JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da...

49
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ GISELLY FRANCO DE OLIVEIRA DE LIMA JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O BRASIL CURITIBA 2009

Transcript of JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da...

Page 1: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

GISELLY FRANCO DE OLIVEIRA DE LIMA

JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O BRASIL

CURITIBA 2009

Page 2: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

2

GISELLY FRANCO DE OLIVEIRA DE LIMA

JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O BRASIL

Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito parcial para a conclusão do curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Profª Drª. Joseli Maria Nunes Mendonça.

CURITIBA 2009

Page 3: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

3

RESUMO

No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no

Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na pauta parlamentar, do projeto do qual resultou a Lei do Ventre Livre. Naquele período, José de Alencar ocupava uma cadeira de Deputado pela província do Ceará e foi radicalmente contra a aprovação do projeto. Argumentando contra o projeto, Alencar chamou a atenção para a questão econômica, indicando a necessidade de se manter a mão-de-obra cativa em uma economia essencialmente agrícola. Defendeu também a idéia de que a abolição não deveria ser feita por meio de leis, mas deveria resultar de uma modificação nos costumes da sociedade brasileira. Alencar manifestou suas opiniões por meio de vários discursos, proferidos entre os anos de 1870 e 1871 e que são as fontes para este estudo. Pouco tempo depois, uma outra questão importante para a organização do mercado de trabalho recebeu a atenção de Alencar: em 1877 ele manifestou sua posição em relação à colonização estrangeira, que ganhava força no período. Em concordância com seus argumentos quanto à escravidão, Alencar também defendia o principio da não intervenção do estado nas questões referentes à imigração, ou seja, para ele, apenas a imigração espontânea seria adequada para a nação. Após retomar brevemente alguns aspectos da vida pessoal, da produção literária e da inserção política de Alencar, esta monografia procura interpretar suas propostas para as redefinições que ocorriam no mercado de trabalho brasileiro do século XIX.

Palavras-chave: História do trabalho. Brasil - século XIX. Abolição da escravidão. José de Alencar.

Page 4: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

4

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...................................................................................05 2. UM DEDICADO “CATURRINHA”.....................................................08

2.1UMA PASSAGEM QUASE “ANÔNIMA”.............................................09 2.2ESTRÉIA COMO FOLHETINISTA:.....................................................11 2.3 AS PRIMEIRAS OBRAS....................................................................12 2.4 AS POLÊMICAS CARTAS DE ERASMO..........................................14 2.5 A IMPORTÂNCIA DE ALENCAR PARA A LITERATURA

BRASILEIRA.......................................................................................16 3. CORAÇÃO LITERATO, SANGUE POLÍTICO.....................................18 3.1. UMA FAMÍLIA DE LIBERAIS ATUANTES.........................................18 3.2 OS PRIMEIROS PASSOS NA POLÍTICA...........................................20 3.3 UM MINISTRO INSOLENTE...............................................................21 3.4 ELEITO, PORÉM NÃO EMPOSSADO................................................24 3.5 CONSERVADOR OU LIBERAL? MONARQUISTA OU REPUBLICANO?.......................................................................................24 4. O “ELEMENTO SERVIL” POR JOSÉ DE ALENCAR:........................27 4.1 UMA QUESTÃO PONTUAL: LIBERTAR OU NÃO O VENTRE ESCRAVO.................................................................................................47 4.1.1 Os trâmites da lei.......................................................................28 4.1.2: O conteúdo da Lei ....................................................................29 4.2 ALGUMAS DISCUSSÕES NO PARLAMENTO..................................31 4.2.1: As Participações de Alencar.....................................................31 4.3 SOBRE A LEI Nº.2040........................................................................32 4.4 ALENCAR, O PARTIDO CONSERVADOR E A QUESTÃO DO “ELEMENTO SERVIL”..............................................................................34 4.5. COMBATES COM UM IMPERADOR................................................36 4.6. O PRINCÍPIO DA NÃO-INTERVENÇÃO...........................................37 4.7. POR UMA REFORMA LENTA E GRADUAL.....................................40 4.8. SOBRE A IMIGRAÇAO ESTRANGEIRA...........................................42 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................44

REFERÊNCIAS.........................................................................................46

Page 5: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

5

1. INTRODUÇÃO: Este estudo está inserido no conjunto da produção historiográfica sobre a

organização do mercado de trabalho e do processo que culminaria com a

libertação dos escravos no Brasil, em fins do século XIX. Nele, será abordada a

posição de José de Alencar frente às propostas das quais decorreram a

aprovação da Lei nº. 2040 de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre. Neste

sentido, o estudo está centrado na análise das posições e projetos de Alencar

expressas e encaminhadas no âmbito parlamentar e em um período bastante

definido: os anos de 1870 e 1871.

Para desenvolver esta pesquisa foram utilizados os pronunciamentos feitos

por José de Alencar na Câmara dos Deputados entre os anos de 1870 e 1871 e

que estão disponíveis em uma compilação publicada pela referida Câmara em

1977 por ocasião do centenário da morte deste político1.

José de Alencar viveu de 1829 a 1877. Ao longo de sua vida exerceu

importantes cargos públicos. Foi Deputado pela província do Ceará, eleito nas

eleições de 1861 e novamente em 1869, sendo reeleito em 1872; ocupou também

o cargo de Ministro da Justiça entre os anos de 1868 a 1870. Foi também o

candidato mais votado para a posição de senador nas eleições de 1870, cargo

que não exerceu por não ter sido nomeado pelo imperador.

Sua vida caracterizou-se pela produtividade, seja ela literária ou discursiva,

em que sempre deixou claras suas posições e opiniões, envolvendo-se, inclusive,

em muitas querelas, graças a sua forte personalidade.

Temos por objetivo, portanto, analisar os discursos proferidos por Alencar

nos anos de 1870 e 1871 especificamente aqueles que versam sobre a discussão

da Lei Rio Branco, assunto daquele momento na política brasileira. Nestes

discursos Alencar manifestava expressamente suas opiniões não apenas sobre a

lei, mas sobre a própria escravidão. Ressaltamos também que não serão

1 ALENCAR, José de. Discursos parlamentares de José de Alencar, 1829-1877. Brasília, Câmara dos Deputados, 1977. Disponível também nos Anais da Câmara dos Deputados, versão on-line: www2.camara.gov.br

Page 6: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

6

abordados nesta pesquisa os trabalhos literários de nosso protagonista, ficando

assim restrita aos seus escritos e discursos políticos.

O “elemento servil” sempre foi uma questão crucial para a organização da

sociedade brasileira e permeava todos os seus aspectos desde o moral até o

econômico. Em uma economia essencialmente agrícola e erigida na força do

trabalho escravo qualquer decisão que atingisse ou ameaçasse as bases deste

sistema deveria ser, no mínimo, discutida à exaustão.

Robert Conrad no prefácio de sua obra considerou que “sem uma poderosa

oposição do exterior e o exemplo moral de outras nações, afetando as altas

esferas do governo brasileiro, o Brasil dificilmente teria agido para se privar de

suas fontes de escravos” 2.

E, em meados do século XIX a luta pela abolição ganhava novo fôlego com

uma adesão importante. A pessoa do Imperador passou a corroborar com a

causa emancipacionista, posição difícil, pois “desafiar a escravatura era um

terrível empreendimento, até mesmo para um Imperador, numa sociedade ainda

dominada por potentados rurais” 3.

Vários projetos de lei tratando da questão da mão-de-obra, não apenas

escrava, mas também livre, passaram a ser discutidos pela Câmara dos

Deputados, dentre elas a “Lei do Ventre Livre” promulgada em 1871, momento

em que concentramos nossos estudos e análises, e em que encontramos grande

parte dos discursos proferidos por Alencar sobre a escravidão. Além destes

pronunciamentos também nos utilizamos de um discurso seu sobre a mão-de-

obra imigrante, datado de 1877, pois nos pareceu relevante analisar suas

opiniões também sobre este assunto, tendo em vista a estreita relação deste

assunto com a questão da escravidão e da abolição.

Este estudo está dividido em três capítulos.

O primeiro apresenta uma breve biografia de José de Alencar. Priorizamos,

então, sua formação acadêmica em Direito, alguns aspectos de sua vida pessoal,

e principalmente seu trabalho como escritor, cuja importância para a literatura

brasileira se fez inquestionável e conferiu a Alencar um lugar na posteridade.

2 Conrad, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil:1850-1888; tradução de Fernando de Castro Ferro. Rio de Janeiro: Civilização brasileira; Brasília:INL,1975.Prefácio à edição brasileira, p.XV. 3 Ibidem .p.90

Page 7: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

7

Procuramos, no decorrer deste capítulo relacionar a produção literária de Alencar

com outros escritos, especialmente os de natureza política, como os que

compuseram a série intitulada “Cartas Políticas de Erasmo”, uma coleção de

missivas destinadas ora ao povo, ora ao Imperador, cujo teor abrangia os mais

importantes assuntos do Império no momento, tais como a Guerra do Paraguai e

a chamada questão do “elemento servil”. 4

O segundo capítulo dedica-se ao aspecto político da vida de Alencar. Nele,

procuramos mostrar que o convívio familiar facilitara sua inserção na vida política.

A família Alencar, desde há muito, se encontrava engajada na política brasileira.

Sua avó, D. Bárbara, fora prisioneira nos tempos da Confederação do Equador,

seu pai, o Senador Alencar, esteve envolvido na organização do Clube Maiorista,

de onde partiram as idéias e ações que levariam à emancipação precoce de D.

Pedro II. 5Apesar de ter crescido rodeado por doutrinas liberais, Alencar optou por

aderir ao Partido Conservador, partido este que defenderia em muitas ocasiões e

com o qual considerava identificar-se intimamente. Segundo ele, a maturidade de

espírito e de idéias o fizera um conservador; liberais foram apenas os anseios de

sua juventude. 6

O terceiro capítulo deste trabalho dedica-se à análise dos discursos

proferidos por Alencar entre os anos de 1870 e 1871, quando foi deputado na

Assembléia Geral pela província do Ceará; além de um pronunciamento sobre

imigração européia datado de 1877. Na análise, ressaltamos as suas posições,

opiniões e expectativas frente à escravidão e seu posicionamento quanto à

questão da inserção de mão-de-obra imigrante.

Analisar seus objetivos e seus argumentos, portanto,é a tentativa de

compreender suas propostas de um projeto de abolição para a sociedade

brasileira.

4 Ver: MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. José de Alencar e sua época. São Paulo: LISA -Livros Irradiantes, S/A, 1971. MENEZES, Raimundo de. José de Alencar: literato e político. 2ª edição. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e científicos, 1977. SILVA, Hebe Cristina. Imagens da escravidão: uma leitura dos escritos políticos e ficcionais de José de Alencar. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas. São Paulo: 2004. 5 ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. 2ª Edição. Campinas: Pontes, 2005.p. 25-26. 6 Apud, Magalhães Junior; p.266.

Page 8: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

8

2. UM DEDICADO “CATURRINHA” 7.

“A impressão que se tem, ao encará-lo pela primeira vez, como seu tipo de homem pequeno e aparentemente zangado, de rosto escondido sob a espessa barba, é mais de temor que mesmo de satisfação, ou respeito. Zangado, orgulhoso, severo, misantropo quase.

8”

Escrever acerca da vida e obra de José de Alencar pode, em um primeiro

momento, parecer tarefa corriqueira e até mesmo simples. Contudo ao nos

debruçarmos sobre o numeroso material dedicado ao romancista percebemos

uma grande dificuldade; não tanto em relação à quantidade, mas quanto à

qualidade do material disponível. Muitos dos estudos biográficos não preservam o

“distanciamento” necessário entre o pesquisador e seu objeto, fornecendo um

resultado um quanto fantasioso e romanesco da pessoa de Alencar,

especialmente nos trabalhos que priorizam sua vida literária. Por isso, nas

páginas que se seguem procuramos, na medida do possível, abstermo-nos de

ênfases desnecessárias, apresentando alguns fatos que consideramos

importantes na trajetória deste personagem; que como veremos tinha grande

desejo de “passar à posteridade” 9.

