José de Anchieta

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José de Anchieta nasceu em S. Cristóvão da Laguna, na ilha de Tenerife, arquipélago das Canárias, no ano de 1534. Era filho de João de Anchieta, um nobre de uma família espanhola de Guipúscua, de origem basca e parente de Santo Inácio de Loiola, e de uma indígena de nome Mencia Diaz de Clavijo e Llerena. Passou a sua infância em Tenerife e aos dezasseis anos foi estudar para Coimbra onde havia então um grande colégio da Companhia de Jesus. A Companhia de Jesus foi uma ordem religiosa, de clérigos regulares, fundada por Santo Inácio de Loiola, e aprovada por Bula de Paulo III, em 1540. Os seus membros eram conhecidos como jesuítas, embora nunca adoptassem oficialmente esse nome. Esta ordem surgiu com o espírito da reforma que então animava o mundo, uma reforma sobretudo a nível da Igreja Católica. A Ordem obteve enorme êxito a nível da Pedagogia e sobretudo a nível das missões. Portugal tinha como função evangelizar as terras descobertas dentro do seu Padroado e para esse fim a Companhia de Jesus espalhou pelo mundo evangelizadores. Os Colégios da Ordem preparavam os seus membros para essa função, dando-lhes os instrumentos teóricos e religiosos necessários para o efeito. José de Anchieta frequentou o curso de Lógica onde teve como mestre o Padre António Correia. Em 1551 entrou como noviço na Companhia e desde então esteve sempre ao serviço da Ordem. Fez voto de castidade perpétua diante do altar da Virgem da Sé Velha de Coimbra. Desde muito novo manifestou uma grande facilidade de aprendizagem das línguas e era mestre em latim. Em 1553 embarcou para a Baía, integrado num grupo de Jesuítas chefiados por Luís da Grã, que iriam missionar no Brasil, e que teriam como provincial o Padre Manuel da Nóbrega. As actividades da Companhia de Jesus, no Brasil, iniciaram-se em 1549, com Tomé de Sousa, que foi o Primeiro Governador Geral da Companhia. Com ele viajou o Padre Manuel da Nóbrega. O Brasil era colonizado havia 17 anos. A catequese dos índios fazia-se já em Porto Seguro, Ilhéus e em várias povoações do sul. No entanto, só a partir do momento em que se instalam no Brasil os Jesuítas é que podemos considerar as informações como abundantes, sistemáticas e fidedignas pois eram recolhidas por pessoas de boa formação moral e cultural apesar dos desvios inerentes ao exclusivismo do catolicismo. Esta recolha de informações deveu-se sobretudo ao hábito que estes religiosos tinham de enviar regularmente cartas aos seus superiores e a outras personalidades do reino, dando conta das dificuldades e problemas surgidos. Estas informações, depois de recebidas em Lisboa eram imediatamente enviadas a Roma. Inicialmente estas cartas eram manuscritas, mas a partir de 1551 passaram a ser impressas. Algumas dessas cartas foram publicadas e divulgadas durante o século XVI. No momento em que surgem os primeiros evangelizadores no Brasil, os

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Breve história da vida e obra de Jose de Anchieta

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José de Anchieta nasceu em S. Cristóvão da Laguna, na ilha de Tenerife, arquipélago das Canárias, no ano de 1534. Era filho de João de Anchieta, um nobre de uma família espanhola de Guipúscua, de origem basca e parente de Santo Inácio de Loiola, e de uma indígena de nome Mencia Diaz de Clavijo e Llerena. Passou a sua infância em Tenerife e aos dezasseis anos foi estudar para Coimbra onde havia então um grande colégio da Companhia de Jesus. A Companhia de Jesus foi uma ordem religiosa, de clérigos regulares, fundada por Santo Inácio de Loiola, e aprovada por Bula de Paulo III, em 1540. Os seus membros eram conhecidos como jesuítas, embora nunca adoptassem oficialmente esse nome. Esta ordem surgiu com o espírito da reforma que então animava o mundo, uma reforma sobretudo a nível da Igreja Católica. A Ordem obteve enorme êxito a nível da Pedagogia e sobretudo a nível das missões. Portugal tinha como função evangelizar as terras descobertas dentro do seu Padroado e para esse fim a Companhia de Jesus espalhou pelo mundo evangelizadores. Os Colégios da Ordem preparavam os seus membros para essa função, dando-lhes os instrumentos teóricos e religiosos necessários para o efeito. José de Anchieta frequentou o curso de Lógica onde teve como mestre o Padre António Correia. Em 1551 entrou como noviço na Companhia e desde então esteve sempre ao serviço da Ordem. Fez voto de castidade