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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 1 José de Alencar O GUARANI 1. O guarani José de Martiniano de Alencar nasceu em Mecejana, Ceará, em 1829. Estudou direito na faculdade do Largo do São Francisco, em São Paulo, onde conheceu — e formou a Sociedade Epicureia — os românticos Álvares de Aze- vedo, Bernardo Guimarães e Aureliano Lessa. Dedicou- se também à política, elegendo-se deputado por vários mandatos, além de ocupar o cargo de ministro da Justiça do imperador Pedro II. Decepcionado com a política, pas- sou a dedicar-se à literatura de maneira mais intensa, a ponto de tornar-se o mais completo escritor romântico. José de Alencar morreu, em 1877, aos 48 anos de idade. OBRAS Romances sociais (urbanos, citadinos ou de costumes) Cinco minutos (1856); A viuvinha (1857); Lucío- la (1862); Diva (1864); A pata da gazela (1870); Sonhos d’ouro (1872); Senhora (1875); Encarnação (1893). Romances indianistas O guarani (1857); Iracema (1865); Ubirajara (1874). Romances regionalistas (sertanejos) O gaúcho (1870); O tronco do ipê (1871); Til (1874); O sertanejo (1875). Romances históricos As minas de prata (1865); Guerra dos mascates (1871); Alfarrábios (1873). Narrativa autobiográfica Como e por que sou romancista (1893). Teatro O crédito (1857); Verso e reverso (1857); Demônio fa- miliar (1857); As asas de um anjo (1858); Mãe (1860); A expiação (1867); O jesuíta (1875). Crítica literária e polêmica Cartas sobre a Confederação dos Tamoios (1856); Ao imperador: Cartas políticas de Erasmo e Novas cartas políticas de Erasmo (1865); Ao povo: Cartas políticas de Erasmo (1866); O sistema representativo (1866). Crônica Ao correr da pena (1874). 2. O romantismo O Romantismo, escola à qual pertence José de Alen- car, teve a sua origem na Inglaterra, em 1798, com a publicação do livro Baladas líricas, dos poetas ingleses Coleridge e Wordsworth. Embora tenha surgido na Inglaterra, foi na França que esse movimento se consolidou, expandindo-se por toda a Europa. Com a Revolução Francesa (1789-1799) e a ascensão da burguesia ao poder, características como o sentimento patriótico, individualismo e liberdade marcaram intensamente o Romantismo europeu. Portugal viveu um clima de guerra civil, em 1820, quando os liberais enfrentaram os conservadores, numa luta pela instauração da democracia. O poeta Almeida Garrett era um desses liberais, que se sagraram vitorio- sos. Com a intenção de expressar a liberdade conquis- tada, Garrett publicou, em 1825, o poema Camões (em homenagem ao poeta que foi o mais nacionalista dos poetas portugueses), que marcou o início do Romantis- mo em Portugal. 3. Uma literatura do Brasil No Brasil, o Romantismo iniciou-se em 1836, com a publicação da obra Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães, e estendeu-se até 1881, com as publicações de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e O mulato, de Aluísio Azevedo. Alguns fatos históricos tiveram papel decisivo na formação da nova escola: a vinda da família real para o Brasil, o fim do período colonial e o processo de inde- pendência. Em 1808, d. João VI e sua família vieram para o Rio de Janeiro, fugindo das tropas napoleônicas. Acostumado

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José de Alencaro guArAni

1. O guarani

José de Martiniano de Alencar nasceu em Mecejana, Ceará, em 1829. Estudou direito na faculdade do Largo do São Francisco, em São Paulo, onde conheceu — e formou a Sociedade Epicureia — os românticos Álvares de Aze-vedo, Bernardo Guimarães e Aureliano Lessa. Dedicou-se também à política, elegendo-se deputado por vários mandatos, além de ocupar o cargo de ministro da Justiça do imperador Pedro II. Decepcionado com a política, pas-sou a dedicar-se à literatura de maneira mais intensa, a ponto de tornar-se o mais completo escritor romântico. José de Alencar morreu, em 1877, aos 48 anos de idade.

OBRASRomances sociais (urbanos,

citadinos ou de costumes)Cinco minutos (1856); A viuvinha (1857); Lucío-

la (1862); Diva (1864); A pata da gazela (1870); Sonhos d’ouro (1872); Senhora (1875); Encarnação (1893).

Romances indianistasO guarani (1857); Iracema (1865); Ubirajara (1874).

Romances regionalistas (sertanejos)O gaúcho (1870); O tronco do ipê (1871); Til (1874);

O sertanejo (1875).

Romances históricosAs minas de prata (1865); Guerra dos mascates (1871);

Alfarrábios (1873).

Narrativa autobiográficaComo e por que sou romancista (1893).

TeatroO crédito (1857); Verso e reverso (1857); Demônio fa-

miliar (1857); As asas de um anjo (1858); Mãe (1860);A expiação (1867); O jesuíta (1875).

Crítica literária e polêmicaCartas sobre a Confederação dos Tamoios (1856);

Ao imperador: Cartas políticas de Erasmo e Novas cartas

políticas de Erasmo (1865); Ao povo: Cartas políticas de Erasmo (1866); O sistema representativo (1866).

CrônicaAo correr da pena (1874).

2. O romantismo

O Romantismo, escola à qual pertence José de Alen-car, teve a sua origem na Inglaterra, em 1798, com a publicação do livro Baladas líricas, dos poetas ingleses Coleridge e Wordsworth.

Embora tenha surgido na Inglaterra, foi na França que esse movimento se consolidou, expandindo-se por toda a Europa. Com a Revolução Francesa (1789-1799) e a ascensão da burguesia ao poder, características como o sentimento patriótico, individualismo e liberdade marcaram intensamente o Romantismo europeu.

Portugal viveu um clima de guerra civil, em 1820, quando os liberais enfrentaram os conservadores, numa luta pela instauração da democracia. O poeta Almeida Garrett era um desses liberais, que se sagraram vitorio-sos. Com a intenção de expressar a liberdade conquis-tada, Garrett publicou, em 1825, o poema Camões (em homenagem ao poeta que foi o mais nacionalista dos poetas portugueses), que marcou o início do Romantis-mo em Portugal.

3. Uma literatura do Brasil

No Brasil, o Romantismo iniciou-se em 1836, com a publicação da obra Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães, e estendeu-se até 1881, com as publicações de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e O mulato, de Aluísio Azevedo.

Alguns fatos históricos tiveram papel decisivo na formação da nova escola: a vinda da família real para o Brasil, o fim do período colonial e o processo de inde-pendência.

Em 1808, d. João VI e sua família vieram para o Rio de Janeiro, fugindo das tropas napoleônicas. Acostumado

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com o luxo europeu, o rei procurou reproduzir aqui as condições de vida que tinham. Para isso, possibilitou o desenvolvimento cultural do país. Algumas de suas cria-ções foram:

• A Biblioteca Real, hoje Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, com um acervo de mais de 400 mil li-vros, muitos deles tão raros que não encontramos exemplares nas próprias bibliotecas de Portugal;

• As primeiras faculdades do Brasil, como a do Largo do São Francisco e a de Olinda, ambas de direito;

• A imprensa régia (circulação de jornais e revistas), responsável pela divulgação de nossa literatura;

• A Escola de Belas-Artes;• As primeiras livrarias;• O Real Teatro de São João, fundado em 1813 no

Rio de Janeiro.

Em decorrência de numerosas manifestações ocorri-das na cidade do Porto, em 1820, provocadas pela crise econômica que Portugal enfrentava, d. João VI retornou ao seu país. Antes, nomeou seu filho, Pedro I, regente da colônia.

No início do ano seguinte, d. João VI determina que d. Pedro I também retorne a Portugal para estudar; po-rém, após receber um abaixo-assinado pedindo sua per-manência no Brasil, o regente declara que ficará aqui. O dia em que ele fez essa declaração é conhecido como “o dia do fico”. A partir desse momento, inicia-se o pro-cesso de independência do Brasil, que se concluiu em 7 de setembro de 1822.

