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25 JOYCE, LACAN: A HERESIA BORROMEANA DE QUATRO Talvez o Seminário 23 constitua o último momento, ao longo do ensino lacaniano, em que se privilegia uma rigorosa unidade interna. Com efeito, ali se propõe uma concepção coerente e renovadora de muitos pontos atinentes não apenas à clínica — ainda que lhe causem impacto de modo singular, veremos em que sentido —, porém inseridos em uma espécie de tradição: a da relação que a psicanálise mantém com a arte; muito em particular, aquela que a articula com a disciplina artística mais próxima da experiência analítica: a literária. O trabalho com a palavra liga a psicanálise à literatura; não podemos deixar de nos situar nas proximidades do campo literário. Nesse sentido, no Seminário que nos ocupa, Lacan provocará, a partir de sua aproximação a Joyce, uma inovação não anunciada com todas a letras e que envolve, em primeiríssimo lugar, trechos prévios de seu ensino. No que se segue apelaremos, em muitas passagens — levados necessariamente pelo pensamento de Lacan —, a jogos de palavras. Pode haver quem pense que, como jogos, eles são anódinos, desnecessários, incômodos. Isto é, sob um certo aspecto, verdadeiro: os jogos de palavras incomodam porque rompem nosso léxico, irritam nosso senso comum. Daí o inevitável incômodo. Mas não são anódinos, pelo contrário: sua função enriquecedora converte o uso lacaniano em herdeiro cabal e legítimo da empresa de Joyce. É um encontro excepcional — à parte o pessoal, aquele que mantiveram em 1918 — entre dois teóricos, dois clínicos da letra que sustentam um notável parentesco, testemunhado pelo trabalho de Lacan com os

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Talvez o Seminário 23 constitua o último momento, ao longo do ensino lacaniano, em que se privilegia uma rigorosa unidade interna. Com efeito, ali se propõe uma concepção coerente e renovadora de muitos pontos atinentes não apenas à clínica — ainda que lhe causem impacto de modo singular, veremos em que sentido —, porém inseridos em uma espécie de tradição: a da relação que a psicanálise mantém com a arte; muito em particular, aquela que a articula com a disciplina artística mais próxima da experiência analítica: a literária. O trabalho com a palavra liga a psicanálise à literatura; não podemos deixar de nos situar nas proximidades do campo literário. Nesse sentido, no Seminário que nos ocupa, Lacan provocará, a partir de sua aproximação a Joyce, uma inovação não anunciada com todas a letras e que envolve, em primeiríssimo lugar, trechos prévios de seu ensino.

No que se segue apelaremos, em muitas passagens — levados necessariamente pelo pensamento de Lacan —, a jogos de palavras. Pode haver quem pense que, como jogos, eles são anódinos, desnecessários, incômodos. Isto é, sob um certo aspecto, verdadeiro: os jogos de palavras incomodam porque rompem nosso léxico, irritam nosso senso comum. Daí o inevitável incômodo. Mas não são anódinos, pelo contrário: sua função enriquecedora converte o uso lacaniano em herdeiro cabal e legítimo da empresa de Joyce. É um encontro excepcional — à parte o pessoal, aquele que mantiveram em 1918 — entre dois teóricos, dois clínicos da letra que sustentam um notável parentesco, testemunhado pelo trabalho de Lacan com os

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jogos e a composição-decomposição de palavras. Por conseqüência, incursionaremos também nessa operação, seguindo o decorrer desse Seminário. Desse modo, pediremos ao leitor a oportuna colocação entre parênteses do código comum, como pré-requisito para poder acompanhar seu caminho.

Temos de formular, além disso, uma advertência, reiterando a realizada em ocasiões prévias1 . Não abordaremos todos os temas: isso é impossível, em uma dezena de capítulos. Tentaremos apreender — de acordo com nossa leitura e, às vezes, com idas e retornos com diferença — os fi os fundamentais, as idéias-força que permitirão discernir — assim o esperamos — para onde Lacan aponta. Esse, e não outro, será nosso objetivo. Por certo, não procuramos substituir a leitura do Seminário 23, mas, pelo contrário, trataremos de instar, de convocar à aproximação dele.

Resta, além disso, uma última questão por esclarecer. É sabido que os Seminários inéditos de Lacan têm impedida, por motivos legais — basicamente por uma razão econômico-fi nanceira de ordem familiar —, sua livre circulação. Diante dessa circunstância, tomaremos as transcrições existentes, em suas diversas versões, tanto em francês como em castelhano. Isso implica um estabelecimento no mínimo criticável e “trabalhável” do texto. Tais versões não estão à venda, submetidas a uma circulação comercial, mas sua própria existência provocou demandas e até perseguições judiciais que um dia será necessário levar ao debate público. Enquanto isso, nos atemos ao material depositado nas bibliotecas das instituições analíticas, que tentam manter viva a obra de Lacan, apesar das tentativas de encarcerá-la, de embalsamá-la, de acordo com a suposta função de seus testamenteiros, que têm como motivo cabal seu silenciamento, fundado em uma demora editorial depois da outra, e na feitura de um erro conceptual depois do outro, segundo se pode detectar nas versões “ofi ciais” dos Seminários. Escolher o Seminário 23 implica, portanto, uma opção clara: a de contestar a dita empresa de silenciamento e distorção centrada, em particular, nos últimos trechos da obra de Lacan; precisamente aqueles que ostentam, por si sós,

1Cf. o “Prólogo” deste volume.

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uma complicação adicional, devido a seu intrincado desenvolvimento topológico.

Ao formular estas primeiras palavras, já se torna necessária a subseqüente elucidação. É justamente a topologia um outro âmbito que deveremos levar em conta, para seguir o fi o (palavra nada inocente, pois possui nesse texto mais de um sentido), o fi o, dizíamos, característico de nosso Seminário. A topologia é um ramo da geometria, singularizado por seu estabelecimento de relações não-métricas. Nela, não interessa a função da medida, mas a ligação em jogo entre os elementos que compõem — por exemplo — uma determinada superfície, capaz de deformação contínua. A rigor, “superfícies” constitui uma das vertentes dessa disciplina. E, nesse ponto, aproveitamos para formular uma pequena classifi cação introdutória. Lacan, em sua aproximação à topologia, deslizou, a partir de uma primeira aproximação à temática das superfícies, para outra, que é a desenvolvida nesse Seminário, tendo-se instalado nela pouco antes. Apontaremos quando surge, e em que consiste essa abordagem. Trata-se, é claro, da questão dos nós. Em sua primeira referência topológica sustentada — aquela do Seminário 9, “A identifi cação”, Seminário de 1961-62 que conforma o anterior, o qual trabalhamos em um de nossos últimos textos2 —, Lacan incursionou nas superfícies, precisamente porque a identifi cação é um fenômeno psíquico tal que promove de imediato um problema de base, inicial: o do dentro e o do fora. Uma defi nição muito elementar de identifi cação, quase grosseira, diz que consiste em uma operação psíquica capaz de transformar o externo em interno. Por certo, essa não é a maneira mais certa de aproximar-se do tema, mas, desde já, nos indica como o espaço se encontra em jogo. É claro que se trata de um espaço cujo conceito Lacan subverte, no sentido de demonstrar que o dentro e o fora não estão defi nidos de uma maneira óbvia. Essa célebre divisão entre eu e não-eu (ou mundo interno e externo), cara a tantíssimos psicólogos e psicanalistas, não é tão evidente como parece se apresentar. Ou, melhor ainda: se é tão clara, esse é um bom motivo para problematizá-la. Não pelo

2R. Harari, El Seminario “La angustia”, de Lacan: una introducción, Buenos Aires: Amorrortu editores, 1993.

