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A opinião de quem decide Edição 13 20 de julho de 2009 José Marques de Melo “Jornalismo brasileiro não avança por arrogância do mercado e da Academia” Num momento em que o Brasil fervia, fascinado com a batida revolucionária de João Gilberto, com os dribles e gols descon- certantes do menino Pelé, com os 50 anos em 5 de JK, lá no distante 1959, na cidade alagoana de Santana de Ipanema, o adolescente José Marques de Melo, então com 15 anos, in- centivado por professores e por seus dotes com as letras, deci- diu que seria jornalista e foi à luta: bateu na porta da Gazeta de Alagoas e se ofereceu para ser correspondente da sua cidade. Nunca mais parou, nem mesmo no período em que volunta- riamente, nos anos 70, se exilou nos Estados Unidos, para, como os amigos garantiam, evitar coisas piores, e muito me- nos quando, já de volta ao Brasil, a ditadura o impediu de atuar nas universidades públicas. Cinquenta anos depois (“que nem percebi passarem”), Mar- ques de Melo, filho de um comerciante de secos e molhados que adorava ler jornais e discutir política, é dono de um invejá- vel currículo: tem dezenas de obras publicadas, centenas de palestras feitas em todo o Brasil e em várias partes do mundo, inúmeros títulos e prêmios e o reconhecimento nacional e internacional de ser a grande referência brasileira no estudo do Jornalismo. Jeito manso de falar, sorriso que não se descola dos lábios nem mesmo nas questões mais delicadas, raciocínio invejá- vel, fomos encontrar o professor num início de tarde chuvoso de junho, no dia 8, para uma conversa de quase três horas. Recebidos com cafés, sucos e biscoitos na agradável sede que a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, a nossa Intercom (da qual ele é fundador e membro vitalício), mantém na av. Brigadeiro Luiz Antonio, nas proximidades da av. Paulista, na capital de São Paulo, tínha- mos em nossa companhia o experiente Antonio Alberto Pra- do, que já presidiu a Aberje – Associação Brasileira de Comu- nicação Empresarial, tendo passado na grande imprensa por veículos como a revista Visão e o jornal O Estado de S.Paulo, onde também foi correspondente internacional nos Estados Unidos, e que consolidou sua carreira na Comunicação Em- presarial, em empresas como Du Pont, Governo do Estado de São Paulo (Franco Montoro), Bayer, Odebrecht e Veracel. Desgostoso com a falta de diálogo entre Academia e merca- do, que não se falam por preconceitos recíprocos e pela arro- gância de seus principais protagonistas, ele que, de modo sincero, confessa não saber mais o que fazer para quebrar essa resistência, diz manter a esperança de que as novas ge- rações possam mudar esse inglório quadro. “Se não for para o mercado, para quem vamos fazer pesquisa?” , de- sabafa ao demonstrar todo o seu descontentamen- to com a falta de diálogo entre os acadêmicos e os profissionais de redação. Formado em Jornalismo em 1964, pela Universi- dade Católica de Pernambuco, pós-graduado em 1965 em Ciências da Informação Coletiva, como bolsista da Unesco, em Quito (Equador), e doutor em Jornalismo em 1973 (o primeiro do Brasil), pela USP, onde defendeu a tese Fatores socioculturais que retardaram a implantação da imprensa no Bra- sil, Marques de Melo tornar-se-ia catedrático da Unesco nos anos de 1991 e 1992, na primeira cá- tedra implantada em Barcelona, experiência que seria decisiva para a instituição indicar o Brasil, em 1996, como sede de uma das quatro cátedras de Comunicação que queria implantar na América La- tina (as outras ficam em Uruguai, Colômbia e Mé- xico). A instituição escolhida para abrigá-la foi o então Instituto Metodista de Ensino Superior, hoje Universida- de Metodista, e desde então seu titular é o próprio professor Marques de Melo. Embevecido por tantas honrarias e tanto reconhecimento? Nem tanto. Para quem acorda todos os dias às 4h da manhã para atualizar-se e preparar suas aulas; para quem luta, de um lado, pela elevação da capacidade de cognição da sociedade brasileira (via políticas públicas na área de Educação), e, de outro, enquanto isso não acontece, para o Jornalismo baixar o nível cognitivo (e não o nível ético) visando maior aproximação com as camadas populares; para quem critica os jornalistas pela preguiça intelectual e o consequente distanciamento da universidade, tudo faz crer que, no caso dele, a luta continua e que os prêmios e outras honrarias só o estimulam a prosse- guir nesse caminho. Pai de um casal de filhos e já com três netos no “currículo” , Marques de Melo é daqueles que vai a qualquer canto do mun- do, mas não abre mão de seus finais de semana em família, passados preferencialmente em Campos do Jordão – a capital paulista do frio, incrustada na Serra da Mantiqueira –, e muito menos de um bom prato, gourmet que diz ser. Nascido em Palmeira dos Índios, na divisa do sertão com o agreste alagoano, e criado em Santana do Ipanema, no ser- tão, ele valoriza demais sua origem e diz, com a autoridade que os 50 anos de carreira lhe conferem, que o verdadeiro jornalismo globalizado não prescinde da aldeia, onde tudo e todos começam. Defensor vigoroso da Assessoria de Imprensa pelo seu viés jornalístico, “uma invenção brasileira” , como ele diz, considera que a chegada dos jornalistas a essa atividade, por um certo desinteresse dos relações públicas, foi relevante e uma belís- sima contribuição para a democracia, já que levou para dentro das organizações um posicionamento ético, responsável e compromissado com a transparência. Esse mesmo vigor ele usa para dizer que não vê a faculda- de de Jornalismo como único meio para chegar à profissão, embora a considere o melhor, como em todos os lugares do mundo. Por ele, que inclusive já fez algumas tentativas – sem- pre derrotadas – nessa direção, o ingresso no Jornalismo tam- bém poderia ser feito por um curso de pós-graduação, aberto a outras formações profissionais. Seu mais recente desafio foi encomendado pelo Ministério da Educação e Cultura, o MEC, que decidiu rever as diretrizes do ensino de Jornalismo e o convidou para liderar o trabalho. Reticente, aceitou com a condição de que pudesse extrapolar as fronteiras acadêmicas e ouvir a sociedade, o mercado, para ver quais contribuições dali viriam. Estiveram ao seu lado nes- sa comissão os professores Carlos Chaparro (USP), Sonia Vir- Na foto, a partir da esquerda, Wilson Baroncelli, professor José Marques de Melo, Eduardo Ribeiro e Antonio Alberto Prado

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A opinião de quem decide

Edição 13 20 de julho de 2009

José Marques de Melo“Jornalismo brasileiro não avança por arrogância do mercado e da Academia”

Num momento em que o Brasil fervia, fascinado com a batidarevolucionária de João Gilberto, com os dribles e gols descon-certantes do menino Pelé, com os 50 anos em 5 de JK, lá nodistante 1959, na cidade alagoana de Santana de Ipanema, oadolescente José Marques de Melo, então com 15 anos, in-centivado por professores e por seus dotes com as letras, deci-diu que seria jornalista e foi à luta: bateu na porta da Gazeta deAlagoas e se ofereceu para ser correspondente da sua cidade.

Nunca mais parou, nem mesmo no período em que volunta-riamente, nos anos 70, se exilou nos Estados Unidos, para,como os amigos garantiam, evitar coisas piores, e muito me-nos quando, já de volta ao Brasil, a ditadura o impediu de atuarnas universidades públicas.

Cinquenta anos depois (“que nem percebi passarem”), Mar-ques de Melo, filho de um comerciante de secos e molhadosque adorava ler jornais e discutir política, é dono de um invejá-vel currículo: tem dezenas de obras publicadas, centenas depalestras feitas em todo o Brasil e em várias partes do mundo,

inúmeros títulos e prêmios e o reconhecimento nacional einternacional de ser a grande referência brasileira no estudodo Jornalismo.

Jeito manso de falar, sorriso que não se descola dos lábiosnem mesmo nas questões mais delicadas, raciocínio invejá-vel, fomos encontrar o professor num início de tarde chuvosode junho, no dia 8, para uma conversa de quase três horas.Recebidos com cafés, sucos e biscoitos na agradável sedeque a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares daComunicação, a nossa Intercom (da qual ele é fundador emembro vitalício), mantém na av. Brigadeiro Luiz Antonio, nasproximidades da av. Paulista, na capital de São Paulo, tínha-mos em nossa companhia o experiente Antonio Alberto Pra-do, que já presidiu a Aberje – Associação Brasileira de Comu-nicação Empresarial, tendo passado na grande imprensa porveículos como a revista Visão e o jornal O Estado de S.Paulo,onde também foi correspondente internacional nos EstadosUnidos, e que consolidou sua carreira na Comunicação Em-

presarial, em empresas como Du Pont, Governo do Estado deSão Paulo (Franco Montoro), Bayer, Odebrecht e Veracel.

Desgostoso com a falta de diálogo entre Academia e merca-do, que não se falam por preconceitos recíprocos e pela arro-

gância de seus principais protagonistas, ele que, de modosincero, confessa não saber mais o que fazer para quebraressa resistência, diz manter a esperança de que as novas ge-rações possam mudar esse inglório quadro. “Se não for para

o mercado, para quem vamos fazer pesquisa?”, de-sabafa ao demonstrar todo o seu descontentamen-to com a falta de diálogo entre os acadêmicos e osprofissionais de redação.

Formado em Jornalismo em 1964, pela Universi-dade Católica de Pernambuco, pós-graduado em1965 em Ciências da Informação Coletiva, comobolsista da Unesco, em Quito (Equador), e doutorem Jornalismo em 1973 (o primeiro do Brasil), pelaUSP, onde defendeu a tese Fatores socioculturaisque retardaram a implantação da imprensa no Bra-sil, Marques de Melo tornar-se-ia catedrático daUnesco nos anos de 1991 e 1992, na primeira cá-tedra implantada em Barcelona, experiência queseria decisiva para a instituição indicar o Brasil, em1996, como sede de uma das quatro cátedras deComunicação que queria implantar na América La-tina (as outras ficam em Uruguai, Colômbia e Mé-xico). A instituição escolhida para abrigá-la foi o

então Instituto Metodista de Ensino Superior, hoje Universida-de Metodista, e desde então seu titular é o próprio professorMarques de Melo.

Embevecido por tantas honrarias e tanto reconhecimento?Nem tanto. Para quem acorda todos os dias às 4h da manhãpara atualizar-se e preparar suas aulas; para quem luta, de umlado, pela elevação da capacidade de cognição da sociedadebrasileira (via políticas públicas na área de Educação), e, deoutro, enquanto isso não acontece, para o Jornalismo baixar onível cognitivo (e não o nível ético) visando maior aproximaçãocom as camadas populares; para quem critica os jornalistaspela preguiça intelectual e o consequente distanciamento dauniversidade, tudo faz crer que, no caso dele, a luta continua eque os prêmios e outras honrarias só o estimulam a prosse-guir nesse caminho.

Pai de um casal de filhos e já com três netos no “currículo”,Marques de Melo é daqueles que vai a qualquer canto do mun-do, mas não abre mão de seus finais de semana em família,passados preferencialmente em Campos do Jordão – a capitalpaulista do frio, incrustada na Serra da Mantiqueira –, e muitomenos de um bom prato, gourmet que diz ser.

Nascido em Palmeira dos Índios, na divisa do sertão com oagreste alagoano, e criado em Santana do Ipanema, no ser-tão, ele valoriza demais sua origem e diz, com a autoridade

que os 50 anos de carreira lhe conferem, que o verdadeirojornalismo globalizado não prescinde da aldeia, onde tudo etodos começam.

Defensor vigoroso da Assessoria de Imprensa pelo seu viésjornalístico, “uma invenção brasileira”, como ele diz, consideraque a chegada dos jornalistas a essa atividade, por um certodesinteresse dos relações públicas, foi relevante e uma belís-sima contribuição para a democracia, já que levou para dentrodas organizações um posicionamento ético, responsável ecompromissado com a transparência.

Esse mesmo vigor ele usa para dizer que não vê a faculda-de de Jornalismo como único meio para chegar à profissão,embora a considere o melhor, como em todos os lugares domundo. Por ele, que inclusive já fez algumas tentativas – sem-pre derrotadas – nessa direção, o ingresso no Jornalismo tam-bém poderia ser feito por um curso de pós-graduação, abertoa outras formações profissionais.

Seu mais recente desafio foi encomendado pelo Ministérioda Educação e Cultura, o MEC, que decidiu rever as diretrizesdo ensino de Jornalismo e o convidou para liderar o trabalho.Reticente, aceitou com a condição de que pudesse extrapolaras fronteiras acadêmicas e ouvir a sociedade, o mercado, paraver quais contribuições dali viriam. Estiveram ao seu lado nes-sa comissão os professores Carlos Chaparro (USP), Sonia Vir-

Na foto, a partir da esquerda, Wilson Baroncelli, professor José Marquesde Melo, Eduardo Ribeiro e Antonio Alberto Prado

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Alberto Dines

Protagonistas da Imprensa Brasileira – Osenhor está completando, agora em 2009, 50anos de trajetória profissional, com uma dedi-cação quase sacerdotal à pesquisa e ao ensi-no de Jornalismo. Passou muito rápido esseperíodo? Diria que a vida tem sido generosaconsigo?José Marques de Melo – Não sei se ela temsido generosa, mas sem dúvida tem sido rá-pida demais. Não acreditei quando me deiconta de que iria completar 50 anos de Jorna-lismo. Estive lá em Alagoas no ano passado eos alunos disseram: “Professor, o ano que vemo senhor vai completar 50 anos de Jornalis-mo. Por que não prepara um livro com as suasprimeiras atividades, que nós não conhece-mos?” Eu disse: “O quê?! 50 anos?” Aí fuiolhar e vi que realmente eram 50 anos. Foientão que comecei a reunir esse material quedeu origem ao livro Vestígios da Travessia. Efui vendo que era como se fosse hoje. Nãodiria que foi ontem, não. É que, na verdade,esse período da minha geração foi tão turbu-lento que fomos atravessando o tempo semnotar. Até porque a minha geração foi a queprocurou ser protagonista dos acontecimen-tos, não apenas figurante. Só de estar metidonos acontecimentos faz com que a gente, quetem vocação jornalística, desempenhe duplo

papel: ao mesmo tempo em que é testemu-nha ocular da história, está interferindo sempretender. A vida foi rápida e nem digo que foigenerosa porque, por filosofia, “deixo a vidame levar”.Protagonistas – Sem conhecer o Zeca Pago-dinho...Marques de Melo – Não conhecia o ZecaPagodinho, mas quando ouvi o pagode disse:“É isso!” (risos)Protagonistas – Vivendo entre salas de aula,laboratórios, bibliotecas, auditórios, aeropor-tos, sobra tempo para o lado mundano da vida– o encontro com os amigos, o cinema e tea-tro, as orgias gastronômicas?Marques de Melo – Tenho uma vida equili-brada, porque sem equilíbrio muitas vezes nãohá sentido em fazer as coisas...Protagonistas – Aliás, afora o trabalho, quaisas coisas que mais aprecia fazer?Marques de Melo – Primeiro, sou um bomgourmet. Gosto muito da boa mesa, do bomgarfo e do bom copo. Segundo, me agrada,sobretudo, passar os fins de semana com aminha família. Os fins de semana são sagra-dos. E os momentos com os netos. Depoisque os netos apareceram, nós tivemos quepassar a privilegiar. Apesar de que minha mu-lher protesta demais e diz: “Vai fazer outra

palestra? Acha que vai dar tempo de chegarem Campos do Jordão?” Eu digo: “Vou che-gar no sábado de manhã”. E ela: “Não vai dartempo. Então, está cortado Campos do Jor-dão!”Protagonistas – Quantos filhos e quantosnetos?Marques de Melo – Tenho dois filhos. Umafilha que é farmacêutica e um filho que é radi-alista. Estudou rádio e televisão.Protagonistas – Seguiu sua trilha um pouqui-nho, não é?Marques de Melo – Pois é. Não sei se eleseguiu minha trilha porque eu sou gutember-guiano. Eu sou da imprensa, da escrita, e eleé da imagem e do som. E fez por sua própriainiciativa. Nunca interferi na educação dosmeus filhos. Sempre os ajudei a progredir, masnunca interferi. Num determinado momentoele disse: “Pai, vou prestar vestibular. Vou fa-zer Rádio e Televisão. Onde vou fazer?” Eudisse: “Veja os cursos que há por aí”. Ele fezuma verificação e optou por fazer na Metodis-ta. Metodista e FAAP, naquele momento, eramos melhores em equipamentos, eram bemorganizados, modernos. Ele fez na Metodistae foi trabalhar como produtor na televisão poralguns anos. Depois me disse: “Quero fazermestrado”. Mas a paixão dele é roteiro. Gosta

de fazer roteiros. Ele sempre me acompanha-va nas viagens quando eu ia para a Espanhaou Estados Unidos e se munia de informa-ções sobre roteiros. Aí, em determinado mo-mento, dei uma ajuda a ele: “Olha, roteiro vocênão vai fazer na Comunicação porque não temisso aqui no Brasil. Só nos Estados Unidos.Aquela geração do Woody Allen não vai pas-sar por aqui tão cedo”. Porque sabemos queaquele cinema americano, que vem da Aca-demia, é baseado em grande parte na prepa-ração do roteiro. Ele fez Roteiro nas Letras doMackenzie e agora está fazendo Doutoradona Metodista em Comunicação. Uma teseinusitada, porque está estudando o DráculaBrasileiro, que é o Zé do Caixão. Ele é muitovidrado no terror.Antonio Alberto Prado – Mas é roteiro deRádio e Televisão?Marques de Melo – Rádio, Televisão, Cinemae Quadrinhos. Ele é bom roteirista de quadri-nhos. Faz duplas com alguns colegas.Prado – Mas não desenha, só faz o roteiro?Marques de Melo – Desenha também, maso forte dele não é o desenho.Protagonistas – Qual o nome dele?