4. Características do romantismo brasileiro

Além de apresentar as características que o Roman-tismo português apresenta, o Romantismo brasileiro tem características peculiares. O nacionalismo é o re-flexo, na nossa literatura, da valorização da pátria após o processo de independência do Brasil; a valorização da natureza é consequência desse olhar que se volta para as coisas do nosso país (descobre-se a beleza natural de nossa terra e o homem do sertão com o seu linguajar e folclore); e o indianismo tem no índio a própria origem do país.

As demais características que também encontra-mos no Romantismo português são: subjetivismo (valorização do “eu”; egocentrismo); sentimentalismo (predomínio do sentimento sobre a razão, isto é, “o co-ração sobrepondo-se à cabeça”); liberdade formal (os românticos seguiram a proposta de Victor Hugo: “nem

regras, nem modelos); sentimento de religiosidade (os românticos seguem os princípios e mandamentos cris-tãos, numa reação ao paganismo árcade); idealizações (da mulher, do homem e do mundo, numa tentativa de torná-los perfeitos); valorização da burguesia (o Ro-mantismo é uma escola de burgueses escrevendo para a burguesia); volta ao passado (certas obras têm como tempo cronológico a época medieval; o indianismo an-tes do descobrimento do Brasil ou por volta de 1600 ou, então, na época do rei d. João VI); culto à morte (como forma de libertação dos males da vida, como no mal do século, por exemplo).

5. A prosa romântica

Cronologicamente, o romance brasileiro surgiu em 1843, com a publicação da obra folhetinesca O filho do pescador, de Teixeira e Sousa. Entretanto, sua obra é considerada incipiente no que diz respeito à ficção. Um ano depois, em 1844, foi publicado o romance A Moreni-nha, de Joaquim Manuel de Macedo, oficializando, des-sa forma, o início da ficção nacional. Com o surgimento da imprensa e, consequentemente, a circulação de jor-nais e revistas no Brasil, intensificou-se o interesse pela publicação, não só de romances, mas de outros tipos de textos em prosa, como o conto, o teatro, a crítica literá-ria, a crônica. Jornais como o Correio Mercantil e o Diário do Rio de Janeiro publicaram grandes obras da literatura brasileira: o primeiro, Memórias de um sargento de milí-cias, de Manuel Antônio de Almeida; o segundo, O gua-rani, de José de Alencar.

Uma curiosidade: em fins do século XVIII, Teresa Mar-garida da Silva e Orta, sob o pseudônimo de Dorothea Engrassia Tavareda Dalmira, publicou aquele que seria o primeiro romance brasileiro: As aventuras de Diófanes. Entretanto, a crítica especializada reluta em considerá-la pioneira.

Tipos de romancesO romance passa a ser amplamente difundido por

nossos românticos, ou em forma de folhetim ou edita-dos em livros, por editoras portuguesas ou francesas, já que a primeira editora nacional só seria fundada no início do século XX, por Monteiro Lobato. Os tipos de romances são:

Romance socialTambém conhecido como urbano, citadino ou de

costumes, é uma narrativa que explora as convenções

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e situações de uma determinada sociedade. No caso específico do Romantismo, a classe social explorada é a burguesia. Assim, Senhora, de José de Alencar, A Mo-reninha e O moço loiro, de Joaquim Manuel de Macedo, dentre outros, são classificados como sociais.

Romance indianistaÉ o tipo de romance em que se exploram os usos, os

costumes, as tradições e a língua do indígena. Iracema, O guarani e Ubirajara, de José de Alencar, são exemplos desse tipo de narrativa.

Romance regionalista ou sertanejoOs romances regionalistas tratam de temas como a

cultura, as tradições folclóricas e o linguajar de uma de-terminada região. É o caso, por exemplo, de Inocência, de Visconde de Taunay.

Romance históricoOs fatos grandiosos ocorridos em nosso passado são

registrados no romance histórico, como a Guerra dos mascates, de José de Alencar, e A retirada da Laguna, de Visconde de Taunay.

Romance autobiográficoSão narrativas em que o autor explora a própria vida.

Joaquim Manuel de Macedo narrou acontecimentos de sua vida no romance Memórias de um sobrinho do meu tio, assim como José de Alencar em Como e por que sou romancista.

Principais representantesOs principais representantes da prosa romântica

brasileira foram Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar, Bernardo Guimarães, Franklin Távora, Visconde de Taunay, Manuel Antônio de Almeida e, no teatro, des-tacaram-se Martins Pena e Qorpo-Santo. O surgimento da prosa nacional revela, pela quantidade de escritores adeptos e pela qualidade de suas narrativas, que esse gênero literário, do século XIX em diante, dividirá, “de-mocraticamente”, espaço com a poesia. A arte verbal de qualidade não será apenas aquela produzida em versos.

6. Características gerais de José de Alencar

O texto a seguir foi retirado do prefácio ao romance, Sonhos d’ouro, de José de Alencar:

A literatura nacional que outra cousa é senão a alma da pátria, que transmigrou para este solo virgem com uma

raça ilustre, aqui impregnou-se da seiva americana desta terra que lhe serviu de regaço; e cada dia se enriquece ao contacto de outros povos e ao influxo da civilização?

O período orgânico desta literatura conta já três fases. A primitiva, que se pode chamar de aborígine, são as lendas e mitos da terra selvagem e conquistada; são as tradições que embalaram a infância do povo, e ele escutava como o filho a quem a mãe acalenta no berço com as canções da pátria, que abandonou. Iracema pertence a essa literatura primitiva, cheia de santidade e enlevo, para aqueles que veneram na terra da pátria a mãe fecunda; alma mater, e não enxergam nela apenas o chão onde pisam.

O segundo período é histórico: representa o consórcio do povo invasor com a terra americana, que dele recebia a cultura, e lhe retribuía nos eflúvios de sua natureza virgem e nas reverberações de um solo esplêndido. Ao aconche-go dessa pujante criação, a têmpera se apura, toma asas a fantasia, a linguagem se impregna de módulos mais suaves; formam-se outros costumes, e uma existência nova, pautada por diverso clima, vai surgindo. É a ges-tação lenta do povo americano, que devia sair da estirpe lusa, para continuar no novo mundo as gloriosas tradições de seu progenitor. Esse período colonial terminou com a independência. A ele pertencem o Guarani e as Minas de Prata. Há aí muita e boa messe a colher para o nosso ro-mance histórico; mas não exótico e raquítico como se pro-pôs a ensiná-lo, a nós beócios, um escritor português.

A terceira fase, a infância de nossa literatura, começada com a independência política, ainda não terminou; espera escritores que lhe deem os últimos traços e formem o ver-dadeiro gosto nacional, fazendo calar as pretensões hoje tão acesas, de nos recolonizarem pela alma e pelo coração, já que não o podem pelo braço.

Neste período, a poesia brasileira, embora balbuciante, ainda ressoa, não já somente nos rumores da brisa e nos ecos da floresta, senão também nas singelas cantigas do povo e nos íntimos serões da família.

Onde não se propaga com rapidez a luz da civilização, que de repente cambia a cor local, encontra-se ainda em sua pureza original, sem mescla, esse viver brasileiro. Há, não somente no país, como nas grandes cidades, até mes-mo na corte, desses recantos, que guardam intacto, ou quase, o passado.

O tronco do ipê, Til e O gaúcho vieram dali; embora, no pri-meiro sobretudo, se note já, devido à proximidade da corte e à data mais recente, a influência da nova cidade, que de dia em dia se modifica e se repassa do espírito forasteiro.

Nos grandes focos, especialmente na corte, a sociedade tem a fisionomia indecisa, vaga e múltipla, tão natural à idade da adolescência. É o efeito da transição que se opera; e também do amálgama de elementos diversos.

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A importação contínua de ideias e costumes estranhos, que dia por dia nos trazem todos os povos do mundo, devem por força de comover uma sociedade nascente, naturalmente inclinada a receber o influxo de mais adiantada civilização.

Os povos têm, na virilidade, um eu próprio, que resiste ao prurido da imitação; por isso na Europa, sem embar-go da influência que sucessivamente exerceram algumas nações, destacam-se ali os caracteres bem acentuados de cada raça e de cada família.