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puro afã de complexifi car, mas para partir da base de que envolve uma vivência enganosa ou, em termos de Lacan, imaginária. O que Lacan nos manifesta aqui? É, pois, que nesse espaço em que nos reconhecemos, em seguida estamos dispostos a crer que temos — e dominamos — uma interioridade, e a partir dela estipulamos sem maior esforço a exterioridade complementar.

É toda uma série de superfícies — que serão nomeadas de passagem, sem nos determos nelas — a que é trabalhada naquele Seminário: a fi ta de Moebius, o oito interior, o plano projetivo ou cross-cap, as quais, entre outras, permitem elaborar alguns problemas cruciais sobre a identifi cação. Porém, anos mais tarde, como dissemos, incursionará em outro momento lógico de seu desenvolvimento topológico: o dos nós. E não se trata, na ocasião, de nós simples. Lacan introduz a questão com um enlace muito particular: aquele conhecido como nó borromeu.

Antes de ingressar nesse ponto, o leitor deverá tomar outro item em consideração. Assinalamos que, ao tratar-se de topologia, a geometria entra em jogo. Se mencionamos os nós, uma imagem fácil, quase obrigatória, evoca o nó-de-marinheiro, ou semelhantes. Tratar-se-ia de pegar alguns barbantes, para submetê-los a uma certa operação manual; de fato, já adiantamos que aqui iríamos nos referir a fi os. Entretanto, eles não constituem mais do que apresentações de linhas caracterizadas, antes de mais nada, por uma série de propriedades, de relações. Podemos apresentá-las com cordas, com cadeias, com elásticos de uma pasta, porquanto o empírico não é defi nitório do nó; em troca, o é o sistema de relações formais em jogo.

Lacan introduz o tema relacional do nó borromeu no Seminário ditado no ciclo 1971-72, que tem por título “...ou pire”. “... ou pior”, o que simplesmente quer dizer que é isso, ou, se não, seria pior. Em termos clássicos, alude ali à castração, essa condição pela qual nos responsabilizamos, ou nos atemos a ela, ou será pior. Na aula de 9 de fevereiro de 1972 de “...ou pire” — mais conhecido assim, pelo seu nome original —, Lacan inclui como que de passagem a questão, quase ao modo daquilo que joyceanamente consideraríamos um joke — uma piada, uma troça —, quando comenta que na noite

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anterior haviam-lhe contado algo sobre o nó borromeu. Pois bem, o assunto lhe pareceu tão interessante que decidiu apresentá-lo no dia seguinte, em seu Seminário. Essa presumida casualidade escondia, sem dúvida, um desenvolvimento de anos inteiros, transformado em uma associação conceptual oportuna. A qualidade de joke fi ca ressaltada, se nos remontarmos ao Seminário sobre “A identifi cação”, em que já dava provas explícitas de seu trabalho com o nó elementar denominado trevo. Mas é a partir de “... ou pire” que o recurso aos nós se torna cada vez mais intensivo, prolongando-se nos anos seguintes. Mesmo nas últimas partes de seu ensino, nos Seminários mais difíceis, de topologia mais intrincada, como o 25 — o chamado “Momento de concluir” — ou o 26, “A topologia e o tempo”, recorre à combinação de topologia de superfícies e de nós. Muito em particular, fará uso de uma superfície cuja menção omitimos de modo deliberado: o toro. Um exemplo rudimentar desse corpo é o da câmara infl ável dos pneus de automóveis. Objeto tão quotidiano quanto problemático, se o compararmos com um simples globo esférico. Estamos acostumados a pensar a nós mesmos — talvez pelo movimento circular que nossas mãos podem executar — como entidades esferóides, com um dentro e um fora defi nidos de maneira taxativa. Porém, o toro apresenta a particularidade de constituir uma esfera furada, em que o interior pode se transformar em exterior, e reciprocamente, fato viável mediante uma perfuração. Podemos, por outro lado, começar a rodear com fi os essa superfície, e o problema se complexifi ca, sustentando a confl uência das vertentes topológicas recém-aludidas.

Lacan inicia o trabalho com o nó borromeu de três aros a partir de desenvolvimentos de seu matemático de referência, Georges Th. Guilbaud, que o introduziu nos problemas desse objeto. É assim que lhe foi fornecido o suporte para articular de forma inovadora o que se pode chamar de ponto central, nodular, de seu ensino até esse momento: o da imbricação dos três registros da experiência, isto é, Real, Simbólico e Imaginário. De uma forma muito primária, poderíamos referir que, se o Simbólico alude ao lugar da palavra e da linguagem, o Imaginário é aquele que remete à experiência do espelho; vale dizer, ao reconhecer-se em uma imagem cativante e fascinante, frente à qual o eu fi ca capturado pelo fenômeno de uma

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equívoca “mesmidade”. Equívoca, porque essa “mesmidade” não é senão alienação no outro e pelo outro. Do Real, último dos registros levados em consideração por Lacan, e aquele do qual é com maior difi culdade que se pode dar uma aproximação, anotemos aqui apenas que comporta o localizado fora de toda lei. Não de uma lei jurídica, senão de qualquer regulação, de qualquer ordem determinada, manifesta ou latente. É um registro carente de organização; que, primordialmente, desperta angústia, e ao qual Lacan se empenha em separar de modo taxativo do conhecido como realidade. Esta última aponta para o coletivo, o codifi cado, a cavaleiro entre o Simbólico e o Imaginário, o que permite que possamos fi rmar acordos, entrar em consenso. Nesse sentido, a realidade adormece, nos mantém em uma bruma até confortável, da qual o Real nos sobressalta, nos desperta conturbados. É precisamente esse registro, tão crucial quanto difícil de conceituar, que é abordado por Lacan, em seus últimos Seminários.

Voltando ao desenvolvimento do nó borromeano de três: por seu traçado, este constitui um instrumento idôneo para proporcionar uma hierarquia equivalente aos três registros. No recurso a essa estrutura, nenhum deles possui primazia sobre os restantes. Não há um registro mais importante, e nenhum determina os demais. Problema decisivo, capaz de permitir, na ocasião, posicionar a problemática psíquica de Joyce;

É no Seminário “R. S. I.” que Lacan começa a utilizar persistentemente a problemática de seu nó. “R. S. I.” remete a Real, Simbólico e Imaginário, tanto em espanhol como em francês, mas, neste último, a pronúncia das letras, de modo homofônico, soa como hérésie (heresia). Esse caráter herético é o que Lacan considera possuir no terreno da cultura e da psicanálise. No mesmo sentido, o assinalará a propósito de Joyce, outro herege notável que, como ele, submeteu à confi rmação do Outro o modo de alcançar seu real. Em “R. S. I.”, Lacan trabalha esse nó borromeu de três, o que lhe permite articular os três registros do seguinte modo:

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Figura 1

É necessário esclarecer, neste ponto, que o achado dos nós não implica apelar para um recurso de metodologia didática. Lacan lhe outorga a categoria de uma descoberta extra-metodológica, situada além de uma mera maneira de formalizar. Aqui se deparou com uma questão que um norte-americano, Jonathan Scott Lee, soube comentar com perspicácia, em um texto valioso sobre Lacan. Esse autor assinala, sobre esses Seminários lacanianos, que: “... o desafi o para o comentador dessa última obra de Lacan é determinar justamente como ele constrói essa extraordinária mescla de prova matemática formal (ou pelo menos construção), teoria psicanalítica e, inclusive, poesia, que faz desses últimos Seminários algo único na história, não apenas da teoria psicanalítica, senão da escrita teórica em geral”3 . Interessante pontuação, efetuada por um comentador não-analista, mas historiador das idéias. Podemos subscrever a citação, assinalando que a aventura intelectual aberta com a introdução do nó excede a ilustração, atendo-se à obra de um poeta — nós o chamamos assim em um sentido amplo, não genérico, dado que a produção joyceana em poesia é antes reduzida e não é fundamental em sua obra —, para descortinar outra aventura do pensamento.