Marques de Melo – Marcelo. O bom de de-senho é o meu neto.Protagonistas – Quantos netos?Marques de Melo – Três netos. Aliás, os doisfilhos de Marcelo têm muito essa capacidadede desenhar. Tanto o Gabriel quanto a Bia.Puxaram à minha mulher, porque eu não te-nho habilidades artísticas. Nem canto, nemmúsica, nem desenho. Já a família da minhamulher tem um pouco mais desse traço. E aminha filha, Silvana, formou-se em Farmácia.Preparou-se para ser uma grande pesquisa-dora farmacêutica, estudou na Alemanha, nosEstados Unidos e na Inglaterra. Entrou nomercado, estava muito bem, e de repente dis-se: “Olha, não é isso que eu quero. Se for para

ser comerciante, prefiro ser comerciante demim mesma”. Então, abandonou a profissão,comprou uma gleba lá na Serra da Mantiquei-ra e montou uma pousada. Uma grande aven-tura.Protagonistas – E está indo bem?Marques de Melo – Bom, dez anos depois...(risos) Ela levou dez anos lá, construindo. Ain-da bem que nunca tomou empréstimo! Masestá indo bem. Agora mesmo, esses dias, estálotada. Eu nem posso ir lá porque não temlugar.Protagonistas – Quebrado o gelo, vamos àconversa mesmo. Quais os desafios de serum pesquisador no Brasil, especificamente naárea de Comunicação?

gínia Moreira (Uerj), Lúcia Araújo (Canal Futura), Alfredo Vizeu(UFPE), Eduardo Meditsch (UFSC), Luiz Gonzaga Motta (UnB)e Sérgio Mattos (UFRB – Recôncavo Baiano). Esse trabalho foiconcluído e a esta altura já deve estar nas mãos do ministroFernando Haddad, de onde seguirá para o Conselho Superiorde Educação, que tem a palavra final sobre sua aprovação, acei-tação parcial ou rejeição.

No último dia 14/7, Marques de Melo recebeu, em Porto Ale-gre, da Organização Católica Latinoamericana e Caribenha deComunicação (Oclacc), o Prêmio Internacional Comunicador daPaz 2009, durante o Mutirão de Comunicação América Latinae Caribe, realizado no Centro de Eventos da PUC-RS.

Nas quase três horas desta entrevista, ele respondeu a nadamenos do que 200 questões, enveredando por todos os cami-nhos da Comunicação e do Jornalismo, numa conversa que,asseguramos, nada tem de enfadonha.

Protagonista de seu tempo, assinando há muitos anos a co-luna Campus, na Revista Imprensa, é o primeiro acadêmico aintegrar esta série de Jornalistas&Cia, num reconhecimentoao trabalho que tem realizado no Brasil pelo aprimoramento doJornalismo, ao longo de cinco décadas. Vale a pena conferirsuas críticas, suas análises, seu pensamento e deles extrairreflexões que podem ser de grande valia para o aprimoramen-to dessa tão apaixonante atividade profissional.

Uma coisa é certa: mercado e Academia precisam acabar

com seus pruridos, calçar as sandálias da humildade e sentarem torno de uma mesa (e de ideias) para fazer o que deles asociedade brasileira inteira espera: um Jornalismo melhor. En-quanto isso não acontecer, continuaremos menores.

Boa leitura!

Eduardo Ribeiro e Wilson Baroncelli, com fotos de Luiz Anversa

“A Comunicação continua sendo uma área marginal. O volume derecursos que é alocado para a pesquisa de Comunicação é uma coisaridícula se comparado ao que eles alocam... Não vou nem falar dosEstados Unidos, mas em países como Portugal, Espanha ou México.”

José Marques de mello Edição 13 página 3

Marques de Melo – É um grande desafio,porque, por mais que tenhamos uma série deestruturas montadas nos últimos 50 anos, apesquisa ainda é uma coisa residual. O Paísnão investe em educação básica e, conse-quentemente, mantém investimentos em Ci-ência e Tecnologia que são ridículos. Claro queisso mudou muito. Eu diria que já há uma cons-ciência crescente de que é preciso investir emCiência e Tecnologia, mas não há ainda umaestrutura adequada para o pesquisador tercondições de trabalhar. E na área de Comuni-cação, pior ainda. A Comunicação continuasendo uma área marginal. O volume de recur-sos que é alocado para a pesquisa de Comu-nicação é uma coisa ridícula se comparado ao

que eles alocam... Não vou nem falar dos Es-tados Unidos, mas em países como Portugal,Espanha ou México. Essa minha geração quecomeçou a fazer pesquisa no Brasil vem lu-tando para conseguir pelo menos emplacar aárea no sistema de Ciência e Tecnologia. Eudesenvolvi, durante dez anos, um trabalhocontínuo de pelo menos colocar a Comunica-ção na TAC, a Tabela das Áreas do Conheci-mento. Porque, quando nós começamos naUSP, na Escola de Comunicações e Artes, em1966, 67, Comunicação era um apêndice daárea de Sociologia, e Jornalismo não era nemconsiderado uma coisa digna de figurar na ati-vidade científica. Nós tivemos que lutar muitopara dizer “sim, é uma área que tem tradição”.

Porque pesquisa em Jornalismo existe desde1690. Desde que Tobias Peucer fez as primei-ras teses, lá na Universidade de Leipzig, a áreavem crescendo com muita intensidade, emquantidade e qualidade. Mas aqui no Brasil nãose considerava. E de um modo geral, quandocomeçamos na USP, os processos eram to-dos glosados. Um dia, peguei três ou quatroprocessos de alunos e colegas meus e fui fa-lar com o diretor científico da Fapesp (Notada Redação: a Fundação de Amparo à Pes-quisa do Estado de São Paulo), professor Flá-vio Fava de Moraes: “Flávio, não é possívelvocês continuarem nos julgando como se fôs-semos sociólogos. Nós não somos sociólo-gos e dessa maneira não vamos andar”. Naverdade, eu queria... Como a universidade ins-tituiu uma escola com muito recursos, a Fa-pesp tinha que apoiar a pesquisa. Ele pergun-tou: “Quantos doutores há na área?”. Eu dis-se: “Só eu e mais dois ou três”. “Mas vocêsnão podem aparecer, vocês são da USP”. Querdizer, éramos cinco doutores: eu, Torquato[Gaudêncio], Thomas Farkas e mais outros,que fomos os pioneiros. “Vocês não podemaparecer nos seus próprios processos. Eu voucortar a verba da Sociologia”. Eu disse: “Não

aceitamos. Vamos fazer um recurso”. Ele dis-se: “Vamos buscar uma solução. Existe a fi-gura do notório saber. Quem há de notóriosaber em Jornalismo no Brasil?” Aí eu res-pondi: “Vou fazer uma lista”. Barbosa LimaSobrinho, José Reis, Alberto Dines, umasérie de dez pessoas de notório saber e osprocessos começaram a fluir de outra manei-ra. Foi aí que começamos a furar o bloqueio.Mas em Brasília foi muito mais difícil.Protagonistas – E a velocidade, o ritmo, me-lhoraram?Marques de Melo – Na verdade, vem melho-rando. Não melhorou mais porque a nossa áreaé ainda renitente. Por exemplo, são poucosos grandes jornalistas que querem ir para auniversidade. De um modo geral, na minhaopinião, sem passar pela profissão, não hácondições de se trabalhar na universidade.Porque não dá para formar jornalistas se o pro-fessor não tem experiência concreta, prática.É a mesma coisa com um médico. Se ele nãoexerce a profissão, como é que vai clinicar,fazer diagnóstico ou uma operação? O queacontece é que os jornalistas que vão para auniversidade não duram muito. Eles nãoagüentam. Porque a universidade é muito for-malista e, eu diria, preconceituosa. É difícil paraum grande profissional se adaptar à universi-dade. Aqueles que conseguem, terminam por

se afastar da profissão, se distanciam. Algunsaté criam uma espécie de rejeição à profissãoou querem ser grandes intelectuais. E os queficam na universidade nem sempre têm ca-pacidade de se adaptar às regras do jogo. Qualé a regra básica para o sujeito conseguir in-vestimento na área de Ciência e Tecnologia?É preciso ter demanda. Por exemplo, parahaver um financiamento maior, precisa ter umademanda maior. O financiamento é seletivo.Pela regra da seletividade, se existem dez pro-jetos, um ou dois vão ser aprovados. Agora,se há 100, vai haver 20; se forem mil... Acon-tece que a área de Comunicação em geral, eo Jornalismo em particular, é muito cheia depruridos. Quando mandam um projeto e elevolta com alguma crítica – não foi negado,voltou para uma reflexão –, de um modo ge-ral, os colegas se irritam dizendo: “Ah, mas omeu projeto está bom”. Eles não estão acos-tumados a ficar submetidos aos julgamentosdos pares. Em vez de voltarem com os proje-tos, eles abandonam e a demanda não cres-ce. Esse é o grande problema não só de Co-municação, mas das Humanidades em geral.Se você olhar as outras áreas do conhecimentoque têm mais financiamento, tipo Física, Quí-mica e Biologia, eles têm um rito... Os físicosnão vão a um julgamento sem ter antes milprojetos inscritos.

Prado – Nesses campos é mais fácil fazer pro-jetos para ir rápido, porque você visualiza oobjetivo daquela pesquisa. Mas o que é umapesquisa em Comunicação? Quais são as áre-as de pesquisa em Comunicação que poderi-am ser abrangidas por financiamentos e queteriam resultados de impacto para a socieda-de?Marques de Melo – Pois é... Eu acho que oproblema não está aí. Está na dificuldade dospesquisadores jovens em formularem seusprojetos. Não há limitação. Tanto o sistemainternacional quanto o nacional apoiam proje-tos de boa qualidade. Se for de boa qualidade,independentemente da aplicabilidade à soci-edade, ele é financiado. Mas muitas vezes osprojetos que chegam às agências não são pro-jetos de pesquisa. São ensaios. São especu-lações, reflexões à margem dessas questõese por isso não são financiáveis.Prado – Não é fácil entender o que é projetode pesquisa em Comunicação, em Jornalis-mo...Marques de Melo – Os projetos que deveri-am ser encaminhados são os que dizem res-peito à melhoria das condições de produçãono Jornalismo, às rotinas de produção. Mas,de modo geral, eles não se encaminham paraisso. O que é uma distorção muito grande comque nos defrontamos, ainda como consequ-

ência do Regime Militar. O Regime Militar foimuito danoso para certas atividades na uni-versidade. O Jornalismo, a Comunicação e asHumanidades de uma forma geral ficaram sobum cerco. E isso criou uma reação que euchamaria politização ou ideologismo. Temosuma geração que só quer estudar a ideologia.Não adianta... É bom saber que a ideologiaexiste, que ela funciona com determinadascaracterísticas, mas não precisa repetir tanto.Os projetos que chegam em geral buscamanalisar os aspectos políticos e ideológicos quenós já conhecemos exaustivamente. O queestá faltando são projetos que indiquem àsempresas, às associações de profissionais,como melhorar a qualidade de sua profissão.Por exemplo: qual a grande dificuldade queeu vejo hoje nos jornais diários? Os jornaisestão acabando no Brasil por quê? Ou estãodiminuindo ou perdendo espaço? Porque eles,na verdade, não atendem às demandas dopúblico que os utiliza. Você vê esse caso dodesastre da Air France (Nota da Redação: aqueda do Airbus da Air France no Atlântico, nodia 31/5, em que mais de 200 pessoas morre-ram). Você abre o jornal, quer detalhes que

expliquem melhor o acontecimento. E, na ver-dade, os jornais estão repetindo o que o rádiojá disse e a televisão já mostrou e a internetjá...Prado – Aí você tocou num ponto que é fatalpara o Jornalismo da forma como ele é. Vocêmencionou o caso do avião. Eu não li uma li-nha da imprensa escrita e não estou minima-mente interessado no que a imprensa escritadiz porque entro na internet e fico sabendoem tempo real o que está acontecendo.Marques de Melo – Veja, é esse seu hábito –que é meu também e de muita gente –, dever na internet, que na verdade está matandoo Jornalismo impresso. Porque se o jornal ti-vesse algum tipo de interpretação e explica-ção que cativasse o leitor...

Prado – Mas é esse o caminho para a sobre-vivência do Jornalismo impresso gutembergui-ano?Marques de Melo – Eu penso que sim. Achoque ele vai permanecer, mas precisa ter algomais, um pouco mais de profundidade paraum público leitor...Prado – Você mencionou a ditadura militar.Você foi jornalista e era um jovem atuantedurante a ditadura militar. O Jornalismo naépoca, com todas as dificuldades, não era maisinstigante e o jornalista, mais corajoso?Marques de Melo – Hoje também encontra-mos uma geração muito aguerrida. Jovenscom muito talento, que vão à luta, que produ-zem coisas interessantíssimas. De um modogeral, esse pessoal está fazendo atividades

“Sem passar pela profissão, não há condições de se trabalhar nauniversidade. Porque não dá para formar jornalistas se o professor

não tem experiência concreta, prática. É a mesma coisa com ummédico. Se ele não exerce a profissão, como é que vai clinicar, fazer

diagnóstico ou uma operação?”

“O que acontece é que os jornalistas que vão para auniversidade não duram muito. Eles não agüentam. Porque auniversidade é muito formalista e, eu diria, preconceituosa.”

José Marques de melloEdição 13 página 4

alternativas: fazem blogs, criam produtos quecirculam em comunidades. Mas seria precisorecuperar um pouco o élan da profissão. Achoque a profissão de jornalista está em crisemundial.Prado – Veja o The New York Times...Marques de Mello – Pois é. Eu acompanhomuito a literatura sobre as condições da pro-fissão na Europa e nos Estados Unidos e é omesmo problema lá e aqui.Prado – Porque eles não encontraram umcaminho novo nesse mundo de internet, nãoé isso?Marques de Melo – Da internet também...Mas, na verdade, a questão é mais conjuntu-ral. Eu acho que nós tivemos um baque enor-me que se chama Queda do Muro de Berlim.De 1989 pra cá o mundo mudou completa-mente. O mundo que a nossa geração perce-bia desapareceu como um castelo de cartase não há perspectiva sobre o que vai ficar nolugar.Protagonistas – Retomando a questão dospesquisadores, vamos fazer quatro perguntasnuma só: Há no Brasil um elenco de bonspesquisadores na área de Comunicação?