Neste capítulo apresentaremos ao leitor nosso protagonista, conhecido por

seus romances, tais como Senhora, Lucíola e o Guarani, entre outros. Por meio

de uma breve biografia, mostraremos detalhes de sua curta, porém fecunda vida,

desde seu nascimento em 1829 no Ceará, passando por sua produção literária e

folhetinista entre outros aspectos até chegarmos à sua morte em 1877. Serão

excluídos aqui os aspectos e características de sua vida política que merecerão

um capítulo próprio.

Em 1826, na Província do Ceará, têm inicio entre o sacerdote, que havia sido

ordenado em 1823, José Martiniano de Alencar e sua prima em primeiro grau Ana

Josefina de Alencar, o “romance ilícito” (nas palavras do próprio Alencar-o pai- no

7 De acordo com os biógrafos, “Alencar 2º o caturrita”era assim chamado na escola por sua estatura baixa e seu semblante carregado, ver :MAGALHÃES JÚNIOR. Op. Cit.p.6. 8 MENEZES. Op. Cit.. p.10 9Ibidem.

Page 9: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

9

ato de reconhecimento de seus filhos)10. Ana Josefina em 1829 dá à luz ao

primogênito, homônimo ao pai, José Martiniano de Alencar.

A família cresce e, contando já com mais dois filhos, em 1837 a família

Alencar inicia sua “caminhada” rumo à corte. Já instalados na antiga Rua do

Conde no Rio de Janeiro, José inicia seus estudos no Colégio de Instrução

Elementar, este era dirigido por Januário Mateus Ferreira, pessoa que exercerá

grande influência e merecerá grande respeito do já adulto Alencar11. Dedica-se

muito aos estudos, sempre galgando e mantendo o grau de “monitor da turma”,

lugar pelo qual mantinha muito zelo.

Graças a sua aptidão, Alencar passa a ter em seu lar a função de “ledor”, e

em sua autobiografia escreveu sobre esta função: “com a qual me desvanecia

como nunca me sucedeu depois no magistério ou no parlamento” 12. E lia,

segundo ele, com tal empenho que provocava comoção entre os ouvintes e até

em si mesmo. Em sua biografia Alencar, apesar de não afirmar, aponta para este

período de sua infância como um dos formadores de sua tendência para as letras,

especialmente para o estilo literário do Romantismo, balizador juntamente com a

faculdade de desvendar charadas, desenvolvida também na infância13.

2.1 UMA PASSAGEM QUASE “ANÔNIMA”.

Tendo findado os estudos no Rio, Alencar dirige-se a São Paulo em 1843

para completar o preparatório com a finalidade de ingressar na magistratura, o

que consegue três anos depois. Neste período já demonstra sua tendência para

as letras fundando, juntamente com alguns colegas, em seu primeiro ano como

acadêmico, uma revista semanal chamada Ensaios Literários14.

De acordo com Araripe Junior, citado por Raimundo de Menezes, a

passagem de Alencar pela academia é quase obscura, sempre tolhido e

reservado, prefere não participar das festas comuns na faculdade e na república

10MAGALHÃES JUNIOR, Op. Cit. p4. 11 ALENCAR, José. Como e porque sou romancista. 2ª Edição. Campinas: Pontes, 2005. p.21. 12

Ibidem, p. 23 13 MAGALHÃES JUNIOR, Op. Cit.p.26-33. 14

MENEZES. Op. Cit. p.54.

Page 10: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

10

em que morava15. É neste período que trava maior contato com as obras dos

grandes autores internacionais, e esforça-se por compreendê-las apesar do

grande obstáculo da língua, lê Victor Hugo, Balzac, Alexandre Dumas entre

outros.

Em 1847, viaja em férias para Fortaleza. Segundo muitos biógrafos, é nesta

viagem que se inicia o “namoro” pelas coisas de sua terra que serão

características marcantes de sua obra.

Segundo Menezes:

Desenham-se-lhe a cada instante na tela das reminiscências as paisagens de seu pátrio Ceará. Devora as paginas dos alfarrábios de noticias coloniais, e busca com sofreguidão um tema para um romance, ou pelo menos um protagonista, uma cena, uma época16.

Passa então a cursar o terceiro ano do curso de Direito em Olinda,

conseguindo aprovação plena. Em 1848 regressa a São Paulo para matricular-se

no quarto ano; em 29 de outubro de 1849 forma-se em direito, retornando então à

Corte.

Com o diploma de bacharel é convidado a trabalhar no escritório de

advocacia de Dr. Caetano Alberto Soares onde trabalhará por quatro anos; este

período é lembrado por Alencar não tanto pelas horas de trabalho na burocracia,

mas por um fato que “seria cômico, se não fosse trágico”.

Já desde sua mocidade Alencar mantinha seus pequenos escritos literários,

tendo inclusive iniciado um “esboço regular de um romance”. Como passava

grande parte do dia em seus afazeres no escritório, havia trancado estes seus

manuscritos, seu “precioso tesouro”, em uma cômoda. Sem que soubesse alguém

os havia colocado na estante, e:

Daí, um desalmado hóspede, todas as noites quando queria pitar, arrancava uma folha que torcia a modo de pavio e acendia na vela. Apenas escaparam ao incendiário alguns capítulos em dois canhenhos, cuja letra miúda a custo se distingue no borrão de que a tinta, oxidando-se com o tempo, saturou o papel17.

15 Ibidem, p.50. 16 Ibidem, p. 56. 17 ALENCAR. Op. Cit. p.52.

Page 11: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

11

Acabava assim a primícia da obra alencariana. Chamava-se Os

Contrabandistas e, segundo ele, conservava a vitalidade de seus 18 anos. Ao

escrever sua obra Como e porque sou romancista, a tinha por um dos melhores e

mais felizes de quantos haviam sugerido sua imaginação.

2.2 ESTRÉIA COMO FOLHETINISTA:

O Correio Mercantil em 1853 passa a ser comandado por Francisco

Otaviano, antigo colega de academia de Alencar, que devido às grandes

responsabilidades políticas estava em vias de abandonar seu rodapé dominical de

grande sucesso. Imediatamente lembra-se de Alencar para substituí-lo. Este

havia trabalhado por um breve período no Diário do Rio de Janeiro, e aceitou com

prazer e temor o cargo oferecido; em breve nasceria uma coluna de grande

sucesso: Ao Correr da Pena. Neste folhetim semanal, Alencar tratava de todos os

assuntos, desde representações líricas, ao tráfico de africanos, segundo

Magalhães Junior nestas crônicas é possível observar boa parte das influencias

literárias da formação de Alencar. 18

Neste período sofre uma grande decepção amorosa, cai de encantos por

Francisca Calmon Nogueira Vale da Gama, filha de viscondes. Conhecem-se nas

bodas de Otaviano e novamente encontram-se no salão do conselheiro Nabuco

de Araújo, eram os anos de 1855, José já contava com 26 anos. O moço não é

afeito a valsas e a moça escolhe outro para lhe fazer par, Alencar sente-se

ofendido e termina o namoro, logo Francisca parte para o exterior com a família e

Alencar fica decepcionado. Nas palavras de Menezes “mais tarde, nos heróis dos

seus romances Diva e Senhora ‘extravasará o ressentimento de moço pobre,

resultante desse amor fracassado’“. 19

Como seu folhetim versasse sobre todos os assuntos do país, Alencar

acabava por muitas vezes atraindo opiniões não muito afeitas aos seus

comentários, e não tolerava intromissões e censuras em seus textos. Esta

característica o faria demitir-se do Correio Mercantil.

18 MAGALHÃES JUNIOR, Op. Cit. p.31. 19 MENEZES. Op. Cit.. p. 74.

Page 12: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

12

Em 1855, Alencar passa a discutir e a opor-se às concessões feitas para

exploração de terras e construção de estradas à companhias que compravam e

vendiam suas ações em especulação financeira. Sua crônica em meados de julho

trazia frases como “Enfim hoje não se pensa em casamento rico, nem em

sinecuras; assinam-se ações, vendem-se antes das prestações e ganha-se

dinheiro por ter tido o trabalho de escrever seu nome”20.

Logo a censura do jornal passa a cortar trechos de sua página,

apresentando no lugar apenas linhas pontilhadas. Alencar prefere então enviar

para que seja publicada no próprio jornal sua carta de despedida e demissão, que

sai também com cortes. A relação de Alencar com o amigo Francisco Otaviano

sofre um grande desgaste. Ele pede, inclusive, para que cessem as publicações

sob o título Ao Correr da Pena, pois entende que “como um filho” este lhe

pertence. Não demoraria muito para que fosse convidado a trabalhar em outro

jornal O Diário do Rio de Janeiro, desta vez não apenas como folhetinista, mas

como redator-chefe. Inicia-se então o período de maior produção literária de sua

vida21.

2.3 AS PRIMEIRAS OBRAS:

Depois de ter retornado brevemente à advocacia, dada sua saída do Correio,

logo é chamado para escrever para o Jornal do Comércio, porém não aceita o

convite e acaba escrevendo apenas dois folhetins, sem o título que tanto o

agradava. Em outubro de 1856 é convidado a assumir a gerência e a redação do

Diário do Rio de Janeiro. O desafio consiste em reerguer o jornal, que vinha

agonizando e agora havia sido vendido e buscava reconquistar seu espaço.

Toda a experiência como jornalista deixaria grandes impressões em Alencar,

que escreve:

É longa a história desta luta, que me absorveu cerca de três melhores anos de minha mocidade. Aí se acrisolaram as audácias que desgostos, insultos, nem ameaças conseguiram quebrar até agora; antes parece que as afiam com o tempo. 22

20 Apud, MENEZES. p.107. 21 MENEZES. Op. Cit. p. 109. 22 ALENCAR. Op. Cit. p.55

Page 13: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

13

De fato como veremos em tempo, audácia era característica que não faltaria

a Alencar.

Em 1856 já em plena atividade no Diário nosso protagonista, sob

pseudônimo Ig, envolve-se em uma polêmica com o Imperador Pedro II,quando

criticou a obra A Confederação dos Tamoios que havia sido elogiada pelo

monarca que havia inclusive patrocinado sua publicação. O Imperador chega

mesmo a sair em defesa de Domingos José Gonçalves de Magalhães, autor da

obra. Com o pseudônimo Outro amigo do poeta, publica no Jornal do Comércio

quatro artigos intitulados Reflexões às cartas de Ig. Mais tarde Alencar publicaria

suas críticas em folheto e assumiria sua autoria.

Este período em que trabalhou no Diário é marcado pela publicação de seu

primeiro romance, Cinco Minutos, publicado segundo ele por um “mimo de festa”

aos assinantes da folha em “meia dúzia de folhetins que iam saindo dia por dia”23.

A esta obra logo se seguiu A Viuvinha e depois O Guarani, uma de suas obras

mais conhecidas e a primeira que apresenta claramente uma de suas

características mais marcantes: a valorização e exaltação do nacional, do

brasileiro. O Guarani é publicado diariamente em folhetim entre os meses de

janeiro e abril de 1857, Ceci e Peri passariam à posteridade como tanto queria

seu criador.

Neste mesmo ano Alencar lançou-se como autor de peças teatrais. Nesta

atividade Alencar conheceu o ápice: com peças de grande sucesso de crítica e

público, como “O Demônio Familiar”. Mas também o declínio com a peça “As asas

de um Anjo” que sequer pode ser encenada por ter sido considerada imoral.