perpétua diante do altar da Virgem da Sé Velha de Coimbra. Desde muito novo manifestou uma grande facilidade de aprendizagem das línguas e era mestre em latim. Em 1553 embarcou para a Baía, integrado num grupo de Jesuítas chefiados por Luís da Grã, que iriam missionar no Brasil, e que teriam como provincial o Padre Manuel da Nóbrega. As actividades da Companhia de Jesus, no Brasil, iniciaram-se em 1549, com Tomé de Sousa, que foi o Primeiro Governador Geral da Companhia. Com ele viajou o Padre Manuel da Nóbrega. O Brasil era colonizado havia 17 anos. A catequese dos índios fazia-se já em Porto Seguro, Ilhéus e em várias povoações do sul. No entanto, só a partir do momento em que se instalam no Brasil os Jesuítas é que podemos considerar as informações como abundantes, sistemáticas e fidedignas pois eram recolhidas por pessoas de boa formação moral e cultural apesar dos desvios inerentes ao exclusivismo do catolicismo. Esta recolha de informações deveu-se sobretudo ao hábito que estes religiosos tinham de enviar regularmente cartas aos seus superiores e a outras personalidades do reino, dando conta das dificuldades e problemas surgidos. Estas informações, depois de recebidas em Lisboa eram imediatamente enviadas a Roma. Inicialmente estas cartas eram manuscritas, mas a partir de 1551 passaram a ser impressas. Algumas dessas cartas foram publicadas e divulgadas durante o século XVI. No momento em que surgem os primeiros evangelizadores no Brasil, os

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Indios eram ainda antropófagos, polígamos e não possuiam qualquer conhecimento de leitura e escrita. Os colégios consagraram-se à educação dos mestiços, filhos de brancos e de índias, os mamelucos, e mais tarde também aos filhos de brancos e negras, a que se chamavam, moços pardos. Em menor escala havia os filhos de portugueses do Reino, que chegavam com os seus progenitores, funcionários públicos. Uma dessas crianças foi António Vieira. Os colégios de Jesuítas foram, no Brasil, os primeiros colégios públicos e neles se formaram as primeiras e mais antigas bibliotecas brasileiras. Os primeiros graus académicos conferiram-se, com grande aparato, no Real Colégio da Baía, em 1575. Os meninos índios aprenderam a ler e a escrever nas suas aldeias, e aprenderam também canto e instrumentos musicais para poderem oficiar as missas. Um século mais tarde Vieira escreverá, referindo-se aos catecúmenos do Ceará: “...mas depois que os padres lhes ensinaram a cantar os mesmos mistérios, que compuseram em versos e tons muito acomodados, viu-se bem com quanta razão Nóbrega, primeiro missionário do Brasil, com música e harmonia de vozes se atreveria a trazer a si todos os gentios da América”. A conversão dos índios implicava a perda de alguns costumes ancestrais, como eram os de comer carne humana, possuir muitas mulheres e andar frequentemente em lutas tribais. Na opinião do Padre Manuel da Nóbrega, os índios não deviam ser baptizados em grupo. Deviam reunir-se antes do baptismo numa aldeia grande com padres da companhia para os doutrinar. Assim se formaram as primeiras aldeias de índios na periferia das cidades, com três finalidades: doutrinária (para o ensino da religião e prática da vida cristã), económica (para a aprendizagem de um trabalho regular e estável) e política (para a utilização dos índios cristãos contra os assaltos dos gentios selvagens e contra os inimigos externos). O grupo em que se incluía Anchieta, era o terceiro grupo de Jesuítas a chegar ao Brasil para missionar. O Padre Manuel da Nóbrega exercera já grande actividade mas encontra em José de Anchieta o seu mais eficiente colaborador. Os dois arriscaram a vida ao ousarem dirigir-se às terras dos tamoios, raça inimiga dos portugueses e aliados dos huguenotes franceses na guerra que estes nos moviam para a posse da baía de Guanabara. Anchieta foi o intérprete nesta diligência e recrutou índios para a defesa da região. Assim conseguiu repelir as forças sitiantes revelando-se um homem destemido. Mas a vitória era precária porque outros ataques se haviam de seguir. Foi para os evitar que ele e o Padre Manuel da Nóbrega, por entre perigos de toda a espécie, procuraram os chefes tamoios, de quem obtiveram um acolhimento pacífico. Manuel da Nóbrega aceitou representá-los junto dos portugueses a quem propuseram uma paz duradoira. Anchieta ficou durante meses como refém. A paz foi estabelecida. Passado o incidente militar e político Anchieta continuou a sua missão.