Como anda a nossa produção intelectual? Osenhor arriscaria citar alguns nomes da pes-quisa acadêmica em Comunicação no Brasil?Há renovação?Marques de Melo – Bom, aí é preciso fazerum parêntese para separar o joio do trigo. Pri-meiro, a área de Comunicação é muito vasta,envolve cobras e lagartos. Envolve setores dosmais diferenciados, como Jornalismo, Publi-cidade, Relações Públicas, Rádio e Televisão,Cinema, Editoração. Quer dizer, é um campomultifacetado. O que aconteceu no Brasil foiuma certa distorção, eu diria, “comunicologi-

zante”. Por quê? Porque essas profissões nãosão muito respeitadas pela Academia, quesempre encarou essas profissões como tra-balhos técnicos e há muitos jornalistas queacham que o que eles fazem é um trabalhotécnico. Não é. O que menos tem em Jorna-lismo é técnica. O que tem mais é criação,intuição, invenção. Então, o que acontece? Noinício, como não tínhamos profissionais comtitulação suficiente para ocupar as funções nauniversidade, ela foi incorporando pessoas quevinham de outras áreas do conhecimento: his-toriadores, sociólogos, psicólogos e até ma-

temáticos. E aí eles criaram uma espécie dehegemonia teórico-metodológica e só ultima-mente é que vem havendo uma reação a isso.Uma reação por parte dos jovens formadosem Jornalismo. Temos uma comunidade sóde pesquisadores em Jornalismo de mais de300 jovens, que são doutores e mestres pe-las universidades. Essa geração vem produ-zindo algo de esperançoso. Não é ainda visí-vel. Eu acabo, por exemplo, de coordenar aedição de uma revista em língua inglesa, Jour-nalism – publicada simultaneamente na Ingla-terra, Estados Unidos, Austrália e outros paí-ses do bloco anglófono –, e eles estavam cu-riosos para saber como é que estamos an-dando, porque o Brasil é um dos países quechama atenção pelo avanço nas pesquisas emJornalismo.

Protagonistas – É uma informação que omercado não sabe...Marques de Melo – Pela primeira vez elesdão atenção a um país determinado. Dentrode duas semanas (Nota da Redação: final dejunho) vamos ter um colóquio com a África doSul – Brasil, África do Sul e Inglaterra – paratentarmos fazer conexões.Protagonistas – E com essa produção cres-cente a relação com o mercado tem se estrei-tado?Marques de Melo – Não. Acho que aí estáum grande problema. Nós precisamos supe-rar isso. O mercado criou uma série de ares-tas, que vêm desde a instituição do diploma,e não se aproxima da Academia. Na verdade,criou-se uma dificuldade de parte a parte: aAcademia não se aproxima do mercado e o

mercado não se aproxima da Academia. Nósprecisamos superar isso.Protagonistas – Como?Marques de Melo – Eu não sei. Tenho tenta-do. Na verdade, entendo que, sem isso, nãovamos avançar.Protagonistas – Não há troca....Marques de Melo – Não tem troca. Precisa-ria acabar com essa arrogância de parte a par-te, porque ela infelizmente existe. Mas a queminteressa a pesquisa que nós fazemos? Se nãointeressar para o mercado, vai interessar aquem? Acaba ficando restrito ao mundo aca-dêmico. Mas isso talvez esteja sendo contor-nado com a criação de uma Sociedade Brasi-leira dos Pesquisadores em Jornalismo. A In-tercom foi durante muitos anos um grandeguarda-chuva que acolhia todas as áreas doconhecimento. Mas não tem mais sentidocontinuarmos só com a área de Comunica-ção. Temos hoje uma Associação de Pesqui-sadores em Jornalismo, outra em RelaçõesPúblicas, outra em Cinema. Essa Associaçãodos Pesquisadores em Jornalismo está edi-tando uma revista internacional, em inglês, quecircula no mundo inteiro. Como ela precisa dedivulgação foram fazer fora do Brasil...Protagonistas – Precisa ir lá fora para divul-gar o que se faz no Brasil...Marques de Melo – Porque nesse mundo

globalizado se você não divulga em inglês nãotem condições de subsistir.Protagonistas – Regionalmente, como é queestamos em termos de pesquisa no Brasil?Quer dizer, onde somos mais fortes? São Pau-lo, Rio, Pernambuco, quais são os polos prin-cipais?Marques de Melo – Na verdade, a nossa áreanão é diferente em relação às demais. SãoPaulo concentra quase dois terços da pesqui-sa brasileira, depois vêm Rio de Janeiro, RioGrande do Sul e Minas Gerais; aí vão 80%.Protagonistas – Fora desses eixos, onde háalguma luz?Marques de Melo – Está começando a surgiralguma coisa de forma indutiva. Eu acho queesse atual ministro da Ciência e Tecnologia[Sérgio Rezende] vem trabalhando... Como eleé nordestino, tem sensibilidade com essasquestões. Têm surgido polos na Bahia, emPernambuco, agora no Ceará, no Amazonas.Protagonistas – E mundialmente, quais seri-am as grandes referências na pesquisa deComunicação?Marques de Melo – A principal referência são

os Estados Unidos. Eles são o carro-chefe. Eudiria que 60% da pesquisa em Comunicaçãosão feitos por lá. Depois há alguns países quedespontam. O Brasil, por incrível que pareça,no ranking dos congressos mundiais de Ciên-cias da Comunicação é um dos países commaior presença.Protagonistas – Quais desses países têm amaior média [de pesquisa]? O Brasil pode atéestar à frente de países desenvolvidos...Marques de Melo – Está. É porque nós so-mos um país grande, como os Estados Uni-dos. Lá eles têm esse volume porque são maisde mil universidades que têm programas.Hoje, no Brasil, é quase a mesma coisa. Nóstemos quase mil cursos de Comunicação noPaís todo. Já há mais de 50 cursos de pós-graduação só na área. E está crescendo. So-mos um grande produtor, mas evidentemen-te não temos a legitimidade dos Estados Uni-dos. Porque, de modo geral, os trabalhos sãopublicados em português, ficam aqui mesmo,não saem. É ainda uma pesquisa muito endó-gena, no sentido de que ela é produzida aqui

e aqui fica. Mas, por outro lado, é uma pes-quisa que contempla o exterior.Prado – Quem tem acesso a essas pesqui-sas? Porque se é um mundo muito fechadonão chega ao público, não é? Não se publi-cam livros?Marques de Melo – Estão sendo publicados.O volume de livros lançados é grande. O pro-blema é que esses livros só circulam nessasredes universitárias. O Congresso da Intercomlança anualmente cerca de cem títulos.Prado – Mas chegam às livrarias?Marques de Melo – Não existem mais livrari-as nesse País. Hoje é a internet. Aliás, há pes-soas hoje que não querem nem mais lançarlivros. Lançam, digamos, de forma isolada evendem diretamente. Se têm um apelo ven-dem bem, circulam bem.Protagonistas – Fora do Jornalismo, nessasoutras áreas da Comunicação, quais têm umaprodução acadêmica que encha os olhos?Marques de Melo – Eu acho que Cinema.Cinema é outra comunidade forte no País. Atéporque tem muito apoio do Estado...Protagonistas – E Propaganda?

“Os projetos que deveriam ser encaminhados são os que dizemrespeito à melhoria das condições de produção no Jornalismo, às

rotinas de produção. Mas, de modo geral, eles não se encaminhampara isso. (...) Os projetos que chegam em geral buscam analisar os

aspectos políticos e ideológicos que nós já conhecemosexaustivamente.”

“Temos uma comunidade só de pesquisadores em Jornalismode mais de 300 jovens, que são doutores e mestres pelas

universidades. Essa geração vem produzindo algo deesperançoso. Não é ainda visível.”

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Marques de Melo – Propaganda tem, masnão é pesquisa acadêmica. É pesquisa aplica-da. Talvez a melhor pesquisa no País seja a dePropaganda, porque desde os anos 40, 50 sefaz pesquisa de Propaganda no Brasil. Gran-des empresas fazem isso. Esse conhecimen-to circula entre os próprios profissionais. Aprincipal instituição da pesquisa em Propagan-da no Brasil é a Escola Superior de Propagan-da e Marketing (ESPM), que foi uma escolacriada pelos publicitários nos anos 50.Protagonistas – De forma incipiente, não é?Quem iria imaginar que ela iria chegar ondechegou...Marques de Melo – Mas ela foi criada com

mais legitimidade do que as outras. Foi criadapela própria categoria, com o apoio do PietroMaria Bardi, do Museu de Arte de São Paulo,o Masp, e surgiu com uma certa nobreza, doponto de vista estético e artístico, sendo re-conhecida pela categoria. Diferente do Jorna-lismo. A área acadêmica do Jornalismo não éreconhecida até agora pela profissão.Prado – Você, agora com os seus 50 anos deexperiência, diria que o caminho para se che-gar à profissão de jornalista tem que passarapenas pela faculdade de Jornalismo?Marques de Melo – Acho que não é o únicocaminho, mas precisa passar por lá. Não dápara ser jornalista sem estudar Jornalismo.

Prado – E nos Estados Unidos?Marques de Melo – Nos Estados Unidos éassim há mais de cem anos.Prado – Mas lá se pode entrar no Jornalismosem passar pela faculdade de Jornalismo.Marques de Melo – Pode. E acho que nomundo inteiro...Prado – E aqui?Marques de Melo – Aqui também pode. Háuma série de maneiras de camuflar.Prado – Como? Comprando um diploma numafaculdade de terceira?Marques de Melo – Não comprando um di-ploma... A Folha de S.Paulo contrata quantaspessoas? Não articulistas, jornalistas mesmo.Eles treinam aquela pessoa e depois pagam amulta, que é irrisória. Acho que o problema éoutro. Nos Estados Unidos existem duas for-mas de entrar no Jornalismo: graduação oupós-graduação. Um médico, um engenheiro,um sociólogo que quiser fazer Jornalismo vaifazer um mestrado profissionalizante. Um anoem tempo integral, de manhã, de tarde e denoite, de sábado, domingo e feriado, um anomesmo... Não vai estudar Jornalismo, mas vaiaprender como fazer notícia, uma reportageme tudo mais. O outro caminho, que é o prefe-

rido pelos jovens que saem do secundário, épelo curso de graduação. Esses dois mode-los foram instituídos no começo do séculopassado por lá e funcionam bem. Aqui no Bra-sil, infelizmente, as coisas não aconteceramassim. Eu tentei em vários momentos insti-tuir na USP um curso de pós-graduação...Prado – Permitindo a entrada de outras pro-fissões...Marques de Melo – Permitindo a entrada deoutras profissões. Mas isso foi bloqueadopelos sindicatos e pelas próprias empresas,que não quiseram nos apoiar naquele momen-to. Acho que a gente precisa superar isso.Agora, não dá para pensar que se vai formar

um jornalista em seis meses, rapidinho. Temque passar por uma fase de maturação, comoqualquer outro.Protagonistas – São conhecidas as suas crí-ticas ao ensino superior no Brasil, particular-mente a explosão das escolas sem qualidadee dissociadas da realidade. É possível enxer-gar benefícios nessa explosão desqualificadano ensino superior?Marques de Melo – Acho que sim.Protagonistas – Quais?Marques de Melo – Em primeiro lugar, o Bra-sil é um dos países com menos jovens nauniversidade. As estatísticas mostram queBolívia e Paraguai, por exemplo, têm propor-cionalmente mais jovens nas universidades doque o Brasil. Nós precisamos abrir chancesde mais gente na universidade. Claro, univer-sidade que tenha qualidade. Não estou pre-gando abrir vagas indiscriminadamente. Masa grande vantagem, primeiro, foi permitir que

as chamadas classes subalternas tivessemacesso à universidade. Na minha geração, sóas pessoas da burguesia ou da alta classemédia ou aquela pequena classe média quese esforçava para mandar um filho estudar parater ascensão social, tiveram acesso à univer-sidade. Eu mesmo, quando fiz vestibular, dis-putei com uma quantidade muito grande depessoas, porque eram poucas vagas. Hojevocê tem um maior número de vagas. E aque-las pessoas sem poder aquisitivo têm suple-mentação do governo para estudar. O proble-ma é que nós crescemos exponencialmente.Quer dizer, em 30 anos, isso aqui explodiu semcondições de preparar o professorado. Comoé que você vai formar sem ter formadores?Estamos improvisando nessa questão. Então,beneficiou mais gente, mas o mercado, comoem qualquer outro país, vai ser um fator sele-tivo. Ele vai escolher os melhores. Só que nemtodo mundo que vai para a universidade será

profissional. Veja o caso de Estados Unidos eInglaterra, onde quem faz a universidade seforma cidadão. Alguns ficam na sua profissãoe outros adquirem conhecimento. A universi-dade é para formar cidadãos e não necessari-amente profissionais. Nesse sentido, consi-dero benéfica essa expansão. O que é maléfi-co é não haver por parte do Estado uma arbi-tragem permanente ou mais constante paraseparar o joio do trigo. Acho que uma padariaque fornece pães sem qualidade deveria serfechada, da mesma maneira um hotel que nãotem condições mínimas de higiene. A mes-ma coisa uma faculdade que não forma ade-quadamente. Precisaria ser controlada e fis-calizada. Mas temos um sistema aqui lenien-te, que deixa as coisas irem acontecendo eacontecendo e não acontece nada. Precisariade um cataclismo, um protesto generalizado,para haver uma intervenção.Prado – O argumento de que estão formandocidadãos não dá a essas faculdades a justifi-cativa que precisam para continuarem a nãoter nenhuma qualidade?Marques de Melo – Cidadão é o que se for-ma na universidade de uma maneira geral. E

nem sempre essas que formam maus profis-sionais, sem qualidade, são também aquelasque formam maus cidadãos, que forma pes-soas sem, digamos, estrutura ética...Prado – Formam o quê, então?Marques de Melo – Nada. Formam na verda-de bacharéis e diplomados. O que antigamen-te tinha até algum valor...Protagonistas – Não ia pra cadeia...Marques de Melo – Está acabando agora. Vaiperder uma razão de ser...Prado – Outra coisa é o concurso público, quevocê não mencionou como justificativa para aregulamentação dessas profissões. Porque osfuncionários públicos são os maiores defen-sores dessas reservas de mercado de rela-ções públicas, jornalistas e lutam contra o rom-pimento dessa situação do diploma, justamen-te porque...Marques de Melo – Não é só na área de Re-lações Públicas ou Jornalismo. É em todas asprofissões.Prado – Concurso público, diplomas, títulos...Marques de Melo – O Brasil é um país carto-rial e instituiu alguma coisa que veio da legis-lação italiana de Mussolini [Benito], as corpo-

rações profissionais – e tem todas. Eu sou fran-camente anticorporativista, mas em todas asprofissões; não posso aceitar que só o Jorna-lismo deva ser descorporativizado. Mas essasua observação é interessante porque no casodo Jornalismo essa questão do serviço públi-co sempre foi prejudicial. Por exemplo, quan-do eu estudei Jornalismo, o curso tinha dura-ção de três anos. Na minha opinião, não pre-cisa mais do que isso. Três anos são suficien-tes para você aprender o que é necessário paraser jornalista. Não estou dizendo que no meutempo era melhor, mas eu estudei todas asperguntas do Jornalismo, todos os processos,todas as teorias – impresso, radiofônico, tele-visionado – e estudei cultura geral, como His-tória Antiga, Medieval, Moderna, Contempo-rânea, História do Brasil, Literatura, Política,Economia... Tive um curso de cultura geral queme deu capacidade de avaliar o que aconteceno mundo contemporâneo. Em três anos nósfazíamos isso. Quando eu estava no terceiroano, mudou a regulamentação e passou paraquatro anos. Por quê? Porque exatamente noserviço público se estabeleceu uma mudan-ça de remuneração em função dos anos cur-

“O mercado criou uma série de arestas, que vêm desde a instituição dodiploma, e não se aproxima da Academia. Na verdade, criou-se uma

dificuldade de parte a parte: a Academia não se aproxima do mercado e omercado não se aproxima da Academia. Nós precisamos superar isso.”

“Precisaria acabar com essa arrogância de parte a parte,porque ela infelizmente existe. Mas a quem interessa apesquisa que nós fazemos? Se não interessar para o

mercado, vai interessar a quem?”