Decepcionado, abandona em 20 de julho de 1858 o Diário retornando ao

escritório de advocacia em que trabalhava até ser convidado por José Tomás

Nabuco de Araújo para trabalhar como consultor no Ministério da Justiça;

assumindo também neste mesmo ano a cátedra de professor de direito mercantil

no Instituto Mercantil, onde permaneceria até 1860.

O ano de 1860 marca sua vida também por um grande dissabor: o pai o

“velho Senador Alencar” a quem o filho muito respeita, falece em março, sendo

inclusive sepultado com batina; segundo Menezes “como primogênito, José é

23 Ibidem. p.56

Page 14: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

14

quem mais sofre. Devota ao pai acendrada admiração” 24.Logo partiria para seguir

os passos do pai na carreira política como veremos no segundo capítulo.

Como vimos deve ter sido inesquecível a dama que o abandonou aos vinte e

seis anos, pois só agora aos trinta e cinco anos apaixona-se. A escolhida é

Georgiana Augusta Cochrane, prima da namorada que o desprezara. Casam-se a

20 de junho de 1864. E, segundo Menezes em um casamento muito simples, de

acordo com a família Cochrane e com o temperamento arredio do noivo. 25

Desta união nascerão Augusto, mais tarde diplomata e Mário, que se tornará

escritor. Logo depois do casamento refugia-se em casa e publica As minas de

Prata, em 1865, outra grande obra: Iracema. Neste mesmo ano inicia-se um

importante capítulo de sua vida: começa a escrever e publicar as Cartas de

Erasmo.

2.4 AS POLÊMICAS CARTAS DE ERASMO:

Em 17 de novembro de 1865 aparece uma nova publicação, às quintas-

feiras e vendida nas principais livrarias do Rio de Janeiro: as Cartas ao

Imperador, assinadas apenas por Erasmo. São inicialmente dez cartas26 que,

tendo como conteúdo principal elogios e conselhos ao Imperador atraem grande

interesse do público que logo ficam sabendo quem é seu autor: José de Alencar.

O primeiro assunto abordado nas cartas é a guerra contra o Paraguai. Na

segunda carta o tom torna-se mais efusivo, em relação aos que “tratam da cousa

pública não por devoção, porém, repouso apenas de ocupações mais

lucrativas”27. Conclama o Imperador à ação através do uso do Poder Moderador,

alegando que, para exercer o poder, o Imperador não dependia de agentes ou de

conselheiros, bastaria sua soberana vontade. 28

Na segunda série das Cartas de Erasmo, como ficaram conhecidas as

missivas, publicadas entre os meses de junho a começo de agosto, Alencar muda

24 MENEZES. Op. Cit. p.152 25 MENEZES. Op. Cit. p.198. 26 O mesmo autor, Raimundo de Menezes, ora afirma terem sido 10 cartas, ora fala em nove; Magalhães Junior por sua vez não diz quantas seriam as cartas. 27 Apud, MENEZES.Cartas de Erasmo, 2ª carta. 28 Apud, MENEZES. Cartas de Erasmo, 10ª carta.

Page 15: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

15

o destinatário. Desta vez remete-as ao povo, e o principal assunto tratado

continua sendo a guerra contra o Paraguai. Nelas, Alencar fazia censuras e

críticas ao comando das tropas brasileiras e questionava a razão de ser do

conflito:

“A Guerra que sustentamos é desde sua origem um tecido de incongruências e desacertos (...) É incrível! A tática de guerra parece dirigida ao fim inaudito de fazer do soldado brasileiro um covarde. (...)”. 29

Defendia a entrega do comando das tropas ao Marquês de Caxias, segundo

Magalhães Junior, com orientações vindas do Partido Conservador e com vias de

promover uma mudança política por meio de uma crise no campo militar.

Como sabemos, Caxias acaba assumindo as tropas e levando ao fim uma

guerra, que era para ser rápida e eficaz, mas que se arrastou por muitos anos e

trouxe grandes temores ao imperador.

Afastando-se de cena por algum tempo, Alencar reaparece com suas Novas

Cartas de Erasmo ao Imperador, em 24 de junho de 1867, desta vez tratando de

temas como emancipação, donativo imperial e a guerra.

Três destas missivas tratam do tema da emancipação e, segundo Hebe

Silva, na primeira delas Erasmo tenta mostrar ao imperador que o fato de ele

apoiar as discussões acerca da abolição refletia uma preocupação não com os

interesses nacionais, mas sim com a aprovação e louvores das nações

estrangeiras, especialmente da Inglaterra. 30

Em momentos de grande insolência chama o imperador aos deveres para

com o povo. O trecho que segue está reproduzido nos anexos da dissertação de

Silva, e segundo ela, foram retiradas de um volume encontrado na Biblioteca

Nacional:

Vós, Monarca, cingido do esplendor da majestade, vós, o primeiro no estado, não tendes o direito que reside no ínfimo dos cidadãos, no mísero proletário, como no vagabundo coberto de andrajos. Não sois uma pessoa; não tendes individualidade; não há sob o manto imperial que vos cobre o eu livre e independente.

29 Apud,MAGALHÃES JUNIOR, op. Cit. P.175. Cartas de Erasmo ao Povo. 30 SILVA, Hebe Cristina. Imagens da escravidão: uma leitura dos escritos políticos e ficcionais de José de Alencar. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas. São Paulo: 2004. p.49.

Page 16: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

16

A nação que vos fez inviolável e sagrado vos privou da personalidade (...). Vossa honra é a da nação como ela a sentir; vossa dignidade a do império brasileiro (...). 31

Alencar, sem rodeios, escreve sobre assuntos que se faziam caros à pessoa

do Imperador, como a guerra com o Paraguai e a política de emancipação.

Mostrava-se coerente não apenas em seus escritos anônimos como em sua

postura pública, irritando muitos dos grandes nomes da política da época,

especialmente o senador Zacarias de Góis e Vasconcelos com quem entraria em

conflito várias vezes32.

Outro fato que merece destaque e que demonstra um pouco da

personalidade de Alencar ocorreu quando, por um decreto imperial Alencar foi

agraciado com o oficialato da Ordem da Rosa, por seu trabalho na literatura.

Segundo Menezes, há duas formas de recusar uma condecoração, uma discreta,

que seria simplesmente não comparecer à repartição para pegar a condecoração,

e outra a recusa ostensiva de maneira pública, “verdadeira desconsideração ao

Imperador”. Como não poderia deixar de ser Alencar prefere a segunda, e publica

no Jornal do Comércio, sem grandes explicações que não poderia aceitar tal

mercê; acumula-se assim mais um mal-estar com o imperador33.

Com a extinção do cargo de consultor jurídico do Ministério, ocupado por

Alencar durante quase dez anos, este se viu sem função permanecendo por

algum tempo no ostracismo. Mas, como veremos no capítulo seguinte, logo ele

voltaria à cena política, e desta vez ocupando um cargo muito importante e de

grande prestígio.

2.5 A IMPORTÂNCIA DE ALENCAR PARA A LITERATURA BRASILEIRA:

Segundo Silva, Alencar se via incumbido da missão patriótica de

confeccionar obras que “traduzissem” o país34, ele mesmo considerava-se um

precursor da produção literária brasileira, afirmando ter aberto uma estrada, agora

31 Apud, SILVA. Op. Cit. Anexos. Trecho extraído da 3ª carta, Novas cartas de Erasmo ao Imperador. 32 MAGALHÃES JUNIOR. Op. Cit. p.184. 33 MENEZES. Op. Cit. p. 225. 34 SILVA. Op. Cit. p.94.

Page 17: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

17

tapeçada de flores, mas que fora aspérrima e cheia de indiferença e desdém,

“desbravando as urzes da intriga e da maledicência” 35.

Elegeu o romance como forma preferida para suas obras e dedicou uma

obra para explicar esta preferência, a já aqui citada Como e porque sou

romancista. Este gênero, já conhecido do público nacional desde o século

anterior, se mostrava bastante adequado em suas características, em suas

origens européias, ao propósito de criação de uma literatura genuinamente

nacional, haja vista a faculdade romanesca de primar pelo olhar atento e analítico

do escritor à realidade que o cercava. 36

E em suas obras literárias, Alencar buscava inserir as características

brasileiras, ao que chamava a “cor local”, descrevendo a natureza exuberante, a

população indígena que representava beleza e liberdade selvagem. Os indígenas

para o autor, como indica Silva, representavam o passado brasileiro e deviam,

pois, ser incluídos nas obras na forma de personagens ilustres: exaltá-los

equivalia a exaltar o passado nacional. 37 Alencar primava também pelo

diferencial lingüístico e pelos regionalismos.

Sua influência era já reconhecida em seu tempo, o que é evidenciado pela

visita que lhe faz um jovem escritor que, vindo do Nordeste, bate lhe a porta em

busca de apoio devido ao prestígio de que Alencar desfrutava; o nome deste

escritor: Antonio Castro Alves. Tecendo muitos elogios ao jovem envia-o com

carta de recomendação em mãos a Machado de Assis; prova de sua importância

e das relações que mantinha com outros escritores. Além das obras já citadas ao

longo do texto, não poderíamos deixar de mencionar outras obras de grande

importância escritas já no fim da vida de Alencar, como Ubirajara e Senhora

publicados, ambos, em 187438.

35 ALENCAR. Op. Cit. p.65. 36 SILVA. Op. Cit . p.97. 37 Ibidem,p.110. 38 MAGALHÃES JUNIOR, op. Cit.

Page 18: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

18

3. CORAÇÃO LITERATO, SANGUE POLÍTICO:

O único homem novo e quase estranho que nasceu em mim

com a virilidade foi o político. Ou não tinha vocação para essa

carreira, ou considerava o governo do estado coisa tão

importante e grave, que não me animei nunca a ingerir-me

nesses negócios. Entretanto eu saía de uma família para quem

a política era uma religião e onde se haviam elaborado grandes

acontecimentos de nossa história39

.

Neste capítulo veremos como a política esteve presente na vida de José de

Alencar, mesmo antes de nascer. Partiremos do engajamento político da família

Alencar, sua presença e participação em grandes momentos da História do Brasil;

e, como, apesar de deixar clara sua preferência pela literatura, deixou-se

arrebatar para os cargos públicos e para as tribunas.

3.1. UMA FAMÍLIA DE LIBERAIS ATUANTES:

A família Alencar era oriunda de Portugal, da região do Alentejo. Seu bisavô,

Capitão Leonel Pereira de Alencar, foi o primeiro a migrar e estabelecer-se em

Pernambuco. Sua filha, avó de José, D. Bárbara envolvera-se ativamente na

revolução republicana de 1817 e, juntamente com seu filho José de Alencar,

chegou a ficar quatro anos na prisão. Com a vitória do movimento

constitucionalista em Portugal, Alencar - o pai - praticamente saiu da cela para

uma cadeira de deputado na Corte de Lisboa. Iniciou assim uma ativa carreira

política que exerceria grande influência em seu filho mais velho, José de Alencar.

Quando da notícia da independência do Brasil, achava-se Alencar -o pai-

cumprindo seu mandato como deputado em Lisboa. Juntamente com outros

brasileiros, rumam para a Inglaterra que favorecia a independência. Regressando

ao Brasil é eleito deputado constituinte, mas a dissolução da Assembléia Geral

provoca nele uma decepção, e passa a fazer parte do movimento revolucionário

no Ceará, em 1824, quando novamente é preso. Como aponta Magalhães,

39 ALENCAR. Op. Cit. p.45

Page 19: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

19

mesmo participando de dois movimentos republicanos e, principalmente anti-

portugueses, o padre rebelde nem por isso teria barrada sua ascensão política. 40

Logo Alencar retornaria à cena política como deputado geral eleito tanto pela

província do Ceará como de Minas Gerais. Optou pela cadeira da primeira e,

contando com grande prestígio, acabou eleito presidente da Câmara. Ocupou

também outros cargos de destaque, como senador e presidente da Província do

Ceará, em 1834.