Com freqüência, vemos o nó borromeu de três ser apresentado mediante três aros. Porém podemos nos perguntar: é necessário que sua apresentação seja circular? Veremos que isso não é o que defi ne, pois essa apresentação é completamente convencional. A propriedade decisiva do nó de três é outra, precisamente a que converte quem tenta desenhá-lo — ou atá-lo — apressadamente em um bobo, como assinalava bem o próprio Lacan, com referência à inabilidade advinda, 3J. S. Lee, Jacques Lacan, Amherst: The University of Massachusetts Press, p. 197.

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quando um falante tenta produzir um borromeu. Transforma-se em um bobo-romeu, em relação direta com a inépcia revelada na imaginarização e manejo de nosso corpo.

Qual é a propriedade estrita, hierarquizada por Lacan nessa articulação de três? (Três que, para complicar as coisas ainda mais, podem ser inclusive três toros). É aquela que permite que, estando já os três unidos, o desatamento de qualquer um deles implica a separação dos restantes. Segundo se pode deduzir, é uma defi nição a posteriori. Como posso provar se tal enlace é ou não borromeu? Se, depois de apresentado, e ao cortar um anel, se produz automaticamente a separação dos restantes. Façamos a prova de desenhá-lo de um modo inusual, para verifi car que é tão “bo” como o anterior:

Figura 2

Pelo aludido princípio topológico de deformação contínua, podemos observar que, apesar de parecer totalmente diferente, continua sendo o mesmo nó. Aros e/ou quadrados, e/ou qualquer “a-forma”: o que é decisivo reside na invariância das relações. É pertinente aqui a distinção entre fenômeno e estrutura, isto é, o que surge à vista, e apontar para as partes consideradas em separado, para a defi nição das propriedades. Enquanto os cruzamentos forem idênticos, ambos serão nós bo equivalentes, ainda que seu aspecto seja diferente.

Procedamos ao desenvolvimento da prova antes referida. Observando as articulações, notaremos que, de imediato, nenhum dos aros intervenientes se enquadra de início nessa relação:

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Figura 3

Aqui cada um enlaça por si mesmo, passando pelo buraco do aro vizinho: trata-se da cadeia de Hopf4 . No enlace bo, em troca, a relação entre o par inicial de aros é de mera superposição. Não estão ligados:

Figura 4

É justamente a intervenção de um terceiro o que, passando de maneira sucessiva por dentro e por fora dos dois aros iniciais, permite uma relação triádica tal que não pode ser reduzida a um agrupamento realizado e sustentado a pares. A forma mediante a qual o terceiro se enlaça, se bem que não é evidente, possui uma lógica rigorosa. Em seu trajeto, passa por baixo do aro de baixo e por cima do aro de cima, de acordo com uma seqüência alternada:

Figura 5

4C. C. Adams, The Knot Book, Nova Iorque: W. H. Freeman, 1994, p. 18.

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Como se pode notar, uma vez unidos os três, cada aro mantém uma relação idêntica com seus vizinhos, sendo, então, todos homogêneos entre si. Os laços passam estruturalmente pelos mesmos lugares, seja qual for a posição da qual observemos o nó bo, ou que aro examinemos. Por certo, na própria construção do desenho deve-se cuidar esses cruzamentos, fato que não nos exime de nos equivocarmos repetidamente5 .

Uma vez apresentada essa tripartição, cabe se perguntar: para onde vai Lacan, com sua introdução? Tocamos, neste ponto, uma questão decisiva, abordada no fi nal do Seminário 22, “R. S. I.”: a do nome. Os três aros são absolutamente iguais, até que marcamos algo, ao menos com uma pequena letra. Se executarmos essa operação ao modo de dar nome a cada consistência, só aí aparece a identidade. Por exemplo, se escrevermos o seguinte:

Figura 6

Isso nos permite situar o aro superior como apresentante do registro Imaginário. De onde surge a condição para possuir identidade? De ser nomeado; sem nome, não há possibilidade de que se possa diferenciar um existente em relação a qualquer outro. Uma vez colocadas as letras, possuem sua identidade os aros, dotados, além disso, de um benefício, dir-se-ia, de inventário. A incorporação do nome é crucial para nos remetermos ao que nos interessa, para nos darmos conta daquilo que implica o nomeado — e o nomear — na vida dos sujeitos. Assim, não é apenas uma questão de nós, senão que devemos reparar no nível metafórico de cada um desses efeitos

5Para não sobrecarregar nossa exposição, omitimos aqui a referência à constru-ção das cadeias bo, mediante a utilização do recurso ao falso buraco, item que trabalharemos nos capítulos 3, 7 e 9.

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de ensino, que não se abrigam no estritamente topológico. De fato, eles apontam para nossa forma de nos constituirmos, para nossa maneira de existir na diferença.

Porque começamos por essa pontuação, atinente ao nó bo de três, que é prévia ao Seminário de nosso interesse específi co? É que, nesse tempo de “R. S. I.”, apresentar-se-á a Lacan, em várias oportunidades, a alternativa de refl etir sobre um item capital do Seminário 23: o bo de quatro, isto é, um enlace em que, ao desatar algum dos intervenientes, se liberam os três restantes. Quando menciona essa alternativa, Lacan começa caracterizando-a de modo altamente crítico. Podemos ir pontuando essas menções em “R. S. I.”, outro dos Seminários “interditos”. Na aula de 14 de janeiro de 1975, ele explica que Freud precisou de quatro, não sendo capaz de executar a redução que lhe permitiu postular tão-somente três. Nesse sentido, embora não o explicite, Lacan se atém a um princípio tradicional da ciência: o da parcimônia. Segundo este, deve-se prescindir das hipóteses desnecessárias, reduzindo-as à menor quantidade possível. Em A ciência e a verdade, Lacan já havia se referido — de modo implícito — a essa noção, chamando-a de princípio de redução, que considerava o fundamento da ciência. Em sua alusão de “R. S. I.” a Freud, assinala a necessidade de um aperfeiçoamento da teoria. O quarto que o professor necessitou teria sido, em seu entender, o conceito de realidade psíquica (Realität).

A referência a Freud, obviamente, não é a única nesse Seminário. Em uma aula anterior, Lacan situou seus três em relação a um tríptico freudiano ferreamente aparentado com nossa temática. Trata-se de três conceitos de Freud, capazes de ser apontados como a matéria prima de nosso trabalho quotidiano, pois nos remetem às neuroses. São — como já se terá conjeturado — aqueles envolvidos no título clássico: Inibição, sintoma e angústia. Não é a única ocasião em que Freud categorizou em termos triádicos; encontra-se, por exemplo, a conhecida Recordação, repetição e elaboração, e podemos apontar outros mais. É reconhecida uma certa forma tripartite na episteme freudiana, o que redobra a nossa atenção, quando Lacan lhe atribui a condição de notório quadripartite.

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Três de Freud nos três de Lacan, que tomará os primeiros como avanços, como intrusões de um registro sobre outro. Isto é, zonas de invasão de um registro em outro, vizinho do primeiro. Pode ocorrer que “algo” do Imaginário se desloque para o Simbólico. Que “parte” deste seja vertido para o Real, ou que um “setor” do Real transborde para o Imaginário. Como se pode notar, essas situações só são explicáveis a partir do desenho do bo de três, ou seja, da conversão dos fi os em zonas registradas em um plano. É ao ser “congelado” que esse desenvolvimento adquire sentido e perspectivas. Inclusive, Lacan colocará o que chamou, até então, de “seu invento” — o objeto a — na zona central, essa região aberta pela intersecção dos três aros, que fi ca reduzida a um ponto ao puxá-los para ajustar o nó. Um ponto de encaixe, irredutível, entre os três fi os. Mas aqui nos vemos diante do desdobramento de uma certa fi cção: não se trata estritamente do bo, senão de sua versão aplainada (isto é, posta no plano). É a redução bidimensional de uma estrutura tridimensional, e móvel. Consignemos agora, de maneira mais precisa, os aludidos “avanços”, ou imisções.