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sados: para os que tinham três anos, a remu-neração era menor do que para os que tinhamquatro ou cinco anos. Por isso aumentaram, enão só o Jornalismo, como várias outras, parater quatro anos. Isso tem sido uma influêncianegativa. E hoje não podemos deixar de reco-nhecer que boa parte da categoria dos jorna-listas trabalha no serviço público.Prado – Exatamente. Os maiores defensoresdos cartórios...Marques de Melo – Não sei se eles são osmaiores defensores. Acho que os maioresdefensores são os sindicatos...Protagonistas – Recentemente, a convite doMinistério da Educação, o senhor presidiu aComissão de Especialistas de Ensino em Jor-nalismo para subsidiar o MEC na revisão dasdiretrizes curriculares do curso de Jornalismo.Já da para antecipar algumas das conclusõese propostas que estão sendo encaminhadasao Governo?Marques de Melo – Veja, dá para anteciparporque nós não estamos trabalhando secre-tamente. Posto que quando o ministro [Fer-nando Haddad] me convidou para essa fun-ção, eu hesitei muito, dizendo a ele que já havia

colaborado com o Estado durante muitosanos, desde que fui anistiado, de 79 para cá,em atividades dessa natureza e muitas delasse frustraram. Nós fazíamos os estudos equando chegava o momento de serem enca-minhados eram simplesmente engavetados.Estamos esperando que desta vez seja dife-rente. E o ministro tem o compromisso deencaminhar isso o mais rapidamente possí-vel. Eu disse a ele que só ia presidir se tivessea oportunidade de ouvir a sociedade. Chegouo momento em que não dá mais para vir aquium grupo de acadêmicos para trazer mais pro-postas que só interessam à Academia. O Jor-nalismo só tem sentido se interessar à socie-dade. Nós fizemos três audiências públicas e

ouvimos diferentes setores. E foi daí que sur-giram propostas para a Comissão trabalhar.Por outro lado, também, estamos estudandodiretrizes curriculares. Não estamos trabalhan-do currículo mínimo ou grade curricular. Nãovamos fazer camisa-de-força. Vamos traçar li-nhas gerais, partindo do princípio de quaiscompetências o jornalista deve ter hoje – quesão competências mais ou menos óbvias nomundo contemporâneo – e que tipo de co-nhecimento ele precisa para ter essas com-petências. As recomendações são mais oumenos consensuais. Elas não trazem grandesnovidades, grandes alterações de rumo. Jáexistem algumas diretrizes que estão em vi-gor e simplesmente vamos adaptar o que está

aí. A grande vantagem que temos no País éque a legislação pós-ditatorial garantiu auto-nomia às universidades e liberdade curricularpara as instituições. Não dá para ter no Brasilum curso de Jornalismo que seja o mesmono País inteiro. E hoje é assim. Se você forestudar na Cásper Líbero, no curso da Famecdo Rio Grande do Sul, na PUC do Recife, Fe-deral do Piauí, são todos iguais. O que nósprecisaríamos era que, na verdade, cada insti-tuição tivesse um ensino de Jornalismo, deRelações Públicas ou de História, sintonizadocom as características regionais, já que elesvão trabalhar em um determinado mercado,onde a universidade está localizada. Mas aíperguntam: “O mundo não é globalizado?” Eurespondo que o jornalista vai trabalhar nomundo, mas o mundo começa lá na aldeia.Se ele não for capaz de se locomover na suaaldeia, não terá condições de palmilhar o mun-do. E digo isso por experiência própria. Venhode uma pequena cidade do interior. Comeceicomo jornalista de província, do interior, decomunidade. E cobrir a comunidade significauma competência para entender como é quese dá o conjunto de conflitos que geram asnotícias.Prado – Você é de que cidade?Marques de Melo – Primeiro, vamos esclare-

cer isso bem porque há um certo conflito naminha região. Eu sou natural de Palmeira dosÍndios [Alagoas].Prado – Área perigosa para jornalistas, não?Marques de Melo – Não é tão perigosa não.Mas me criei numa cidade, Santana de Ipane-ma, que, esta sim, talvez seja mais perigosa.Porque Palmeira dos Índios está na fronteiraentre o agreste e o sertão. Santana de Ipane-ma, onde meus pais viveram, está no sertãode Alagoas.Prado – Seus pais faziam o quê?Marques de Melo – Meu pai era comercian-te. Ele trabalhava com secos e molhados. Demodo geral, ele comprava produtos na zonarural, levava para os atravessadores. Ao mes-mo tempo, trazia produtos da capital, ia muitoa Recife, tinha o porto lá em Maceió, e abas-tecia o interior.Prado – Qual foi o primeiro contato com oJornalismo lá na sua cidade?Marques de Melo – Primeiro, meu pai eraum sujeito bem informado. Até porque ele vi-ajava muito – eu via meu pai uma vez por se-mana, porque ele vivia viajando. Ele se infor-mava, tinha assinaturas de jornais em casa.Eram um jornal de Pernambuco, um de Ala-goas e eventualmente um do Rio de Janeiro –Correio da Manhã, Diário de Notícias ou Tribu-

na da Imprensa. E meu pai gostava muito derádio. Ele tinha um dos poucos rádios poten-tes da cidade. Eu me criei em um clã que eraabastecido por notícias, além de ser de umafamília que era muito envolvida com a políticalocal. A notícia nos interessava, até porquemeus tios, primos e parentes todos viviammetidos na política local e precisávamos sa-ber o que estava se passando no Rio de Ja-neiro – morte de Getúlio [Vargas], e isso maisaquilo, a mudança em Alagoas: Arnon Afonsode Melo toma posse como governador, Sil-vestre Péricles... Eu me criei nesse mundode política e de informação e, evidentemen-te, isso vai penetrando no sangue. Já na es-cola primária, os professores diziam para mi-nha mãe que eu tinha facilidade para escre-ver.Protagonistas – E isso ficou na cabeça?Marques de Melo – Fiquei com aquilo na ca-beça. Depois comecei a fazer redações queeram bem avaliadas pelas professoras, atéque, aos 15 anos, fui à Gazeta de Alagoas eme propus a ser correspondente lá na minhacidade, Santana de Ipanema.Protagonistas – Já com salário? Ganhava umdinheirinho?Marques de Melo – Ganhava migalhas. Na-quele tempo se ganhava um jeton... [Nota da

Redação: o termo, de origem francesa, é uti-lizado para designar a remuneração que inte-grantes de Conselhos de Administração deempresas recebem por reunião de que parti-cipam e que parlamentares – federais, esta-duais ou municipais – ganham por sessão ex-tra a que comparecem; genericamente, podeser classificado como bônus ou bonificação)Protagonistas – Jeton naquela época era umacoisa boa...Marques de Melo – Jeton era uma boa. Jor-nalistas viviam de jeton. Não sei se os maisjovens sabem disso. Até 1964, todo jornalistatinha um salário mínimo na Redação. O salá-

rio propriamente vinha do jeton que recebiade Câmara dos Deputados, Câmara dos Vere-adores, Associação Comercial, sindicatos, queele cobria...Protagonistas – Tinha também passagemaérea de graça, não pagava Imposto de Ren-da, entrava de graça em espetáculos...Prado – Era uma forma de corrupção, não?Existe ainda hoje o jeton, de uma forma maissofisticada?Marques de Melo – Eu acho que isso foi re-duzido quando instituímos no Brasil empre-sas jornalísticas que passaram a contratar ojornalista em tempo integral, pagando um salá-

rio digno. Eu diria que isso muda com a Edito-ra Abril, que foi um divisor de águas no Jorna-lismo brasileiro. Depois vêm Estadão, Folha eas outras empresas.Protagonistas – Editora Abril?Marques de Mello – Sem dúvida. Foi a pri-meira editora que veio em modos america-nos profissionalizar... Tanto que todo mundoqueria trabalhar na Abril. Eu mesmo, quandovim para São Paulo, o primeiro teste que fizfoi lá. Vários amigos já estavam aqui, comoMilton Coelho da Graça e outros. Por pouconão trabalhei na Abril também.Protagonistas – Sabemos que o Jornalismoé um mercado que tem crescido pouco. Oque leva os jovens a terem esse fascínio peloJornalismo, a ponto de não enxergarem essarealidade e escolherem uma carreira que tal-vez não lhes deem uma única chance na vida,tamanha a diferença entre oferta e demanda?Marques de Melo – Bom, o Jornalismo não éuma coisa material. Na realidade, é uma coisaespiritual, quer dizer, o contato com os acon-tecimentos que você está presenciando etransformando em mensagens que vão ser

“Eu tentei em vários momentos instituir na USP um curso de pós-graduação permitindo a entrada de outras profissões. Mas isso foi

bloqueado pelos sindicatos e pelas próprias empresas, que nãoquiseram nos apoiar naquele momento. Acho que a gente precisa

superar isso.”

“Acho que uma padaria que fornece pães sem qualidade deveria serfechada, da mesma maneira um hotel que não tem condições mínimas dehigiene. A mesma coisa uma faculdade que não forma adequadamente.

Precisaria ser controlada e fiscalizada. Mas temos um sistema aquileniente, que deixa as coisas irem acontecendo e acontecendo e não

acontece nada.”

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difundidas. Isso é uma coisa que fascina qual-quer pessoa.Protagonistas – É um estado de espírito?Marques de Melo – É um estado de espíritoe ao mesmo tempo uma capacidade de fazerparte do mundo. O jornalista vive o mundo enão no mundo. Essa é a diferença. Mas eudiscordo um pouco de que não exista chancede ocupação. Eu acho que é crescente.Prado – Empregos você diz?Marques de Melo – Empregos e oportunida-des de serviço.Protagonistas – Eles se abrem, muitas ve-zes, fora da área...Marques de Melo – É que a área mudou. Aárea não é só o jornal. O Jornalismo é uma ati-vidade que hoje se exerce dos dois lados dobalcão. Por exemplo: assessoria de imprensa.Prado – Mas isso é Jornalismo?Marques de Melo – Isso é Jornalismo, só quedo outro lado do balcão.Prado – Se é do outro lado do balcão, não éJornalismo. O Jornalismo é voltado para acomunidade. Se você está defendendo os in-teresses de uma empresa, então não é Jor-nalismo. É Relações Públicas, é lobby...Marques de Melo – Não, não, é outra coisa!

O Brasil conseguiu desenvolver um modelode atividade profissional na assessoria de im-prensa que é correto, digno e de muita utilida-de. Por quê? Porque os jornalistas que traba-lham hoje em dia nas assessorias de impren-sa não praticam mais aquilo que faziam os jor-nalistas do tempo do jeton. Naquele tempo oque ocorria? Você era setorista de um jornal eo seu salário era pago pela fonte e você faziadireto aquele serviço de correia de transmis-são. Hoje em dia, um jornalista vai apurar. Sóque quando ele chega na fonte, esta já temoutro jornalista que facilita o trabalho de cole-ta de dados. Durante os primeiros tempos fi-cou muito difícil essa separação, esse enten-dimento. E talvez tenha sido útil o fato de queos relações públicas no Brasil não quiseramassumir essa questão da assessoria de im-prensa. Na verdade, eles se colocaram numa

posição de deixar isso para o mercado. Por-que nos Estados Unidos quem faz isso sãorelações públicas, mas aqui não. Esse merca-do foi desocupado pelos relações públicas eocupado pelos jornalistas com muita compe-tência. Hoje em dia, o Jornalismo é basica-mente acionado pelas fontes.Prado – Mas isso redesenha o Jornalismo.Na medida em que a fonte é que provoca ojornalista, não é mais o jornalista nem o editorquem vai decidir...Marques de Melo – É uma ilusão achar que éo editor quem decide. Na nossa geração secriou essa ilusão de que é o editor quem deci-de. As decisões são tomadas de uma manei-ra muito complexa.Protagonistas – Ele tem que cumprir umaagenda, não é?Marques de Melo – O problema é que a de-

mocracia não existia no País. Ela está sendopouco a pouco cultivada. Numa sociedadedemocrática, é legítimo que as fontes este-jam preocupadas em aparecer bem na impren-sa.Prado – Para sobreviver eles têm que apare-cer bem, senão, se aparecer mal na impren-sa, uma empresa pode até fechar.Marques de Melo – Ela pode aparecer malse não souber fazer essa mediação. Eu achoque, hoje, os assessores de imprensa no Bra-sil são profissionais com muita capacidade detrabalho e ao mesmo tempo muita criativida-de e não são corruptos.Prado – E defendem um interesse que é dopatrão deles.Marques de Melo – Defendem um interes-se, mas não é a mesma coisa que um publici-tário ou um relações públicas. O jornalista, naverdade, trabalha bem para a empresa se ele

informar bem. Se ele mantiver o seu media-dor, que é o jornalista, bem munido de infor-mações.Protagonistas – Esse modelo é meio pró-prio...Marques de Melo – É uma invenção brasilei-ra...Prado – Isso é complicado, porque se vocêvê o cenário da mídia, com as dificuldades detrabalho, as poucas oportunidades e os salári-os baixos, nós voltamos ao jeton, mas um je-ton com um nome mais sofisticado. Quandoum jornalista, por exemplo, aceita um convitede uma assessoria de imprensa para uma pa-lestra dentro de uma empresa ou quando eleaceita um free-lancer para uma determinadaempresa, não é uma forma de envolvimentodesse profissional que está na Redação atra-vés de um jeton?

Marques de Melo – Acho que não. Acho quese o jornalista for ético...Prado – Ele pode fazer uma matéria na em-presa e depois escrever a respeito dessaempresa?Marques de Melo – Escrever com indepen-dência. Não é o fato dele ter ganho um jantarou uma viagem...Prado – Os americanos não aceitam isso. Osgrandes jornais americanos.Marques de Melo – Pois é, mas no caso bra-sileiro temos uma cultura diferente. Se a gen-te não aceita, a gente está ofendendo, enten-deu? É a questão do presentinho: você vairecusar um presente de um vizinho seu? Éoutra maneira de se conduzir que nós temosna sociedade brasileira. Não é isso que faz ojornalista ser mais ou menos corrupto. Ele serácorrupto se for um cidadão corrupto.Protagonistas – De qualquer modo, no jornalele não vai fazer o que ele quer. Ele vai ter queseguir uma linha editorial, pode ter as opini-ões pessoais dele, mas não pode fugir da li-nha editorial do veículo no qual trabalha. Àsvezes até vai ter que fazer matérias com asquais pessoalmente não concorda.Marques de Melo – Mas é difícil. Quando nãoconcorda, não faz. Ele tem que ser a mesmapessoa de um lado do balcão e do outro tam-bém. Não vai cobrir uma coisa porque rece-

beu uma orientação do seu editor, contrarian-do completamente o ângulo de apuração queele defendeu. Tem que ser fiel à verdade, aosfatos que presenciou. Isso significa o quê?Que ele deve abastecer o seu leitor com múl-tiplas informações de múltiplas fontes, porquequem vai decidir é o leitor, o telespectador.Protagonistas – Voltando à questão das opor-tunidades, obviamente que os jornalistas en-contram muitas oportunidades em várias áre-as. Mas no Jornalismo o que acontece é quena imensa maioria dos casos os alunos estu-dam para trabalhar em Redação e muitas ve-zes não conseguem ter uma única oportuni-dade.Prado – Encontram oportunidades em outroslocais. Mas no Brasil começou tarde essenegócio de jornalistas assumirem outras fun-ções. Começou mais tarde porque nos Esta-dos Unidos e na Europa jornalistas já ocupa-vam cargos de direção de empresas.Marques de Melo – Eu acho que no Brasilcomeçou cedo, porque Hipolito da Costa jáera alguém que recebia subsídios para fazerJornalismo. Max Weber [filósofo alemão], es-tudando esse fenômeno, dizia o seguinte: “O

Jornalismo é a chamada teoria da escada: sãopoucos os que têm vocação e não sobem aescada; mas os que sobem passam para apolítica ou para as empresas”. Então, é umatentação que existe em muitas outras socie-dades. Os jornalistas que têm vocação per-manecem na atividade.Protagonistas – É uma coisa meio sacerdo-tal, não é?Marques de Melo – Quando eles sobem, seafastam, não voltam mais para as redações.Protagonistas – Voltando à questão dos prá-ticos. Os jornalistas brasileiros saem das uni-versidades, vão para o mercado e viram práti-cos. Ou seja, eles não voltam mais para a uni-versidade. E a questão dos cursos de treina-mento dos grandes veículos que buscam ostalentos no mercado, treinam-nos e depois,na medida do possível e do interesse, ficamcom eles.Marques de Melo – Mas isso aconteceu comtodas as outras profissões. Na verdade se dámuita atenção para esses cursos da Abril, daGlobo. Toda empresa é assim.Protagonistas – Mas nas outras atividadeshá o estágio, que permite...