Anos depois já residindo na Corte Alencar - o filho- veria acontecer em sua

casa reuniões que culminariam em grande mudança para a história política

brasileira. O velho Senador Alencar promovia em sua residência as reuniões do

Clube Maiorista, do qual era secretário, que tentava minar o sistema de regências

e promover a declaração da maioridade do monarca; fato que se consolidou

alguns anos depois41.

O menino Alencar, que contava com apenas 11 anos na época lembra

destas noites principalmente pelas delícias gastronômicas, e assim descreve-as

em sua obra Como e porque sou romancista:

Uma noite por semana, entravam misteriosamente em nossa casa os altos personagens filiados ao Clube Maiorista de que era presidente o Conselheiro Antônio Carlos e secretario o Senador Alencar.Celebravam-se os serões em um aposento do fundo, fechando-se nessas ocasiões a casa às visitas habituais, a fim de que nem elas nem os curiosos da rua suspeitassem do plano político vendo iluminada a sala da frente. Enquanto deliberavam os membros do Clube, minha boa mãe assistia ao preparo de chocolate com bolinhos, que era costume oferecer aos convidados por volta de nove horas, e eu, ao lado com impertinência de filho querido, insistia por saber o que ali ia fazer aquela gente. (...) Até que chegava a hora do chocolate. Vendo partir carregada de tantas guloseimas a bandeja que voltava completamente destroçada, eu que tinha os convidados na conta de cidadãos respeitáveis, preocupados dos mais graves assuntos, indignava-me ante aquela devastação e dizia com a mais profunda convicção: - o que estes homens vêm fazer aqui é regalarem-se de chocolate. 42

40 MAGALHÃES JUNIOR, Op. Cit. p.4 41 Ibidem. 42 ALENCAR. Op. Cit. p.25-26

Page 20: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

20

Além destas o Senador Alencar também se envolveu em outras incursões

políticas, sendo mesmo acusado de ser cúmplice da Revolução Praieira de 1848

em Pernambuco. Reconhecendo a importância do pai, Alencar reclama da falta

de reconhecimento deste por parte da sociedade brasileira: “(...) e, todavia

ninguém se lembrou ainda de memorar o nome do Senador Alencar, nem mesmo

por esse meio econômico e uma esquina de rua” 43.

A influência do pai foi muito importante para a formação política do filho,

contudo um fato merece destaque, apesar de ter sido criado em uma família

permeada pelos ideais liberais e bastante atuantes, Alencar se tornaria um

conservador assumido e convicto; como veremos.

3.2 OS PRIMEIROS PASSOS NA POLÍTICA:

Alencar há algum tempo mantinha relações com a política graças a seu

cargo de consultor jurídico do Ministério da Justiça como já mencionamos neste

estudo. Mas é a partir da morte do pai, em 1860, que decide investir em sua

carreira política. Impulsionado pelo Senador Eusébio de Queirós, licencia-se de

seu cargo e parte para o Ceará para disputar uma cadeira como deputado. Nas

eleições de 1861 é eleito, tomando posse em 23 de maio daquele ano.

Menezes afirma que a expectativa em torno do nome de Alencar é enorme e

todos aguardam ansiosos por seu primeiro discurso, haja vista já ter erigido boa

fama como romancista, além de trazer em si a responsabilidade de dar

continuidade ao nome Alencar na política:

Eis que todos aguardam, na certeza de que a tribuna da Câmara será para ele mais uma vitória consagradora. Tal, porém, desgraçadamente não acontece. Naquela tarde, ao discursar, pela primeira vez, profunda e penosa impressão causa. Sem tipo físico (magro e pequenino), sem voz (“falando entre línguas”, sem gestos desembaraçados (as mãos presas ao corpo), a oração que profere não tem nenhum brilho. “Todos esperavam um tenor de retórica e o que surgiu foi um senhor baixote e barbaçudo que parecia a um tempo vítima de gaguez e amnésia”.44

43 Ibidem. p.32 44 MENEZES. Op. Cit. p. 165.

Page 21: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

21

Alencar discursa sobre vários temas ao longo dos dias e vai se

familiarizando à sua nova função. Sua fala aborda questões como a criação de

um tribunal de contas, o orçamento e o voto popular. Esta primeira legislatura

duraria pouco tempo, pois em 13 de maio de 1863 a Câmara é dissolvida. Ainda

neste mesmo ano Alencar lançou novamente sua candidatura, sendo derrotado;

mas esta primeira experiência fora suficiente para forjar um orador sagaz.

3.3 UM MINISTRO INSOLENTE

Como vimos devido às suas Cartas de Erasmo e à recusa em receber a

Ordem da Rosa, Alencar vira ser extinto seu cargo de consultor. Assim sendo,

não era mais nem deputado, nem consultor e decide, então, abrir seu próprio

escritório de advocacia alcançando êxito em suas funções e conseguindo uma

boa carteira de clientes.

Mas no dia 15 de julho de 1868 recebe em seu escritório a visita de Luís

Antonio da Silva Nunes, que vinha em nome do Barão de Muritiba e do

Conselheiro Paulino José Soares de Sousa dizer-lhe que estavam em vias de

elaboração do novo gabinete a ser presidido pelo Visconde de Itaboraí e que

contavam com seu nome para assumir a pasta do Ministério da Justiça. A

princípio, recusa dizendo-se sem forças para assumir tal empreitada; mas dada a

insistência decide ir ter com Itaboraí.

Formava-se assim um gabinete estritamente conservador e arredio ao

debate acerca da emancipação dos escravos, assunto que, como veremos no

capítulo seguinte, se fazia presente em grande parte das discussões,

especialmente tendo em vista a atenção dada pelo imperador ao assunto.

Magalhães Junior assim descreveu a passagem de Alencar pelo ministério:

Alencar era, então, um servidor dedicado ao gabinete e ardia em zelos, na defesa do imperador e da monarquia. Mas, incompatibilizado, primeiro com Paulino de Sousa e Cotegipe, e, depois com o próprio imperador, só seria ministro por um ano e meio. 45

45 MAGALHÃES JUNIOR, Op. Cit. P. 193

Page 22: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

22

O tempo em que esteve neste ministério ainda, que tenha sido de curta

duração, foi bastante movimentado e significou muito para a vida de nosso

protagonista. Em mais uma de suas rusgas com o Imperador, esta por motivo

ínfimo de etiqueta e burocracia, incomodava-se por nunca saber qual traje vestir

para qual ocasião e com os constantes escrutínios do Imperador que fazia

questão de se ater a pequenos detalhes, mandando ao Ministro uma infinidade de

bilhetes querendo ser informado de cada decisão; segundo Menezes existem na

Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional 55 bilhetes enviados pelo Imperador

ao ministro Alencar e cerca de 32 bilhetes do ministro para o monarca.

Alguns fatos da ordem de segurança pública também permearam o

trabalho de Alencar no ministério. Como em 2 de dezembro de 1868, dia do

aniversário de D. Pedro II, quando foi publicado, anonimamente, no Jornal do

Comercio,uma versalhada aparentemente de exaltação à pessoa do monarca.

Contudo, os versos compunham um acróstico satírico que passara despercebido

pela redação do jornal, mas não pelos leitores, que logo decoraram o poemeto e

recitavam pelas esquinas. Alencar, como ministro, para cumprir suas obrigações

mandou instaurar inquérito, que não deu em nada; vale contudo reproduzir aqui o

acróstico “O bobo do rei faz annos” que tanta discórdia gerou:

Oh! Excelso monarca, eu vos saúdo! Bem como vos saúda o mundo inteiro, O mundo que conhece as vossas glorias... Brasileiros, erguei-vos, e de um brado O monarca saudai, saudai com hinos! Do dia de dezembro o dois faustoso, O dia que vos trouxe mil venturas! Rebomba ao nascer d’alva a artilharia E parece dizer em som festivo Império do Brasil, cantai, cantai! Festival harmonia reine em todos; As glorias do monarca, as são virtudes Zelemos, decantando-as sem cessar. A excelsa imperatriz, a mãe dos pobres, Não olvidemos também de festejar Nesse dia imortal que é para ela O dia venturoso em que nascera Sempre grande e imortal Pedro II

46.

46 MENEZES. Op. Cit. p 237.

Page 23: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

23

Outro fato que merece destaque por sua peculiaridade ocorre em 1869

quando acontecem na Corte conflitos entre os estudantes da Escola Central e

guardas urbanos. O episodio foi motivo para mais um bilhete do imperador que

logo quis saber o que aconteceu e quais providências seriam tomadas pelo

ministro, que se exaspera e envia à Sua Majestade uma ríspida correspondência

que assim terminava:

Essa inspeção minuciosa que Vossa Majestade Imperial deseja exercer sobre o país na melhor intenção e com o pensamento de bem usar de sua alta e benéfica atribuição moderadora, toma aos olhos da nação um aspecto que se não coaduna, nem com o espírito sinceramente constitucional do Soberano, nem com a dignidade de seu Ministro da Justiça. Entende a opinião pública e mui sensatamente, que o zelo de V.M.I. em investigar do procedimento das autoridades subalternas é sintoma infalível, ou de uma desconfiança no ministro, ou de um exercício pessoal da atribuição executiva. O ministro de V.M.I. faltaria à lealdade e dedicação devidas a seu Monarca, se não houvesse abolido um estilo que expunha a Coroa, desairando o seu Gabinete47.

Chega a ser espantoso que um ministro tão impertinente tenha

permanecido tanto tempo em suas funções, contudo logo chegaria o momento em

que mais uma vez seria contra os desejos imperiais e deixaria sua cadeira de

ministro.

Mas não apenas de desavenças foram seus dias de ministro. Alencar

também trabalhou em várias iniciativas de ordem jurídica, das quais podemos

citar seu projeto de alteração do Código do processo Criminal, apresentado em 16

de julho de 1869, outro que versava acerca do habeas-corpus. Em 15 de

setembro deste mesmo ano referendaria o decreto nº. 1695, que transformava em

lei o projeto aprovado pela Câmara e pelo Senado do Império sobre leilões de

escravos, em que proibia a separação de marido e mulher, o filho do pai ou mãe

quando menores de 15 anos, além de proibir a exposição pública em pregão48.

Este fato seria por ele retomado muitas vezes ao defender-se das acusações de

ser escravocrata, como veremos no próximo capítulo.

47 Apud, Menezes. p. 193. História de Dom Pedro II.Volume II-Fastigio- 1870/1880.Companhia Editora Nacional, 1939, p. 141-142. 48 MAGALHÃES JUNIOR, Op. Cit. p. 209.

Page 24: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

24

3.4 ELEITO, PORÉM NÃO EMPOSSADO.

Alencar decide afastar-se do Ministério, em janeiro de 1870, por

divergências com outros membros do gabinete, especialmente com Cotegipe, e

também para tentar eleger-se senador. Consultando o monarca este lhe diz que

“apreciaria mais que tivesse um gesto de abnegação do que se concorresse à

eleição”49, mas, apesar dos avisos imperiais, empolgado com a possibilidade de

galgar cargo idêntico ao que ocupara o pai, lança candidatura.

Consta que Alencar obteve a maioria dos votos, mas quem dava a “palavra

final” nas eleições para senadores era o monarca, e em 27 de abril por meio de

Carta Imperial são escolhidos os senadores pelo Ceará. Eram eles Domingos

José Nogueira Jaguaribe, primo de Alencar e o segundo mais votado e Jerônimo

Martiniano Figueira de Melo, o quinto em votação. Segundo registra Menezes,

imensa e geral é a surpresa. Grande a desilusão. Nunca se poderia acreditar que

fosse rejeitado nome tão ilustre.Tal preterição é dos maiores golpes sofridos na

vida por Alencar. 50 Como havia sido eleito em 1869, Deputado geral, em 1870

retornou à Câmara, sendo reeleito em 1872 quando foram convocadas novas

eleições e novamente em 1875 tendo permanecido até agosto de 1877, quando

se retirou por agravarem-se seus problemas de saúde.