Não assim os povos são feitos; estes tendem como a criança ao arremedo; copiam tudo, aceitam o bom e o mau, o belo e o ridículo, para formarem o amálgama in-digesto, limo de que deve sair mais tarde uma individuali-dade robusta.

Palheta, onde o pintor deita laivos de cores diferentes, que juntas e mescladas entre si, dão uma nova tinta de tons delicados, tal é a nossa sociedade atualmente. Notam-se aí, através do gênio brasileiro, umas vezes embebendo-se dele, outras invadindo-o, traço de várias nacionalidades adventícias; é a inglesa, a italiana, a espanhola, a ame-ricana, porém, especialmente a portuguesa e a francesa, que todas flutuam, e a pouco e pouco vão diluindo-se para infundir-se n’alma da pátria adotiva, e formar a nova e grande nacionalidade brasileira.

Desta luta entre o espírito conterrâneo e a invasão es-trangeira, são reflexos Lucíola, Diva, A pata da gazela, e tu, livrinho, que aí vais correr o mundo com o rótulo de Sonhos d’ouro.

ALENCAR, José de. O guarani. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004. p. 12-3-4.

7. O guarani

Antes de ser publicado em livro em 1857, O guarani saiu em forma de folhetim no Diário do Rio de Janeiro alcançando estrondoso sucesso. Abaixo, os elementos narrativos que compõem este romance de caráter his-tórico-indianista sobre a formação do Rio de Janeiro e a idealização do índio como símbolo de nossa naciona-lidade:

Foco NarrativoFoco narrativo em 3ª pessoa onisciente, como se

pode perceber neste trecho:

Isabel, pobre menina, fitava sobre Álvaro os seus gran-des olhos negros, cheios de amargura e tristeza; sua alma

parecia coar-se naquele raio luminoso e ir curvar-se aos pés do moço.

ALENCAR, José de. O guarani. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004. p. 37.

A metalinguagem, muito usada por Manuel Antônio de Almeida e Machado de Assis, também se faz presente em José de Alencar:

Demorei-me em descrever a cena e falar de algumas das principais personagens deste drama porque assim era preciso para que bem se compreendam os acontecimentos que depois de passaram.

Deixarei porém que os outros perfis de desenhem por si mesmos.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 16.

TEMPOEm 1604, época da União das Coroas Ibéricas (pe-

ríodo em que Portugal vivia sob o domínio espanhol – 1580-1640):

D. Antônio desejava saber notícias do Rio de Janeiro e de Portugal, onde se haviam perdido todas as esperanças de uma restauração, que só teve lugar quarenta anos de-pois com a aclamação do duque de Bragança.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 36.

[…]Mas não antecipemos; por ora ainda estamos em 1603,

um ano antes daquela cena, e ainda nos falta contar cer-tas circunstâncias que serviram para o seguimento desta verídica história1.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 100.

EspaçoMatas do Rio de Janeiro, onde d. Antônio de Mariz

mandou construir uma verdadeira fortaleza, para viver com a sua família. No trecho a seguir, notem a exaltação à natureza misturada a um sentimento de religiosidade, típico do período romântico:

A tarde ia morrendo.O sol declinava no horizonte e deitava-se sobre as gran-

des florestas, que iluminava com os seus últimos raios.A luz frouxa e suave do ocaso, deslizando pela verde al-

catifa, enrolava-se como ondas de ouro e púrpura sobre a folhagem das árvores.

1. Notem a metalinguagem presente no trecho.

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Os espinheiros silvestres desatavam as flores alvas e de-licadas; e o ouricuri abria as suas palmas mais novas, para receber no seu cálice o orvalho da noite. Os animais retar-dados procuravam a pousada; enquanto a juriti, chaman-do a companheira, soltava os arrulhos doces e saudosos com que se despede do dia.

Um concerto de notas graves saudava o pôr do sol, e confundia-se com o rumor da cascata, que parecia quebrar a aspereza de sua queda, e ceder à doce influência da tarde.

Era a Ave-Maria.Como é solene e grave no meio das nossas matas

a hora misteriosa do crepúsculo, em que a natureza se ajoelha aos pés do Criador para murmurar a prece da noite!

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 37.

Também a casa construída por d. Antônio de Mariz serve de cenário para as ações do romance:

A casa era edificada com a arquitetura simples e gros-seira, que ainda apresentam as nossas primitivas habita-ções; tinha cinco janelas de frente, baixas, largas, quase quadradas.

Do lado direito estava a porta principal do edifício, que dava sobre um pátio cercado por uma estacada, coberta de melões agrestes. Do lado esquerdo estendia-se até à borda da esplanada uma asa do edifício, que abria duas janelas sobre o desfiladeiro da rocha.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 10.

Temas•MiscigenaçãodasraçasnoBrasil:

— Cecília fica no deserto?… balbuciou ele.— Sim! respondeu a menina tomando-lhe as mãos: Cecí-

lia fica contigo e não te deixará. Tu és rei destas florestas, des-tes campos, destas montanhas; tua irmã te acompanhará.

— Sempre?…— Sempre… Viveremos juntos como ontem, como

hoje, como amanhã. Te cuidas?… Eu também sou filha desta terra; também me criei no seio desta natureza. Amo este belo país!….

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 295.

•FundaçãodoRiodeJaneiro(romancehistórico-in-dianista):

No ano da graça de 1604, o lugar que acabamos de descrever estava deserto e inculto; a cidade do Rio de Ja-neiro tinha-se fundado havia menos de meio século, e a civilização não tivera tempo de penetrar o interior.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 10.

•Imposiçãodocristianismo:

D. Antônio, vendo a resolução que se pintava no rosto do selvagem, tornou-se ainda mais pensativo; quando, passado esse momento de reflexão, ergueu a cabeça, seus olhos brilhavam com um raio de esperança.

Atravessou o espaço que o separava de sua filha, e, to-mando a mão de Peri, disse-lhe com uma voz profunda e solene:

— Se tu fosses cristão, Peri!…O índio voltou-se extremamente admirado daquelas

palavras.— Por quê?… perguntou ele.— Por quê?… disse lentamente o fidalgo. Porque se tu

fosses cristão, eu te confiaria a salvação de minha Cecília, e estou convencido de que a levarias ao Rio de Janeiro, à minha irmã.

O rosto do selvagem iluminou-se; seu peito arquejou de felicidade; seus lábios trêmulos mal podiam articu-lar o turbilhão de palavras que lhe vinham do íntimo da alma.

— Peri quer ser cristão! exclamou ele.D. Antônio lançou-lhe um olhar úmido de reconheci-

mento.— A nossa religião permite, disse o fidalgo, que na hora

extrema todo homem possa dar o batismo. Nós estamos com o pé sobre o túmulo. Ajoelha, Peri!

O índio caiu aos pés do velho cavalheiro, que impôs-lhe as mãos sobre a cabeça.

— Sê cristão! Dou-te o meu nome. ALENCAR, José de. Op. cit. p. 275-276.

• Idealizaçãodo índioaosmoldesdocavaleirome-dieval:

Peri, correndo mil perigos, arriscando-se a despedaçar-se nas pontas dos rochedos e a ser crivado pelas flechas dos selvagem, ganhava a floresta, e daí a uma hora vol-tava trazendo um fruto delicado, um favo de mel envolto de flores, uma caça esquisita, que sua senhora tocava com os lábios para assim pagar ao menos tanto amor e tanta dedicação.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 201.

•Aconquistadosertãobrasileiro:

Naquele tempo dava-se o nome de bandeiras a essas caravanas de aventureiros que se entranhavam pelos ser-tões do Brasil, à busca de ouro, os brilhantes e esmeraldas, ou à descoberta de rios e terras ainda desconhecidos.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 16.

