José Carlos Miranda - Martin Soares e o Cantar Do Cavaleiro

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 GUARECER on-line  __________ __________  __________ __________ __________ 1 MARTIN SOARES E O “CANTAR DO CAVALEIRO” A recepção do cantar de amigo  da fase inicial – I  Martin Soares é um vulto bem conhecido da poesia galego-portuguesa. Tendo em conta a sua muito recuada cronologia, foi, antes de mais, um trovador fecundo, a ajuizar pelos perto de quarenta cantares que legou à posteridade. Além disso, o seu fazer poético-musical atravessou diversas fases e ambientes. Vemo-lo activo a partir dos últimos anos da década de 1220 1 , altura em que dirige um magnífico escárnio contra os Sousões que autorizavam “roussos” de mulheres debaixo da sua jurisdição 2 , e sabemos com apoio  Versão portuguesa actualizada de MIRANDA, José Carlos Ribeiro, “Martin Soares und die Rezeption des galego-portugiesisischen Frauenliedes der Frühzeit", in Frauenlieder/Cantigas de amigo, Internationalen Kolloquien des Centro de Estudos Humanísticos (Universidade do Minho), der Faculdade de Letras (Universidade do Porto) und des Fachbereichs Germanistik (Freie Universität Berlin), Stuttgart, S. Hirzel Verlag, 2000, pp. 227-236. 1  Para a biografia possível deste trovador, veja-se OLIVEIRA, A. Resende, Depois do Espectáculo Trovadoresco. A estrutura dos cancioneiros peninsulares e as recolhas dos séculos XIII e XIV , Lisboa, 1994, pp. 386-388. O seu cancioneiro integral foi editado por PIZZORUSSO, Valeria Bertolucci, Le poesie di Martin Soares , Bologna, 1963, embora posteriormente a editora tenha reduzido o número de composições atribuíveis ao trovador de 45 para 39  cf. “Martin Soares”, in Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa , Coord. TAVANI, Giuseppe/ LANCIANI, Giulia, Lisboa, 1993 , na sequência de estudos vindos a público sobre a estrutura dos cancioneiros nos pontos que abrangem a obra do trovador, sobretudo FERRARI, Anna, “Formazione e struttura del canzoniere portoghese della Biblioteca Nazionale di Lisbona (Cod. 10991: Colocci-Brancuti)”, Arquivos do Centro Cultural Português, XIV, Paris, 1979, pp. 27-142; e RAMOS, Maria Ana, “O retorno da Guarvaya  ao Paay”, in Miscellanea di studi in onore di Aurelio Roncaglia a cinquent’anni dalla sua laurea , Modena, 1989, pp.1097-1111. 2  Sobre este texto, ver MIRANDA, José Carlos Ribeiro, "Os Trovadores e a Região do Porto. II  Pois bõas donas som desemparadas ", O Tripeiro , Dezembro de 1995, pp. 375-381.

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    MARTIN SOARES E O CANTAR DO CAVALEIRO

    A recepo do cantar de amigo da fase inicial I

    Martin Soares um vulto bem conhecido da poesia galego-portuguesa. Tendo em conta a sua muito recuada cronologia, foi, antes de mais, um trovador fecundo, a ajuizar pelos perto de quarenta cantares que legou posteridade. Alm disso, o seu fazer potico-musical atravessou diversas fases e ambientes. Vemo-lo activo a partir dos ltimos anos da dcada de 12201, altura em que dirige um magnfico escrnio contra os Souses que autorizavam roussos de mulheres debaixo da sua jurisdio2, e sabemos com apoio

    Verso portuguesa actualizada de MIRANDA, Jos Carlos Ribeiro, Martin Soares und die

    Rezeption des galego-portugiesisischen Frauenliedes der Frhzeit", in Frauenlieder/Cantigas de amigo, Internationalen Kolloquien des Centro de Estudos Humansticos (Universidade do Minho), der Faculdade de Letras (Universidade do Porto) und des Fachbereichs Germanistik (Freie Universitt Berlin), Stuttgart, S. Hirzel Verlag, 2000, pp. 227-236. 1 Para a biografia possvel deste trovador, veja-se OLIVEIRA, A. Resende, Depois do