O capítulo a seguir primará pela análise dos discursos proferidos por Alencar

neste último período de sua carreira política, momento este em que discursou em

abundancia e sobre diversos temas, especialmente sobre a reorganização do

mercado de trabalho brasileiro.

3.5 CONSERVADOR OU LIBERAL? MONARQUISTA OU REPUBLICANO?

Alencar sempre se definiu como conservador e agiu como tal em grande

parte de sua vida como político. Contudo, depois de sua saída do Ministério,

passou a legislar como oposição ao gabinete conservador que permanecia no

poder, travando embates com Cotegipe e outros. Além disso, se opôs

frontalmente a certos atos imperiais, como, quando da solicitação de D. Pedro II 49 Ibidem, p. 217. 50 MENEZES. Op. Cit. p. 260.

Page 25: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

25

para realizar uma viagem ao exterior a fim de cuidar da saúde da imperatriz, o

deputado manifestou-se afirmando ser um desperdício tal viagem, que em nada o

exterior tem a oferecer de melhor à saúde daquela.

As acusações de ter “virado a casaca” passaram a ganhar força quando, em

1872, começou a ser publicado no jornal A República uma de suas obras então

inéditas. O jornal liberal havia iniciado suas atividades em 1870, mesmo ano em

que a ala mais avançada do Partido Liberal havia fundado o Partido Republicano.

Segundo Magalhães Junior, neste jornal muitos de seus princípios viriam ao

encontro das posições tomadas por Alencar. E os republicanos tinham grandes

habilidades em atrair políticos descontentes e dissidentes para seu partido.

Mas se há característica de si mesmo que Alencar sempre fazia questão de

reiterar era sua afirmação de monarquista e conservador. Em seus discursos na

Câmara dos Deputados sempre se valia da Inglaterra como exemplo de

monarquia aliada ao sistema representativo, para ele a melhor forma de governo.

Acusado de ter sido liberal na origem e posteriormente mudado de partido

afirma que liberal fora na infância dada a influência de sua família, contudo,

Alencar, citado por Magalhães, assegura que tendo amadurecido e

compreendendo melhor a liberdade, tendo a razão esclarecida seus princípios

convergem para o Partido Conservador; afirma também que o Partido Liberal

nunca contou com seus serviços, tendo erigido sua vida pública nas bases

conservadoras.

De acordo com Hebe Silva, “o conservador por excelência caraterizava-se

pela prudência, que a seu ver (de Alencar) significa ‘não antecipar-se’, aceitar

somente as ‘doutrinas amadurecidas’“. 51

Um conservador imbuído de pensamentos liberais, monarquista ferrenho e

de uma personalidade introspectiva, o que muitas vezes o colocava em situações

conflitantes mesmo com seus próprios ideais, como quando das muitas querelas

e discordâncias em relação às atitudes e à própria pessoa do monarca. Tendo

sido mesmo acusado de ter “namorado” com os liberais, Alencar não deixava de

afirmar:

51 SILVA. Op. Cit p.29.

Page 26: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

26

(...) Sou monarquista sincero e convicto. Mas, como nunca

professei o fetichismo da realeza, espero o triunfo para minhas

idéias da civilização do povo, nunca de sua ignorância.

Quero que meu país seja monarquista, não pela rotina, mas por

verdadeira fé nesta instituição; e, para isso é necessário que

estude as doutrinas opostas e se esclareça com a livre

discussão (...). 52

Estas definições a ele atribuídas teriam reflexos em suas opiniões sobre

questões importantes que insurgiam na cena política do momento, e o terceiro

capítulo deste trabalho visa compreender estas posturas assumidas por Alencar,

de maneira específica no que concerne à “questão do dia” da política brasileira

nos anos de 1870: a discussão da emancipação dos escravos e a colonização

estrangeira, enfim a reorganização do mercado de trabalho e das relações entre

estes diferentes modos de mão-de-obra.

52 Apud, MAGALHÃES JUNIOR; p.266.

Page 27: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

27

4. O “ELEMENTO SERVIL” POR JOSÉ DE ALENCAR:

Chamam-nos de escravocratas, de retrógrados, de espíritos tacanhos e ferrenhos, que não recebem os influxos da civilização. Procuram assim atemorizar-nos com a odiosidade que de ordinário suscitam as idéias condenadas e os sentimentos egoísticos.

53

O terceiro capítulo deste trabalho dedica-se à análise das posições tomadas

por Alencar quanto à escravidão, e, sobretudo, como ele defendeu estas

posições, seus argumentos e expectativas. Para tanto, se fará necessário

retomarmos a questão pontual da escravidão nos anos de 1870, a elaboração, os

debates e, a posteriori, a promulgação da Lei Rio Branco ou a chamada Lei do

Ventre Livre.

4.1 UMA QUESTÃO PONTUAL: LIBERTAR OU NÃO O VENTRE

ESCRAVO.

Qualquer lei que atingisse diretamente o sistema escravista encontraria na

sociedade brasileira um eco bastante efusivo, seja em favor da manutenção do

status quo, ou em favor de mudanças. Assim fora quando das discussões sobre a

extinção do tráfico atlântico de escravos, que se arrastou desde o início das

pressões por parte da Inglaterra, em 1807, até sua efetivação, em 1851. Esta

medida, ainda que causasse uma dificuldade quanto à obtenção de escravos, não

atingia diretamente a relação entre senhores e escravos, haja vista alcançar o

caráter “macro” da instituição.

A lei de 1871, contudo é a primeira a alcançar um caráter “micro” dentro da

sociedade escravista. A extinção do tráfico não atingia diretamente os

proprietários em relação aos escravos que já possuíam; apenas inibia a novas

aquisições por suprimento atlântico54. A libertação do ventre, por sua vez, atingiria

as relações familiares e senhoriais de uma maneira antes não vista na sociedade

53 ALENCAR, José de. Discursos parlamentares de José de Alencar, 1829-1877. Brasília, Câmara dos Deputados, 1977.p. 228. 54 Sabemos que após a extinção do tráfico atlântico houve aumento considerável do tráfico interno, o que continuou de certa forma possibilitando o aumento de plantéis de escravos em algumas regiões, marcadamente no centro-sul cafeicultor. Ver: HOLANDA. Op. Cit. pp. 155-156.

Page 28: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

28

brasileira. Portanto, não se poderia esperar consenso ao propor-se uma reforma

desta monta.

A seguir veremos as principais propostas contidas no projeto do qual

resultou a Lei do Ventre Livre, em torno do qual José de Alencar envolveu-se de

forma intensa.

4.1.1 Os trâmites da lei:

O projeto de lei que viria a ser promulgado em 28 de setembro de 1871

surgiu como um adendo às vontades manifestadas pela Coroa em ver discutida

com maior disposição a questão do “elemento servil”. Essa disposição do

Imperador já era perceptível quando em 1867 dedicou um tópico da Fala do Trono

à questão. Desta forma, os projetos apresentados por Pimenta Bueno ao

Conselho de Estado logo ganharam uma comissão composta por Nabuco de

Araújo, Sales Tôrres Homem e Sousa Franco com fins de elaborarem uma

proposta para ser apresentada à Câmara55.

Devido às constantes mudanças na formação dos gabinetes, e conforme a

orientação política de seus chefes, alguns favoráveis à discussão e outros que

preferiam postergá-la, ora a questão da reforma era priorizada, ora era

propositadamente esquecida.

Um dos gabinetes que fez “vistas grossas” ao projeto que já tramitava

visando a libertação do ventre foi justamente o Gabinete Itaboraí, do qual José de

Alencar fez parte. Como já vimos, nosso protagonista ocupou, naquele Gabinete,

a pasta da Justiça. Tal Gabinete, para acalmar a situação de pressão por uma

reforma, fez com que tramitasse com maior agilidade o projeto apresentado por

Silveira da Motta, que previa a proibição da venda de escravos em leilão e que

tramitava desde 1864.Segundo Sérgio Buarque de Holanda, com fins

conciliatórios e para postergar a discussão da libertação dos nascituros, o próprio

Alencar assinou a lei de proibição dos leilões em 1869. 56

55 HOLANDA, Sérgio Buarque de. “O Encaminhamento Político do Problema da Escravidão no Império”. In HOLANDA (org). História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II, 3º volume. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil-DIFEL,1987, p. 206. 56 Ibidem, p. 207.

Page 29: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

29

Há então um período de redefinições dentro do próprio partido conservador,

alguns em favor da manutenção do status quo, outros por uma reforma lenta e

gradual; estes em sua maioria por temor de opor-se aos desejos da Coroa.

Seguem-se novos gabinetes, e, por fim, o terceiro desde Itaboraí, presidido

por Visconde do Rio Branco que aceleraria as discussões do projeto e venceria a

ampla resistência intra-partidária que havia. Desta forma, acirravam-se os

debates. Alguns dos quais veremos detalhadamente a seguir. Uma das

estratégias adotadas pelos adversários da reforma era a de postergar a discussão

e a votação do projeto para depois de 30 de setembro, quando se encerrariam as

sessões, aniquilando as possibilidades de aprovação do projeto.

Contudo, a proposta passou pela Câmara e, contando com o apoio dos

liberais, tramitou rapidamente pelo Senado. Assim, poucos dias antes do

encerramento da sessão legislativa, o projeto foi aprovado e levado à sanção pela

Princesa Regente.57

Desta forma, como aponta Holanda, o Partido Conservador que já havia

conquistado para si os louros da extinção do tráfico em 1850 também colhia as

honras de presidir o gabinete que aprovara a libertação do ventre.58

4.1.2: O conteúdo da Lei:

Apesar de terem sofrido revés com a aprovação da lei não podemos deixar

de pontuar que os interesses dos escravistas foram de certa forma levados em

conta na elaboração do texto da lei. Ainda que não totalmente contemplados, os

senhores de escravos não sofreriam as conseqüências da lei de maneira

imediata.

Isto porque a prerrogativa de decidir quanto ao destino dado a estas

crianças permanecia sendo dos senhores de suas mães que teriam a obrigação

de criá-los e tratá-los até os 08 anos de idade. A partir desta idade caberia ao

senhor optar pela indenização ou usufruir dos serviços do menor até os 21 anos

completos.59

57 D. Pedro II encontrava-se então na Europa em licença consentida pelos parlamentares para tratamento de saúde de D. Teresa Cristina, viagem esta à qual Alencar se havia oposto, tendo discursado efusivamente sobre a inutilidade de tal viagem. 58 HOLANDA, op. Cit. p.211. 59 Ibidem. pp.210-211.

Page 30: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

30

Assim sendo apesar de ter sido uma medida bastante combatida pelos

antiabolicionistas, a Lei Rio Branco afetava as estruturas da instituição a médio e

a longo prazo, uma vez que, na prática, as relações entre senhores e escravos

permaneceria inalterada ao menos pelos próximos oito anos.