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ResumoNarrado em 3ª pessoa, O guarani, palavra tupi que

significa “guerreiro”, tem como protagonistas o índio goitacá Peri e a branca de origem europeia, Cecília, de apelido Ceci. D. Antônio de Mariz, colonizador portu-guês, fiel à sua pátria — pai de Ceci —, e inconformado com a situação dela (que perdera a sua independência política para a Espanha, por ocasião da União das Coro-as Ibéricas) resolve construir nas matas do Rio de Janei-ro, às margens do rio Paquequer, afluente do rio Paraíba, uma verdadeira fortaleza; suas terras foram dadas por Mem de Sá2 pelo bons serviços prestados como coloni-zador:

Aí o Paquequer lança-se rápido sobre o seu leito, e atra-vessa as florestas como o tapir, espumando, deixando o pelo esparso pelas pontas do rochedo, e enchendo a soli-dão com o estampido de sua carreira. De repente, falta-lhe o espaço, foge-lhe a terra; o soberbo rio recua um momen-to para concentrar as suas forças, e precipita-se de um só arremesso, como tigre sobre a presa.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 9.

Na casa-grande moram a sua família – composta pela mulher, d. Lauriana; o filho, d. Diogo; a filha, Cecília; a prima destes (que na verdade era meio-irmã, já que era filha de d. Antônio com uma índia), a mestiça Isabel; o fidalgo d. Álvaro, além dos homens da guarda, que não passavam, na verdade, de mercenários em busca de minas de prata, comandados pelo fiel escudeiro de d. Antônio de Mariz, Aires Gomes. Dentre esses homens, estava o vilão, Loredano:

Assim vivia, quase no meio do sertão, desconhecida e ignorada essa pequena comunhão de homens, governan-do-se com as duas leis, os seus usos e costumes; unidos en-tre si pela ambição da riqueza, e ligados ao seu chefe pelo respeito, pelo hábito da obediência e por essa superiorida-de moral que a inteligência e a coragem exercem sobre as massas.

Para d. Antônio e para seus companheiros a quem ele havia imposto sua fidelidade, esse torrão brasileiro, esse pedaço de sertão, não era senão um fragmento de Portu-gal livre, de sua pátria primitiva; aí só se reconhecia como rei ao duque de Bragança, legítimo herdeiro da Coroa; quando se corriam as cortinas do dossel da sala, as armas

que se viam, eram as cinco quinas portuguesas, diante das quais todas as frontes inclinavam.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 15.

A região, na serra dos Órgãos, era habitada pelos ín-dios goitacás, tribo a que pertencia o guerreiro Peri, e pelos antropófagos aimorés, inimigos destes. O índio Peri surge logo no começo da trama amorosa. Ele fora o responsável por salvar Ceci e Isabel de serem esmagadas por uma avalanche de pedras, caindo logo nas graças de d. Antônio de Mariz. Peri, de certa forma, abandona a sua tribo para viver com a família portuguesa3:

Mas todos os seus esforços tinham sido baldados; o fi-dalgo com a sua lealdade e o cavalheirismo apreciava o caráter de Peri, e via nele, embora selvagem, um homem de sentimentos nobres e de alma grande. Como pai de fa-mília, estimava o índio pela circunstância a que já aludi-mos de ter salvado sua filha, circunstância que mais tarde se explicará.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 62.

O índio nutria por Ceci uma espécie de idolatria. Por ela, era capaz de fazer qualquer coisa, até sair em bus-ca de uma onça, pedido feito, de brincadeira pela bela moça, levado a sério pelo índio:

No dia seguinte, ao raiar da manhã, Cecília abriu a por-tinha do jardim e aproximou-se da cerca.

— Peri! disse ela.O índio apareceu à entrada da cabana; correu alegre,

mas tímido e submisso.Cecília sentou-se num banco da relva; e a muito custo

conseguiu tomar um arzinho de severidade, que de vez em quando quase traía-se por um sorriso teimoso que lhe que-ria fugir dos lábios.

Fitou um momento no índio os seus grandes olhos azuis com uma expressão de doce repreensão; depois disse-lhe em um tom mais de queixa do que de rigor:

— Estou muito zangada com Peri!O semblante do selvagem anuviou-se.— Tu, senhora, zangada com Peri! Por quê?— Porque Peri é mau e ingrato; em vez de ficar perto

de sua senhora, vai caçar em risco de morrer! disse a moça ressentida.

— Ceci desejou ver uma onça viva!

2. Mem de Sá (1550-1572), irmão do poeta português Francisco Sá de Miranda, foi nomeado terceiro governador-geral do Brasil em sucessão a Duarte da Costa.3. Vale aqui ressaltar que José de Alencar escreveu três romances indianistas com a seguinte intenção: em Iracema a figura do branco colonizador assimila a cultura

indígena; em O Guarani a figura do indígena assimila a cultura europeia; em Ubirajara, por se passar antes de 1500, não há a presença do colonizador, portanto, somente índios, por esse motivo é considerada a mais aborígine obra de José de Alencar.

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— Então não posso gracejar? Basta que eu deseje uma coisa para que tu corras atrás dela como um louco?

— Quando Ceci acha bonita uma flor, Peri não vai bus-car? perguntou o índio.

— Vai, sim.— Quando Ceci ouve cantar o sofrer, Peri não o vai pro-

curar?— Que tem isso?— Pois Ceci desejou ver uma onça, Peri a foi buscar.Cecília não pôde reprimir um sorriso ouvindo esse silo-

gismo rude, a que a linguagem singela e concisa do índio dava uma certa poesia e originalidade.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 50-51.

Além de Peri, dois outros homens disputavam tam-bém o coração de Ceci: d. Álvaro, que nutria por ela uma espécie de amor fidalgo, e Loredano, que por ela nutria uma paixão ardente. Assim, três sentimentos distintos disputavam o coração de Ceci: idolatria, amor e paixão:

As cortinas da janela cerraram-se; Cecília tinha-se dei-tado.

Junto da inocente menina, adormecida na isenção de sua alma pura e virgem, velavam três sentimentos profun-dos, palpitavam três corações bem diferentes.

Em Loredano, o aventureiro de baixa extração, esse sentimento era um desejo ardente, uma sede de gozo, uma febre que lhe requeimava o sangue; o instinto brutal dessa natureza vigorosa era ainda aumentado pela im-possibilidade moral que a sua condição criava, pela barrei-ra que se elevava entre pobre colono e a filha de d. Antônio de Mariz, rico fidalgo de solar e brasão.

[…]Em Álvaro, cavalheiro dedicado e cortês, o sentimento

era uma afeição nobre e pura, cheia de graciosa timidez que perfuma as primeiras flores do coração, e do entusias-mo cavalheiresco que tanta poesia dava aos amores da-quele tempo de crença e lealdade.

[…]Em Peri, o sentimento era um culto, espécie de idola-

tria fanática, na qual não entrava um só pensamento de egoísmo; amava Cecília não para sentir um prazer ou ter uma satisfação, mas para dedicar-se inteiramente a ela, para cumprir o menor dos seus desejos, para evitar que a moça tivesse um pensamento que não fosse imediata-mente uma realidade.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 46-47.

Loredando, ex-frade carmelita, de nome frei Ângelo di Luca, que assassinara um homem desarmado, rou-bando-lhe o mapa que o levaria às minas do bandeiran-te Robério Dias, tinha um plano: matar todos da família, raptar Ceci e explorar a tal mina. Enquanto não executa-va o seu plano, passava-se por um dos homens da guar-da da fortaleza de d. Antônio de Mariz:

Fr. Ângelo di Luca achava-se então no pouso como mis-sionário, incumbido da catequese e cura das almas entre o gentio daquele lugar; em seis meses que apostolava con-seguira aldear algumas famílias que esperava breve trazer ao grêmio da igreja.

Um ano havia que obtivera do prior-geral da ordem do Carmo a graça de passar do seu convento de Santa Ma-ria Transpontina, em Roma, para a casa que a sua ordem tinha fundado em 1590 no Rio de Janeiro, a fim de empre-gar-se no trabalho das missões.

Tanto o geral como o provincial de Lisboa, tocados por esse ardente apostólico, o haviam recomendado expressa-mente a fr. Diogo do Rosário, então prior do convento do Carmo no Rio de Janeiro, pedindo-lhe que empregasse no serviço do Senhor e na glória da ordem da Beatíssima Vir-gem do Monte Carmelo, o zelo e o santo fervor do irmão fr. Ângelo di Luca.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 84.

[…]Enquanto o frade se esforçava para ler, o moribundo

agonizava na última aflição, esperando talvez a absolvi-ção final e a extrema-unção do penitente.