    Espectculo Trovadoresco. A estrutura dos cancioneiros peninsulares e as recolhas dos sculos XIII e XIV, Lisboa, 1994, pp. 386-388. O seu cancioneiro integral foi editado por PIZZORUSSO, Valeria Bertolucci, Le poesie di Martin Soares, Bologna, 1963, embora posteriormente a editora tenha reduzido o nmero de composies atribuveis ao trovador de 45 para 39 cf. Martin Soares, in Dicionrio da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, Coord. TAVANI, Giuseppe/ LANCIANI, Giulia, Lisboa, 1993 , na sequncia de estudos vindos a pblico sobre a estrutura dos cancioneiros nos pontos que abrangem a obra do trovador, sobretudo FERRARI, Anna, Formazione e struttura del canzoniere portoghese della Biblioteca Nazionale di Lisbona (Cod. 10991: Colocci-Brancuti), Arquivos do Centro Cultural Portugus, XIV, Paris, 1979, pp. 27-142; e RAMOS, Maria Ana, O retorno da Guarvaya ao Paay, in Miscellanea di studi in onore di Aurelio Roncaglia a cinquentanni dalla sua laurea, Modena, 1989, pp.1097-1111. 2 Sobre este texto, ver MIRANDA, Jos Carlos Ribeiro, "Os Trovadores e a Regio do Porto. II

    Pois bas donas som desemparadas", O Tripeiro, Dezembro de 1995, pp. 375-381.

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    documental que ter morrido nos primeiros anos da dcada de sessenta desse sculo.

    O seu trajecto biogrfico parece ser de algum modo circular: dos meios da nobreza do Alto-Minho, donde parece ter emergido na condio de trovador e onde ter, de algum modo, sido consagrado entre os seus pares3 transitar para geografias mais a norte, ou nordeste, nomeadamente rumo casa senhorial dos Trastmaras, onde ter tido lugar a sua troca de experincias com Paai Soares de Taveirs4 pelos finais da dcada de 1230. Posteriormente verificamos a sua presena na corte castelhana, cuja actividade trovadoresca se organizava em torno do futuro Afonso X, e assistimos ao seu retorno, um bom punhado de anos mais tarde, ao reino de Portugal, pondo termo a um exlio que, de ser to comum nos meios trovadorescos portugueses, se pode atribuir em grande medida crise poltica que por c se foi acentuando at meados da dcada de quarenta. Alis, sendo provvel a sua vinculao vasslica a Martin Garcia de Parada, partidrio do rei D. Sancho II, entretanto exilado em Castela onde vir a morrer em 1248, essa estadia castelhana do trovador ganha por certo uma explicao acrescida.

    3 Acompanhando as suas composies no Cancioneiro da Biblioteca Nacional dito o

    seguinte: "Este Martin Soares foy de Riba de Limia en Portugal e trobou melhor ca todolos que trobaron e assi foi julgado antr'os outros trobadores". Sobre a natureza deste apontamento biogrfico que comparece junto a B 144, veja-se LORENZO GRADN, Pilar, Las razos gallego-portuguesas, Romania, 121 (2003), pp. 99-132. 4 Ao contrrio do que foi adiantado, como possibilidade, por OLIVEIRA, Depois do Espectculo,

    pp. 401-402, no cremos que a cronologia deste trovador alis, no muito fecundo se estenda pela dcada de quarenta do sc. XIII e muito menos que ele tenha frequentado, poeticamente activo, a corte de Fernando III. Tudo o que se sabe sobre ele, quer atravs dos textos poticos, quer por meio da documentao existente, aponta para uma permanncia exclusiva em crculos senhoriais, provavelmente ligados linhagem dos Trastmaras. Sobre o assunto, ver VALLN, Gema, Pay Soarez de Taveirs y la corte del Conde de Traba, in O Cantar dos Trobadores, Santiago de Compostela, 1993, pp. 521-531; IDEM, "Pay Soarez de Taveiros: Datos para su dentificacin", in Actas do IV Congresso da Associao Hispnica de Literatura Medieval, vol. III, Lisboa, 1993, pp. 39-42; VIEIRA, Yara F, En cas dona Mayor, molher de Dom Rodrigo Gomes de Trastamar, Signum, S. Paulo(1999), pp. 77-102.

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    Mais de trinta anos, portanto, de uma actividade trovadoresca que manifesta uma constncia notvel e na qual a apologia da vassalagem amorosa, levada a cabo nos seus cantares de amor sem grandes cedncias hipertrofia formal tpica de muitos trovadores alfonsinos, encontra correspondncia numa rgida atitude de defesa da ordem social e esttica aristocrtica e corts, tal como o trovador a entendia5.