Um avanço do Simbólico no Real será próprio do sintoma analítico tradicional (o freudiano, não o sinthoma que Lacan irá proferir um ano mais tarde, esclarecendo a diferença). Torna-se imperativo, desde já, discriminá-lo do sintoma da medicina. É que não indica uma entidade; estamos longe da nosologia, porquanto não o concebemos como um signo que remete a uma determinada doença de maneira fi xa. Neste ponto “de invasão”, então, localizamos no bo de três o sintoma à maneira de Freud.

Na invasão do Real sobre o Imaginário se situa, por sua vez, o lugar da angústia. Por sua vez, o transbordamento do Imaginário sobre o Simbólico será a zona própria da inibição. As relações ternárias estabelecidas foram desenhadas por Lacan desta maneira:

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Figura 7

Aqui se pode notar até que ponto Lacan produzia seu desenvolvimento em relação ao ensino freudiano. A título meramente informativo, e para que o bo de três no plano não permaneça inconcluso, consignaremos quatro conceitos lacanianos omitidos até agora, mas que ocupam zonas cruciais dentro desse diagrama. Eles são o já mencionado a, o gozo fálico ( J ), o gozo do Outro ( J ) e o sentido:

Figura 8

Seria muito extenso e desnecessário pormenorizar cada um deles, neste momento de nosso percurso. A respeito do gozo, voltaremos a partir de Joyce, o que acontece com sua escrita. Porém vale a incorporação desses conceitos para advertir que não somente invadem os registros, senão que, de modo preciso, o gozo do Outro avança na angústia, enquanto que, na inibição, o faz o sentido, e, no sintoma, o gozo fálico. São intrusões complexas. Alguém pode se perguntar, então: qual é nosso trabalho com o sintoma, como analistas, de acordo com o “R. S. I.”? É, pois, procurar fazer com que esse sintoma real — que incorre nesse registro que também pode ser defi nido como aquilo que sempre volta para o mesmo lugar — se

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desloque de novo para o Simbólico. Pelas vias do próprio sujeito, a situação não se resolve: o real do sintoma o torna recorrente. Ele não pode senão confrontar-se com aquilo que insiste em não funcionar. O tratamento analítico, então, tenta reciclá-lo. Diríamos, com Freud, que consegue retomar um comércio associativo. Aquilo que até então está clivado, situado em outro lugar, retorna e circula.

Estamos, assim, na aula de 10 de dezembro de 1974, de “R. S. I.”. Na de 14 de janeiro de 1975, localizamos a crítica a Freud. O debate, cabe adverti-lo, se prolongou durante todo o Seminário. Com efeito, Lacan procura averiguar até onde o dito por Freud vale, ou em que ponto fi cou na metade do caminho. Ou, inclusive, se incorreu naquilo que os epistemólogos denominam uma superfetação, ou seja, cometer um excesso no número de hipóteses necessárias, transbordando de modo extrapolador. O quarto anel, no entender de Lacan, é prescindível, porque essa realidade psíquica — argumenta — funciona à maneira da religião. Estranha associação, muito de acordo com o modo conceptista de um Quevedo, com seus saltos notáveis e imprevistos de um a outro campo semântico e disciplinar. O próprio Lacan autoriza a conceber essa proximidade, quando não deixa de mencionar o também conceptista Baltasar Gracián. Saltos que deixam o leitor paralisado, atônito, perguntando-se o que signifi ca isso. Neste caso, a pergunta, beirando o irrisório, se impõe. E por que a religião? Nossa leitura — que estimamos acertada, embora conjetural, porque Lacan não esclarece a questão —, nossa leitura, dizíamos, indica que a referida realidade psíquica possui igual apelo para a crença que o ostentado pela existência de Deus. Este existe porque eu o creio. A chamada prova ontológica é a mais palmar que se possa imaginar, trespassando as diferentes razões aduzidas (estas mesmas, como é sabido, podem ser instrumentadas com facilidade, para conseguir provar o contrário). Basta, em suma, poder predicar sua existência, para que dessa afi rmação se depreenda uma incontrastável comprovação. Com a realidade psíquica sucede o mesmo. Digo que existe um fantasmático mundo interior e, nessa mesma operação, o possuo. A partir disso, concluo ser o dono dessa realidade psíquica. Essa é uma das críticas mais radicais formuladas por Lacan a Freud. Em lugar do conceito rechaçado, insistirá, por

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sua vez, em outro termo também detectável nos textos freudianos: o de Wirklichkeit, traduzível como “realidade operatória”, “realidade efetiva” ou “realidade efi caz”. Veremos oportunamente como essas questões retornarão no Seminário 23. A Wirklichkeit é uma realidade relacionada com o fazer, com o facere latino; em síntese, com o provocar afetos. Algo bem distinto da Realität, tão propícia para a psicologia, porque pressupõe um mundo interno imbricado com o âmbito religioso. Reiteramos: a discussão não se atém à existência ou não dessa realidade psíquica na empiria, mas ao fato de ser postulada como indiscutível e “própria”. A aceitação dessa noção é um passaporte para a ilusão; de fato, ela não é capaz de modo algum de dar conta do que nos preocupa como analistas. Em defi nitivo, também se encontra próxima da função do sonho. Localiza-se, sem dúvida, um viés oniróide na tão aceitável Realität freudiana.

Detectamos a terceira referência na aula de 18 de fevereiro de 1975. Ali, Lacan começa a desenvolver o denominado quádrico. Isto é, o atinente ao bo de quatro. Chama a atenção que, neste ponto, ele não se encontre especialmente crítico. Assinala, de maneira simples, que tal enlace lhe parece plausível, sem entrar em maiores detalhes. Pouco mais adiante, em 11 de março, é falando do supérfl uo, do que sobra — em relação novamente com os desenvolvimentos freudianos — que refere que esse “excesso” seria o Nome-do-Pai, o qual veicula a nova remissão do quarto anel. Convém deter-se nesse conceito, em que ressoam inequívocos ecos religiosos (o “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” é uma associação obrigatória). Consiste em uma instância psíquica antes de mais nada separadora da relação entre o Desejo da Mãe e seu fi lho falicizado. De acordo com essa acepção, trata-se da introdução de uma Lei que não é a da normativa jurídica, pois corresponde a uma ordem fundante: a da diferença dos sexos. Segundo Lacan, Freud não pôde senão necessitar do Nome-do-Pai para enlaçar três, porque, caso contrário, os outros se desatariam. Com isso, dá a entender que, por sua vez, não lhe é preciso essa instância como quarto fi o a enlaçar os três registros. Portanto, deixa-a de lado, sem deixar antes de consignar que é próprio da referida instância o fato de “dar um nome às coisas”. O Pai como nomeante; tema que voltará a nos ocupar com recorrência.