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A pedido de Manuel da Nóbrega, fica encarregue de redigir as cartas quadrimestrais ou trimestrais que eram enviadas à Ordem em Portugal, dando conta do trabalho que se desenvolvia no Brasil. Numa das suas primeiras cartas, datada de 1554, Anchieta revela já um grande conhecimento de tudo o que o rodeava, ou porque tivesse um poder de observação minucioso, ou porque absorvesse rapidamente os conhecimentos que a ordem detinha. O que é um facto é que , nessa primeira carta conhecida e divulgada, Anchieta faz uma listagem dos alimentos mais utilizados no Brasil, aludindo à farinha de pau, carnes de animais silvestres, peixes, legumes e algumas ervas mais utilizadas na alimentação de base do povo brasileiro. Na sua opinião, todos estes alimentos eram de fraca qualidade, muito insípidos e de pouca substância, mas muito bons para a saúde. Relativamente aos índios afirma que, todos eles comiam na altura “carne humana, sentindo nisso grande prazer e doçura”. Eram essencialmente guerreiros e quando guerreavam, logo que capturavam inimigos regressavam aos seus domínios para fazer uma grande festa em que bebiam vinhos de raízes e comiam os humanos captivos. Os próprios captivos se orgulhavam dessa morte pois diziam ser “impróprio de guerreiro morrer de forma que tivessem que suportar o peso da terra”. Os índios não tinham nem leis nem autoridade nem conseguiam viver em paz e em concórdia. Cada aldeia constava apenas de seis ou sete casas, nas quais, se não fosse o laço e a união de sangue, não poderiam permanecer juntos pois comer-se-iam uns aos outros. Eram tão bárbaros e indómitos que pareciam estar mais perto da natureza das feras que dos homens. Em 1560, Anchieta envia de S.Vicente uma longa carta, em latim, que é um verdadeiro tratado de história natural. Era a carta que continha “Toda a Informação da Província do Brasil”, publicada em tradução italiana no século XVI, e que é considerada um pequeno manual de história natural. Nela, descreve o clima local, referindo que o Inverno não era demasiado rigoroso e o Verão não muito quente. Era um clima temperado, sucedendo-se alternadamente os dias de chuva com os dias de sol. Em alguns anos, porém, escasseavam as chuvas e os campos tornavam-se estéreis. Outras vezes, pela abundância das chuvas, apodreciam as raízes que havia para a alimentação. As informações são mais pormenorizadas quando Anchieta descreve Piratininga, a actual cidade de S. Paulo. A zona é descrita como uma zona de grandes calores e chuvas torrenciais. As chuvas, por vezes provocam enchentes que inundam os campos. Refere também que no Inverno cessam as chuvas e a força do frio torna-se horrível. Era frequente ver geadas espalhadas pelos campos a queimarem árvores e ervas e a superfície da água toda coberta de gelo. Os rios nessa altura esvaziavam-se e baixavam de tal modo que era possível apanhar grandes quantidades de peixes à mão, por entre as ervas das margens. Ainda a propósito de peixes, fala Anchieta de dois fenómenos que

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permitiam aos nativos capturar facilmente grandes quantidades de peixe: a piracema, ou saída de peixes, e o piraquê, ou entrada de peixes. O primeiro destes fenómenos ocorria depois das grandes enchentes dos rios. Os índios aproveitavam, este fenómeno para se abastecerem e se compensarem da escassez de alimentos que antecedia este momento. Isto acontecia duas vezes por ano ou pela descida dos rios e permanência por esse facto dos peixes nas margens, ou porque algumas espécies se escondiam nos arbustos para desovar. No estio, saíam das ervas grandes cardumes que eram apanhados ou à mão, ou em pequenas redes. O piraquê, o segundo destes fenómenos, ocorria em determinados momentos do ano em que vinham peixes de diversas partes do mar e se escondiam em lugares de pouca profundidade perto das margens, a fim de se reproduzirem. Encurralados pelos índios que fechavam o único canal de entrada, eram apanhados sem grande trabalho, aos 10 e 12 mil. Os peixes eram de óptima qualidade e podiam comer-se ao longo de todo o ano. Eram muito usados quando alguém adoecia. De seguida, Anchieta elabora uma espécie de catálogo das espécies de bichos, plantas e alguns minerais existentes em terras do Brasil. Descreve os hábitos das espécies animais e as propriedades das plantas, incluindo-as em duas espécies: as benéficas e as maléficas. Identifica algumas espécies animais como os alces, javalis, panteras, avestruzes, etc, chegando