    Martin Soares, tal como alguns trovadores da sua gerao, mas de uma forma mais ostensiva porque a sua obra mais vasta, manteve-se alheio ecloso e afirmao do cantar de amigo6, com o qual teve, todavia, de conviver ao longo do seu trajecto biogrfico, at assistir imposio deste gnero como escolha maioritria dos trovadores galego-portugueses que o rodeavam. Visivelmente, no aderiu ao gnero nem explorou as suas potencialidades. Todavia, o alheamento e a indiferena no parecem ser caractersticas manifestas da sua obra, tanto mais que, no seio desta, assume um peso importante a abordagem de matrias que, para abreviar, designaremos como literrias, ou relativas ao ofcio trovadoresco e jogralesco7.

    nossa convico que Martin Soares no se manteve to indiferente a este tema quanto pode parecer. Para o comprovar, chamaremos colao um dos seus mais conhecidos cantares, tentando mostrar que uma releitura desse texto pode fornecer elementos preciosos para entender como o cantar de

    5 Para a avaliao da atitude do trovador face ordem social aristocrtica, veja-se MIRANDA

    Pois bas donas...

    6 Sobre a cronologia e os intervenientes na afirmao trovadoresca do cantar de amigo, ver

    OLIVEIRA, Antnio Resende/MIRANDA, Jos Carlos, "A segunda gerao de trovadores galego-portugueses: temas, formas e realidades", in Medioevo y literatura. Actas del V Congreso da la Asociacin Hispnica de Literatura Medieval, Granada, 1995, pp. 499-512; e MIRANDA, Jos Carlos Ribeiro, Calheiros, Sandim e Bonaval: Uma Rapsdia de Amigo, Porto, 1994, agora tambm em Guarecer on-line. 7 o caso das composies em que vitupera SueirAnes, a que adiante faremos referncia, e

    ainda da teno que mantm com Paai Soares de Taveirs.

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    amigo inicial suscitou nele uma reaco forte, que em muito pode contribuir para melhor elucidar a problemtica da gnese deste gnero da poesia galego-portuguesa:

    Cavaleiro, com vossos cantares mal avilastes os trobadores;

    e, pois assi per vs son venudos, busquen por al servir sas senhores,

    ca vos vej'eu mais mais das gentes gar de vosso bando por vosso trobar ca non eles que son trobadores.

    Os aldeios e os concelhos todolos vedes por pagados,

    tam bem se chamam por vossos quites, como se fossem vossos comprados,

    por estes cantares que fazedes d'amor en que lhes achan os filhos sabor

    e os mancebos que teem soldados.

    Benquisto sodes dos alfaiates, dos peliteiros e dos medores;

    do vosso bando son os trompeiros e os jograres dos atambores

    porque lhis cabe nas trombas vosso son; pera atambores ar dizen que non

    achan no mund'outros ses melhores...

    Os trobadores e as molheres de vossos cantares son nojados

    a a, porqu'eu pouco daria pois mi dos outros fossem loados,

    ca eles non sabem que xi van fazer; queren bon son e bo de dizer

    e os cantares fremosos e rimados.

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    E tod'aquesto mao de fazer a quen os sol fazer desiguados8..

    Neste cantar, como em alguns outros, estamos longe de um terreno interpretativo isento de equvocos e de dificuldades, mesmo no plano estritamente literal. A mais relevante dificuldade resulta, a nosso ver, da interpretao da quarta cobla, que aqui j de algum modo solucionada pela disposio da pontuao. Com efeito, a locuo a a refere-se aos trobadores e s molheres como um s, ou seja, em conjunto, e o sujeito de queren s pode ser os trobadores e as molheres, estando, naquele ponto, elidido por fora das circunstncias da versificao9.