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Na décima primeira aula, de 13 de março, a última — digamos de modo perifrástico que, como o Finnegans Wake de Joyce, os Seminários lacanianos são um Work in Progress, um trabalho que vai-se realizando sobre o andamento —, a última, dizíamos, dessa série, podemos comprovar em ato que, quando Lacan começava um novo Seminário, não sabia estritamente onde nem como iria terminá-lo. Assim, nessa aula, afi rma: “Por mais pleno, em sua simplicidade, que seja o nó borromeu de três, é a partir de quatro, e o sublinho, a comprometer-se nesse quatro que se encontra uma via, uma via particular que não vai senão até seis”. É nesse momento que todo o seu desenvolvimento sofre uma virada. O que até então era criticado, em relação ao quarto, agora o julga — apoiado por topólogos, naturalmente — pertinente, ineludível.

Pois bem: o que chama a atenção é que esse número quatro — tal como o proporíamos em diversos trabalhos —, Lacan o impinge criticamente a Freud, mas eis aqui que se encontra presente, de modo inocultável, em sua própria produção. Muitas vezes, ao teorizar a experiência da análise (em momentos facilmente periodizáveis), o quatro insiste. Não é nosso propósito nos determos nessa questão, mas podemos confi rmá-la a ponto de asseverar que o quatro é “o número” de Lacan6 . Torna-se então curiosa a crítica à cifra primeiro atribuída a Freud, a qual, entretanto, considerou mais que oportuna em sua própria teorização. E é a partir dessa pontuação que podemos diferenciar os registros, Lacan introduzindo como quarto a nominação, que pode ser, por sua vez, real, simbólica e/ou imaginária. É justamente essa última aula que opera como gonzo com o começo do Seminário que nos ocupará a seguir. Introduz, assim, a quebra da persistente episteme dos três registros.

A nominação é coisa diferente do Nome-do-Pai, porque este consiste agora, como dissemos, no fato — ato — de nomear, ao

6Cf. R. Harari, “No hay desenlace sin reanudación”, em ¿De qué trata la clínica lacaniana?, Buenos Aires: Catálogos, 1994, pp. 191-211, e “4 = 3 + 1”, Esquisses Psychanalytiques, nº 22, C. F. R. P., Paris, maio de 1995, pp. 9-18.

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modo criacionista. A nominação não é uma instância, senão que — como veremos — denota supleções — inexoráveis — ao defeito de tal instância. O que é melhor do que o recurso a um homem de letras para abordar a efi cácia dessas operações? O que é melhor, por outro lado, do que forjar-se, a esse respeito, um lugar para gestar personagens de narrações, aos quais é preciso nominar? Temos outra vez, nesse capítulo lacaniano, uma estrutura quádrica. Trata-se de distintas nominações, postuladas como um novo conceito a levar em consideração. Elas estão em relação com os registros, mas, ao mesmo tempo, os estagnam, porque os duplicam um por um. Essa noção não pode ser subsumida em nenhum dos registros, os quais, na duplicação, se inscrevem adjetivando a nominação (N). E isso de acordo com esta característica: cada respectiva nominação não se ata diretamente com o registro que a adjetiva, senão que o faz, de modo indireto, através — ou por meio — dos outros dois registros, segundo o seguinte desenho:

Figura 9

É a partir disso que Lacan sustenta o problema que desenvolverá no ano seguinte, no Seminário cujo título anunciado é “4, 5, 6”. Cifras que devemos entender no sentido da temática aberta a partir dos bo e sua progressão. Que o leitor trate de imaginar como se complica a questão, se se pretende chegar a um bo de seis. A atenção aos cruzamentos, a maneira de trabalhar, o modo com que se deve tratar de respeitar um tipo de construção já difícil por si mesma, em sua versão quádrica. Lacan não tenta chegar ao seis; admite que, com o quatro, possui bastante, e se regozija por isso. E até executa um pequeno ardil no próprio começo do Seminário

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23, quando dá a conhecer que um notório especialista, Jacques Aubert, lhe ofereceu realizar a abertura de um Simpósio sobre James Joyce — efetuado em junho desse ano, 1975 —, o que o desviou de sua preocupação por “4, 5, 6”, para colocá-lo novamente (e aqui se verifi ca uma vez mais o tom de joke) na senda do estudo da obra do escritor irlandês. Em particular, o convite o pôs a ler muito do escrito até o momento sobre Joyce, para documentar sua intervenção diante do Simpósio parisiense. Trata-se, então, de um desvio? Como se pode suspeitar, é bem o contrário. Lacan aproveitou a ocasião para incentivar a passagem ao quatro bo, a partir de seu trabalho com a obra do autor de Dublinenses. É nessa ordem que concebeu o título do Seminário: chamou-o de “Le Sinthome”, “O Sinthoma”, o que guarda uma distância da grafi a francesa de “sintoma” (symptôme). Entretanto, sua participação no Simpósio ainda se intitula Joyce le symptôme, a ser lido como uma unidade, à maneira de um nome — produto de uma nominação simbólica —, como se os termos não fossem separáveis entre si. Mas sinthome reporta o surgimento de um novo conceito. Pois bem, poderíamos nos perguntar inocentemente: se Joyce era James de nome, o que é isso de chamá-lo de Joyce-o-sintoma? Uma brincadeira centrada na importância da construção, por parte de Joyce, de um — seu — nome. Esse é um dos fi os fundamentais de todo esse Seminário. Ou, como dizemos quotidianamente, é coisa de “fazer-se um nome”. Expressão não por acaso freqüente na fala comum. O sinthome remete à grafi a do francês antigo, que, no que se refere ao vocábulo em questão, Lacan prefere ao atual. Veremos sua justifi cativa, pensando ao mesmo tempo que talvez esteja em jogo uma questão adicional à explicitada. A razão trazida por Lacan é que essa forma de escrita é a própria dos incunábulos, esse primeiros livros produzidos pela imprensa, editados no fi nal do século XV e começo do XVI. Ali, por certo, detecta-se essa grafi a, depois substituída pela atual. Porém o que há nessa alusão aos incunábulos? Devemos novamente considerar o efeito metafórico de ensino. O próprio Lacan o esclareceu, embora não nesse Seminário, mas no seio de uma série de conferências ditadas nos Estados Unidos, de forma paralela a seu desenvolvimento; mais precisamente, entre a primeira e a segunda aulas de “Le Sinthome”. A leitura dessas

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conferências é necessária, dado que ali prosseguiu seu Work in Progress. Na Universidade de Yale, a 24 de novembro de 1975, comenta que a mudança na grafi a não obedece a uma pura paixão etimológica, porque esse termo sempre se encontra em vias de “refeição”. O que é refeição? Um voltar a refazer-se, um restabelecimento. Inclusive pode-se denominar assim um refrigério, cujo objetivo reside no fato de restabelecer energias. Dito de outro modo: não se trata de resgatar um termo morto e sepultado, mediante uma excursão estranha ao século XV, para que se possa notar o quão sofi sticado se é. Pelo contrário: procura revitalizar, assim, um trânsito aberto. Em suma: do sintoma, ao sinthoma. Com isso, Lacan nos diz que, se está nomeando diferencialmente, isso se deve à tentativa de levar em conta constelações distintas. Não se deve confundir uma com outra; não são a mesma coisa. É por isso que, se se chamar esse Seminário de “O Sintoma”, troca-se seu objeto. Lacan nos fala de uma formação psíquica diferenciada, a cujo respeito Joyce e sua obra servirão para estruturar uma inovação psicanalítica. E, nisso, o quarto será decisivo.