a enumerar mais de 50 variedades zoológicas e mais de dez variedades de vegetais. Depois de falar nos elementos da Natureza, Anchieta descreve alguns fenómenos que causavam medo entre os índios. Fala dos curupiras, demónios do mato, que segundo a lenda atavam os índios com paus, e depois os açoitavam e matavam. Para que isso não sucedesse, costumavam colocar em certos lugares, penas de ave, abanadores, flechas e objectos semelhantes, que funcionavam como amuletos para evitar que lhes fizessem mal. Em seguida descreve os boitatás, seres que viviam a maior parte do tempo junto do mar e dos rios e dos quais apenas era visível um facho cintilante, que corria de um lado para o outro. Estes seres apanhavam os índios e matavam-nos de seguida. Termina a carta com a descrição do igpupiara, um monstro aquático que comia os índios. Os machos eram semelhantes a homens de boa estatura, olhos muito encovados, e as fêmeas pareciam-se com mulheres belas de cabelos compridos. Estes monstros matavam as pessoas abraçando-as e beijando-as tão fortemente que as trituravam inteiras. Quando os monstros sentiam que as pessoas estavam mortas, davam alguns gemidos e fugiam. Se por vezes levavam algumas pessoas com eles, comiam-lhes somente os olhos, narizes, pontas dos dedos e artelhos, bem, como os órgãos genitais, e os corpos eram encontrados pelas praias sem estes órgãos. O monstro que terá inspirado esta lenda parece ter sido o leão do mar. Em matéria de religião, os aborígenes nem adoravam nada, nem conheciam Deus. Aos trovões chamavam Tupã, que significava “coisa divina”. Faziam cerimónias, de tempos a tempos, para as quais vinham feiticeiros de

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terras distantes, fingindo trazer a santidade. Antes da chegada destes feiticeiros, os índios mandavam limpar os caminhos e recebiam-nos com danças e festas e as mulheres andavam aos pares confessando publicamente as faltas que haviam cometido para com os seus maridos e pedindo perdão delas. Quando o feiticeiro chegava entrava numa casa escura e punha uma cabaça, com a figura humana num local apropriado. Depois transformava a sua voz e dizia aos índios que não trabalhassem, nem fossem à roça, que o mantimento cresceria por si, que nunca lhes faltaria comida, pois as enxadas iriam trabalhar, as flechas iriam ao mato caçar e haveriam de cativar muitos inimigos. Muitos deles morreriam de fome mas em santidade. O feiticeiro prometia-lhes uma vida longa, dizia que as velhas se haviam de tornar jovens, tudo isso com um voz disfarçada que saía de dentro de uma cabaça. Quando o feiticeiro acabava de falar as mulheres começavam a tremer, com grandes tremores, parecendo endemoninhadas. Deitavam-se na terra, espumavam da boca, pois segundo o feiticeiro assim lhes entrava a santidade. Todos lhe ofereciam muitas prendas. Este, depois do ritual, visitava os doentes e usava de muitos enganos e feitiçarias: esfregava, chupava e defumava os doentes nas partes que tinham lesadas. Os índios aproveitavam ainda a vinda dos feiticeiros para se aconselharem sobre as guerras e sobre os agouros. Segundo o Padre Manuel da Nóbrega os índios cristianizados tornavam muitas vezes a cair nestas práticas, o que levava os Jesuítas a julgarem-nos homens de temperamento muito inconstante. Anchieta tece ainda algumas considerações sobre os brasis, nome dado aos índios, referindo que eram seres de saúde perfeita. Raramente se achava um cego, um surdo, um mudo ou um coxo e nenhum era nascido fora do tempo. Isto podia dever-se ao costume índio de enterrar os que nasciam com alguma deformação, ou os bébés nascidos de adultério, um verdadeiro método de apuramento da raça. Num outro documento datado de 1560 Anchieta fala do clima e das águas que são excelentes e que segundo ele são a razão pela qual as pessoas têm uma longa vida. As pessoas vivem até aos oitenta ou noventa anos embora a terra seja melancólica. Os escravos e os índios, por esta razão, trabalham pouco e os portugueses quase nada. Vive-se de festas e convívios. Todos são muito dados ao vinho e facilmente se deixam tomar por ele. Os portugueses consideram isso normal e frequentemente o vinho era acompanhado de comeres muito esquisitos. Relativamente à habitação, Anchieta informa que as casas eram de pedra e cal, cobertas de telhas, mas também as havia cobertas de palmas e de ervas. Como havia muito algodão o vestuário era feito à base deste produto. Todos os outros tecidos iam da Europa e os homens e mulheres portugueses trajavam de forma muito asseada, usavam panos finos e as mulheres usavam muitas sedas e jóias, muito mais que as mulheres de Portugal. Todos os portugueses pareciam senhores e reis por possuirem muitos escravos e fazendas de açúcar e aí reinava o