Outras mudanças importantes também constavam no texto da Lei Rio

Branco, além das que mencionavam a libertação do ventre, tais como a criação

do que viria a ser chamado de Fundo de Emancipação dos Escravos, fundo este

composto pela taxa paga pelos proprietários e de outros recursos que seriam

destinados a emancipação; e a permissão legal de ter o escravo a chance de

formar pecúlio, seja por meio de heranças, doações, legado ou mesmo por fruto

de seu trabalho, desde que autorizado por seu senhor, e, tendo este escravo

obtido pecúlio em valor igual ao seu valor, ser-lhe-ia facultado o direito a compra

de sua liberdade.Além destas medidas foram, na mesma lei, declarados libertos

os escravos pertencentes à nação, os dados me usufruto à Coroa, bem como os

das heranças vagas. 60

Como demonstra o conteúdo da lei, ainda que representasse uma ruptura

com o sistema vigente até então, havia a preocupação da manutenção da

autoridade senhorial não apenas sobre o escravo, mas agora também sobre o

nascido livre. Analisando a introdução da possibilidade de utilizar os serviços dos

nascituros no projeto original, Joseli Mendonça considera:

A idéia da manutenção do atrelamento pessoal entre os senhores e as crianças a que se propunha a libertar mostrou-se grandemente sedutora. (....) mesmo que houvesse a opção de entregar a criança para ser criada por uma instituição pública esta opção caberia exclusivamente ao senhor.

Desta forma um dos primeiros problemas indicados pelos opositores da lei

parecia estar sanado: o “temor” de um enfraquecimento dos laços senhoriais

acabou por se tornar mais uma forma de manutenção da soberania do

proprietário. Ainda de acordo com Mendonça:

Nesse ponto [ao colocar aos senhores a possibilidade de manter consigo os nascidos após a lei até que completassem 21 anos] a lei de 1871 ao mesmo tempo em que “desapropriou” os senhores

60 HOLANDA, op. Cit. p. 210;

Page 31: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

31

dos frutos do ventre de suas escravas, outorgou-lhes a exclusividade da escolha sobre o destino das crianças que tornara livres e estabeleceu a possibilidade do atrelamento pessoal, tornando essas crianças obrigadas a prestação de serviços aos senhores de suas mães.61

Hebe Silva também demonstra outras implicações da lei, que passava a

promover a intervenção do Estado donde antes havia o domínio exclusivo dos

senhores, ou seja, na concessão de alforrias. 62

4.2 ALGUMAS DISCUSSÕES NO PARLAMENTO:

O projeto que trazia em si a emancipação do ventre havia sido elaborado em

1867, e como sabemos só seria aprovado em 1871. O tempo compreendido entre

a elaboração e a efetivação da lei foi permeado pela instabilidade e pela

discussão política acerca da questão.

Entre modificações no texto, propostas de emendas entre outros, foram

realizadas várias sessões, sobretudo a partir de 1870 quando assume a

presidência do gabinete o Visconde do Rio Branco e são reafirmados os

interesses em ver aprovadas as propostas.

4.2.1: As Participações de Alencar:

O fato é que a lei de 1871 tornou-se referência a todos os estudiosos da

escravidão, e este contexto de alterações políticas e sociais importantes foi o

período em que Alencar mais atuou, e os discursos que proferiu neste período

revelam muito de sua opinião sobre a questão da escravidão. Suas falas

ocorreram em datas chave no processo de discussão e posterior aprovação da

Lei Rio Branco: dois deles datam de 11/07/1871 e 13/07/1871 período

imediatamente anterior a aprovação da lei. Mas quais eram as opiniões de

Alencar sobre a libertação do ventre? Vejamos.

61 MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP, 1999. p. 102. 62 SILVA, op. Cit. p.23.

Page 32: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

32

4.3 SOBRE A LEI Nº. 2040:

Opondo-se desde o início à proposta de emancipar o ventre escravo, Alencar

usou em muito a tribuna para expor suas posições sobre o projeto que então

tramitava na Câmara. A liberdade do ventre, considerava Alencar, era uma “idéia

funesta”. Contra ele, prometia, “me empenharei com todas as forças, porque

entendo que há de ser fatal e há de produzir calamidades capazes de apavorar o

próprio Governo”. 63

Dentre seus argumentos para rejeitar a lei estavam o temor de uma

revolução social que ela propiciaria, posto que iria fomentar o ódio, as intrigas e

revoltas por parte daqueles que, considerando-se injustiçados, estariam fadados a

permanecerem escravos. Isso, segundo Alencar, abriria margem para

questionamentos sobre a legitimidade da escravidão enquanto instituição. Nesse

sentido ele afirmava

A liberdade compulsória, a pretexto de salvação, ou de arbitramento, é uma arma perigosa que se forja para os ódios, as intrigas e malquerenças das localidades; e com a qual se há de violar o asilo do cidadão, perturbar a paz das famílias, e espoliar uma propriedade que se pretende garantir.64

Outro argumento utilizado por ele dizia respeito à organização familiar dos

escravos, que no seu entender, seria alterada pela libertação dos nascituros. Para

ele, a lei faria surgir famílias híbridas, em que um filho escravo poderia ter um

irmão livre, que, a princípio, poderia até mesmo vir a ser senhor dos pais e dos

irmãos.65 Assim, a lei criaria a condição para misturar trabalhadores livres com

escravos, contaminando o trabalho livre com os “vícios gerados pela escravidão”,

produzindo assim péssimos trabalhadores e também acabando com as

esperanças de, por meio do trabalho e do “merecimento” obter dos senhores a

manumissão. Comentando o projeto diz Alencar:

Quando a lei do meu país houver falado essa linguagem ímpia, o filho será para o pai a imagem de uma iniqüidade; o pai será para o filho o ferrete da ignomínia; transformareis a família em um antro de discórdia; criareis um aleijão moral, extirpando do

63 ALENCAR, José de. Discursos parlamentares de José de Alencar, 1829-1877. Brasília, Câmara dos Deputados, 1977. Discurso de 10/07/1871. p.208. 64 Ibidem.Discurso de 13/07/1871. p.240 65 Ibidem. p.241

Page 33: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

33

coração da escrava esta fibra que palpita até no coração do bruto: o amor materno. (...) a emancipação do ventre equivale a criar famílias híbridas, (...) rouba toda a esperança dos adultos, condenando-os ao cativeiro perpetuo; desmoraliza o trabalho livre, misturando nas habitações, livres com escravos (...) contamina a nova geração, criando-a no seio da escravidão, ao contato dos vícios que ela gera. 66

Sendo assim, para ele a libertação do ventre não era apenas perigosa

enquanto geradora de conflitos sociais, mas gerava conflitos internos na própria

família; o respeito e até o amor materno estariam colocados em risco com a

aprovação da lei.

Argumento interessante defendido por ele dizia respeito às relações entre

senhores e escravos, entre negros e brancos desenvolvidas na sociedade

brasileira. Segundo Alencar, os costumes e a índole brasileira haviam impregnado

a escravidão de relações afáveis e caridosas, proporcionando a união entre as

raças, sendo quase uma relação de servidão e não de escravidão. E, portanto, a

emancipação do ventre solaparia estas tão generosas relações, criando o

antagonismo entre raças “que viveram sempre unidas, retribuindo uma com sua

proteção os serviços da outra”. 67

Nem mesmo os argumentos de que a instituição da escravidão ia de

encontro aos princípios cristãos o convencia a aceitar o projeto. Sobre isto,

afirmava que nunca a religião deveria servir de arma política ou instrumento de

reforma, devendo, portanto instigar através de seus conselhos e orientações na

“cadeira sagrada” a revolução moral que antecederia a revolução das leis no que

concerne à escravidão. Assim sendo não deveria a Igreja manifestar suas

opiniões no ambiente político, nem ser usada como argumento para aqueles que

se colocavam a favor da promulgação da lei. Neste sentido, afirmava:

A religião é a luz que se difunde pela humanidade; ela purifica nossa alma, regenera os costumes; mas não é, não deve ser nunca uma arma política, um instrumento de reforma (...) Não é aqui nesse recinto que a religião tem a palavra, mas na cadeira sagrada de onde seu verbo inspirado deve infundir nos costumes um espírito benéfico, apresentando a revolução moral que tende a extinguir o cativeiro o mais breve que se pensa.68

66 Ibidem. Discurso dia 13/07/1871. pp. 240-241. 67 Ibidem. Discurso dia 13/07/1871. p. 240. 68 Ibidem. Discurso dia 13/07/1871. p. 235.

Page 34: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

34

Não devendo então a religião misturar-se com a política, Alencar restringia a

discussão do projeto, aos parlamentares que de modo geral neste momento

dividiam-se em liberais e conservadores. Alencar alinhava-se com estes últimos;

defendendo de forma eloqüente os ideais partidários, especialmente quanto à

questão da escravidão, como veremos a seguir.

4.4 ALENCAR, O PARTIDO CONSERVADOR E A QUESTÃO DO

“ELEMENTO SERVIL”.

Como apontamos anteriormente, a questão da emancipação ou de quaisquer

assuntos relacionados à escravidão causava frisson nos políticos brasileiros,

tendo inclusive causado a cisão de um partido forte e bem organizado tal era o

Partido Conservador. Alencar, conforme sabemos, pertencia convictamente a tal

partido. Qual teria sido, então, sua postura quando da apresentação, feita por seu

partido, do projeto a que ele se opunha? Teria permanecido incólume em suas

opiniões ou as teria flexibilizado? No período de discussão da lei, vários discursos

foram proferidos por Alencar na Câmara dos Deputados. Nestes discursos,

Alencar esclarecia claramente sua condição no interior do partido e fazia

considerações acerca de quais seriam as legítimas posturas de um conservador.

Um dos discursos, o que proferiu em 14 de maio de 1870, permite recuperar

suas posições. Neste discurso, Alencar respondia algumas acusações de que

teria publicado, na folha Dezesseis de Julho, de propriedade sua e de seu irmão

Leonel e órgão declaradamente conservador, artigos que fariam menção a uma

oposição entre os interesses da Coroa e os do Gabinete então presidido pelo

Visconde de Itaboraí. A confrontar tais acusações, Alencar comentou sobre sua

condição dentro do partido que acabara de “fissurar-se”. Dizia Alencar, então,

estar isolado no seio de seu partido que, segundo ele, caminhava para a

concordância com os liberais no que concernia à aprovação de leis anti-

escravistas. Afirmava também que nunca havia pretendido que o partido fosse

Page 35: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

35

escravista, pois, segundo ele, “todos nós brasileiros desejamos ardentemente ver

desaparecer do país esta instituição (...)”.69

Apesar de expressar tanto desejo de ver abolida a escravidão

conservadoramente destacava que cabia ao partido Liberal e suas convicções o

ato de apresentar uma proposta sobre a reforma. Aos conservadores cabia resistir

a elas e conter o que chamou “revolução social”, para que a abolição se

realizasse gradualmente; sobre isso afirmava:

A idéia da emancipação pelos meios diretos é do Partido

Liberal; deixemos que ele a realize a seu tempo; a nós, conservadores, cumpre resistir-lhe, para que a revolução, ao menos se opere gradualmente; do contrário, as consequências serão funestas70.

Definindo a diferença que entendia haver entre liberais e conservadores,

pontuava:

O Partido Liberal marcha na vanguarda, aventa as idéias, aponta-as à opinião, lança-as na discussão; o Partido Conservador, ao contrário, não aceita doutrinas que não estejam bastante amadurecidas; em vez de antecipar-se, acompanha, segue atrás da opinião71.

Estas palavras se fazem bastantes congruentes com os pensamentos

expressos por ele em suas outras obras72, especialmente quando se defende de

acusações de seus inimigos políticos de que seria muito mais um liberal que um

conservador. Alencar sempre assegurava que liberais haviam sido os anseios da

juventude, o tempo e amadurecimento o havia feito naturalmente um conservador.

Apesar de assim ser Alencar, no momento das discussões da lei na Câmara,

portava-se como oposição a seu partido, uma vez que o gabinete formado neste

período era conservador. Naquele momento assumia uma postura de dissidência

ao seu partido e nesta condição não media esforços em apontar o inconveniente

da aprovação da lei. Expressava também sua hostilidade para com o gabinete,

que, segundo ele, havia se afastado do partido ao defender idéias do “Partido

adverso”. Para ele, a posição do gabinete acabou por promover a dilaceração do

69 Ibidem. p.185. 70 Ibidem, p. 190. Discurso dia 3/09/1870. 71 Ibidem, p.202.Discurso dia 10/07/1871. 72 Ver obras citadas ao longo do trabalho, tais como Novas Cartas Políticas de Erasmo e a publicação em A

República.