Na citada conferência de Yale, Lacan — especialmente revelador — assinalará de que dá conta o escritor: “Quando me interesso por Joyce... é porque trata de ir além... Como alguém se deixa apanhar por esse métier de escritor? Explicar a arte pelo inconsciente me parece coisa muito suspeita; é o que, entretanto, fazem os psicanalistas. Explicar a arte pelo sintoma [ou pelo sinthoma?] me parece mais sério” 7 . Constitui, portanto, um ponto fundamental — embora não exclusivo — para os efeitos de explicar sua nova abordagem da arte. Não é o modo habitual com que lidam os psicanalistas, modo que, em um momento dado, chega a chamar de “desvio bufão da psicanálise”: é o conhecido sob o nome de psicanálise aplicada. Jogo que muitos praticam: consiste em tomar uma obra de arte qualquer para reencontrar o já sabido, mediante um ardil generalizador pouco sutil. O que fala claramente

7J. Lacan, “Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines”, Sci-licet, 6,7, Paris: Seuil, 1976. N. B.: Dada a índole desse material, não consta que se trate de escritos; daí o imprescindível trabalho de interpretação e a conseguinte proposta de transcrição.

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da gratuidade, de como é vão o esforço, dado que ali tudo se encaixa. Tarefa por outro lado muito fácil, porque permite levar qualquer questão às conhecidas temáticas sobre a infância, os problemas familiares, o Édipo, a castração, e assim por diante. Lacan tenta processar algo diferente. Trabalhar a obra joyceana, a maneira com que a obra se desdobra e sua função na vida do autor. Isso implica um esclarecimento da forma pela qual o sujeito é constituído pela linguagem. Quando for o caso, indagar inclusive como esta fi ca desfeita, ou como é refundado — o sujeito — pela linguagem. Ou interrogar-se sobre como foi viável uma empresa tão abrasadora como a apontada por Lacan — desde Sollers8 — a propósito de Joyce: a tentativa de liquidação da língua inglesa, enquanto auto-sufi ciente, ínsito em Finnegans Wake. Tarefa sem dúvida ciclópica, de acordo com o desejo joyceano de que os universitários falassem dele — para procurar entendê-lo — durante os trezentos anos seguintes. Mas que resolução para fazer-se um nome, em seu caso! De fato, Joyce era alguém impelido por uma necessidade de reconhecimento — podemos no momento chamá-la assim, genericamente — de notável pregnância.

Lacan não há de submergir nos detalhes da biografi a de Joyce; não tratará de reencontrar a ligação entre vida e obra, em um garantido divertimento especular, projetivo, de ida e volta. Nessa operatória um tanto perversa — dado que não há quem conteste as sagazes “interpretações” — não se deixa de encontrar sempre, como adiantamos, mais do que o mesmo. Esse não foi, por certo, o desígnio de Freud. Quando este incursionava em uma obra de arte, o fazia para tentar avançar, e não para aplicar a análise. O desideratum era obter algo novo. Precisamente, quando realizava psicanálise aplicada, falhava. A esse respeito, detectamos um caso especial — que Lacan menciona —: A Gradiva. Nessa análise, só se exemplifi ca o já sabido anteriormente. Mas isso é excepcional; o êxito é mais freqüente. Por exemplo, quando Freud aborda O estranho e, a partir da obra de

8Ph. Sollers, “Joyce & Co.”, em D. Hayman e E. Anderson, In the Wake of the Wake, Londres: The University of Wisconsin Press, 1978, p. 107. (Cabe consignar que esse é o texto da exposição apresentada por Sollers no Simpósio acima men-cionado.)

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Hoffmann, propõe novas teorizações sobre a angústia, teorizações tais que o erigem em um texto capital sobre a questão.

O sinthome é, portanto, e em outro de seus aspectos, uma nova maneira de encarar um fenômeno que tinha apanhado Lacan desde um primeiro momento: aludimos ao tempo de sua relação com o movimento surrealista, ou ao anterior, com Dadá. É conhecida sua proximidade com artistas e pensadores como Breton, Tzara e Dalí; em particular com o último, de quem adaptou o método da paranóia crítica, como método — o próprio da psicanálise — da paranóia dirigida. A aproximação inicial com a arte tornou-o extremamente sensível a essas temáticas.

Com o referido trabalho sobre o nome (nesse Seminário, muito mais decisivo do que no anterior), pode precisar-se a maneira com que Lacan vai-se introduzindo na questão da letra. Com a proposta do vocábulo sinthome — declara — “heleniza” o idioma, do modo em que começa a fazê-lo Joyce, nem bem abre o Ulisses, uma de suas obras capitais. Desde as primeiras palavras do Seminário, fi ca claro que versará não somente sobre o sinthoma, mas também sobre Joyce. E que ambos, por outro lado, hão de emparelhar-se em seu ensino.

Tendo destacado a helenização, convém acostumar-se de imediato aos jokes lacanianos, assim como aos puns9 , em que também acompanha o irlandês. E, pelo caráter metafórico, chega, através de Joyce, àquele que, antes de nenhum outro, parece ter posto nomes: Adão, que signifi ca “o que provém do solo”. E dizemos que parece, pois, segundo o mito bíblico, que Deus, antes de Adão, já havia dado os nomes; de fato, para Deus, nomear e criar eram a mesma coisa. Por exemplo: Fiat lux!, “Faça-se a luz!”, e a luz se fez. Então, quando Deus apresenta os animais para Adão, para que este os nomeie, na verdade não faz senão situá-lo em uma relação de mera redundância dependente, bem distante de qualquer nomear fundante. A fala de Adão, em suma, não é mais que um reencontro pautado, mediado e sustentado por uma garantia inequívoca e exigente, em sua latente

9Estes consistem na utilização humorística tanto de uma palavra que carrega dois sentidos, como na de diferentes palavras que possuem o mesmo sentido. Para essa segunda via da operatória, a translingüisticidade se revela muito propícia.

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atitude examinadora. É, assim, um falar sígnico, porque representa algo para alguém. Pois bem, Joyce também introduz seu personagem e decide chamá-lo, em lugar do esperável Adam do inglês, de M’Adam, “senhora”, segundo se o escuta na mesma língua. Surpresa, e a consabida pergunta: o que traz Joyce nas mãos? O nome remete a que, em última instância, o “senhor” — no sentido do apólogo — tem uma certa desconfi ança, tal como o indica a clínica quotidiana, quando revela os estigmas induzidos no varão pelo sustento do amor eterno ao pai. Lacan o havia defi nido muito bem: os varões constituem, em defi nitivo, o sexo frágil diante da perversão. O Adão joyceano — enquanto M’Adam — se encontra com aquela chamada por Lacan de Evie. Uma Eva (Eve, em inglês) que incorpora o francês vie: vida. Evie que se liga com a vida — de acordo com o indicado em sua raiz léxica —, mas também com o falar, mas dessa vez de um modo assaz singular. Lacan assinala que Evie, caracterizada por sua loquacidade, pareceria ser a dona cabal da língua utilizada na “m’adâmica” — burlesca, abjeta — operação de “dar” nomes aos animais apresentados por Deus, o Criador. A partir dessa tagarelice, Evie se relaciona com outro personagem: o da serpente. Ela dá vida, mas nesse próprio ato — permita-se-nos a expressão, dado que Lacan recorre a ela freqüentemente — começa a dizer conneries (babaquices). Evie e a serpente, em suma, não reconhecem senão o caminho linguageiro das babaquices. Falar nomeando, então, antes que nomear para aplacar o Deus garantia e examinador.

Nessa visão lacaniana do Éden joyceano, já podemos isolar algumas questões, núcleos temáticos, contrabalançando a aparência de uma associação livre. O tema da serpente deslizará para outra referência, outra escansão sobre a palavra sinthome, que irá rondar continuamente (como corresponde, é claro, a uma versão do Paraíso): o pecado (sin, em inglês). É isso que os leva à expulsão. M’Adam e Evie caem pelo sin, pela “primeira falta”. Essa noção do pecado, tão presente na obra de Joyce — recordemos, trata-se da análise desta, não da biografi a especularizada do escritor —, consiste, segundo Lacan, em começar precisamente pelo lado da falha. Isso conduz de modo direto à problemática da castração, o que determina que a abordagem viável seja a produzida pela incidência daquilo que não

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funciona. Começamos pela via do pecado, e não pela de uma situação idílica — “paradisíaca” —, em que todos os termos encaixariam à perfeição. Por meio de Joyce, marca o resgate de um ponto de infl exão na história bíblica: o da marca de um lugar de castração, de falha, relacionado com um saber. É por isso mesmo que Evie morde, caindo na armadilha da serpente.