Mas o religioso não via nesse momento senão o papel que tinha nas mãos; deixou-se cair em um banco, e com a cabeça pendida sobre o braço, entregou-se a funda meditação.

Que pensava ele?…4

Não pensava, delirava. Diante de seus olhos, a imagi-nação exaltada lhe apresentava um mar argênteo, um oceano de metal fundido, alvo e resplandecente, que ia se perder no infinito. As vagas desse mar de prata, ora acha-malotavam-se, ora rolavam formando flocos de espumas, que pareciam flores de diamantes, de esmeraldas e rubins cintilando à luz do sol.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 90.

Apesar de d. Álvaro de Sá amar Cecília, Isabel era quem o amava perdidamente. A bela morena sentia-se inferior a Cecília, justamente por sua mestiçagem:

4. Notem a onisciência do narrador.

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— Ora, Cecília, como queres que se trate um selvagem que tem a pele escura e o sangue vermelho? Tua mãe não diz que um índio é um animal como um cavalo ou um cão?

Estas últimas palavras foram ditas com uma ironia amarga, que a filha de Antônio de Mariz compreendeu perfeitamente.

— Isabel!… exclamou ela ressentida.— Sei que tu não pensas assim, Cecília; e que o teu bom

coração não olha a cor do rosto para conhecer a alma. Mas os outros?… Cuidas que não percebo o desdém com que me tratam?

— Já te disse por vezes que é uma desconfiança tua; to-dos te querem, e te respeitam como devem.

Isabel abanou tristemente a cabeça.— Vai-te bem o consolar-me; mas tu mesma tens visto

se eu tenho razão.— Ora, um momento de zanga de minha mãe…— É um momento bem longo, Cecília! respondeu a

moça com um sorriso amargo.— Mas escuta, disse Cecília, passando o braço pela cin-

tura de sua prima e chamando-a a si, tu bem sabes que minha mãe é uma senhora muito severa mesmo para co-migo.

— Não te canses, prima; isto só serve para provar-me ainda mais o que já te confessei: nesta casa só tu me amas, os mais me desprezam.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 29-30.

Certo dia, numa caçada, d. Diogo mata, acidentalmen-te, uma índia aimoré. Alguns índios, com o intuito de se vingarem, espiam Ceci se banhar nas águas do rio, para depois matá-la, mas são mortos pelas flechas certeiras de Peri. Uma índia relata aos índios da tribo o que viu. Estes juram atacar a casa de d. Antônio de Mariz. Temendo pela morte de Ceci e de sua família, Peri envenena-se e segue para a tribo dos aimorés. O guerreiro, sabendo da tradição do “I-Juca Pirama” (“aquele que é digno de ser morto”)5, lutaria sozinho contra os aimorés e morreria. Morto, seria comido pelos inimigos (já que acreditavam que comendo um guerreiro inimigo se fortaleceriam), morrendo todos, pois sua carne estava envenenada. Peri, nesta passagem, provou que morreria pela sua amada. Entretanto, d. Álva-ro e alguns homens conseguem retirá-lo dos aimorés com vida. Peri toma um antídoto, retirado de uma erva, elimi-nando o veneno:

Confiando nesse veneno que os índios conheciam com o nome de curare, e cuja fabricação era um segredo de algumas tribos, Peri com a sua inteligência e dedicação

descobrira um meio de vencer ele só aos inimigos, apesar do seu número e da sua força.

[…]O costume dos selvagens, de não matar na guerra o ini-

migo e de cativá-lo para servir ao festim da vingança, era para Peri uma garantia e uma condição favorável à execu-ção do seu projeto.

[…]Segundo as leis tradicionais do povo bárbaro, toda a

tribo devia tomar parte no festim: as mulheres moças to-cavam apenas na carne do prisioneiro; mas os guerreiros a saboreavam como um manjar delicado, adubado pelo prazer da vingança; e as velhas com a gula feroz das har-pias que se cevam no sangue de suas vítimas.

Peri contava, pois, com toda a segurança que dentro de algumas horas o corpo envenenado da vítima levaria a morte às entranhas de seus algozes, e que ele só destruiria toda uma tribo, grande, forte, poderosa, apenas com o au-xílio dessa arma silenciosa.

Pode-se agora compreender qual tinha sido o seu de-sespero vendo esse plano inutilizado; depois de ter deso-bedecido à sua senhora, depois de haver tudo realizado; quando só faltava o desfecho, quando o golpe que ia sal-var a todos caía, mudar-se de repente a face das coisas e ver destruída a sua obra, filha de tanta meditação!

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 250-251.

Nas matas, Peri encontra o corpo de d. Álvaro, morto em combate pelos aimorés. O seu corpo é levado à casa de d. Antônio de Mariz. Isabel, ao ver o corpo sem vida do amado, suicida-se, tombando sobre ele:

Isabel não tinha mais forças para resistir e realizar o seu heroico sacrifício; deixou cair a cabeça desfalecida, e seus lábios se uniram outra vez num longo beijo, em que essas duas almas irmãs, confundindo-se numa só, voaram ao céu, e foram abrigar-se no seio do Criador.

As nuvens de fumaça e de perfume se condensavam cada vez mais e envolviam como um lençol aquele grupo original, impossível de descrever.

Por volta de duas horas da tarde, a porta do gabinete, impelida por um choque violento, abriu-se; e um turbilhão de fumo lançou-se por essa aberta, e quase sufocou as pes-soas que aí estavam.

Eram Cecília e Peri.A menina inquieta pela longa ausência de sua prima,

soube de Peri que ela estava no seu quarto; mas o índio ocultou parte da verdade, e não disse onde deitara o corpo de Álvaro.

5. “I-Juca Pirama”, poema indianista de Antônio Gonçalves Dias (1823-1864).

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Duas vezes Cecília viera até à porta, escutara e nada ouvira; por fim resolveu-se a bater, a falar a Isabel, e não teve a menor resposta. Chamou Peri e contou-lhe o que se passava; o índio, tomado de um pressentimento meteu o ombro à porta e abriu-a.

Quando a corrente de ar expeliu a fumaça do aposento, Cecília pôde entrar e ver a cena que descrevemos.

A menina recuou, e respeitando esse mistério de um amor profundo, fez um gesto a Peri e retirou-se.

O índio fechou de novo a porta e acompanhou sua se-nhora.

— Ela morreu feliz! disse Peri.Cecília fitou nele os seus grandes olhos azuis, e corou.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 269.

Loredando resolve executar o seu plano e matar d. Antônio de Mariz. Entretanto, é descoberto, preso e con-denado a morrer na fogueira como um traidor:

Antes de obedecerem à ordem de d. Antônio de Mariz, eles tinham executado a sua sentença proferida contra Loredano; e quem passasse então sobre a esplanada veria em torno do poste, em que estava atado o frade, uma lín-gua vermelha que lambia a fogueira, enroscando-se pelos toros de lenha.

O italiano sentia já o fogo que se aproximava e a fuma-ça, que, enovelando-se, envolvia-o numa névoa espessa; é impossível descrever a raiva, a cólera e o furor que se apos-saram dele nesses momentos que precederam o suplício.

Mas voltemos à sala em que se achavam reunidos os principais personagens desta história, e onde se vão pas-sar as cenas talvez mais importantes do drama6.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 272-273.

Os aimorés resolvem atacar a fortaleza. Sem mais o que fazer, d. Antônio de Mariz resolve morrer ali dentro com a sua família. Peri pede permissão a ele para tirar Ceci da casa. D. Antônio de Mariz não aceita, pois Peri não era cristão e sua filha não poderia viver com um gentio. Porém, Peri é convertido ao cristianismo, rece-bendo o nome de Antônio:

D. Antônio lançou-lhe um olhar úmido de reconheci-mento.

— A nossa religião permite, disse o fidalgo, que na hora extrema todo homem possa dar o batismo. Nós estamos com o pé sobre o túmulo. Ajoelha, Peri!

O índio caiu aos pés do velho cavalheiro, que impôs-lhe as mãos sobre a cabeça.

— Sê cristão! Dou-te o meu nome.Peri beijou a cruz da espada que o fidalgo lhe apresen-

tou, e ergueu-se altivo e sobranceiro, pronto a afrontar to-dos os perigos para salvar sua senhora.