Marques de Melo – Pois é, o Jornalismo é aúnica carreira no Brasil em que é proibido oestágio. O engenheiro faz isso normalmente.Ele é admitido nas empresas e estagia.Protagonistas – Nós vamos conseguir voltarcom isso?Marques de Melo – Na verdade o estágio éuma farsa. Todo mundo faz. Sindicato fala... Éum absurdo isso.Prado – Não pode, mas faz. Você acha quedeveria regulamentar o estágio?Marques de Melo – Deveria liberar. Se puderregulamentar, melhor ainda. Aliás, já está re-gulamentado porque o presidente da Repú-blica baixou uma legislação sobre estágio queprotege o estagiário. Os jornalistas passaramquantos anos desde a regulamentação da pro-fissão? 40 anos? E com o estágio proibido há30, 35 anos. São as maiores aberrações quenós temos na história do Brasil. E, portanto,criou essa esquizofrenia nos cursos de Jorna-lismo. Os alunos entram nos cursos, não têmoportunidade de ir ao mercado e quando en-tram é por debaixo dos panos e não queremmais voltar para a universidade. Eu, quandoassumi a direção do curso de Jornalismo da

“O Jornalismo não é uma coisa material. Na realidade, é uma coisaespiritual, quer dizer, o contato com os acontecimentos que você estápresenciando e transformando em mensagens que vão ser difundidas.

Isso é uma coisa que fascina qualquer pessoa.”

“[O assessor de imprensa] Defende um interesse mas não é a mesma coisaque um publicitário ou um relações públicas. O jornalista, na verdade,

trabalha bem para a empresa se ele informar bem. Se ele mantiver o seumediador, que é o jornalista, bem munido de informações.”

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ECA sempre estimulei. “Vocês têm que fazerestágio desde o primeiro ano. Se tiverem chan-ce, têm que fazer”. E a nossa função na univer-sidade era verificar o que se estava vendo lá ese nós estávamos defasados aqui, com o re-sultado da metodologia. É claro que nem to-dos os professores de Jornalismo gostam dis-so. Preferem receber a confirmação de que oque estão dando na aula está correto. Masquando não está, têm que mudar.Protagonistas – Olhando para a sua trajetó-ria de 50 anos, que comparação faria das vári-as gerações de jornalistas que viu nascer eque, de certo modo, ajudou a formar?Marques de Melo – Bom, como o Prado es-tava dizendo há pouco, nós somos de umageração em que o jornalista era muito aguerri-do. Porque nós tínhamos uma grande oposi-ção que era o regime militar...Protagonistas – Desculpe, o senhor temquantos anos?Marques de Melo – Tenho 66. Eu comeceino Jornalismo muito jovem, com 15 anos.Então, ainda me considero jovem. Espero termais tempo ainda para...Prado – Mais 60...Marques de Melo – Pelo menos. Se for como

a minha bisavó, que morreu com 106 anos...(risos) Não sei se chegaria a tanto...Prado – Quem sabe não ultrapassa a sua bi-savó?Marques de Melo – Mas, hoje, como nãoexiste mais um inimigo como a ditadura, cria-se uma certa inércia. As gerações que estãona faculdade não têm muito élan, muito entu-siasmo.Prado – Quer dizer que o Jornalismo precisade um inimigo para poder batalhar, não é? (ri-sos)Marques de Melo – Acho que toda socieda-de precisa ter algum lenitivo, alguma razão deser. Tudo isso coincidiu com a queda do Murode Berlim [1989]. Não sabíamos para onde irí-amos.

Protagonistas – Precisa de um contraponto.Na época, ou era comunista ou era contra.Marques de Melo – Não digo todos, mas al-guns eram comunistas e outros eram contra.Mas pelo menos tínhamos o socialismo comouma meta. Hoje, o que existe? Há, na verda-de, uma sociedade capitalista cruel e desu-mana e não existe alternativa.Protagonistas – Em relação às novas gera-ções, as que estão saindo da universidade parao mercado, sob o impacto das novas e revolu-cionárias tecnologias – e que dentro de algunsanos estarão no comando da nossa atividade–, que análise é possível fazer? Com elas, agente estará injetando na atividade de Comu-nicação uma nova seiva comunicacional?

Marques de Melo – Temos duas coisas aí: aeuforia tecnológica e a tecnofobia. Há muitasuniversidades em que ainda predomina a tec-nofobia. São profissionais mais antigos, desa-costumados com as novas tecnologias e quetemem qualquer mudança. Eu acompanhei naprópria ECA essa questão de tecnofobia.Quando chegaram lá os computadores, pas-samos por uma fase intermediária, que eramaquelas máquinas elétricas. Quando tive opor-tunidade, consegui uma verba para comprarmáquinas elétricas para o laboratório. Os alu-nos logo se familiarizaram, mas os professo-res reclamaram. Alguns falaram: “Cadê a mi-nha Olivetti Lettera 22?” Tive que mandar bus-car no almoxarifado. É a mesma coisa com oscomputadores. Quando os computadoreschegaram às redações surpreenderam umageração inteira. Eles atropelaram. Por outrolado, o que vejo hoje é uma euforia tecnológi-ca. Você vai em qualquer faculdade de Comu-nicação desse País e só se fala de internet. Eisso tudo é uma ilusão porque os processosjornalísticos continuam sendo os mesmos. Aapuração dos fatos que estão acontecendo...E eles vão tendo suportes ou roupagens quea tecnologia vai ajudando a melhorar. Às ve-zes, um produto é de pior qualidade porquenão tem a boa informação. As pessoas se ilu-dem com a aparência, com as possibilidades

que a tecnologia oferece. Uma das melhorescoisas que a internet oferece é a possibilida-de de você fazer com hipertexto uma série decomplementações. E não é quase usado. Parater o hipertexto precisaria de mais informa-ção, interpretação e detalhes dos aconteci-mentos.Protagonistas – Para poder usar, não é?Marques de Melo – Para poder usar, não adi-anta só ter. E há o fato de captar imagem esom. Você fica perdido. As vezes eu vou acom-panhar certas experiências na internet e vejoque não há tratamento da informação. A infor-mação é bruta. O usuário fica completamen-te sem condições de avaliar o que está ali.Protagonistas – O que assusta também é quese está escrevendo cada vez pior.Marques de Melo – Mas isso tem a ver coma formação básica. Eu, por exemplo, na épocaem que estudei, nos anos 1950, havia umaescola primária e na secundária um aperfeiço-amento que nos fazia chegar à faculdade do-minando a língua.Protagonistas – Tinha que cumprir.Marques de Mello – Tinha que cumprir. Hoje,os professores do ciclo básico, 1º e 2º graus,não forçam o aluno a escrever. E eles chegamà universidade, em todas as áreas, sem saberse comunicar em língua portuguesa.

Prado – Mas mesmo na ECA, em que a pe-neira é muito fina... Há centenas de faculda-des de Comunicação no Brasil, mas evidente-mente o funil é a ECA-USP. Presume-se que anata desses jovens que saem do curso médioentre na ECA, não é?Marques de Melo – Sem dúvida. Os melho-res alunos da USP são da ECA.Prado – E os melhores alunos de Jornalismopresumo que sejam da ECA também, não?Marques de Melo – Sem dúvida, mas com omesmo problema de redação. Sobretudo por-que esses da ECA, no período em que eu diri-gia o Departamento de Jornalismo, muitosvinham da Engenharia.Prado – Como?! Estudantes de Engenharia?!Marques de Melo – Estudantes de Engenha-ria. Como no vestibular era necessário sabermuita matemática, eles iam bem em matéri-as de Exatas. E depois havia uma migraçãoda Poli para a ECA, porque na USP não é pos-sível fazer duas faculdades ao mesmo tempo.Ou seja, eles entravam na Poli, não gostavam,se mudavam para a ECA para fazer Jornalis-mo e passavam na frente dos outros. (risos)Eu tive que criar um laboratório de redaçãopara recuperar a capacidade de escrever devários desses alunos.Prado – E resolveu o problema?

Marques de Melo – Resolveu, porque nóstambém tínhamos lá alguns professores quetrabalhavam com texto jornalístico e criação.Prado – E continua esse sistema de ingressodistorcido?Marques de Melo – Não sei, porque me apo-sentei e não acompanho essa questão da ECA.Protagonistas – Professor, vamos entrar poroutra vertente. Nessas cinco décadas, o se-nhor viu o Jornalismo se transformar de umaatividade predominantemente masculina, emuma atividade na qual, já há alguns anos, háum predomínio feminino. Além da alegria dever o toque feminino em um ambiente edito-rial, que outras contribuições a presença dasmulheres trouxe para o Jornalismo?Marques de Melo – Primeiro, a questão da

igualdade. Nós tínhamos uma atividade, umaprofissão machista, em que as mulheres eramisoladas. Considero salutar o fato de termosigualdade, dar oportunidades iguais para to-dos os seres humanos. No caso do Jornalis-mo, o que aconteceu com a presença da mu-lher tem a ver com um certo abrutamento dascondições de trabalho. Não é só no caso doJornalismo. Na Educação, a maioria dos pro-fessores são mulheres. Tive oportunidade defazer algumas observações sobre essa ascen-são da mulher no mercado do Jornalismo.Pegue uma faculdade como a Cásper Líbero,que foi a primeira do Brasil; as primeiras tur-mas tinham muitas mulheres. Em dez anos,elas eram a maioria. Foi aumentando aos pou-quinhos. Por quê? Porque o Jornalismo é uma

escapatória, primeiro, para a ascensão social.Jovens das classes subalternas podiam terascensão social por meio do Jornalismo. E,ao mesmo tempo, libertação da estrutura dedominação familiar. As mulheres, na verdade,eram preparadas para certas profissões queeram ligadas ao feminino. E, no começo, quaiseram as oportunidades que se abriam para asmulheres no Jornalismo? Eu inclusive tive aoportunidade de fazer uma pesquisa quandoa Cásper Líbero completou 20 anos, com alu-nos formados de turmas anteriores, e boaparte daquelas que tiveram espaço nos veícu-los foi na página feminina. Depois, aos pou-quinhos, foram alcançando espaços maiores.E isso tem a ver também um pouco com operíodo militar, quando muitas redações pas-saram a adotar a mulher como, digamos, umaforma de penetrar em certas fontes que eramabsolutamente fechadas para os homens. Porexemplo, você mandava um repórter cobrir oII Exército. De um modo geral, ele já encon-trava aquela cara feia ali. E com a mulher issoera diferente. Algumas dão testemunho deque era difícil conseguir certa informação, maso general as tratava como filhas, sobrinhas,

“Um jornalista que não tem o hábito de ler constantemente e não cultivaisso acaba ficando embotado. (...) Pela leitura você tem capacidade deabstração. Você lê, para, reflete e volta à leitura. (...) A leitura continua

sendo fundamental para o jornalista abstrair a realidade e ir ao cerne dainformação, do fato como ele é, e não das suas aparências.”

“As mulheres, na verdade, lutaram para ocupar esse espaço [noJornalismo]. Eu via isso nas salas de aula na USP e na Metodista.

Elas sabiam que iam disputar o mercado com os homens. E seesforçavam muito mais do que eles. Isso é um fator favorável para a

ascensão da mulher.”

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com uma certa deferência, que não daria parao homem. O homem mandaria logo para ou-tro nível. (risos)Prado – E tem a questão do salário também,não é? Porque o homem, como chefe da fa-mília, não poderia ser repórter ganhando umsalário que não lhe permitisse constituir umafamília. A mulher acabava tendo um saláriopara complementar a renda familiar.Marques de Melo – As mulheres, na verda-de, lutaram para ocupar esse espaço. Eu viaisso nas salas de aula na USP e na Metodista.Elas sabiam que iam disputar o mercado comos homens. E se esforçavam muito mais doque eles. Isso é um fator favorável para a as-censão da mulher.

Protagonistas – Um outro aspecto que gos-taríamos de abordar é a questão da leitura.De um modo geral, se tem uma queda visívelno hábito de leitura das novas gerações, so-bretudo dos meios impressos. Ler jornais, re-vistas, livros e outros periódicos, coisas a queas gerações anteriores se acostumaram. Issopode trazer conseqüências concretas para aciência da Comunicação, para estudos, pes-quisas, hábitos da sociedade de consumir in-formação?Marques de Mello – Temos que levar em con-sideração que as fontes de informação nãosão só mais fontes impressas. Muitas vezesa pessoa se informa muito mais pelo cinema,pela televisão, pela imagem e pelo som do

que pela letra impressa. Mas, sem dúvida, umjornalista que não tem o hábito de ler cons-tantemente e não cultiva isso acaba ficandoembotado. Já dizia Marshall McLuhan ser aleitura um estimulante civilizatório. Pela leitu-ra você tem capacidade de abstração. Vocêlê, para, reflete e volta à leitura. Coisa que nãoacontece com a informação via oral, pelo rá-dio e pela televisão, onde não há tempo pararefletir. É muito volume que passa e vai desa-parecendo. A leitura continua sendo funda-mental para o jornalista abstrair a realidade eir ao cerne da informação, do fato como ele é,e não das suas aparências.Protagonistas – E para a sociedade? Porexemplo, quem consome essa informaçãoestá mudando os hábitos, de um modo geral.E isso obriga as empresas a se adequarem àdemanda do mercado. Pode haver mudançasaí? Estaríamos a caminho de uma evolução,de um novo jeito de fazer Jornalismo no pla-neta? Vamos ter que repensar o saber jorna-lístico ou isso é uma bobagem?Marques de Melo – Não é uma bobagem,não. Na verdade, continuamos tendo um divi-sor de águas... Nas sociedades que são de-

mocráticas e que asseguram a capacidade decognição para todos os cidadãos... Ou seja,você pega os países ricos, eles educam suascrianças, seus jovens, todos pela escola. Issoleva a entender que o cidadão que passa pelaescola, que aprende a ler, que aprende a usara cultura instituída pela sociedade, tem capa-cidade de ensejar algo mais do que o que lheé oferecido. No caso de uma sociedade comoa nossa, que antigamente era chamada desubdesenvolvida ou em estado de desenvol-vimento, a grande maioria sequer passa pelaescola. É excluída da escola. Essa massa nãotem capacidade de abstração. Para resolver-mos esse problema precisamos dar educaçãode boa qualidade para todos. Aí passaremos ater uma sociedade que vai demandar outrotipo de informação. Hoje temos uma grandemaioria que demanda uma informação maissuperficial porque ela não tem capacidade deassimilar a mais profunda.Prado – Nem tempo, não é?Marques de Melo – Nem tempo nem tesãopara isso. Fica na superfície. É mais fácil vocêver um videoclipe do que ler uma revista es-pecializada.Prado – E, nesse cenário, como vão ficar osjornais tradicionais? Todos eles estão em cri-se, não é? Você vê o The New York Times semsaber para que lado vai, com dificuldades eco-

nômicas, trazendo o Carlos Slim [empresáriomexicano] para colocar dinheiro. A GazetaMercantil fechou, o Jornal do Brasil não é mais“aquele”. Esses jornais vão fechar? O que vaiacontecer com os jornalões?Marques de Melo – Não vão fechar, mas osjornalões devem encontrar uma nova fisiono-mia...Prado – E qual é ela?Marques de Melo – Os jornais deveriam terfeito a mesma coisa que se fez nos EstadosUnidos quando surgiu o rádio. Em 1920, quan-do surgiu o rádio, era essa mesma lenga-len-ga de que os jornais iriam desaparecer. O queos donos dos jornais fizeram? Contrataram oescritório de pesquisas sociais aplicadas daUniversidade de Columbia, dirigido por PaulLazersfeld, e confiaram a ele uma grande pes-quisa. Investiram na pesquisa. Ele realizou umestudo prolongado durante alguns anos e fezo seguinte prognóstico: “Não vai mudar nada.