    H porm outra ordem de dificuldades no to facilmente solucionveis, que se situam na compreenso da organizao retrica e argumentativa do texto10, por um lado, e na sua dimenso referencial, por outro.

    perceptvel que Martin Soares censura ferozmente um outro trovador, que faz cantares de amor, a quem todavia vai qualificando no como trovador mas sim como cavaleiro. Essa censura parece ter duas vertentes: uma, que se destaca sobretudo na fiinda, e que nos diz que o dito cavaleiro

    8 B 1357/ V 965. Esta composio ainda acompanhada, em ambos os cancioneiros, da

    seguinte epgrafe: Est'outro cantar fez de mal dizer a cavaleiro que cuidavan que trobava mui ben e que fazia mui bos sos e non era assi". 9 Seguimos neste ponto as opes assumidas pela nica edio integral da obra do trovador

    PIZZORUSSO, Le poesie di Martin Soares, p. 112 , contra a opinio de LAPA, Manuel Rodrigues, Cantigas D'Escarnho e de Mal Dizer dos cancioneiros medievais galego-portugueses, Coimbra, 1965, p. 433, cujo texto todavia adoptamos na generalidade. 10

    Embora a retrica da vituperatio no seja to familiar quanto a da laudatio, objecto de pginas notveis de CURTIUS, Ernst Robert, Literatura europea y Edad Media latina, 2 voll. (2 reimp.), Mexico, Madrid, Buenos-Aires,1976, o caso galego-portugus do escarnho e do mal dizer conta recentemente com abordagens de algum detalhe e profundidade, para alm, naturalmente, do conjunto de notas interpretativas de que Manuel Rodrigues Lapa fez acompanhar a sua monumental edio do corpus deste gnero. Salientamos OSRIO, Jorge Alves, Cantiga de Escarnho Galego-Portuguesa: Sociologia ou Potica, in Da Ctola ao Prelo. Estudos Sobre Literatura. Sculos XII-XVI, Porto, 1998, pp. 5-38; e, sobretudo, TAVANI, Giuseppe/LANCIANI, Giulia, A Cantiga de Escarnho e de Maldizer, Lisboa, 1998.

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    fazia os seus cantares desiguados, ou seja, no obedecendo s regras da isometria, dimenso que pode ser um pouco amplificada se assumirmos que esse cavaleiro infringiria tambm o bom modelo potico que esboado no final da mencionada cobla quarta: no faria bo son, nem bon de dizer, nem fremoso, nem mesmo rimado. Ou seja, as suas melodias seriam ms, os textos difceis de cantar, as cores de retrica11, responsveis pela beleza do discurso, no seriam devidamente utilizadas e, por ltimo, de acordo com o do contedo da fiinda, tambm a rima seria deficiente.

    Globalmente considerados, estes aspectos configuram uma reprovao da dimenso formal dos cantares do cavaleiro em questo. Todavia, na parte inicial do texto, antes mesmo de fazer referncia a qualquer um destes aspectos formais, o trovador vai reiteradamente declarando que o pblico ajustado a tais cantares seria constitudo por uma extensa e detalhada galeria de tudo o que cabe na designao social de vilo. Alis, a expresso mal avilastes os trobadores, presente na primeira cobla, serve de preldio a essa enumerao da condio simultaneamente vil e vil12 que, naturalmente, se configura como hiprbole escarninha quando tida como definidora do carcter do pblico desse cavaleiro-trovador.

    Seria unicamente essa impercia formal, explicitada na parte final do texto, a responsvel por os cantares desse cavaleiro se revelarem inadequados a mulheres e trovadores, que Martin Soares declara ser o pblico natural do cantar de um trovador? A alegao segundo a qual todos os outros trovadores deviam procurar por al servir sas senhores leva a pensar que tambm o

    11 Sobre as figuras do discurso e respectivo entendimento como cores, que autorizam a

    interpretao que fazemos do discurso formoso referido pelo poeta, e sobre a problemtica global do ornatus, consulte-se FARAL, Edmond, Les arts potiques du XIIe et du XIIIe sicle, Paris, 1971, pp. 49 e seg.. 12

    Sobre a convergncia significativa, em mbito trovadoresco, destes dois lexemas, ver VASCONCELOS, Carolina Michalis de, O Cancioneiro da Ajuda, 2 vol., Lisboa, 1904, p. 624.

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    contedo desses cantares de amor teria subvertido a linguagem trovadoresca, tornando-a inadequada para a expresso do servio, finalidade que Martin Soares lhe atribui.

    Ou seja, o tal cavaleiro faria cantares de amor formalmente estranhos, quer na palavra quer na msica, gramtica trovadoresca defendida por Martin Soares, e essa forma serviria ainda de suporte a um contedo que era visto como uma autntica vilania. Alguns crticos, particularmente esperanados de encontrar, no esplio galego-portugus conhecido, amostras de uma poesia no-trovadoresca e produzida, nesta poca, em meios populares, julgaram ver nos cantares deste cavaleiro a manifestao de tal poesia13. Mas tudo se encarrega de desmentir essa possibilidade de interpretao do texto.