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ócio e o vício da murmuração. Os índios cristianizados ainda andavam nus e descalços, ou quando muito vestiam roupa de algodão ou pano grosseiro. Tinham tendência a copiar os hábitos europeus e faziam-no com alguma graça. Podiam sair só de gorro, carapuça ou chapéu e num outro dia só de sapatos ou botas e totalmente nus. Outras vezes levavam uma roupa curta até à cintura, sem mais nada, parecendo-lhes que iam muito elegantes. Quando casavam iam às bodas de vestidos e à tarde passeavam nus. Mas, este documento de 1560 é sobretudo importante pelas descrições que faz da natureza. Assim, fala das formigas, que considera serem a destruição daquela terra. Minavam as casas, as igrejas e subiam pelas paredes até ao telhado. Toda a noite andavam os lavradores com uns fachos de fogo à caça dos insectos, porque, se os deixassem , em uma só noite não restaria folha nos roçados de mandioca e nas fruteiras, que sempre tinham de ser mantidas com algum tipo de defensivo. Nos roçados lhes davam os lavradores de comer, nisto ocupando muitas pessoas, pois o tinham por mais barato que deixá-las destruir as fazendas. Fala longamente na vegetação brasileira, considerando o país como um grande jardim de frescura. Os arvoredos iam-se às nuvens, eram de admirável altura, grossura e diversidade de espécies. Muitos produziam bons frutos e o que lhes dava graça era haver neles numerosos passarinhos de grande formosura e variedade. Eram muito mais espécies que as que era possível encontrar em Portugal. Havia muitos cedros, sândalos e outras madeiras e tantas flores e folhas diversas que não se cansavam os olhos de ver. No documento intitulado “Informação do Brasil e de suas capitanias”, escrito em 1584 e em que se resumia a história do país e a actividade aí exercida pela Companhia de Jesus, Anchieta refere a propósito dos indígenas, que todos eles falavam a mesma língua. Apesar disso havia pelos matos uma raça de povos bárbaros chamados Tapuias, que sobreviviam apenas da caça e que tinham uma natureza muito instável. Por essa razão não conseguiam estar muito tempo no mesmo sítio e mudavam frequentemente. Andavam todos nus ou apenas cobertos de peles de animais e as mulheres usavam uma espécie de mantas de algodão, que elas próprias teciam. Os costumes dos índios, fosse qual fosse a raça, eram muito semelhantes. Alguns índios tinham apenas uma mulher mas muitos possuíam três ou quatro. Se era um índio importante podia chegar a ter vinte mulheres. Havia, no entanto, verdadeiros matrimónios, segundo a lei da natureza. Os jovens em idade de casar, ainda mancebos, serviam a seus sogros antes que estes lhes dessem as filhas. Quem tinha mais filhas era mais honrado pelos genros e estes eram muito submissos a seus sogros e a seus cunhados. No texto “Informação dos casamentos dos índios”, Anchieta refere que estes tinham um espírito muito aberto pois para os índios a noção de pecado não existia. O marido não tinha obrigações matimoniais para com a mulher, nem esta para com o marido, por isso a mulher não se incomodava se o índio tomasse outra mulher. Se ainda fosse jovem tomava ela também outro marido, se fosse já velha aceitava. O marido mantinha a

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obrigação de alimentar as mulheres que abandonava. Muitos índios tomavam mulheres em aldeias apenas para terem quem lhes desse de comer, ainda que fossem velhas e já não pudessem ter filhos. Os índios de uma mesma nação eram muito pacíficos entre si e raramente pelejavam. Se por vezes se exaltavam pela quentura do vinho, eram logo apaziguados pelas mulheres que lhes escondiam as armas para que estes não se ferissem. O vinho era feito de raízes de mandioca, de milho e de frutas. Era uma tarefa da responsabilidade das mulheres. Estas, depois de cozidas as raízes ou o milho, mastigavam-nas pois diziam que isso dava mais gosto ao vinho e o fazia fermentar mais depressa. O líquido era metido em grandes potes, fermentava dois dias e era bebido quase quente. Bebido dessa forma não fazia tanto mal nem os embebedava tanto. Os velhos raramente se embebedavam, ficavam apenas alegres e bem dispostos. O vinho feito de frutas era mais forte mas a quantidade que dele se fazia era