Page 36: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

36

Partido Conservador, cabia a ele, então, defender com energia a integridade de

seu partido. 73

Faz-se necessário compreendermos as causas desta divergência entre os

interesses professados por Alencar como inerentes ao Partido Conservador e a

posição assumida por este mesmo partido acerca da questão da escravidão,

assume vital importância então uma outra instituição tão cara a Alencar: a Coroa

e a própria pessoa do Imperador.

4.5. COMBATES COM UM IMPERADOR:

Para Alencar o principal promotor da convulsão social que se aproximava

com a aprovação das leis pró-emancipação era o próprio Imperador, sua relação

com o monarca, como vimos, já vinha sendo desgastada desde há muito, e em

atos de insolência já havia afirmado que a neutralidade era uma qualidade a ser

desenvolvida por D. Pedro II. 74

Em seus discursos permanece a posição de ataque à pessoa do Imperador e

em frases duras afirma que Sua Majestade queria erigir fama, glória e

reconhecimento por parte da opinião estrangeira às custas de destruir um dos

pilares da sociedade brasileira. De forma bastante contundente afirma que

haveria outras reformas que causariam benefícios muito superiores às

provocadas pela alforria do ventre, dentre elas “ a alforria do voto, cativo do

governo; a alforria da justiça, cativa do arbítrio; a alforria do cidadão, cativo da

Guarda Nacional e, (...) a alforria do país, cativo do absolutismo, cativo da

prepotência do Governo pessoal”. Como afirmava não havia, porém, interesse em

promover tais reformas, pois:

essas emancipações não têm em seu favor as declamações da filantropia européia(...) esses interesses máximos do país não tem uma voz francesa dizer a alguém: “Senhor, por este ato vosso nome adquirirá uma fama imperecível”. 75

73 ALENCAR, op. Cit. Discurso de 11/07/1871. p.217. 74 Ver: Novas Cartas políticas de Erasmo. 75 Ibidem, pp.226-227. Discurso de 13/07/1871.

Page 37: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

37

As palavras eram clara referência à resposta dada por D. Pedro à Junta

Francesa de Emancipação em 1866. Nessa resposta afirmava que a

emancipação era questão de forma e oportunidade. Segundo Holanda, a carta

enviada pelo Imperador à Junta Francesa, indicava as simpatias da Coroa pela

causa da emancipação e criava um comprometimento moral para o Brasil perante

a comunidade internacional. Além disso, tal missiva havia sido enviada em

secreto para a Europa, sendo conhecida no Brasil apenas depois de já ter sido

divulgada na Europa. 76

O fato de ter sido divulgada primeiramente no estrangeiro e só então ter

vindo a público no Brasil também foi alvo de críticas por parte de Alencar:

Os brios nacionais se confrangem, pensando que, de improviso, por causa de um elogio, sem preparo, sem estudo prévio, nem audiência do País, por um traço de pena, se decretou uma revolução desta ordem! E levou-se o desprezo a tal ponto que o País não teve conhecimento do fato senão de torna-viagem!. 77

Para Alencar, ao governo não cabia arbitrar acerca destas questões, haja

vista a imparcialidade que deveria ser adotada pelo monarca, pelo que ao postar-

se ao lado dos abolicionistas, tolhia o princípio da discussão e do livre julgar por

parte da sociedade brasileira como um todo. Em seu olhar, a própria luta gerada

pelo antagonismo das idéias, quais sejam a da emancipação direta ou indireta, ou

dos princípios liberais e conservadores não existia, o que havia era a “luta do

Poder com a Nação; a luta do elemento oficial contra os interesses máximos do

país”. 78

4.6. O PRINCÍPIO DA NÃO-INTERVENÇÃO:

Em coerência com seus argumentos, Alencar, que considerava não ser

correto para um imperador arbitrar sobre as questões da emancipação, também

considerava impróprio de um governo legislar sobre causas que entendia ser

76 HOLANDA. Op. Cit. P. 206. 77 ALENCAR, Discursos..... p. 227. 78 Ibidem, pp. 225. Discurso de 13/7/1871.

Page 38: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

38

exclusivamente de caráter particular; especialmente se a “causa” era a questão

do “elemento servil”.

Afirmando-se sempre um defensor da emancipação, desde que bem

organizada e principalmente desde que almejada pela sociedade brasileira,

Alencar afirmava que antes de existirem as leis que colocariam um fim na

escravidão deveria acontecer uma mudança nos costumes dos brasileiros, a

sociedade deveria deixar de ser escravistas, para então as leis também deixarem

de sê-lo. Em seu discurso de 14/05/1870 apontava:

Todos nós brasileiros desejamos ardentemente ver desaparecer do País essa instituição; todos nós brasileiros fazemos votos para que deixemos de formar no mundo civilizado a exceção triste (digamos a verdade), que muito breve teremos infelizmente de constituir. Mas desta convicção à idéia de promover a abolição, em uma época recente, por meio de medidas diretas e legislativas, há uma distância imensa. 79

De acordo com ele, era inadequada uma reforma da instituição escravista

que partisse do “alto”. A seu ver, a abolição deveria ser efetivada primeiramente

nos costumes, nos hábitos e nas práticas sociais. O clamor por tais reformas

deveria partir da opinião pública, da população em geral, pois enquanto o Brasil

se compreendesse como sociedade dependente de mão-de-obra escrava não

haveria demanda por mudanças. Assim sendo, não era por intermédio de leis

impostas à sociedade que a escravidão deveria ter um fim. E sobre a questão da

opinião pública dizia:

Eu, senhores me regozijo e me felicito por ver que já uma vez a opinião pública no Brasil tomou tão decididamente a iniciativa de uma grande reforma social e que há de realizá-la mais prontamente do que o poderão fazer os representantes da Nação, os legisladores do País. E com mais sabedoria, sem abalo, sem ofensa de direito adquirido e de uma maneira, como já tive ocasião de o dizer muito mais digna do Brasil. Ninguém então se lembrará de apregoar, as nações estrangeiras não poderão acreditar, que o legislador do Império, que uma força superior impôs a seu País a emancipação contra a sua vontade, contra seus votos. Será a própria Nação que, por meio de sacrifícios parciais de esforços comuns, realizará essa reforma e dará espontaneamente esse belo exemplo de respeito à civilização moderna80.

79 Ibidem. Discurso dia 14/05/1870.pp.186-187 80 Ibidem.

Page 39: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

39

Sua proposta era a mão-inversa, ou seja, aos costumes se sucederiam as

leis: primeiro a abolição na prática, depois a emancipação legal. Neste sentido,

dizia ele: “fui um dos primeiros que se inscreveram na cruzada santa que trabalha

por extinguir a escravatura, não na lei, mas nos costumes que são a medula da

sociedade” 81.

Sendo assim, caberia ao governo viabilizar e ampliar as iniciativas de

manumissão privada que já ocorriam em grande monta neste período, votando

cotas para a emancipação assim o governo se tornaria coadjuvante no processo

de promoção da emancipação, mas que seria protagonizado pelos proprietários;

uma vez que apenas a eles cabia arbitrar sobre uma propriedade sua; dizia ele:

“Que as assembléias provinciais votem cotas para a emancipação, coadjuvando,

assim, a iniciativa particular e as nobres aspirações do espírito público” 82. Além

de respeitar o direito à propriedade, julgava que a emancipação realizada através

da iniciativa individual engrandeceria e enobreceria a própria sociedade brasileira,

deveria haver uma demanda social por esta mudança, demonstrando assim a

grandeza do povo brasileiro.

(...) a tendência manifesta para operar esta reforma espontaneamente, sem a necessidade de uma lei, o que seria muito mais glorioso para nós. Seria a emancipação feita pela nação, levada a efeito por um impulso nobre da sociedade brasileira. Pois esta glória o governo nos quer extorquir, quer esbulhar dela o país e fazer um troféu para...não direi para quem.83

Portanto, em suas concepções o governo não deveria legislar sobre causas

que ele considerava que não lhe competiam, não deveria forçar a sociedade

aceitar reformas impostas por um anseio de glorias externas como já

demonstrado anteriormente. Como uma avalanche ia se sucedendo as

intervenções do governo sobre a questão.

Seu discurso de 13 de julho de 1871 é bastante esclarecedor quanto a estas

posições por ele defendidas, como no trecho que se segue:

81 Ibidem, Discurso de 13/07/1871p.197. 82 Ibidem. Discurso de 14/05/1870 p. 188. 83 Ibidem. Discurso de 13/07/1871p.203.

Page 40: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

40

Ainda repercutem neste recinto as palavras sinistras, proferidas pelo nobre Ministro da Justiça; ainda me sinto estremecer recordando aquela ingênua e triste confissão: ‘A pedra arrancada de seu alvéolo, do cimo da montanha, disse S. Exª., não pode mais parar, há de rolar até a base’. Essa pedra é a questão da emancipação, essa pedra é a proposta que está aí sobre a mesa. O nobre Ministro tinha razão, ela foi arrancada lá das alturas inacessíveis e arrojada ao precipício por uma mão possante, por essa mão que, na frase da sociedade abolicionista, confere a liberdade neste país de servos. Ela foi arrancada das alturas inacessíveis e, arrojada de despenhadeiro em despenhadeiro, arrasta após si o Gabinete de 07 de março que, não podendo conter o impulso que lhe imprimiram, rolará até o abismo, se a opinião pública o não amparar, se nós o não salvarmos. 84

A mão de que falava Alencar eram, tanto as posições tomadas pelo

Imperador, quanto as pressões estrangeiras sofridas pela sociedade brasileira em

favor da emancipação.

4.7. POR UMA REFORMA LENTA E GRADUAL:

Seguindo suas concepções acerca da escravidão, Alencar afirmava que as

reformas propostas irrompiam de forma abrupta e eram levantadas por

propagandistas e agitadores que queriam erigir um nome as custas da ruína de

uma nação.

Defendendo-se da alcunha de escravista e retrógrado afirmava que a calma

e a firmeza de suas convicções o fazia verdadeiramente um filantropo. Aos

emancipadores interessava apenas a glória, a ele interessava a reabilitação e a

civilização dos cativos, “fazer homens livres, membros úteis da sociedade,

cidadãos inteligentes, e não hordas selvagens atiradas de repente no seio de um

povo culto”85.