Essa situação fará Lacan apontar que essa aliança entre a palavra e uma marca aludida como pontinha da cauda, do rabo, é justamente o falo. Essa marca fálica, esse falo falido em Joyce — por não encontrar-se bem em seu lugar —, é o que o escritor tenta compensar em sua escrita, procura suprir. Deparamo-nos com um dos termos fundamentais do Seminário: o da já aludida supleção. Graças à obra, Joyce tenta suprir sua falha; assim, sua arte faz as vezes de garantia de seu falo. Atender a essa circunstância implica abandonar, desde já, toda tentação de exercer uma psicanálise aplicada. Não se trata de dar “exemplos ilustrativos” da supostamente conhecida psicopatologia joyceana; em troca, a tarefa reside em pôr o acento na função da obra, implicando seu autor. O próprio Joyce o sugeriu, ao afi rmar que havia dedicado sua vida a sua obra. A esse mesmo respeito, “nos pede” que dediquemos nossa vida a ela. O leitor poderá perguntar-se: estará muito longe dessa dedicação e exigência o próprio Lacan? A resposta parece ser não; é duvidoso que quem já trabalha há quase trinta anos com sua obra possa afi rmar o contrário. De maneira virtual, pede também que consagremos nossa vida inteira.

Evie, a Eva de M’Adam, ostenta o traço — de acordo com Lacan — de ser completa. Ponto decisivo para sua teorização, porquanto ensinou que a mulher é não-toda, porque está dividida, está barrada, e por isso se autoriza a escrevê-la como mulher. Para apoiar essa noção, recordemos, ele recorre a Freud; este, de fato, assinalava uma partição entre uma direcionalidade libidinal marcada pelo clitóris, e outra de tipo vaginal. Interpretando o fundador da psicanálise, Lacan conclui que o assim apontado é essa divisão da mulher, provocada pela ausência de uma zona reitora que o varão possui, ao simbolizar localizadamente o falo mediante o pênis. Essa condição de , de não-toda, o conduz a sustentar que a mulher, portanto, se é entendida como uma totalidade, e como o conjunto

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de todas as mulheres, não existe. Enunciado eminentemente perturbador. Como que a mulher não existe? É um desses aforismos desenhados “pour épater”; assim, devido a sua força de impacto, conseguem marcar lugar, incitando ao trabalho e à refl exão. Agora acrescenta: a mulher não existe como toda, fora de Evie. É que ela foi única, enquanto implica outro nome de Deus. As outras já foram distintas. Todo esse desenvolvimento, em nosso entender, conforma um joke lacaniano — cifrado — sobre o começo do Finnegans Wake: “riverrun, past Eve and Adam’s...”. Afi rma depois que a referida Eva, por outro lado, revela uma característica — e aqui começamos a balizar uma das primeiras e mais radicais notas do sinthoma — própria do “singular”. Ponto decisivo a levar em consideração, já que esse atributo é o valor dir-se-ia constitutivo do implicado pela análise como tratamento, e quanto à direção deste: o respeito por e a defesa do singular. O que, é claro, não deve ser confundido com o particular. Lacan insistiu muito nessa diferença, à medida que o particular não ilustra senão um caso do geral. Um se inscreve no outro, como forma de mútuas remessas. Em troca, o singular — como o termo indica — é o que singulariza, o que (se) distingue. Portanto, é uma categoria distanciada da dialética geral-particular. O sinthoma é singular. Lacan nos adverte, nesse ponto, que é aquele no qual precisamente Aristóteles se equivoca. Nova surpresa: o que faz aqui o fi lósofo? É citado de modo alegórico, a partir de seu famoso silogismo: “Todos os homens são mortais / Sócrates é homem / Sócrates é mortal”. Geral e particular. E ali o joke sério de Lacan: Aristóteles se equivoca, porque Sócrates não é homem. Poderá parecer uma associação absurda, mas ocorre que não é um homem, precisamente porque preferiu morrer.

Quando Sócrates tinha a possibilidade certa de salvação, no célebre julgamento — consignado no Fédon, na Apologia, e em outros diálogos platônicos —, graças a sua defesa oral — que, com segurança, teria sido mais efi caz, se fosse venal, do que as argumentações de seus acusadores —, escolheu, para salvar sua honra e a da polis, tomar a cicuta. Conseqüentemente, se ele subordina um valor comum — a defesa da própria vida — à defesa de um valor supremo, deste modo

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não é um homem particular no conjunto geral de todos os homens. Disso decorre que, para Lacan, Aristóteles se equivoque com seu famoso silogismo, aquele que todos aprenderam alguma vez como paradigma de uma dedução a partir de uma premissa maior e de uma premissa menor. Conclusão falaz, porquanto não é a condição de homem que lhe permite tomar a decisão de aceitar resignadamente sua condenação, em virtude da potência de seu desejo de morrer, paralelo ao desejo de que a polis viva. Há muitos textos aconselháveis sobre o processo socrático e sua decisão, diante dessa circunstância limite10 . Opção regida não à maneira de um suicídio melancólico, mas com vistas a que seu ato se inscreva de modo contundente nos sobreviventes. Assim, diante da acusação de haver sido supostamente corruptor de normas, costumes e valores, não depõe sua atitude, nem se arrepende do trajeto de toda a sua vida, à qual não defende em sua carnalidade. É por isso que não se trata de um homem. Não é um caso particular da generalidade, senão alguém singular. Em conseqüência, possui o mesmo valor, o mesmo traço, que Lacan levará em consideração no sinthoma.

Voltando a outro singular: o de Evie e a mulher. Lacan assinala que a via pela qual se poderia acreditar em mulher, toda inteira, é a do equívoco. Aquele produzido quando, por exemplo, em uma situação de aproximação sexual, ela proclama, frente a alguma proposição dele um tanto audaz, não-convencional: “Bem, sim, com você faço de tudo, mas isso não”. O “mas isso não” fi nal permite sustentar a crença na totalidade. Se dissesse: “e isso também”, com facilidade se chegaria a comprovar que, depois “disso”, haveria outra coisa a mais. Ali se erige um modo da singularidade. O “mas isso não” é uma forma de assinalar: “nisso eu não me envolvo. Essa não sou eu (ou não sou dessas)”. E é aí que a questão não se esgota em considerações sócio-culturais, de regras e proibições, porque se dirige a uma zona em que tampouco é possível empirizar de maneira notória. O “mas isso não” não aponta para nenhum “isso” fi xo e identifi cável, senão que alude a uma dimensão de segredo, de

10Cf. a esse respeito I. F. Stone, O julgamento de Sócrates, São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pp. 196-7, e C. Mossé, O processo de Sócrates, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987, pp. 135-57.

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necessária privacidade, afastada da lógica fálica. Se continuássemos com a citada mise en scène, a negativa feminina poderia prosseguir com um: “Como é que tu inventas de me pedir uma coisa dessas?”. O leitor já terá se dado conta de que o surgimento desse “me pedir” refere-se de modo ostensivo à demanda do Outro. De forma tal que o “mas isso não” o é diante da demanda. O que quer dizer? Que aponta para o ensino lacaniano acerca de que a estrutura básica das neuroses consiste em avir-se de maneira quase acrítica com a demanda do Outro; essa situação que, às vezes, pode ser assim tipifi cada: “Eu o fi z, mas... o terei feito por mim? Porque eu queria? Ou porque mo pediu? Não me obrigou, mas... não sei”. Frente a essa entrega, a proposição do “mas isso não” indica precisamente uma reação, um princípio de evicção da dominância do sintoma neurótico, do qual o sinthoma, em sua singularidade, se localizaria em um sítio disjunto, no que se refere às respectivas posições subjetivas.