menor. O vinho de raízes e de milho era o mais usado nas festanças e nas matanças. Durante todo esse tempo os índios bebiam cantavam e bailavam. Esta bebida servia também de alimento pois era muito grosso e enquanto o bebiam não comiam mais nada. Só os adultos bebiam vinho. Quando um jovem se iniciava nesse ritual faziam-lhe uma grande festa, emplumavam-no e pintavam-no para fazer dele um homem. Neste texto Anchieta revela ainda outros conhecimentos. Assim expõe a localização de cada capitania, o clima, os acidentes geográficos, os núcleos urbanos, a população, as autoridades seculares e eclesiásticas, as guarnições militares, edifícios públicos, igrejas, fortificações, principais recursos económicos, engenhos de açúcar, estabelecimentos jesuíticos, número de religiosos que exerciam actividades e as aldeias que tinham a seu cargo. Ao descrever Pernambuco, Anchieta apresenta um local muito rico, de muitos moradores, com um comércio desenvolvido, enfim, uma nova Lusitânia. Em relação à Baía, considerava estar esta mal situada por se encontrar num monte, embora tivesse uma excelente vista para o mar, pelas numerosas ilhas ali espalhadas que lhe davam uma certa graça. Aprofunda mais a sua descrição em relação ao Rio de Janeiro, cuja vila descreve como estando assente em um monte virado para o mar, com uma baía muito formosa e ampla, cheia de ilhas aprazíveis. Segundo Anchieta era a cidade mais airosa de todo o Brasil. À entrada da barra havia uma pedra muito comprida ao jeito de um pão de açúcar. Era uma região muito rica, abastada de gados, farinhas e outros mantimentos, madeiras preciosas, pescados abundantes, e um clima muito saudável. De São Paulo de Piratininga refere ser uma terra de grandes campos, muito fértil, de muitos pastos e gados, e de muitos mantimentos. Nela davam-se uvas e fazia-se muito vinho. Havia marmelos em quantidade, romãs e muitas árvores de

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frutos.Era um local excelente para o cultivo de rosas e de lírios brancos. De referir a propósito que a cultura da rosa foi introduzida no Brasil e desenvolveu-se sobretudo devido ao facto de Anchieta ter criado o hábito de decorar os altares das procissões sempre com rosas. Também as jovens donzelas levavam nas procissões pequenas coroas feitas de botões de rosa. Na Carta Ânua, datada de 1583, referindo-se às Solenidades da Instituição da Confraria de Nossa Senhora do Rosário, na vila de Piratininga, Anchieta refere: “... Procedeu-se a seguir a uma devota procissão rogatória, na qual todos traziam à cabeça suas coroas de rosas (que só aqui florescem), carregando o padre, debaixo do pálio de seda, uma imagem da Virgem Mãe, também ela emoldurada de rosas vermelhas”. Sabemos agora que, entre 1560 e 1570, Anchieta se terá dedicado ao cultivo de rosas, que eram plantadas em terreno contíguo à Igreja e à Escola, e que eram utilizadas em todas as solenidades religiosas. A cultura desenvolveu-se de tal modo, que ainda nos nossos dias sobrevive no Brasil uma espécie de rosas a que se chama “Rosa de Anchieta”, espécie essa desenvolvida depois de aturados estudos, num local chamado Roselândia que foi criado em homenagem a José de Anchieta. Anchieta dedicou toda a sua vida ao ensino entre índios tupi e colonos portugueses. O processo utilizado para atrair os filhos dos indígenas a um e a outro foco de aculturação- colégio e igreja- era a doce harmonia do canto. A música levada da Europa, misturada com a que era trazida da selva, tornou-se verdadeiramente eficaz na insinuação da nova crença e da nova moral. Num acto de verdadeira Pedagogia, misturaram-se crianças indígenas com órfãos portugueses da mesma idade, que eram levados pelos padres para o Brasil. Permitia-se que os índios ainda não cristianizados frequentassem a missa e cantassem em louvor de Deus na sua própria língua. Cortaram-se os cabelos dos meninos portugueses ao modo dos índios porque “a semelhança é causa de amor”, embora José de Anchieta compreendesse já que eram todos diferentes mas todos iguais. Com vista ao desenvolvimento da sua acção missionária, Anchieta fundou inúmeros colégios entre os quais o Terceiro Colégio Regular, em 1554, conhecido como Colégio de S.Paulo, no local que viria a dar origem à cidade com o mesmo nome. António José Saraiva atribui a fundação da cidade ao Padre Manuel da Nóbrega. O que se sabe ao certo é que Manuel da Nóbrega terá fundado a aldeia de Piratininga, que deu origem à cidade de S.Paulo, mas o Colégio fundado por José de Anchieta é que propiciou o desenvolvimento da aldeia e a sua transformação em cidade. Nesse colégio Anchieta ensinou gramática e latim a religiosos, índios, portugueses e mamelucos. Evangelizou e aprendeu a língua indígena nos seus vários dialectos. Missionou ainda em S. Vicente, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Para catequizar escreveu pequenos textos de teatro em quatro línguas: português, espanhol, latim e tupi, fazendo acompanhar as suas peças de música, dança, pintura, adornos e até instrumentos musicais dos índios. Toda a sua obra revela uma certa ingenuidade mas alguma inteligência. As representações teatrais tinham um