O que precisa é cada um encontrar o seu es-paço”. Ele chegou onde chegou pela seguinteconclusão: quem usa os meios de comunica-ção, usa todos. Ou você usa todos ou não usanenhum. É a chamada “lei de todos ou ne-nhum”. O jornal não mais poderia fazer umJornalismo tipicamente informativo como es-tava fazendo o rádio. Precisava ter algo mais.Continua hoje a mesma coisa.Prado – O que fazer então? Alguns jornais jáestão descobrindo o caminho?Marques de Melo – Acho que alguns jornaiseuropeus e alguns jornais americanos estãoprocurando atender mais aos públicos seg-mentados. Porque não há mais espaço paraum jornal como o New York Times, porque eleé um jornal de elite e vai continuar atendendoa uma elite.Prado – As circulações vão diminuir?Marques de Melo – Sim, mas podem sersustentadas se houver segmentação. Já no

início do século passado, o próprio Pullitzer,nos Estados Unidos, chegou à conclusão deque não poderia ter mais um jornal para todaa comunidade. Dividiu-o em editorias e aseditorias já eram encaminhadas para atender,digamos, a quem trabalha com economia,política, cultura. Esse modelo precisa ser apro-fundado.Protagonistas – A universidade tem caminhospara estudar isso junto com o mercado ouentra naquele hiato?Marques de Melo – Nos Estados Unidos eem outros países está sendo feito...Protagonistas – Aqui não?Marques de Melo – Aqui não. Aqui ainda háum divórcio entre Academia e o mercado. AAcademia não presta atenção ao mercado;aliás, tem uma certa rejeição...Protagonistas – Lá atrás, em 1920, os gran-des veículos contratavam uma pesquisa poranos para fazer esse trabalho, que envolvia auniversidade. Hoje estamos, de novo, diantede um dilema parecido.Prado – Se falarmos no mercado, a faculdadede Comunicação deveria estar conversando

com a faculdade de Administração de Empre-sas para saber como é que se administra umaempresa jornalística.Marques de Melo – Ninguém pratica a inter-disciplinaridade.Protagonistas – Isso tem a ver com a sus-tentabilidade no negócio da Comunicação, nãoé? Porque se a publicidade entra em crise...Prado – Na verdade, a publicidade migra, nãoé?Marques de Melo – Tem a ver com a ideolo-gia do Jornalismo no Brasil. O jornalista, du-rante muitos anos e ainda tem resquícios dis-so, não queria pôr a mão na massa. A Reda-ção é uma fortaleza e ele não quer saber oque acontece na Publicidade. Mas deveria to-mar conhecimento porque é ela que paga oseu salário. Sem publicidade não existe jor-nal.Protagonistas – A verdade é que por essas eoutras temos visto crescer o número de leito-res na internet, em detrimento de maior ex-pansão do Jornalismo impresso...Marques de Melo – Isso aconteceu porque,pouco a pouco, o marketing foi tomando con-ta dos jornais e a direção deles passou a ser

dada por engenheiros e tecnocratas, e nãopelos jornalistas.Protagonistas – O senhor acha que precisaser repensada essa relação Igreja-Estado den-tro do Jornalismo, que sempre foi um dogmana nossa geração? “Redação é uma coisa eComercial é outra”.Prado – Jornalista não tem que se meter naárea Comercial mesmo...Marques de Melo – Não se meter, mas eleprecisa ter conhecimento, tem que participar.Ele não pode ser alguém que desconheça...Protagonistas – Na gestão, precisa ter o olharjornalístico também.Marques de Melo – De um modo geral, osestudantes de Jornalismo têm pouca apetên-cia para buscar as cadeiras de Administração,que são consideradas um mal necessário. E,ao mesmo tempo, não têm bons professo-res. Não se formou uma categoria capaz dedar conta do recado.Prado – É porque o jornalista não sabe quemé o cliente dele. Alguém que escreve umamatéria não deveria saber o que quer aquele

“O jornalista, durante muitos anos, e ainda tem resquícios disso,não queria pôr a mão na massa. A Redação é uma fortaleza e elenão quer saber o que acontece na Publicidade. Mas deveria tomar

conhecimento porque é ela que paga o seu salário. Sempublicidade não existe jornal.”

“Nossa categoria é arrogante. Ela acha que sabe tudo, que tem averdade. E não está preocupada em dialogar com o seu público.

Ela quer, na verdade, fazer a cabeça do público.”

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sujeito que vai consumir esse produto e seele quer esse produto?Marques de Melo – Nossa categoria é arro-gante. Ela acha que sabe tudo, que tem a ver-dade. E não está preocupada em dialogar como seu público. Ela quer, na verdade, fazer acabeça do público.Protagonistas – A internet está mudandomuito esse jogo de interlocução das fontescom a sociedade. Como é que isso mexe coma cabeça das pessoas no Jornalismo?Marques de Melo – Isso tem a ver com aquestão da democracia. Cada vez está se aper-feiçoando a democracia no Brasil e democra-cia significa transparência. Tudo precisa seraberto. A internet facilita, mas se não tivessea internet haveria outro mecanismo...Protagonistas – Ela está submetendo o Jor-nalismo hoje a uma fiscalização muito maisrigorosa.Marques de Melo – O jornalista, que deveriaestar fiscalizando, agora está sendo fiscaliza-do. (risos)Protagonistas – E isso é uma coisa que qua-se nunca aconteceu, não é?Marques de Melo – Está correndo atrás do

prejuízo. É preciso entender que muitas ativi-dades jornalísticas, na verdade, chantageiam...Não o Jornalismo em si, mas muitas empre-sas jornalísticas existem em função de inte-resses outros que não, digamos, vender infor-mação. Se elas fossem empresas capitalis-tas típicas, estariam procurando saber o queo cliente quer e trabalhar na relação custo-benefício.Prado – E não fazem isso hoje?Marques de Melo – Muitas empresas jorna-lísticas, sobretudo no caso de jornais diários,mantêm o jornal mais como um instrumentode “diálogo” com o Estado, ou seja, de chan-tagem com o Estado. Lembra do [Assis] Cha-teaubriand? Ele ameaçava...

Prado – E isso continua?Marques de Melo – Acho que essa mentali-dade ainda continua. São poucas as empre-sas realmente jornalísticas, como Folha, Esta-do, Globo, Veja, que vendem informação.Prado – O negócio delas é o leitor que com-pra aquele produto.Marques de Melo – É a informação que évendida para o leitor. E da credibilidade tiramuma recompensa com a publicidade. Por queos jornais não se preocupam em aumentar atiragem no Brasil? Muitos jornais estão satis-feitos com os anúncios que têm. Se aumen-tar a tiragem o custo aumenta e isso eles nãoquerem.Protagonistas – Na qualidade de primeiro

doutor em Jornalismo titulado por universida-de brasileira, o senhor diria que o Jornalismobrasileiro contemporâneo é de qualidade? Quevirtudes apontaria nele e onde residiriam suasmaiores fragilidades?Marques de Melo – Ele é de qualidade para aelite. Acho que temos um Jornalismo de boaqualidade, em igualdade de condições com oJornalismo do chamado Primeiro Mundo, masé um Jornalismo para a elite. O grande pro-blema é que ele não chega à maioria da popu-lação. Nós precisamos saldar essa dívida coma população brasileira. Criar um tipo de Jorna-lismo, de veículos que cheguem ao cidadãocomum. Começaria dando uma solução quepode ser mal interpretada: precisamos baixaro nível do Jornalismo.Prado – Mas já tem um nível baixo...Marques de Melo – Não estou falando embaixar o nível do ponto de vista ético. Estoufalando baixar o nível do ponto de vista cogni-tivo. Qual é a agenda dos jornais diários? Bas-tante informação onde? No Planalto, no Palá-cio do Governo, assembleias legislativas, nosbancos e nas indústrias. Mas não vão às peri-ferias, nem aos sindicatos e nem às igrejas.Não vão aonde o povo vive. É preciso fazeruma pauta que interesse ao cidadão comum.Prado – O Estadão tentou com o Jornal da

Tarde, que nasceu como um jornal vesperti-no, para a elite, e de uma hora para outra bai-xou o nível buscando a vertente popular...Marques de Melo – E a tiragem, aumentou?Prado – Não que eu saiba.Marques de Melo – Pois é... Se não aumen-tou a tiragem, ele simula que está mudando,mas não mudou. A grande experiência de jor-nal popular no Brasil chama-se Última Hora.Samuel Weiner fez daquilo um jornal realmen-te popular, que tinha o instinto do povão. Eera um jornal de boa qualidade no sentidocultural do texto. Tinha um Jornalismo de opi-nião, combativo, mas sintonizado com as de-mandas da população. Isso foi sufocado dealguma maneira.Prado – Você não acha que esses jornais gra-tuitos que são distribuídos na esquina podempreencher esse papel?Marques de Melo – Podem e estão preen-chendo. Estão criando um hábito de leitura napopulação em geral. São bem feitos, bem in-formativos, mas se limitam só a isso. Para essepúblico, é suficiente. Agora, se esse públicoadquirir o hábito de leitura constante, vai lermais jornais.Prado – Mas aí é mais uma mina nas basesdo jornalão, na medida em que esses que sãodistribuídos na esquina crescem via publici-dade. O Metro e o Destak já estão com muita

publicidade. E já tem o hard news no jornalzi-nho que você pega na esquina da sua casa elê no trânsito. Isso não é um complicador?Qual sua análise?Marques de Melo – Na verdade, o que issoquer dizer? Que a imprensa não vai desapare-cer. Ela está tomando novas formas...Prado – E os barões da imprensa...?Marques de Melo – Se não tomarem cuida-do, desaparecem. Eles só não estão desapa-recendo porque ainda têm um poder de bar-ganha com o Estado muito grande.Prado – Mas alguns começam a desapare-cer, aos poucos, não é?Marques de Melo – No caso brasileiro aindaé o jornal diário que pauta toda a mídia. Quemé que pauta a televisão e o rádio? É ainda osistema de gilette press. Quer dizer que, dequalquer maneira, ainda se tem o jornal comoum fator de liderança do ponto de vista deformação de opinião pública. Veja essa pes-quisa que foi feita no Congresso Nacional(J&Cia 695 – Pesquisa da FSB mostra quemídia impressa é a mais consultada pelosdeputados). Todos os deputados leem os jor-nais diariamente para se informar. Quer dizer,a fonte de informação deles, basicamente, éo jornal.Prado – Os barões escrevem para esses aí...

Marques de Melo – É para eles que se es-creve e não para a população.Protagonistas – Mas as empresas parecemdispostas a investir nas mudanças...Marques de Melo – Certo, mas há ainda umoutro fator: o sistema público vem aumentan-do. Vai haver mais concorrência entre o siste-ma público e o privado.Protagonistas – Na Comunicação?Marques de Melo – Na Comunicação. Na te-levisão, há esses canais que são da Câmara,do Senado e estão prestando um belo servi-ço para essa faixa da população que tem ca-pacidade de absorver produtos de qualidade.Protagonistas – Analisando o século passa-

do e este começo de século, daria para arris-car um período áureo da imprensa brasileira?Marques de Melo – Eu acho que foi lá para ametade do século. Quando se tem o DiárioCarioca como celeiro das grandes mudanças,assimilação do padrão norteamericano, que naverdade é um padrão mundial. Em seguidavem a reforma do Jornal do Brasil. E na estei-ra disso – quer dizer, o País estava se desen-volvendo, mudando de agrário para industrial–, o aparecimento da Editora Abril, da RedeGlobo já como televisão em seu momento deefervescência. Dos anos 50 até os anos 60.Eles vão ser, na verdade, truncados pelo gol-pe militar de 1964. Não podemos deixar deentender que o Brasil é país autoritário com

algumas brechas de democracia. O períodode 1945 até 1964 é um dos mais férteis davida cultural, da sociedade brasileira. E o queestamos vivendo agora, da Constituinte de 88para cá, talvez seja o de maior liberdade queeste País já tenha experimentado. São duasfases muito importantes, porque no fim doImpério e início da República vamos ter umperíodo de muito autoritarismo. A Repúblicasurge com mais violência do que na época doImpério. O II Império manteve uma monarquiaparlamentar com mais leveza do que veio de-pois na República. É claro que tudo aquilo eraleve no sentido de que havia os escravos pres-tando serviços à sociedade e que são injusti-çados quando vem a Lei Áurea. Eles são liber-tados, mas não têm indenização.Prado – Abriram as porteiras.Marques de Melo – Aliás, Darcy Ribeiro temum espetáculo muito interessante para enten-der como a elite brasileira é uma elite cruel. Alibertação dos escravos foi feita aos pouqui-nhos, sempre em prejuízo dos escravos. Pri-meiro, baixam a Lei do Ventre Livre, “passa aser livre, mas não tem direito a comer”. De-pois, a Lei do Sexagenário, “você já está im-prestável”.

“Acho que temos um jornalismo de boa qualidade, em igualdade decondições com o jornalismo do chamado Primeiro Mundo, mas é umjornalismo para a elite. O grande problema do jornalismo brasileiro é

que ele não chega à maioria da população. Nós precisamos saldaressa dívida com a população brasileira.”

“No caso brasileiro ainda é o jornal diário que pauta toda a mídia. Quemé que pauta a televisão e o rádio? É ainda o sistema de gilette press. Querdizer que, de qualquer maneira, ainda se tem o jornal como um fator de

liderança do ponto de vista de formação de opinião pública.”

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Prado – O corpo é teu.Marques de Melo – O que acontece? Foi secriando um regime de acomodação dos es-cravos, as famílias largadas porque não tinhampara onde ir. E quando vem a Lei Áurea, elaserve para jogar no mundo toda essa massapara formar as favelas que se perpetuaram.Protagonistas – Em relação aos veículos –televisão, rádio, jornal, revista, internet –, quaistêm feito, na média, um Jornalismo de me-lhor qualidade?Marques de Melo – É difícil avaliar porquenão há muita pesquisa sobre isso. Posso daruma ideia daquilo que eu acompanho. Eu di-

ria que são três matrizes importantes: EditoraAbril, Folha de S.Paulo e Rede Globo.Prado – Rede Globo de Televisão ou Organi-zações Globo?Marques de Melo – Rede Globo de Televi-são, mas isso praticamente contaminou aempresa como um todo. O Globo, por exem-plo, 50 anos atrás era um jornal de segundotime. Hoje, ele se transformou num jornal dequalidade e de referência nacional.Prado – Influenciado pela televisão.Marques de Melo – Influenciado pela menta-lidade capitalista que a empresa adquiriu. Oque o Roberto Marinho fez? Ele importou a

organização capitalista que muitas empresasnão tinham no Brasil.Protagonistas – A Time Life.Marques de Melo – O know-how da Time Lifefoi fundamental para isso. Há também algu-mas empresas que são fontes de criação nasregiões. A RBS, por exemplo, é uma delas.No Norte do País, a Rede Amazônica, de Feli-pe Daou.Prado – E Pernambuco e Bahia? Nunca hou-ve um Jornalismo de qualidade?Marques de Melo – Pernambuco e Bahiasempre foram grandes oligarquias dominati-vas. No Recife, por exemplo, há uma disputaentre Jornal do Commercio e Diário de Per-nambuco. O Jornal do Commercio, hoje, emcondições melhores. Mas na Bahia, AntonioCarlos Magalhães dominou aquilo o tempotodo.Prado – E A Tarde nunca foi um jornal compe-titivo, não é?Marques de Melo – Não, tanto que quandoperdeu o apoio de Antonio Carlos Magalhãesteve que cair nos braços do PT para não su-cumbir.Protagonistas – Em termos técnicos, daspráticas do bom Jornalismo, em quais quesi-

tos estamos bem e onde continuamos falhan-do, de maneira geral?Marques de Melo – O Jornalismo brasileirocontinua bem do ponto de vista de imagem.Trabalha bem a forma, mas o conteúdo, não.Há boa diagramação nas publicações, boassoluções gráficas e também na televisão e norádio, mas o conteúdo continua sendo defici-ente. Por quê? Porque as novas gerações nãotêm, digamos, aquela prontidão intelectual dasgerações que eram autodidatas. Há uma coi-sa que é importante realçar nessa geração queentrou no Jornalismo na metade do séculopassado: tinha, digamos, uma apetênciacognitiva. Tinha tesão intelectual. Pessoas queliam muito. Os jovens jornalistas, hoje, leemmuito pouco, perderam aquele gosto pela lei-