O problema é, então, crucial. Tanto que Lacan assevera: “O ‘mas isso não’ é o que eu introduzo, sob meu título deste ano, como o sinthoma”. Quer dizer, é aquilo que busco como singularidade e sustento, portanto, como um valor não tramitável, não negociável. Lacan assinala que é precisamente o posto em ato por Sócrates: aceitou, mas isso não. Há algo não deponível, pelo que seguirá adiante na aceitação de sua condenação. O mais pas ça — em francês — não se relaciona, como é fácil deduzir, com algum típico sintoma obsessivo, histérico ou fóbico. Envolve, em última instância, uma dimensão ética. Tempos antes desse desenvolvimento, Lacan havia se referido ao pas-je, ao não-eu. Não no sentido das psicologias, como aquilo que se diferencia de modo imaginário do eu, mas como resposta a uma certa demanda. Grafi quemo-lo de maneira glosada: “Se pretendem isso de mim, não serei eu a aceitar”. Posição em que o sustentado é o peso decisivo da singularidade.

Se há alguém que no meio analítico tenha sido singular, esse foi Lacan. Seu nó bo de três é — em nosso entender — demasiado equilibrado, incorre demasiadamente na dialética geral-particular. E ele não queria que de sua clínica surgissem sujeitos de, e por essa condição. Expliquemo-lo. Em algum momento, Lacan comentou

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que lamentava não ser mais psicótico. No caso de sê-lo, supõe, teria conseguido ser mais lógico. Estava mencionando — com muita perspicácia — a assim chamada loucura raciocinante ou paranóia. Um dos sérios problemas do paranóico é que se trata de alguém demasiado lógico. Esse é um dos pontos que Lacan formula, ao lamentar-se por não ser mais psicótico, mas também faz alusão, com isso, a que muito do equilíbrio, da “normalidade”, do ser ponderado, enfi m, a falta de paixão — se se quiser — se acham relacionados com a posição de quem não deseja comprometer-se demais na sustentação de seu “mas isso não”. E nossa idéia é que a introdução do nó bo de quatro desbarata o sólido equilíbrio entre os três registros borromeus, porque quebra a pertinência de todo esse sistema desenhado de maneira apolínea, harmônica, com uma qualidade quase estética. Com o quarto, surge um ponto de discordância, introduzindo-se assim na referida singularidade do sinthoma, do “mas isso não”.

Por meio da irrupção da singularidade, retornamos à questão da heresia. “Joyce — diz — é, como eu, um herético”. É que, esclarece, “escolhe” a via por onde tomar a verdade, mas do bom modo, isto é, “por ter reconhecido bem a natureza do sinthoma”. Nesse ponto, joga com a palavra hère, que signifi ca em francês “infeliz”, “pobre diabo”, “um pobre coitado”. O hère, que participa de herege, também se encontra nas proximidades de outra referência lacaniana àquela que se pode considerar como uma obra preparatória de Joyce. Nós a chamamos de preparatória, porque logo iria dar lugar a outra obra pela qual foi de certo modo absorvida, e que conhecemos mais. Lacan confessa ter-se esquecido (?) de levá-la a seu Seminário naquele dia; seu título é Stephen Hero, Stephen o Herói. Próximo — em uma operação de homofonia translingüística à maneira de Joyce — do hère. O título, sobre o qual ironiza, antecede como esboço o relato A Portrait of the Artist as a Young Man, conhecido em português como Retrato do artista quando jovem. O título do original inglês sublinha melhor o caráter de singularidade do texto. Ao mesmo tempo, o Hero caracteriza bem o personagem que o escritor pretende encarnar em sua vida, através de sua obra. Pois bem, o próprio Retrato recorda um Turpin Hero. A novela participa do gênero Bildung (“formação”); de fato, relata como vai-se construindo a personalidade de um jovem

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COMO SE CHAMA JAMES JOYCE?

que fi nalmente escolhe o destino literário. E o faz seguindo a presumida concepção de São Tomás a respeito da estética — abrindo, assim, a oportunidade para um jogo de palavras que depois abordaremos —, concluindo que o exílio é o melhor recurso para dar curso a essa meta. Essa temática será fundamental em Joyce, não apenas pelo desterro geográfi co, mas pelo da língua. Assim, o que vai procurar é exilar-se de ser apanhado pela língua. E a empresa não é nada alheia a Lacan. Mas entremos no escrito por Joyce na pele de seu jovem protagonista, batizado como Stephen Dedalus (por Dédalo, o personagem mitológico, de crucial importância11 , embora Lacan não pareça haver reparado muito em sua infl uência em Joyce e nele mesmo, quanto à problemática do fi m da análise). Stephen conversa com um amigo e começam a ser notados assim os indícios de como se forma um “homem de letras”. Fala da lírica, depois da épica, e chega fi nalmente à narrativa. Nesse ponto, expõe: “A forma narrativa já não é puramente pessoal. A personalidade do artista se dilui na própria narração — reparemos como Lacan levou isso em conta; não tomou o indivíduo, senão que se centrou, como dissemos, na obra —, fl uindo em torno dos personagens e da ação, como as ondas de um mar vital. Podes ver facilmente essa progressão naquela antiga balada inglesa, Turpin Hero, que começa na primeira e acaba na terceira pessoa”.12 Assinalemos a importância daquilo que já está em jogo nesse Joyce “jovem”, quando marca como aceita a incidência de outras vozes em si mesmo. Não escreve então na primeira pessoa, ao modo lírico, vertendo suas vivências, senão que outros começam a operar em sua escrita, mas não sob a forma de encarnar-se em novos personagens — como um desdobramento da personalidade —, senão mediante a ação interativa do multilingual. Trabalhará, então, na confl uência forçada entre distintas línguas e na leitura brincalhona destas em seu ser falante, até gerar, praticamente, uma língua franca. No Retrato..., começa com suas refl exões, sobre as quais nos deteremos no capítulo seguinte, porquanto são especialmente reveladoras de seu livre apoiamento em São Tomás. Este, a partir de seu nome, possibilita um novo pun lacaniano: com efeito, postula o saint homme (homem

11E sobre o qual voltaremos, no próximo capítulo.12J. Joyce, Retrato del artista adolescente, México: Porrúa, 1989, p. 133.

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santo, santo varão), que é homófono com o sinthome. E, quanto a Saint Thomas d’Aquin, o articulará com — como — sinthome-madaquin. Na verdade, o pequeno breviário de estética esboçado por Joyce no Retrato conforma um trânsito ao qual, como veremos, não é tão simples de satirizar, nesse aspecto específi co, como tomista. Sobre ele se erigirá um ponto decisivo em sua obra, e que servirá para Lacan abordar — apenas indicativamente — um modo privilegiado da aproximação joyceana do Real: a questão das epifanias. No referido item, é conveniente conjugar a leitura desse texto com o célebre relato de Dublinenses, “Os mortos”, levado magistralmente à tela por John Huston. Em sua parte conclusiva, quando o casal de protagonistas abandona a festa familiar, desencadeia-se o momento epifânico — diante da inesperada audição de uma canção tradicional —, que fi ca marcado pelo que a versão joyceana da estética tomista chamaria de claritas. Voltaremos a essa noção, porque envolve outros dos ângulos para apreender uma concepção desse Real que, em seus últimos anos, Lacan se empenhou permanentemente em cercar.