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carácter medieval mas funcionavam como um excelente meio de comunicação e uma excelente forma de aprendizagem. Em 1578 Anchieta foi nomeado provincial do Brasil e a sua actividade intensificou-se visitando seminários de missionários e colégios de leigos, a todos comunicando o seu entusiástico apostolado. Escreveu inúmeras poesias de temática religiosa e dezenas de cartas em que reflectia sobre problemas pedagógicos, história e linguística. Deixou-nos um poema em louvor da Virgem e organizou uma gramática da língua tupi-guarani, que foi publicada em Coimbra em 1595, mas que durante anos foi divulgada em cópias manuscritas. Esta gramática teve uma enorme importância. Numa época em que “o encontro duma multiplicidade de línguas totalmente desconhecidas e indecifráveis põe o homem do século XVI perante a prova vivencial da ruptura linguística original”, revela interesse e assume particular destaque, todo e qualquer estudo gramatical. Anchieta sentiu essa preocupação bem como a de transmitir e deixar escritas todas as informações passíveis de utilidade a qualquer humanista. O título da obra é por si bastante sugestivo: A ARTE de GRAMÁTICA DA LINGOA MAIS USADA NA COSTA DO BRASIL. Esta obra representa “uma estratégia de abordagem das línguas exóticas que entram no colóquio universalizante do Mundo descoberto”. Segue rigorosamente o modelo universal, ou seja a gramática clássica. Anchieta apercebe-se da imensa dificuldade que é estabelecer regras pois como ele próprio diz: “ Isto das letras, ortographia, pronunciação e accento servirá para saberem pronunciar o que acharem escrito os que começam aprender; mas como a lingoa do Brasil não está em escrito, em continuo uso do fallar, o mesmo uso e viva voz ensinará melhor as muitas variedades que tem, porque no escrever e accentuar, cada um fará como melhor lhe parecer”. De qualquer forma, a língua tupi foi comparada à língua grega em perfeição e capacidade abstractizante e é considerada o verdadeiro testemunho do Génese. Perfeita como a língua do paraíso, a língua tupi alcança, segundo José de Anchieta, a perfeição que corresponde à pureza do seu povo, considerado senhor dos reinos utópicos do Continente Americano, novo cenário das profecias, em particular da profecia de Daniel. Com efeito, os Franciscanos por um lado e os Jesuítas por outro, haviam transferido para o continente sul-americano o pensamento milenário anunciador do Quinto Império, ou Império do Espírito, de que será grande arauto algumas décadas mais tarde o Padre António Vieira, com a sua História do Futuro. Os Jesuítas empreendem assim uma recuperação doutrinária, tendo como referente a pureza genética que se identifica com os índios, em estado de pureza e não de selvajaria, num cenário que seria o ponto de partida para uma impetuosa vaga espiritual que levaria à conversão universal, instaurando o Império do Mundo, subordinado ao Espírito Santo. Deste modo, a conquista e missionação das Ìndias Ocidentais inseria-se

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num projecto universal de sentido escatológico, a que faltavam os “instrumentos” agora encontrados. E esses instrumentos são, de facto, a dotação semiúrgica de um alfabeto que, ultrapassando as barreiras do espaço-tempo, se tornará factor de criação de uma área cultural e da instauração de uma nova ordem. Assim se virtualizara o conceito de uma Gramática Universal, cujo modelo redutivo era equivocamente procurado no velho modelo greco-latino, metamorfoseado num modelo formal e abstractizante. Mas é, através deste modelo, que é possível, ultrapassando os limites forçados da comunicação gestual e o paradigma dos comportamentos semióticos, elaborar um discurso novo, um discurso aberto, através do qual se concebem projectos e traçam programas de comportamento e esquemas de reflexão