— Escuso exigir de ti a promessa de respeitares e defen-deres minha filha. Conheço a tua alma nobre, conheço o teu heroísmo e a tua sublime dedicação por Cecília, mas quero que me faças um outro juramento.

— Qual? Peri está pronto para tudo.— Juras que, se não puderes salvar minha filha, ela não

cairá nas mãos do inimigo?— Peri jura que ele levará a senhora à tua irmã; e que se

o Senhor do céu não deixar que Peri cumpra a sua promes-sa, nenhum inimigo tocará em tua filha; ainda que para isso seja preciso queimar uma floresta inteira.

— Bem; estou tranquilo. Ponho minha Cecília, sob tua guarda; e morro satisfeito. Podes partir.

— Manda fechar todas as portas.ALENCAR, José de. Op. cit. p. 276.

Ceci e Peri deixam a casa, que é totalmente destruí-da, devido à explosão no paiol. Vão os dois para o rio Pa-raíba. Cai uma tempestade torrencial, lembrando o dilú-vio. As águas do Paraíba sobem rapidamente. Ceci não vê saída, já pressentindo a morte dos dois. Entretanto, Peri lhe conta a história de Tamandaré e de sua esposa:

“Foi longe, bem longe dos tempos de agora. As águas caíram, e começaram a cobrir toda a terra. Os homens su-biram ao alto dos montes; um só ficou na várzea com sua esposa.

“Era Tamandaré; forte entre os fortes; sabia mais que todos. O Senhor falava-lhe de noite; e de dia ele ensinava aos filhos da tribo o que aprendia do céu.

“Quando todos subiram aos montes ele disse:‘Ficai comigo; fazei como eu, e deixai que venha a água’.“Os outros não o escutaram; e foram para o alto; e dei-

xaram ele só na várzea com sua companheira, que não o abandonou.

“Tamandaré tomou sua mulher nos braços e subiu com ela ao olho da palmeira; aí esperou que a água viesse e passasse; a palmeira dava frutos que o alimentavam.

“A água veio, subiu e cresceu; o sol mergulhou e surgiu uma, duas e três vezes. A terra desapareceu; a árvore desa-pareceu; a montanha desapareceu.

“A água tocou o céu; e o Senhor mandou então que parasse. O sol olhando só viu céu e água, e entre a água e o céu, a palmeira que boiava levando Tamandaré e sua companheira.

6. Notem a metalinguagem presente no trecho lido.

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“A corrente cavou a terra; cavando a terra, arrancou a palmeira; arrancando a palmeira, subiu com ela; subiu aci-ma do vale, acima da árvore, acima da montanha.

“Todos morreram. A água tocou o céu três sóis com três noites; depois baixou; baixou até que descobriu a terra.

“Quando veio o dia, Tamandaré viu que a palmeira es-tava plantada no meio da várzea; e ouviu a avezinha do céu, o guanumbi, que batia as asas.

“Desceu com a sua companheira, e povoou a terra.”ALENCAR, José de. Op. cit. p. 300-301.

A cena parece se repetir: Peri, numa luta desuma-na com a palmeira, arranca-a do solo, fazendo boiar o seu tronco. Ceci e Peri sobem no tronco e descem o rio Paraíba: estavam a salvo7:

A cúpula da palmeira, embalançando-se graciosamen-te, resvalou pela flor da água como um ninho de garças ou alguma ilha flutuante, formada pelas vegetações aquáti-cas.

Peri estava de novo sentado junto de sua senhora qua-se inanimada: e, tomando-a nos braços, disse-lhe com um acento de ventura suprema:

— Tu viverás!…Cecília abriu os olhos, e vendo seu amigo junto dela,

ouvindo ainda suas palavras, sentiu o enlevo que deve ser o gozo da vida eterna.

— Sim?… murmurou ela: viveremos!… lá no céu, no seio de Deus, junto daqueles que amamos!…

O anjo espanejava-se para remontar ao berço.— Sobre aquele azul que tu vês, continuou ela, Deus

mora no seu trono, rodeado dos que o adoram. Nós iremos lá, Peri! Tu viverás com tua irmã, sempre…!

Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo, e lângui-da reclinou a loura fronte.

O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos ru-

bores e límpidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o voo.

A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia…E sumiu-se no horizonte.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 302.

PERSONAGENSPeriPeri, índio goitacá, é considerado o primeiro “super-

-herói” da literatura brasileira:

Quando a cavalgata chegou à margem da clareira, aí se passava uma cena curiosa.

Em pé, no meio do espaço que formava a grande abó-boda de árvores, encostado a um velho tronco decepado pelo raio, via-se um índio na flor da idade.

Uma simples túnica de algodão, a que os indígenas chamavam “aimará” apertada à cintura por uma faixa de penas escarlates, caía-lhe dos ombros até ao meio da per-na, e desenhava o talhe delgado e esbelto como um junco selvagem.

Sobre a alvura diáfana do algodão, a sua pele, cor do cobre, brilhava com reflexos dourados; os cabelos pretos cortados rentes, a tez lisa, os olhos grandes com os cantos exteriores erguidos para a fronte; a pupila negra, móbil, cintilante; a boca forte mas bem modelada e guarnecida de dentes alvos, davam ao rosto pouco oval a beleza incul-ta da graça, da força e da inteligência.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 21-22.

A seguir, o trecho em que Peri, numa luta feroz con-tra a natureza, vence-a, evidenciando a sua “super-he-roicidade”:

Três vezes os seus músculos de aço, estorcendo-se, incli-naram a haste robusta; e três vezes o seu corpo vergou, ce-dendo a retração violenta da árvore, que voltava ao lugar que a natureza lhe havia marcado.

Luta terrível, espantosa, louca, esvairada: luta da vida contra a matéria; do homem contra a terra; luta da força contra a imobilidade.

Houve um momento de repouso em que o homem, concentrando todo o seu poder, estorceu-se de novo con-tra a árvore; o ímpeto foi terrível; e pareceu que o corpo ia despedaçar-se nessa distensão horrível.

Ambos, árvore e homem, embalançaram-se da terra já minada profundamente pela torrente.

A cúpula da palmeira, embalançando-se graciosamente, resvalou pela flor da água como um ninho de garças ou algu-ma ilha flutuante, formada pelas vegetações aquáticas.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 302.

CecíliaFilha de d. Antônio de Mariz:

Os grandes olhos azuis, meio cerrados, às vezes se abriam languidamente como para se embeberem de luz, e abaixavam de novo as pálpebras rosadas.

7. Notem o final em aberto, o que causou certo descontentamento na época em que fora lançada em folhetim. O público leitor, romântico, esperava uma definição direta com relação ao amor entre Peri e Ceci, isto é, um “beijo final”, que caracteriza o final romântico, hoje típico de nossas telenovelas.

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Os lábios vermelhos e úmidos pareciam uma flor da gardênia dos nossos campos, orvalhada pelo sereno da noite; o hálito doce e ligeiro exalava-se formando um sorri-so. Sua tez alva e pura como um floco de algodão, tingia-se nas faces de uns longes cor-de-rosa, que iam, desmaiando, morrer no colo de linhas suaves e delicadas.

O seu traje era do gosto o mais mimoso e o mais origi-nal que é possível conceber; mistura de luxo e simplicidade.

Tinha sobre o vestido branco de cassa um ligeiro saiote de rico azul apanhado à cintura por um broche; uma espé-cie de arminho cor de pérola, feito com a penugem macia de certas aves, orlava o talho e as mangas; fazendo realçar a alvura de seus ombros e o harmonioso contorno de seu braço arqueado sobre o seu seio.

Os longos cabelos louros, enrolados negligentemente em ricas tranças, descobriam a fronte alva, e caíam em volta do pescoço presos por uma rendinha finíssima de fios de palha cor de ouro, feita com uma arte e perfeição admirável.

A mãozinha afilada brincava com um ramo de acácia que se curvava carregado de flores, e ao qual de vez em quando segurava-se para imprimir à rede uma doce oscilação.

Esta moça era Cecília.ALENCAR, José de. Op. cit. p. 26-27.