    Em primeiro lugar, o promotor desses cantares era um cavaleiro, sendo de pr completamente de parte que em Martin Soares essa designao tivesse um sentido no-social, ou seja, meramente profissional. Tratava-se de um membro da aristocracia e, logo, um representante mais do que problemtico dessa poesia popular. Em segundo lugar, embora com deficincias formais e de contedo, os cantares de amor do cavaleiro so avaliados segundo os critrios da potica trovadoresca. S colocam em perigo a ordem potica da qual Martin Soares defensor exactamente porque emanam do seu seio e no do exterior.

    Por ltimo, os versos porque lhis cabe nas trombas vosso som;/ pera atambores ar dizen que non/ achan no mundoutros ses melhores revelam bem o estatuto paradoxal desta aproximao entre os cantares do cavaleiro e o seu imaginado pblico vilo, j que os instrumentos de elevada sonoridade, e

    13 Cfr. BRAGA, Teophilo, Histria da Litteratura Portugueza, Porto, 1909, p. 197; LAPA, M.

    Rodrigues, Das Origens da Poesia Lrica em Portugal na Idade Mdia, Lisboa, 1929, pp. 181-182; SARAIVA, A. Jos, Histria da Cultura em Portugal, I, Lisboa, 1950, p. 167.

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    at ruidosos, que seriam apreciados por esse pblico, eram totalmente desajustados execuo de um qualquer cantar de amor.

    A comparao do trovador/cavaleiro com algum cujo pblico seria vilo constitui assim um processo retrico de criao de uma situao inesperada, provocadora de estranhamento14, tanto mais criadora de repulsa e de reprovao no auditrio quanto a estrutura da amplificatio comparativa se faz com recurso hiprbole, semelhana do que se observa noutros cantares de escrnio de grande flego15.

    Concluindo, a aluso, neste contexto, a uma real poesia popular to provvel quanto a msica trovadoresca podia ser executada por trompas e tambores, ou seja, de maneira nenhuma16.

    Outro sector da crtica17, mais prudentemente confinado s imposies da lectio, pretendeu identificar o cavaleiro censurado com o SueirEanes que alvo da stira no s do mesmo Martin Soares, mas tambm de AfonsEanes do Coton e de Pero da Ponte. Pelos intervenientes, tal fresco satrico ter sido composto no squito castelhano do prncipe D. Afonso durante a dcada de 40 ou pouco antes18. De facto, esse trovador foi alvo dos reparos de Coton por

    14 Cf. LAUSBERG, Heinrich, Elementos de Retrica Literria, Lisboa, 1967, p. 90.

    15 A comparao hiprblica que faz sobressair uma forma de paradoxo est presente em

    textos to notveis quanto o Non me posseu pagar tanto, de Afonso X, com a particularidade de tambm a estar em causa a oposio entre o estatuto aristocrtico (o rei) e o vilo (o mercador) como topos desencadeador do estranhamento pretendido. 16

    Neste sentido vai tambm a interpretao de MENNDEZ PIDAL, Ramn, Poesa juglaresca y juglares, Madrid, 1942, pp. 38-39. 17

    Cfr. VASCONCELOS, O Cancioneiro, p. 651; PIZZORUSSO, Le poesie, pp. 113-114. 18

    Sobre o crculo que se reuniu em torno do jovem prncipe Afonso, filho de Fernando III, nos anos finais da dcada de trinta, ver o que dizemos em MIRANDA, Jos Carlos Ribeiro, Alfonsinos, Sicilianos e o Mundo Feudal do Ocidente Ibrico. Em busca da primeira gerao de trovadores galego-portugueses. A aguardar publicao nas Actas do Simposio "Na nosa

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    no trobar igual19, tendo Pero da Ponte optado, em trs cantares20, por escarnecer da sua impercia e at ingenuidade. Martin Soares, por seu lado, limitou-se a ridicularizar a fanfarronice por ele demonstrada, quando ter alegado que fora terra Santa, no se tendo, na realidade, sequer ausentado do reino21.

