisar as línguas dos países que foram colonizados é buscar

    compreender, de certa forma, a constituição dos novos Estados Nacionais, criados a partir da

    projeção da imagem de unidade, a qual incide também na formação de imaginários de língua

    nacional.

    Para proceder a tal análise, tomamos as constituições nacionais, as leis sobre a

    educação no país e as políticas de línguas não como textos prontos, em sua aparente

    35

    Consideramos a noção de "lugar" tal como abordado por Celada, em uma retomada dos estudos de sua tese

    (CELADA, 2002). Conforme desenvolvido pela autora, "cuando decimos 'lugar' nos referimos específicamente a

    los saberes que a tal lengua le son supuestos, de forma que pueda llegar a ser pensada o tomada como objeto de

    aprendizaje y de todas las inversiones subjetivas que este trabajo implica." (2010, p. 39)

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    organização, mas como um processo sempre em curso, que constitui discursos sobre

    determinado país. Para Orlandi,

    Tomar esses textos como documentos é resultado de um efeito ideológico discursivo

    elementar: toma-se como evidência o que na realidade é já uma construção do

    imaginário discursivo. Tomar esses textos como documentos é já alinhar-se

    numa interpretação dada da história. (ORLANDI, 2008 [1990], p. 140)

    Como nos ensina a autora, ler estes textos pensando que estão prontos, sem relacioná-

    los com o seu processo de construção, seria aceitar a evidência de um sentido fechado,

    determinado e único ou, como afirma Orlandi (ibidem), seria alinhar-se "numa interpretação

    dada da história". Objetivamos pensar nosso arquivo discursivamente como textos produzidos

    em determinadas condições de produção, que guardam sua relação com a memória

    (PÊCHEUX, 2007) e com o interdiscurso (PÊCHEUX, 1988 [1975]) e que, desse modo,