D. Antônio de MarizNobre português, pai de Cecília (Ceci) e Diogo. Casa-

do com d. Lauriana.

De seu chapéu de feltro pardo sem pluma escapavam- -se os anéis de cabelos brancos, que caíam sobre os om-bros; através da longa barba alva como a espuma da cas-cata, brilhavam suas faces rosadas, sua boca ainda expres-siva, e seus olhos pequenos mas vivos.

Este fidalgo era d. Antônio de Mariz que, apesar de seus sessenta anos, mostrava um vigor devido talvez à vida ati-va; trazia ainda o porte direito, e tinha o passo firme e se-guro como se estivesse na força da idade.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 32.

Vale registrar que d. Antônio de Mariz construiu sua fortaleza nas matas do Rio de Janeiro por fidelidade a Portugal e indignado com relação à União das Coroas Ibéricas em 1580:

A derrota de Alcácer-Quibir8 e o domínio espanhol que se lhe seguiu vieram modificar a vida de d. Antônio de Mariz.

Português de antiga têmpera, fidalgo real, entendia que estava preso ao rei de Portugal pelo juramento da no-breza, e que só a ele devia preito e menagem. Quando pois, em 1582, foi aclamado no Brasil d. Filipe II como o sucessor da monarquia portuguesa, o velho fidalgo embainhou a espada e retirou-se do serviço.

[…]Isso se passara em abril de 1593; no dia seguinte, co-

meçaram os trabalhos da edificação de uma pequena habitação que serviu de residência provisória, até que os artesãos vindos do reino construíram e decoraram a casa que já conhecemos.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 13.

D. LaurianaEsposa de d. Antônio de Mariz, mãe de Cecília e Diogo:

Sua mulher, d. Lauriana, dama paulista, imbuída de to-dos os prejuízos de fidalguia e de todas as abusões religio-sas daquele tempo; no mais, um bom coração, um pouco egoísta, mas não tanto que não fosse capaz de um ato de dedicação.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 15.

[…]D. Lauriana era uma senhora de cinquenta e cinco

anos; magra; mas forte e conservada como seu marido; tinha ainda os cabelos pretos matizados por alguns fios brancos que escondia o seu alto penteado, coroado por um desses antigos pentes tão largos que cingiam toda a cabeça, e fingiam uma espécie de diadema.

Seu vestido de lapim cor de fumo, de cintura compri-da, um pouco curto na frente, tinha a cauda respeitável, que ela arrastava com um certo donaire de fidalga, res-to de sua beleza, há muito perdida. Longas arrecadas de ouro com pingentes de esmeralda, que lhe roçavam quase os ombros, e um colar com uma cruz de ouro ao pescoço eram todos os seus ornatos.

Quanto ao moral, já dissemos que era uma mistura de fidalguia e devoção; o espírito de nobreza que em d. Antô-nio de Mariz era um realce, nela tornava-se uma ridícula exageração.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 34.

[…]Só em um ponto a sua firmeza tinha sido baldada; e

fora em vencer a repugnância que d. Lauriana tinha por sua

8. Em 1578, d. Sebastião, jovem rei português, participou da batalha em Marrocos, norte da África (conhecida como Alcácer-Quibir, “grande fortaleza”), na tentativa de expandir a fé cristã entre os mulçumanos. Teria desaparecido no areal, deixando Portugal sem um herdeiro para a Coroa. Em 1580. D. Filipe II, rei da Espanha, propôs a unificação das coroas espanhola e portuguesa.

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sobrinha; mas como o velho fidalgo sentia talvez doer-lhe a consciência nesse objeto, deixou sua mulher livre de proceder como lhe parecesse, e respeitou os seus sentimentos.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 35.

D. DiogoIrmão de Ceci, filho de d. Antônio de Mariz e d. Lauriana:

Seu filho, d. Diogo de Mariz, que devia mais tarde pros-seguir na carreira de seu pai, e lhe sucedeu em todas as honras e forais; ainda moço, na flor da idade, gastava o tempo em correrias e caçadas.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 15.

IsabelTratada como sobrinha por d. Antônio de Mariz, mas,

em verdade, era filha dele com uma índia:

Neste ponto do seu sonho, a portinha interior do jardim abriu-se, e outra moça, roçando apenas a grama com o seu passo ligeiro, aproximou-se da rede.

Era um tipo inteiramente diferente do de Cecília; era o tipo brasileiro em toda a sua graça e formosura, com o en-cantador contraste de languidez e malícia, de indolência e vivacidade.

Os olhos grandes e negros, o rosto moreno e rosado, ca-belos pretos, lábios desdenhosos, sorriso provocador, da-vam a este rosto um poder de sedução irresistível.

Ela parou em face de Cecília meio deitada sobre a rede, e não pôde furtar-se à admiração que lhe inspirava essa beleza delicada, de contornos tão suaves; e uma sombra imperceptível, talvez de um despeito, passou pelo seu ros-to, mas esvaeceu-se logo.

Sentou-se numa das bandas da rede, reclinando sobre a moça para beijá-la ou ver se estava dormindo.

Cecília, sentindo um estremecimento, abriu os olhos e fitou-os em sua prima.

— Preguiçosa! — disse Isabel sorrindo.ALENCAR, José de. Op. cit. p. 28.

Loredano O vilão de O guarani. Identificado na trama como o

“gênio do mal”, Loredando, ex-frade carmelita, de nome fr. Ângelo di Luca, possuía o mapa do bandeirante Ro-bério Dias. Apaixonado por Ceci — um desejo ardente — intencionava matar a família da moça, raptá-la e ex-plorar as minas de prata:

O carmelita acompanhado pelo selvagem partiu: va-gou pela floresta e pelo campo em todas as direções; al-guma coisa procurava. Ele avistou depois de duas horas

a touça de cardos junto da qual se passou a última cena que narramos; examinou-a por todos os lados e sorriu de satisfeito. Trepando à árvore, e escorregando pelo cipó, en-traram ele e o selvagem na área que já conhecemos; o sol tinha nascido há pouco.

No dia seguinte, por volta de duas horas da tarde, saiu deste lugar um só homem; não era ele o frade nem o sel-vagem. Era um aventureiro destemido e audaz, em cuja fisionomia se reconheciam ainda os traços do carmelita fr. Ângelo di Luca.

Este aventureiro chamou-se Loredano.Deixava naquele lugar e sepultado no seio da terra um

terrível segredo; isto é, um rolo de pergaminho, um burel de frade e um cadáver.

Cinco meses passados, o vigário da ordem participava ao geral em Roma que o irmão fr. Ângelo di Luca morrera como santo e mártir no zelo de sua fé apostólica.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 89-90.

D. ÁlvaroNobre, que morava na casa de d. Antônio de Mariz.

Nutria por Cecília um amor puro. Entretanto, era Isabel quem o amava. Ao morrer, em um combate com os ín-dios aimorés, Isabel suicida-se, caindo sobre o seu cadá-ver, que fora levado à casa de d. Antônio por Peri:

Álvaro, em atenção a ser o seu primeiro dia de chegada, fora emprezado pelo velho fidalgo para tomar parte nessa coleção da família, o que havia recebido como um favor imenso.

O que explicava esse apreço e grande valor, dado por ele a um tão simples convite, era o regime caseiro que d. Lauriana havia estabelecido na sua habitação.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 39.

Aires GomesFiel escudeiro de d. Antônio de Mariz:

O outro velho, que caminhava a seu lado com o cha-péu na mão, era Aires Gomes, seu escudeiro e antigo com-panheiro de sua vida aventureira; o fidalgo depositava a maior confiança na sua discrição e zelo.

A fisionomia deste homem tinha, quer pela sagacidade inquieta que era a sua expressão ordinária, quer pelos seus traços alongados, uma certa semelhança com o focinho da raposa, semelhança que era ainda mais aumentada pelo seu trajo bizarro. Trazia sobre o gibão de belbutina cor de pinhão uma espécie de véstia do pelo daquele ani-mal, do qual eram também as botas compridas, que lhe serviam quase de calções.

ALENCAR, José de. Op. cit. p. 32.