Retrógrados, considerava, eram os próprios abolicionistas, que queriam

fazer retroceder a nação matando sua “primeira indústria”: a lavoura. Além disso,

pretendiam libertar sem preparar, ao contrário dos opositores à lei que visavam,

segundo ele, a redenção dos cativos “como queria Cristo”. Dirigindo-se aos que

considerava que fossem abolicionistas, argumentava:

84 Ibidem. Discurso de 13/07/1871. p. 225. 85 Ibidem.p. 228.

Page 41: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

41

Vós quereis a emancipação como uma vã ostentação. Sacrificais os interesses máximos da pátria a veleidades de glória. Entendeis que libertar é unicamente subtrair do cativeiro, e não vos lembrais de que a liberdade concedida a essas massas brutas é um dom funesto; é o fogo sagrado entregue ao ímpeto, ao arrojo de um novo e selvagem Prometeu! Nós queremos a redenção de nossos irmãos, como queria Cristo. Não basta para vos dizer à criatura, tolhida em sua inteligência, abatida na sua consciência: ‘Tu és livre; vai; percorre os campos como uma besta fera...’ Não senhores, é preciso esclarecer a inteligência embotada, elevar a consciência humilhada, para que um dia, no momento de conceder-lhe a liberdade, possamos dizer: ‘Vós sois homens, sois cidadãos. Nós vos remimos não só do cativeiro, como da ignorância, do vício, da miséria, da animalidade em que jazíeis!’. 86

Através deste trecho podemos vislumbrar a apreensão de Alencar sobre as

consequências do cativeiro sobre a índole, a inteligência e o comportamento dos

escravos. Por isso, uma libertação que não viesse acompanhada de outras

medidas de preparação dos libertos tornaria a manumissão não um ato de

bondade ou caridade, mas sim de torpeza e maldade. No mesmo sentido,

afirmava Alencar:

Nós queremos a reabilitação daqueles que um erro do passado abateu; vós quereis a emancipação por uma simples vaidade; para vós a liberdade não é senão o combustível que acenderá a luz da vossa glória, de reformadores e propagandistas.87

Reconhecedor de que a escravidão havia sido um erro e de que a abolição

deveria ser efetivada, Alencar era partidário de modificações lentas que não

colocassem em risco, nem a sociedade livre, nem a população a ser liberta. Para

Alencar, portanto a abolição deveria ser acompanhada de medidas que pudessem

preparar os escravos para serem livres. Além disso, deveria ser realizada pela

iniciativa privada, por meio da mudança de costumes da sociedade brasileira, e

não por meio de leis.

Alencar tratou da emancipação, sobretudo nos anos 1870 e 1871. Em 1877,

ele voltaria às questões referentes ao trabalho, desta vez discorrendo sobre a

colonização estrangeira. Nessa abordagem ele mostra-se muito coerente com

86 Ibidem. 87 Ibidem. Discurso de 13/07/1871.p.229.

Page 42: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

42

seus propósitos apresentados anos antes, quando da discussão da Lei do Ventre

Livre.

4.8. SOBRE A IMIGRAÇAO ESTRANGEIRA:

Concomitante às afirmações de que cabia à iniciativa privada promover a

emancipação, ele criticou também a imigração promovida pelo poder público.

Chamando-a de “tráfico de europeus”:

Confiemos nas nossas forças, tenhamos fé nos nossos destinos, conservemos vivo, possante o sentimento da nossa individualidade de povo, e havemos de ser um grande Império, sem necessidade de recorrer a esse tráfico de europeus, muito mais odioso do que o de africanos, embora se disfarce com o nome de colonização88.

Alencar considerava que a imigração não deveria ser favorecida pelo

governo, mas sim realizada de forma espontânea, e não com pretextos de suprir o

mercado brasileiro de mão-de-obra. Para ele, não eram necessários imigrantes

para o trabalho na grande lavoura, pois havia já muitos braços no Brasil. Além de

se correr o risco de forjar apenas cópias de nações européias e não uma nação

genuinamente brasileira89. Em seus discursos apontava a necessidade de se

manter vivo o sentimento nacional:

Enquanto o sentimento nacional foi forte e enérgico, nós tivemos um povo cheio de civismo e independência. (...) As coisas vão caminhando de modo que em muito pouco tempo a Corte do Império, não na população mas no espírito, há de ser mais portuguesa, mais inglesa e mais francesa do que brasileira.90

Em um momento em que as vozes mais instruídas da nação clamavam pelo

advento da imigração estrangeira, Alencar mostrava-se contra tais iniciativas, e

afirmava estar vendo surgir em seu meio um “fetichismo do estrangeiro”, o que

geraria a falta de elementos necessários para se construir uma nação.

88 Ibidem. Discurso de 07/05/1877. p. 55. 89 Ibidem, pp52-65. 90 Ibidem.p.57.

Page 43: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

43

Predominasse a imigração, ele considerava, o Brasil novamente se tornaria

colônia de alguma outra nação poderosa. Ao contrário ele considerava:

Mas, felizmente, senhores, esta não é a verdade. Nós temos todos os elementos para ser uma grande nação; o que necessitamos é perseverança e confiança em nós mesmos. No dia em que nos emanciparmos da tutela da Europa e mostrarmos que podemos viver sem os seus colonos e sem os seus capitais, o dinheiro e a população estrangeira hão de imutar o nosso país.91

Em seus escritos literários Alencar sempre demonstrou seu desejo em forjar

a nação brasileira a partir dela mesma. Temos como exemplo máximo as figuras

de Ceci e Peri da obra O Guarani. Promotor da ascensão do pensamento

originariamente brasileiro, como não poderia deixar de ser opõe-se à colonização

que vem ganhando força nos ano finais do século XIX.

Ao longo das páginas deste trabalho, ao considerar a maneira Alencar via a

questão da emancipação, vimos que um de seus princípios mais claros era o que

aqui denominamos de princípio da não intervenção. Em seu discurso sobre a mão

de obra imigrante este princípio se faz central mais uma vez.Para ele, o problema

não residia no fato de estar ocorrendo a imigração européia, mas sim na

promoção da imigração feita pelo governo brasileiro. Segundo ele a “foi a

colonização oficial que matou a emigração espontânea“. 92

91 Ibidem, p. 57. 92 Ibidem. p.57.

Page 44: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

44

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS:

De modo geral observamos que a produção historiográfica sobre a questão

da emancipação ao classificar os sujeitos que estiveram inseridos nos debates

sobre a abolição da escravidão, tende a opor dois grupos: os escravistas e os

abolicionistas, ficando Alencar sempre entre os primeiros. Contudo, ao

analisarmos as obras de alguns historiadores, especialmente depois de travar um

contato maior com as obras do próprio Alencar, passamos a lê-las de uma outra

maneira, facultando conclusões diversas, que não impliquem em reducionismos.

José Murilo de Carvalho em sua obra Pontos e Bordados93, ao discutir a

questão da escravidão, encontra pontos de comparação entre a obra de Alencar,

sobretudo as Cartas de Erasmo, e a obra do Bispo Azeredo Coutinho, que no

século XVIII escreveu a obra “Análise sobre a Justiça do Comércio do Resgate

dos Escravos da Costa da África”. Em seu artigo, Carvalho expõe as razões dos

abolicionistas e as dos escravistas, dentre eles, Alencar. Carvalho afirma:

Seus argumentos em favor da manutenção da escravidão apresentam sólida base econômica e histórica. No entanto, ele às vezes deixa escapar argumentos que, pela intensidade da linguagem em que são envolvidos, fazem suspeitar que sejam os mais relevantes. São razões políticas. Mas não da política nacional de José Bonifácio. São razões políticas de sua classe de proprietários de escravos94.

Observamos no decorrer deste estudo, contudo, que o argumento da Razão

Nacional também se encontravam presentes nos argumentos de Alencar, que

naquele momento opunha-se à abolição.

Robert Conrad em obra já citada neste estudo, por sua vez, aloca Alencar

entre os opositores da Lei do Ventre Livre, o que de fato era, e entre outros

excertos cita a opinião de Alencar diante da posição do Imperador frente a

questão da emancipação, conforme já vimos anteriormente. De modo geral,

Conrad, não classifica Alencar como escravista. 95

93 CARVALHO, José Murilo de. Pontos e Bordados: escritos de história e política. Escravidão e razão nacional. As batalhas da abolição. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. 94 Ibidem, p.54. 95 CONRAD. Op. Cit.pp.110-120.

Page 45: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

45

Podemos mencionar ainda a obra de Ricardo Martins Rizzo, que relaciona as

posições de José de Alencar frente à escravidão a partir do prisma jurídico e não

hesita em afirmar: Alencar era antiabolicionista e mesmo antigradualista. No

mesmo artigo, porém aponta: “incorporou e desenvolveu até as últimas

consequências, argumentos utilizados pelos escravocratas mais convictos, coisa

que não era” 96. Consideramos que mais interessante que classificar José de

Alencar é buscar interpretar suas posições em relação às medidas de

encaminhamento da abolição e da imigração no Brasil da sua época. Por isso,

analisamos as opiniões expressas por Alencar, não para classificá-lo como

“escravista” ou “abolicionista”, mas procurando entender suas posições sobre o

encaminhamento que ele defendia ser o melhor para a então chamada “questão

servil”, estabelecendo a relação entre essas posições e suas convicções políticas,

recuperando seu projeto de transformação da sociedade brasileira.

Alencar defendeu seus ideais, não apenas enquanto político, mas também

em suas obras literárias. Seu projeto de forjar uma nação genuinamente brasileira

expressava-se também na maneira de conduzir as relações escravos/ senhores.

Pensava que a abolição devesse se fazer através de mudanças que primeiro se

dariam no modus vivendi da sociedade brasileira e depois seriam tornadas em

leis.

Alencar foi derrotado em 1870. O projeto que tanto combateu foi aprovado

pelo Parlamento brasileiro, sob o comando de um gabinete de seu partido – o

Conservador. Da mesma forma, suas críticas à imigração subvencionada não

foram incorporadas às políticas imigratórias do governo brasileiros: pelo menos

em relação às províncias do Centro Sul cafeeiro, a imigração subvencionada foi o

padrão adotado a partir dos anos 1880.

Esta política oficial de imigração subvencionada, entretanto, Alencar não

chegou a conhecer. No mesmo ano em que combatera esta maneira de proceder

a imigração, em 1877, acometido por sérios problemas de saúde, para os quais

foram inúteis as viagens ao exterior e a busca pela recuperação, Alencar faleceu,

vitimado pela tuberculose. Em 12 de dezembro de 1877, Alencar deixava um

96 RIZZO, Ricardo Martins. A arrogância da teoria contra a lei: direito, escravidão e liberdade em José de Alencar. Revista Prisma Jurídico. V.6.p.243-262. São Paulo:2007.

Page 46: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

46

grande legado, tanto literário quanto político. Alcançava de certa forma, o que

havia desde muito cedo desejado: o reconhecimento das gerações futuras.

Page 47: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

47

REFERÊNCIAS

Fontes: ALENCAR, José de. Discursos parlamentares de José de Alencar, 1829-1877.

Brasília, Câmara dos Deputados, 1977.

Sobre José de Alencar:

ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. 2ª Edição. Campinas:

Pontes, 2005.

COUTINHO, Afrânio. A polêmica Alencar-Nabuco. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 1965.

MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. José de Alencar e sua época. São Paulo:

LISA -Livros Irradiantes, S/A, 1971.

____________________________. “Alencar e os escravos” In: Jornal do Brasil,

Rio de Janeiro, 23 de dezembro de 1977.

SILVA, Hebe Cristina. Imagens da Escravidão - Uma leitura de escritos políticos e

ficcionais de José de Alencar. Dissertação de mestrado, Unicamp. 2004,

RIZZO, Ricardo Martins. A arrogância da teoria contra a lei: direito, escravidão e

liberdade em José de Alencar. Revista Prisma Jurídico. V.6.p.243-262. São

Paulo:2007.

Historiografia:

CARVALHO, José Murilo de. Pontos e Bordados: Escritos de História e política.

Escravidão e Razão Nacional. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

_______________________. Teatro de Sombras: a elite política imperial. 2ª

edição, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.

CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro:

Editora Civilização Brasileira, 1975.

Page 48: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

48

HOLANDA, Sérgio Buarque de. “O encaminhamento Político do problema da

escravidão no Império”. In: Holanda (org). História Geral da Civilização Brasileira.

Tomo II, Vol. III. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil - DIFEL, 1987.

MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os anéis: a Lei dos

Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Editora da

UNICAMP, 1999.

Outros documentos utilizados:

ALENCAR, José de. Ao Imperador - Novas Cartas Políticas de Erasmo. Rio de

Janeiro, 1867, s/ref.

______________. Cartas Políticas de Erasmo ao Imperador.

Page 49: JOSÉ DE ALENCAR: UM PROJETO DE ABOLIÇÃO PARA O … · No início dos anos 1870, a abolição da escravidão foi objeto de debate no Parlamento brasileiro, devido a inclusão, na

49