perante um Real sempre de novo encontrado. José de Anchieta procurou, durante toda a sua vida, atenuar os conflitos entre colonos e colonizadores. A bondade e o espírito de missão valeram-lhe a confiança dos indígenas, que lhe chamavam “Pazé-Guassu”, ou seja “Amarra-mãos”, e o seu heróico trabalho de missionário valeu-lhe o epíteto de “Apóstolo do Brasil”. Aos 52 anos, cansado e esgotado Anchieta pede a exoneração de provincial e recolhe ao Colégio do Rio de Janeiro, donde transitou para o colégio do Espírito Santo. Faleceu aos 63 anos em Iriritiba ou Retritiba, hoje Anchieta, no Estado do Espírito Santo, uma aldeia de índios por ele fundada. Foi um grande estilista da língua portuguesa, embora escrevesse igualmente em espanhol e em latim. As suas cartas são notáveis pois constituem verdadeiros tratados etnográficos, naturalísticos e morais que permitiram revelar o Brasil e os segredos da sua mentalidade. A ele se deve a descoberta da função da bolsa dos marsupiais e a descoberta da sede do veneno das serpentes. Muito conhecedor de toda a fauna e flora do Brasil, deixou preciosas informações que só viriam a ser utilizadas no século XVIII. Escreveu sobre temas religiosos, pequenos cantares destinados aos catecúmenos dos sertões brasileiros e algumas vidas de santos, como por exemplo a Vida de Santa Ursula. Os cânticos eucarísticos foram muito divulgados e de um deles se extraem estes versos em que o autor compara a hóstia com o pão dos anjos: “Ar fresco de minha calma, fogo de minha frieza Fonte viva de limpeza Doce beijo” A primeira biografia de Anchieta surge dois anos após a sua morte, na aldeia de Reritiba, mas desconhece-se o seu autor.

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Em 1617, foi publicada em Colónia, com a permissão do Superior da Sociedade de Jesus, a história da vida de José de Anchieta, biografia esta que será o ponto de partida para muitas outras feitas no século XIX, momento em que surge um enorme interesse por esta figura. Na biografia de Colónia aparece um capítulo intitulado: “José de Anchieta, o primeiro que ensina no Brasil as línguas latinas”.. donde se extraem as seguintes passagens: “Foi por ele fundada uma escola em Piratininga (hoje S. Paulo). que teve desde logo um número significativo de ouvintes da Sociedade de Jesus e uma grande quantidade de jovens portugueses.” Nesses tempos não existia no Brasil quantidade de livros que permitisse que cada discípulo dispusesse do seu próprio exemplar, por onde aprendesse os preceitos da Gramática de Língua Latina e pudesse adquirir o conhecimento das restantes coisas. Esta dificuldade, o mestre, com seu trabalho, tentava remediá-la e dava-lhes livros escritos sobre papiro, por sua própria mão...” (...) Anchieta compôs ainda um catecismo em brasileiro e elaborou um diálogo com perguntas e respostas sobre religião, para que fosse mais fácil aprender. “Escreveu um drama e dedicou-o ao povo”. Trata-se do Auto de São Lourenço que, segundo uma técnica vicentina utiliza três línguas: português, castelhano e tupi. A língua tupi foi objecto de aprendizagem por parte dos europeus mas a língua portuguesa foi também ensinada às crianças tupi. Empreendeu a elaboração dum Dicionário e traduziu catecismos e Diálogos de Doutrina. Culto, sensível, de grande versatilidade intelectual, Anchieta foi missionário, administrador, pregador, professor, linguista, etnólogo, naturalista, epistológrafo, poeta, historiador, biógrafo e depois de morto adquiriu fama de taumaturgo. Viajou muito pelos estabelecimentos jesuíticos do país e exerceu funções em vários deles. Anchieta foi um verdadeiro humanista pois humanistas “são quantos, mesmo que atentos ao divino, prestam ao Homem nova atenção, mais comovida de interesse porque mais convicta na sua grandeza. Além de pobre criatura de Deus, é o homem na verdade continuador da Sua obra pela grandeza que lhe acrescenta e pelo domínio com que a senhoreia. Sendo assim, o humanismo tanto podia exprimir-se pelo populismo de Gil Vicente como pelo aristocratismo de António Ferreira, mas o homem humanista podia ser capitão de uma nau ou missionário e apóstolo como José de Anchieta, um homem humilde e tolerante, um homem que conseguiu ver mais longe que o homem dito civilizado do século XX. Anchieta catequizou índios, ensinou-os, divulgou a sua língua. O século da modernidade extinguiu-os e pô-los em reservas. Anchieta foi, enfim, o verdadeiro sal da terra na terra que Vieira havia de

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