tura. A universidade também tem culpa nis-so, porque não estimula a leitura.Prado – E também não se perdeu aquele gos-to da reportagem investigativa que se fazia nosanos 70, com Realidade e outras revistas?Marques de Melo – Realidade foi uma ilhanum oceano completamente diferente. Foiuma experiência bancada pela família Civitade tentar um tipo de Jornalismo que foi notá-vel no adiantado da hora. Realidade foi umarevista que praticou um Jornalismo diversio-nal, ocupando o espaço de entretenimentoque depois passou para a televisão. O quehavia em Realidade? Grandes matérias quetrabalhavam o trivial, o cotidiano, de maneirapoética, bem escritas. Grandes matérias deAudálio Dantas, José Hamilton Ribeiro,Milton Coelho da Graça, essa geração todaque passou por lá; eram os fatos que esta-vam ali, mas tinham outro tipo de tratamento,um tratamento mais agradável.Protagonistas – Criatividade, não é?Marques de Melo – Isso falta hoje. Você pegaum jornal de fim de semana e não sente pra-zer em ler.Protagonistas – As excessivas jornadas detrabalho, esse estresse técnico, não estariasendo decisivo para o embrutecimento doJornalismo e dos jornalistas? Está faltando ver

cinema, conhecer culturas, trazer esse olharpara contar as histórias no Jornalismo?Marques de Melo – Isso tem a ver tambémcom a coisa que se chama complexo do colo-nizado. Essas novas gerações mimetizam osgrandes enfoques de Paris, Nova York, Tóquioe Berlim, quando na verdade estão no Brasil.Observem, por exemplo, os cadernos cultu-rais dos jornalões: a impressão que se tem éque não vivemos no Brasil. As questões quesão tratadas, os temas, as motivações sãoabsolutamente forâneas. Isso marca, digamos,uma geração yuppie que produz Jornalismopara uma minoria e não tem desconfiômetrode que não está agradando ao conjunto dapopulação. Como não fazem pesquisa, nãotêm esse recibo.Protagonistas – As pesquisas são muito fo-cadas, não é?Prado – As pesquisas estão sendo feitas. Ésó ver a circulação dos jornais.Marques de Melo – Eu vou muito ao Nordes-te, minha região, e quando chego a Maceió,Recife, e vejo os cadernos culturais tenho im-pressão de que estou em Nova York ou SãoPaulo, e não em Maceió ou Recife. (risos)Prado – E a parte editorial mesmo, de notíci-as. Algum jornal que te chama a atenção? Maisagressivo, avançado, arrojado, com tesão

mesmo de fazer reportagem, de dar notíciana frente.Marques de Melo – Os jornais que acompa-nho mais de perto são a Folha, Estadão e OGlobo.Prado – São todos iguais?Marques de Melo – São todos iguais. Tem láum certo esforço mas...Prado – Não te surpreende o noticiário des-ses jornais? Não são jornais que você abre ediz: ninguém poderia imaginar que esse jor-nal fosse tratar desse tema e dessa forma?Marques de Melo – Um jornal que eu sem-pre considerei de destaque é o New York Ti-mes. Você tem informação de qualidade ali e,apesar da crise, continua mantendo.Prado – The Economist, também...Marques de Melo – Também, também...Prado – Tanto é que a gente entra nos sitesdo New York Times, do Financial Times, e en-contra coisas novas lá...Marques de Melo – Mas já não é uma coisaque você possa fazer com a imprensa france-sa. O próprio Le Monde, que era um jornal dereferência para todos nós, está...Prado – Entrei muito no site do Le Monde

para acompanhar esse episódio do avião, por-que imaginei que pudesse ter ali boas infor-mações. Escrevo agora também para um jor-nal de Angola e fico buscando notícias inter-nacionais. Mas é surpreendente isso que vocêestá dizendo: entre no site do Le Monde evocê vai ver. Eles deveriam cobrir essa notíciada Air France com uma profundidade extraor-dinária, não é? Mas noticiam o que o homemda FAB disse aqui. Não tem absolutamentenenhuma novidade. E nem fuçaram a estrutu-ra da Air France lá – coisa que imagino poderi-am ter feito. É esse Jornalismo mixuruca deque você está falando... Só tem obviedades,nada que não se tenha lido no UOL.Marques de Melo – A impressão é de que foi

um avião brasileiro que caiu no mar...Prado – Qual o melhor jornal francês hoje? LeFigaro?Marques de Melo – Acho que estão todosnuma crise profunda.Protagonistas – Tanto é que o governo preci-sou dar dinheiro para não falirem... Mas aquitemos as famílias... Atravessamos o séculopassado com as famílias dominando o cená-rio jornalístico, pelo menos a partir da segun-da metade. Entramos o século com essa do-minância, embora uma ou outra tenha saídopor causa de problemas administrativos...Esse modelo tende a se esgotar ou as famíli-as terão condições de...?Marques de Melo – Acho que, no mundo

“Observem os cadernos culturais dos jornalões: a impressão que se tem éque não vivemos no Brasil. As questões que são tratadas, os temas, asmotivações são absolutamente forâneas. Isso marca, digamos, umageração yuppie que produz jornalismo para uma minoria e não tem

desconfiômetro de que não está agradando ao conjunto da população.Como não fazem pesquisa, não têm esse recibo.”

“Isso [o Bolsa Família] é um alento mas cria uma situação conjuntural. Oideal seria adotar uma medida autossustentável em que essas famílias

estivessem recebendo emprego, trabalhando... Esse é um modelopaliativo do governo Fernando Henrique Cardoso, que foi quemengendrou todo ele, e, pelo menos, está reduzindo a miséria.”

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capitalista, as famílias têm sido, digamos, umsustentáculo do bom Jornalismo. São famíli-as jornalisticamente comprometidas.Protagonistas – Perdemos o Jornal do Brasil,a Gazeta Mercantil, os Mesquitas já estão comum pé fora...Marques de Melo – Temos a família Marinho,a família Mesquita, a família Frias, e as famíli-as regionais, Sirotsky, Maiorana... Não vejonegativamente essa presença das famílias,vejo positivamente. Mas o perigo é elas esta-belecerem alianças com bancos, com gran-des corporações e entregarem o Jornalismopara decisão do marketing. Foi o que aconte-ceu nos Estados Unidos, onde muitas empre-sas foram ocupadas pelo controle acionário.E aqui elas já estão, na verdade, claudicando.Na França, essa compreensão parece estariniciando agora: é preciso haver uma aliançado Estado com essas famílias para podermanter a independência dos veículos, se nãoelas vão cair nas mãos do capitalismo finan-ceiro, do capitalismo industrial.Protagonistas – Em vários de seus estudos,ao se referir à questão da educação no Brasil,o senhor cita dois fatores como essenciaispara a baixa escolaridade da sociedade brasi-

leira: os processos de evasão escolar e deexclusão social. O senhor também chegou amencionar os vários programas sociais comoinsuficientes, ao menos até um determinadomomento, para corrigir esses graves proble-mas. Vê algum alento com o Bolsa Família eoutros projetos alavancados pelos ministéri-os da área social do atual Governo?Marques de Melo – Isso é um alento, mascria uma situação conjuntural. O ideal seriaadotar uma medida autossustentável em queessas famílias estivessem recebendo empre-go, trabalhando... Esse é um modelo paliativodo governo Fernando Henrique Cardoso, que

foi quem engendrou todo ele, e, pelo menos,está reduzindo a miséria. Porque o que tínha-mos, na verdade, eram bolsões de miseráveisque não comiam. Isso dinamizou a economialocal de diversas pequenas cidades do interi-or do Nordeste, do Vale do Jequitinhonha, emMinas, do Vale do Ribeira, em São Paulo...Protagonistas – E a aposentadoria rural tam-bém...Marques de Melo – A aposentadoria rural...Tudo isso dinamizou, mas às custas da viúva.Protagonistas – Mas não começa a gerarempregos? A roda não começa a andar?Marques de Melo – Começa, mas é muito

reduzido. São pequenos comerciantes que seestabelecem, mas, no fundo, quem continuaa abastecer é o Estado. Peguemos, por exem-plo, uma cidade em que quase todo mundo éaposentado. As prefeituras passaram a termais movimentação. Mas isso é uma bolha.No momento em que o Estado não maisaguentar, acaba. Acho que deve continuar exis-tindo, mas é preciso haver realmente desen-volvimento.Protagonistas – Ainda não há muita clarezasobre o passo seguinte...Marques de Melo – O Brasil tem que se per-guntar: ele quer ou não quer ser capitalista?Nós avançamos um pouco e na verdade...Prado – A gente quer ser capitalista, mas temvergonha...Marques de Melo – Tem vergonha de ser. É oque o Mário Covas dizia: esse país precisa deum choque de capitalismo.

Protagonistas – Ideologicamente, como osenhor se situa?Marques de Melo – Como sempre estive. Eume considero um cidadão progressista, masnão embrutecido pelos dogmas.Prado – Você foi cassado pela ditadura ou teveque sair da universidade?Marques de Melo – Na verdade, foram duasvezes, uma com c cedilha e outra com doisesses, caçado e cassado (risos). Porque eu fizparte do primeiro governo de Miguel Arraes[Nota da Redação: Um dos principais nomesda esquerda brasileira, foi governador de Per-nambuco por três vezes. Em 1964, quandoexercia seu primeiro mandato, foi depostopelos militares e teve que se exilar na Argéliaem 1965, de onde somente retornou 14 anosdepois, beneficiado pela Lei da Anistia]. Evi-dentemente, no 2º e 3º escalões, porque euera muito jovem. Fui chefe de gabinete do

secretário de Educação dele. Num segundomomento, quando mudou o secretário, fui di-retor de Administração do Movimento de Cul-tura Popular.Prado – Quantos anos você tinha?Marques de Melo – 18 ou 19, por aí.Protagonistas – Precoce!Marques de Melo – Foi uma temeridade euaceitar. Quando o Germano Coelho me convi-dou...Prado – Foi na Faculdade de Jornalismo?Marques de Melo – Não, Direito. Cursei si-multaneamente Direito e Jornalismo. Ele meconvidou para ser chefe de gabinete e foi logodizendo: “Olha, eu não gosto muito de aten-der deputados, público... Vou ficar fazendo pla-nos aqui no gabinete e você se vira pra aten-der todos os deputados, vereadores...” Foiuma escola. Na verdade, Arraes era aquele tipode pessoa que sabia transmitir conhecimentoprático às novas gerações. É claro que, quan-do o governo foi deposto, eu fui caçado peloExército, e quando começaram a instaurarvários IPMs eu acabei me exilando dentro doPaís. Vim para São Paulo com toda uma gera-ção que veio de lá para cá. Naquela ocasiãoeu também trabalhava na Última Hora, quefoi desmantelada...Protagonistas – Na Última Hora em Pernam-buco?

Marques de Melo – Em Pernambuco. Na ver-dade, a minha prova de fogo foi trabalhar como Milton Coelho da Graça. Ele era chefe daRedação. O chefe de Reportagem era o Mú-cio Borges da Fonseca, um amor de pessoa.Milton, não, era aquele do tipo “pedagogia dogrito”. Pegava a pauta e quando voltava com amatéria berrava “Não presta! Volte lá e façatudo de novo!” (risos) Mas era um jeito defazer com que a gente aprendesse direito. Eolha que eu já era jornalista profissional e es-tava terminando o curso de Jornalismo. Querdizer, era um estágio que estava fazendo naprática. Vim para São Paulo. E como não haviacomputador naquela época, sistema de infor-mação, passei incólume e consegui fazer con-curso na USP e fiquei sem ser incomodadopelo sistema de segurança até quando come-cei a exercer atividades de cidadão. Aí passeia ser perseguido. Começamos a promover aSemana de Estudos de Jornalismo na ECA eela foi se transformando num evento de gran-de repercussão nacional e aí rapidamente meacharam (risos). O primeiro tema foi Jornalis-mo Sensacionalista, que não era muito apeti-toso. Entre as pessoas que levamos havia umfrade que cuidava da Pastoral Carcerária e que

mais tarde viria a ser conhecido como cardealArns (risos) [Nota da Redação: dom PauloEvaristo Arns, um dos principais defensoresdos direitos humanos no período da ditadura,arcebispo emérito de São Paulo]. Ali tambémconheci Alberto Dines, que esteve lá. Na se-gunda Semana, eu trouxe Barbosa Lima So-brinho [então presidente da ABI], DantonJobim [criador da primeira escola de Jornalis-mo do País], Júlio de Mesquita Neto [entãodiretor do Estadão], que eram figuras que nãotinham medo de falar. O tema dessa segundaSemana foi Censura e liberdade de imprensa(risos). Isso foi em 1970.Protagonistas – Bom! (risos)Marques de Melo – Fizemos essa Semana etinha lá mais gente dos órgãos de segurançado que estudantes (risos). E eu cometi a im-prudência de convidar uma figura da IgrejaCatólica, chamada dom Avelar Brandão [Vile-la, então arcebispo de Salvador], para fazer aconferência de encerramento e ele, como bompastor, explicou como funcionava tudo lá navida eclesial, mas, honesto, ante a pergunta“há tortura no Brasil?”, não pensou duas ve-zes e disse “há!”. E aí foi desenvolvendo o temado ponto de vista da informação e isso provo-

cou uma celeuma enorme. Fora as interven-ções que Lígia Fagundes Telles fazia, e Frei-tas Nobre [Nota da Redação: três vezes pre-sidente do Sindicato dos Jornalistas de SãoPaulo e duas da Fenaj, além de ter exercidovários mandatos como deputado federal], con-tra a censura. Já aí começou a perseguição e,finalmente, em 1972, fui processado peloDecreto 477. Fui um dos poucos professoresprocessados por esse decreto. [Nota da Re-dação: editado em 26 de fevereiro de 1969,foi responsável pela prisão e afastamento dauniversidade de estudantes e professores queousavam desafiar os limites impostos peladitadura militar à liberdade de pensamento.]Protagonistas – Geralmente era só para alu-no...Marques de Melo – Sabe por quê? Uma coi-sa esdrúxula! Chegou uma denúncia na USPde que eu era responsável por denegrir a ima-gem brasileira no exterior. Uma denúncia queveio da Alemanha, por causa de uma apostilaque eu tinha publicado em 1968. Eles foramdescobrir isso em 1972. Essa apostila chama-va-se Técnicas do Lide. Eu ensinava os profis-sionais como se fazia o lide. Só que a minhametodologia de ensino contempla os jornais

“Quando o governo foi deposto [pelo golpe de 1964], eu fui caçadopelo Exército, e quando começaram a instaurar vários IPMs acabei

me exilando dentro do País. Vim para São Paulo com toda umageração que veio de lá [Pernambuco] para cá. Naquela ocasião eu

também trabalhava na Última Hora, que foi desmantelada.”

“Fui processado e condenado, apesar de sempre me manter aquina Universidade de São Paulo como um cidadão responsável,

mas não com militância política. A militância que eu tive foi lá najuventude, em Pernambuco. Mas, aqui, eu me mantive fora de

qualquer atividade partidária.”