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IV. O final do livro marca o retorno a um passado mítico, pois Peri e Cecília simbolicamente regressam à época do dilúvio.Então, estão corretas:

a) I e II.b) I, II e III.c) I, II e IV.d) I, III e IV.e) Todas.

4 (Fuvest-SP) Leia o fragmento da obra O guarani, de José de Alencar, para responder ao teste:

De um dos cabeços da serra dos Órgãos desliza um fio de água que se dirige para o norte, e engrossado com os mananciais que recebe no seu curso de dez léguas, torna--se rio caudal.

É o Paquequer: saltando de cascata em cascata, enros-cando-se como uma serpente, vai depois se espreguiçar na várzea e embeber no Paraíba, que rela majestosamente em vasto leito. Dir-se-ia que vassalo e tributário desse rei das águas, o pequeno rio, altivo e sobranceiro contra os rochedos, curva-se humildemente aos pés do suserano. Perde, então, a beleza selvática; suas ondas resvalam sobre elas: escravo submisso, sofre o látego do senhor.

Considere as afirmações a seguir e assinale a alterna-tiva correta:I. O texto é predominantemente descritivo e carrega-

do de recursos de linguagem poética. Um exemplo é a prosopopeia “curva-se humildemente aos pés do suserano”.

II. O narrador mostra a relação entre os rios Paraíba e Paquequer a partir de uma analogia com o mundo feudal, na qual o primeiro surge como “rei das águas” e o segundo como “vassalo”.

III. No modo de qualificar a paisagem, há uma forte co-notação de hierarquia.

a) Estão incorretas todas as afirmações.b) Estão corretas as afirmações I e II.

1 (Fuvest-SP) Assim, o amor se transformava tão com-pletamente nessas organizações, que apresentava três sentimentos bem distintos: um era uma loucura, o outro uma paixão, o último uma religião.

__________ desejava; ____________ amava; ______________ uma religião.

Neste excerto de O guarani, o narrador caracteriza os diferentes tipos de amor que três personagens mascu-linas sentem por Ceci. Mantida a sequência, os trechos pontilhados serão preenchidos corretamente com o nome das personagens:a) Álvaro/Peri/d. Diogob) Loredano/Álvaro/Peric) Loredano/Peri/d. Diogod) Álvaro/d. Diogo/Perie) Loredano /d. Diogo / Peri

2 (Fuvest-SP) – Sobre o romance indianista de José de Alencar, pode-se afirmar que:a) analisa as reações psicológicas da personagem como

um efeito das influências sociais.b) é um composto resultante de formas originais do conto.c) dá forma ao herói, amalgamando-o à vida da natureza.d) apresenta contestação política ao domínio português.e) contém-se preso aos modelos legados pelos clássicos.

3 (PUC-SP) O romance, O guarani, de José de Alencar, publicado em 1857, é um marco da ficção romântica brasileira. Dentre as características mais evidentes do projeto romântico que sustentam a construção dessa obra, destacam-se:I. A figura do protagonista, o índio Peri, que é um típi-

co herói romântico, tanto pela sua força física como pelo seu caráter.

II. O amor do índio Peri por Cecília, uma moça branca, sendo que esse amor segue o modelo medieval do amor cortês.

III. O fato de o livro ser ambientado na época da coloni-zação do Brasil pelos portugueses, dada a predileção dos românticos por narrativas históricas.

8. Bibliografia

ALENCAR, José de. O guarani, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004.

___________. Sonhos d’ouro, São Paulo: Saraiva, 1959.

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c) Estão corretas as afirmações I e III.d) Estão corretas as afirmações I, II e III.e) Está correta somente a afirmação III.

5 (Fuvest-SP) A oposição natureza / cultura é o eixo mais importante da sustentação da narrativa e de ca-racterização de personagens de O guarani, de José de Alencar. A partir dessa oposição, podem-se determinar várias relações antitéticas, de acordo com o ponto de observação adotado.

Assinale a alternativa em que essa oposição não se expressa:a) Peri e os demais índios aimorés representam o ho-

mem em seu estado natural, enquanto d. Antônio de Mariz e os aventureiros representam a cultura pró-pria da civilização europeia.

b) Peri em si mesmo simboliza a oposição natureza/cul-tura, pois é o indígena livre que transita com adequa-ção e elegância entre os brancos europeus.

c) Índios aimorés contrapõem-se pela violência antro-pofágica ao mundo organizado pelas leis cavalhei-rescas que definem as relações entre d. Antônio de Mariz e os aventureiros.

d) A fortificação de muralhas de pedras que caracteriza a casa da família Mariz é símbolo de contraste entre a exuberante paisagem natural e a arquitetura do ho-mem branco colonizador.

e) Álvaro, espécie de cavaleiro medieval, lembra a hon-ra e a lealdade determinadas pelas relações culturais do branco europeu e Loredano, vilão da narrativa, simboliza a insubordinação, deslealdade e ambição que se alastram num espaço primitivo, selvagem, do tempo da colonização brasileira.

6 (Fuvest-SP) Ao final da narrativa, Ceci decide perma-necer na selva com Peri: “— Peri não pode viver junto de sua irmã na cidade dos brancos, sua irmã fica com ele no deserto, no meio da floresta”. A decisão de Ceci traduz:a) a supremacia da cultura indígena sobre a branca eu-

ropeia.b) a capacidade de renúncia da mulher que, por amor,

submete-se a intensos sacrifícios.c) a impossibilidade de Peri habitar a cidade, entre os

civilizados.d) o entrelaçamento da civilização branca europeia e da

cultura natural indígena.e) o reconhecimento de que o ambiente natural é o es-

paço perfeito para a realização amorosa.

7 (U. F. Lavras-MG) Com relação à obra O guarani, de José de Alencar, pode-se afirmar:

a) O cenário da obra é a mata atlântica.b) O narrador nunca faz parte da história, apesar de

contá-la.c) A obra é narrada em 3ª pessoa, com narrador onis-

ciente que conta a história.d) A obra é narrada em versos.e) No momento da destruição da casa de d. Antônio de

Mariz, ocorre a trágica morte de Cecília e Peri.

8 (Fuvest-SP) Leia o trecho de O guarani, de José de Alencar, para responder ao teste:

Álvaro fitou no índio um olhar admirado. Onde é que este selvagem sem cultura aprendera a poesia simples, mas graciosa; onde bebera a delicadeza de sensibilidade que dificilmente se encontra num coração gasto pelo atrito da sociedade?

Em relação ao trecho, pode-se afirmar:a) Nele se adota uma das principais teses naturalistas,

pelo fato de se atribuir à terra a determinação do ca-ráter de seus habitantes primitivos.

b) Representa o reconhecimento de características ina-tas dos indígenas, as quais não se verificam em habi-tantes das cidades civilizadas da Europa.

c) A inautenticidade com que se apresenta o índio bra-sileiro revela um ângulo de observação que combina com o desejo de enaltecimento das raízes da pátria.

d) Faz parte da primeira obra da literatura brasileira que manifesta interesse em traduzir e explicar a realidade da vida indígena.

e) A idealização do selvagem está diretamente associa-da às fantasias egocêntricas românticas e, portanto, não pode ser entendida como expressão de um cará-ter genérico, nacional.

9 Com relação às três obras indianistas de José de Alencar, responda: qual a intenção de José de Alencar ao escrever exatamente três romances indianistas?

10 Sobre O guarani, de José de Alencar, assinale a alter-nativa incorreta:a) A obra se passa na época da União das Coroas Ibéri-

cas.b) Peri é considerado o primeiro “super-herói” da litera-

tura brasileira.c) O romance, além de indianista, tem um caráter histórico.d) As duas tribos exploradas na obra são: goitacá e ai-

moré.e) Peri e Ceci não ficam juntos devido ao paganismo do

índio.

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1. b

2. b

3. e

4. d

5. e

6. d

7. c

8. a

9. Em Iracema, o autor procurar mostrar a figura do europeu (Martim) assimilando a cultura indígena (Iracema); em O guarani, tem-se o oposto, isto é, a figura do índio (Peri) assimilando a cultura europeia (Cecília); em Ubirajara, há somente índios, portanto, sem a presença do europeu.

10. e