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do dia. Isso aprendi com Luiz Beltrão [estudi-oso de Comunicação] e outros professoresamericanos com quem convivi. Você dá a par-te teórica e manda o aluno verificar se a teoriafunciona na prática, dizendo “está ali o jornaldo dia; vá conferir”. Os alunos levavam um jor-nal diário e recortavam diferentes tipos de lide.De um modo geral, eles faziam uma apostila-zinha com as notícias do dia. Eu dei essa aulasobre técnica do lide no dia 13 ou 14 de de-zembro de 1968 [13/12/68 foi a promulgaçãodo AI-5, o mais violento da ditadura militar],no dia seguinte ao da morte de Edson LuísLima Souto [estudante morto pelos militaresno bar Calabouço, no Rio de Janeiro]. (risos)Prado – Só tinha notícia ruim.Marques de Melo – E os jornais eram censu-rados, hein?. Não estava tratando com jornaisclandestinos. Era Folha, Estadão...Protagonistas – A apostila era altamente sub-versiva.Marques de Melo – A apostila circulou e al-guns professores passaram a viver na Bélgi-ca, na Alemanha, e a distribuí-las para interes-sados que mudaram para lá e tornou-se umareferência na didática de Jornalismo. Alguémda Embaixada do Brasil na Alemanha mandou

isso para cá como uma denúncia. Fui proces-sado e condenado, apesar de sempre memanter aqui na Universidade de São Paulocomo um cidadão responsável, mas não commilitância política. A militância que eu tive foina juventude, em Pernambuco. Mas, aqui, eume mantive fora de qualquer atividade parti-dária. A minha sorte é que o ministro da Edu-cação, na época, Jarbas Passarinho, lia essesprocessos todos. Quando chegou o meu, elechamou os membros da Comissão Processan-te – o reitor da USP era Miguel Reale – e fa-lou: “Espera aí. Essa lei nós fizemos para pu-nir os terroristas. Esse rapaz aqui não é umterrorista. Está se vendo que é um idealista”.E absolveu. Fui processado pelo 477, mas ti-nha um atestado por ter sido absolvido peloministro. Só que o sistema de segurança nãoqueria saber de nada disso. Já havia aquela

movimentação do general Ednardo D’Ávila,aqui em São Paulo [comandante do II Exérci-to na época em que mais houve denúncias detorturas, quando também morreu VladimirHerzog]. Havia também o fato de nós termosadmitido lá no Departamento de Jornalismoda USP alguns professores que eram consi-derados subversivos, como Freitas Nobre, JairBorin, Thomas Farkas e Vladimir Herzog. Elespassaram a entender que o Departamento deJornalismo era um antro de mau caminho paraas novas gerações. A tal ponto que eu nãopude permanecer no País. Me avisaram queera melhor eu sair porque eles não aceitarama derrota e encararam como uma provocaçãoa absolvição do ministro. E tome perseguição.Eu não podia mais ir ao exterior, nem quandoera convidado para congressos. Como não medavam autorização, eu escrevia os trabalhos e

pedia para algum amigo levar. Aí vinham per-guntar: “O senhor esteve lá?” e eu dizia: “Nãoestive”. “Então tem que provar que não este-ve”. Os amigos me aconselharam a sair do País,se não ia acontecer alguma coisa. Quase to-dos eles tinham passagens pelo DOI-CODI ouDOPS. Consegui, com a ajuda do professorRaymond Nixon, que é um velho liberal ame-ricano, uma acolhida em uma universidadeamericana, mesmo tendo militado na Juven-tude Comunista lá em Pernambuco. Aquilo eraconsiderado quase um impedimento para en-trar nos Estados Unidos.Prado – Para dar visto, tinha lá a pergunta:“Você pertence ou já pertenceu ao PartidoComunista?”.Marques de Melo – Eu até fui poupado dis-so, porque o professor Nixon conseguiu umaespécie de salvo-conduto para mim. Saí daquie passei um ano nos Estados Unidos. Fui com

bolsa da Fapesp, para defender minha tesede doutorado, que acabou ganhando repercus-são no Brasil inteiro, até porque fui o primeirodoutor em Jornalismo no País. Mas como todaa imprensa noticiou, aquilo foi entendido pelosistema de segurança pública como uma pro-vocação. (risos) Se eu ficasse calado, era pro-vocação, se havia alguma coisa... Quando che-guei de volta, um ano depois, pensei: “Ah, jáesqueceram”. Esqueceram coisa nenhuma!Um mês depois fui surpreendido com a publi-cação no Diário Oficial cancelando meu con-trato com a Universidade de São Paulo.Protagonistas – Foi exonerado...Marques de Melo – Não me pagaram umtostão. Eu tentei ainda justificar, mas não ha-via justificativa. Fiquei sem condições de tra-balhar. Todas as universidades que eu ia pro-curar diziam: “Ah, veio aqui o sistema de se-gurança e disse que o senhor não pode traba-

lhar”. Já estava praticamente indo embora doPaís, voltando para os Estados Unidos ou iriapara a Europa, mas aí eu recebi um convite doInstituto Metodista, que começava a trabalharcom educação superior. Eu disse: “Olha, eusou visado pelo sistema”. Mas eles falaram:“Se você não fizer proselitismo, será bem-vin-do aqui”. Eu fui, e realmente dois meses de-pois chegou uma delegação do II Exército. Maso reitor era uma figura desse tipo: “O senhorponha-se para fora daqui. Aqui é uma casareligiosa e quem manda sou eu e contratoquem eu quero. Não vou demitir o professor”.Prado – São já muitos anos, não é?Marques de Melo – Eu fiquei lá até a Anistia[agosto de 1979]. Bem, mas voltando, aí eleme chamou e disse: “Olha, eu não conheço osenhor, mas o senhor comporte-se aqui. Nãofaça proselitismo”. Eu disse: “Doutor Bitten-court, eu sempre abominei os professoresmeus, de direita, que faziam proselitismo. Enão vou praticar a mesma coisa aqui”. Faleitambém que havia publicado dois livros. “Osenhor leia meus livros. Se achar que tem al-guma coisa comprometedora, me desligo dainstituição”. Ele respondeu: “Está bem”. Depoisde um mês me chamou e afirmou: “Eu li. Nãotem perigo nenhum. O senhor pode continu-ar”. Fiquei sob a proteção da Igreja Metodista.Quando veio a Anistia, fui anistiado na USP.

No nosso Departamento éramos quatro pro-fessores anistiados: eu, Jair Borin, FreitasNobre e Thomas Farkas.Prado – Os quatro voltaram?Marques de Melo – Não. Freitas Nobre foi omais difícil de voltar. Voltamos os três, masele teve mais dificuldade porque criaram naUSP um processo contra ele dizendo que ha-via acumulado ilegalmente o mandato de de-putado federal com a atividade de professor.Ora, Freitas Nobre teve que pedir autorizaçãodo Congresso Nacional para poder dar aula naUSP de sexta-feira à noite, sem receber salá-rio na USP. Que acumulação era essa? Ele foio último a ser readmitido e veio a falecer de-pois. Como se vê, minha relação com o regi-me militar foi traumática. E nunca quis recla-mar nada de indenização.Prado – Você não conseguiu aposentadoriapor perseguição política?Marques de Melo – Não. Foi por tempo deserviço. Eu me aposentei proporcional, com34 anos de serviço público.Protagonistas – Alguma razão para não terrequerido?Marques de Melo – Acho que não tenho vo-

cação para mártir ideológico. Quem entra nachuva é para se molhar. Têm direito à indeni-zação pessoas que foram torturadas, pais defamília. Eu consegui sobreviver. Então, por queagora vou reclamar?Protagonistas – Pode revelar em quem vo-tou na última eleição presidencial?Marques de Melo – Quem foram os candida-tos? Nem lembro mais... (risos)Protagonistas – Foram Lula, Alckmin, CiroGomes...Prado – Foi o 2° mandato do Lula.Marques de Melo – Eu nem me lembro sefoi no Lula ou no Alckmin.Protagonistas – Foi um dos dois.Marques de Melo – Só havia os dois?Protagonistas – No 1° turno tinha a HeloísaHelena.Marques de Melo – Nesta última eleição eunão me lembro. Da outra eu votei no Serra.Nesta eu não sei em quem votei, não. Quemsabe de voto lá em casa é a minha mulher.(risos)Protagonistas – Professor, o que o senhorpensa da elite empresarial, acadêmica, políti-ca e jornalística do País?

Marques de Melo – Todas essas elites sãoexecráveis do ponto de vista de que não pen-sam que se alimentam dos produtos sociaise deveriam dar um retorno à sociedade. En-quanto elites, elas deveriam abdicar dessepapel e ter um papel de liderança, mas não sebeneficiarem do produto social sozinhas. Es-tou me referindo, evidentemente, a uma situ-ação singular brasileira: há uma elite que temtoda a riqueza concentrada em poucas mãose a maioria da população vivendo na pobreza,na miséria. Não é mais na indigência porqueos subsídios do Estado estão acabando comisso.Protagonistas – Arriscaria citar alguns inte-lectuais que considera relevantes na atualida-de?Marques de Melo – Da atualidade? É difícil...Do passado eu sei todos.Protagonistas – Alguns do passado, então.Marques de Melo – Caio Prado Jr., SérgioBuarque de Hollanda, Darcy Ribeiro.Protagonistas – Qual a sua rotina de leitura?Marques de Melo – De modo geral, acordoàs 4h da manhã. Leio até às 8h os jornais nainternet. Fico sabendo de tudo que está acon-

“Eu fiquei sob a proteção da Igreja Metodista. Quando veio a Anistia, fuianistiado na USP. No nosso Departamento éramos quatro professores

anistiados: eu, Jair Borin, Freitas Nobre e Thomas Farkas.”

“Acho que não tenho vocação para mártir ideológico. Quem entra na chuvaé para se molhar. Têm direito à indenização pessoas que foram torturadas,

pais de família. Eu consegui sobreviver. Então, por que agora vou reclamar?”

José Marques de mello

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tecendo no Brasil e no mundo. E faço leituras,porque como continuo dando aulas precisoestar bem informado perante os meus alunos.E não sobra tempo, evidentemente, para ler oque eu mais gosto, literatura. Faço isso nosfins de semana e nas férias. E tenho prefe-rência por três gêneros: memórias, biografiase relatos de viagens. Mas também gostomuito de ler novela e romance. E vou dormircedo, logo depois da novela.Protagonistas – Mestres do Jornalismo vocêjá falou. Luiz Beltrão...Marques de Melo – Luiz Beltrão foi meuprofessor de Jornalismo.Protagonistas – E no exercício da profissão?Eu ouvi um nome...Marques de Melo – Carvalho Veras, meuprimeiro professor de Jornalismo.Protagonistas – Não foi seu primeiro editor?Marques de Melo – Foi professor no sentidoprático.Protagonistas – E houve outros que foramimportantes na sua formação?Marques de Melo – Milton Coelho da Gra-ça e Múcio Borges. Quando vim para SãoPaulo Múcio me acolheu. Milton foi meu com-panheiro de trabalho também na Sudene [Su-

perintendência do Desenvolvimento do Nor-deste]. Depois que fecharam a Última Horaele conseguiu ser redator da Sudene. E Mil-ton, eu me lembro, foi tão torturado que vol-tou quebrado, sem os dentes da frente...Prado – Ele usa uma dentadura na parte dafrente.Marques de Melo – Nós trabalhávamosem uma seção em que éramos eu, Miltone o professor Cristiano Cordeiro. Sabequem é Cristiano Cordeiro? Um dos fun-dadores do Partido Comunista no Brasil.(risos) Ele tinha quase 90 anos, mas preci-sava trabalhar. Era um poliglota, e corrigiatodos os textos em inglês e francês na-quela época da Sudene.

Protagonistas – O senhor é religioso? Comoanalisa religiosidade em nosso País?Marques de Melo – Eu sou de uma famíliacatólica com dissidência. Meu pai era agnósti-co e minha mãe, muito católica. Fui criado pe-los evangélicos. Meu pai tinha um pacto comminha mãe: “Você manda as meninas para asfreiras, mas os meus meninos não vão paraos padres!” (risos) Ele me mandou estudar emum colégio Batista, coisa que eu agradeço,porque tive uma formação liberal, no sentidopragmático do termo de John Dewey [ameri-cano, um dos fundadores da escola filosóficado Pragmatismo]. Fiz o curso secundário noColégio Batista Alagoano e na UniversidadeBatista, no Recife.

Prado – Eram bons colégios?Marques de Melo – Eram colégios de muitoboa qualidade.Protagonistas – E essa presença da religiãona mídia, cada vez mais forte? Rádios, jornais...Marques de Melo – Acho que isso é compre-

ensível em um país religioso como o Brasil.O Brasil é um país extremamente religioso,apesar do sincretismo.Protagonistas – Não vê com preocupaçãoesse fenômeno?Marques de Melo – Não. Acho que os latino-americanos e os africanos são povos religio-sos por natureza.Prado – Nos Estados Unidos, houve uma épo-ca que essa gente subiu muito, esses prega-dores...Marques de Melo – Mas isso não é religião,é um modelo de vida. Estou falando religiosona essência. O brasileiro vive a religiosidadecomo uma coisa da vida cultural. Isso tem aver com as origens indígenas e africanas quenós temos. Na verdade, a Igreja Católica nãose adaptou a isso no Brasil, na medida emque o catolicismo praticado pelos portugue-ses aqui era completamente diferente do ca-tolicismo praticado pelos espanhóis no restoda América. O sincretismo assimilou muitodessas práticas religiosas. A religiosidade fazparte da nossa cultura. Por isso é que nós so-mos supersticiosos e temos uma certa místi-ca que marca o cotidiano. Tanto que quandofui cassado na USP, antes de ir para a Meto-dista, D. Paulo Evaristo me convidou para sereditor de Cultura do jornal O São Paulo, cen-

surado. Ia tudo para Brasília por causa da cen-sura.Protagonistas – Professor, agora, para encer-rar, um pingue-pongue rápido. Uma pessoa ines-quecível.Marques de Melo – Minha mãe, dona Iveta.Protagonistas – Um amor.Marques de Melo – Silvia, minha mulher.Protagonistas – Um hobby.Marques de Melo – Leitura.Protagonistas – Um defeito.Marques de Melo – Comer muito. Sou umpouco glutão. (risos)Protagonistas – Uma qualidade.Marques de Melo – Acho que generosidade.Se é uma coisa que me caracteriza é isso. Nãosou pessoa de guardar rancor.Protagonistas – Um amigo.Marques de Melo – São tantos que é difícilfalar de um só.Protagonistas – Um livro e um autor.Marques de Melo – Raízes do Brasil, de SérgioBuarque de Holanda. Foi um livro que me mar-cou muito.Protagonistas – Um filme.Marques de Melo – Dançando na Chuva.Protagonistas – Uma peça de teatro.Marques de Melo – As peças de Antonio Calla-do.Protagonistas – Uma atriz e um ator.

Marques de Melo – Difícil dizer. Gosto de mui-tas atrizes.Protagonistas – Uma música.Marques de Melo – Danúbio Azul.Protagonistas – Um cantor, uma cantora.Marques de Melo – Elizeth Cardoso. Cantor...Também não tenho preferência por nenhumespecífico.Protagonistas – Um repórter. Vivo ou morto.Marques de Melo – John Reed [autor de 13dias que abalaram o mundo].Protagonistas – Uma reportagem memorá-vel. Tem alguma que tenha ficado na sua me-mória, feita por você ou por alguém?Marques de Melo – Bem, dentro de Realida-de, uma de José Hamilton Ribeiro: O Gostoda Guerra.Protagonistas – Um político. Vivo ou morto.

Marques de Melo – O primeiro Miguel Arra-es. (risos)Protagonistas – Um grande brasileiro e umagrande brasileira.Marques de Melo – Vamos passar...Protagonistas – Uma cidade.Marques de Melo – São Paulo.Protagonistas – Um fato marcante.Marques de melo – O golpe de 64. Foi umfato marcante porque fui surpreendido. Eu es-tava de férias e quando cheguei em Recife...Prado – Você tinha quantos anos?Marques de Melo – 21 anos. O que mais mecausou impacto foi a prisão de Gregório Be-zerra [político pernambucano que foi presologo após o golpe]. Ver Gregório Bezerra sen-do torturado pela televisão. Uma coisa abo-minável...

Prado – Foi mandado para a ilha de Fernandode Noronha.Marques de Melo – Mas aí já foi a libertaçãodele. Mas o que ele sofreu de humilhação...Foi arrastado pelas ruas de Recife. Eu vi natelevisão. Eu ainda tinha esperança de queaquilo fosse uma quartelada...Prado – Pensou que não ia durar muito, nãoé?Marques de Melo – Aí eu vi que ia demorarmuito...Protagonistas – Uma invenção.Marques de Melo – Acho que o computador.Uma das maiores invenções que nós temos.Protagonistas – Uma cor.Marques de Melo – Encarnado.Protagonistas – E um sonho.Marques de Melo – Ver a população brasileirasem passar fome.

“Todas essas elites [as brasileiras] são execráveis do ponto de vistade que não pensam que se alimentam dos produtos sociais edeveriam dar um retorno à sociedade. Enquanto elites, elas

deveriam abdicar desse papel e ter um papel de liderança, masnão se beneficiarem do produto social sozinhas.”