    O nico elo de ligao entre estes textos e aquele que temos presente , assim, a referncia ao no trobar igual, que constitui, alis, motivo corrente na stira trovadoresca22. Para alm de ser a nica vez, caso o visado fosse ele, que SueirEanes no se veria reiteradamente identificado pelo nome prprio, tambm verificvel que o presente cantar mobiliza, como vimos, uma pluralidade de dimenses na censura que dirigida ao cavaleiro que nada tem a ver com o perfil potico que atribudo a SueirEanes. Este pde ser facilmente posto a ridculo, dada a sua reduzida importncia; aquele vigorosamente insultado, na justa medida em que representa um srio atentado ordem potica da qual o trovador de Riba de Lima convicto guardio.

    Alm disso, o cavaleiro censurado por Martin Soares no est s, o que representa uma ameaa redobrada. Faz-se acompanhar de um bando com o qual parece constituir uma autntica fraternidade potica. Para tentar perceber a quem, e a que textos, se est a referir Martin Soares, necessrio que

    lyngoage galega. A emerxencia do galego como lingua escrita na Idade Media" (Santiago de Compostela, Novembro de 2005). 19

    Cfr. SueirEanes, un vosso cantar (B 1585/V 1117). 20

    So eles: SueirEanes, este trobador (B 1636/V 1170); De SueirEanes direi (B 1645/V 1179); SueirEanes, nunca eu terrei (B 1650/V 1184). 21

    Cfr. Pero non fui a Ultramar (B 143) 22

    Cfr. LANCIANI/TAVANI, A Cantiga de Escarnho, pp. 92 e seg., e ainda TAVANI, Giussepe, Tra Galiza e Provenza. Saggi sulla poesia medievale galego-portoghese, Roma, Carocci editore, 2002, pp. 84 e seg..

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    previamente tenhamos presentes algumas condicionantes de leitura do seu cantar.

    sabido que Pero da Ponte, num conhecido cantar de amigo, designou o elemento masculino que nele comparecia pelo termo escudeiro23, qualificativo de natureza social muito pouco frequente, alis, nestes poemas. Dirigindo-lhe um cantar de mal dizer em que alude a esse facto24, AfonsEanes de Coton dir-lhe-: foste-vos escudeiro chamar/num cantar que fezestes damor, o que nos permite, como sabido, perceber que o gnero cantar de amigo, nesta altura situamos estes textos na dcada de trinta, como se infere do que temos vindo a dizer no possua ainda uma designao especfica, como foi j notado,25 e que era entendido simplesmente como mais uma forma de cantar que tratava o tema do amor26. Ficamos ainda a saber que essa operao, praticada no cantar de amigo, que consistia em colocar a mulher como locutora principal, no anulava o princpio da identificao do trovador com um dos intervenientes no drama potico encenado. Apenas deixava de ser o que falava, para passar a identificar-se com aquele de quem se falava.

    Ora, retornando s crticas de Martin Soares, se questionarmos quem era o trovador que se auto-intitulava cavaleiro, cujos textos escapavam, por vezes, s regras da rima consoante e da medida igual dos versos, alm de

    23 Cfr. Vistes, madr,o escudeiro que mouvera a levar sigo? (B 831/V 417)

    24 Cfr. Pero da Pont, en un vosso cantar (B 969/V 556).

    25 Cfr. VASCONCELOS, O Cancioneiro, II, pp. 453-454; OLIVEIRA, A. Resende, "A Galiza e a

    Cultura Trovadoresca Peninsular", Revista da Histria das Ideias, Coimbra, 1989, p. 25. 26

    Provavelmente por oposio ao princpio do desamor que caracterizava o escrnio e o mal dizer. A polaridade "dizer mal/dizer bem", como princpio articulador da tipologia do discurso potico galego-portugus, est ainda bem presente num texto to tardio como o fragmento em prosa que encabea o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, conhecido como "Arte de Trovar". Cf. D'HEUR, Jean-Marie, "L' Art de trouver du Chansonnier Colocci-Brancuti. dition et analyse", Arquivos do Centro Cultural Portugus. Fundao Calouste Gulbenkian, IX, Paris, 1975, pp. 321-398; TAVANI, Giuseppe, Arte de trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa, Lisboa, Colibri, 1999. Sobre o assunto, ver OSRIO, "Cantiga de Escarnho", p. 9.

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    possurem uma estrutura versificatria bem diversa das praticadas por este trovador com o que isso poder ter significado no plano da execuo cantada e da forma retrica e meldica , textos que, alm disso, se emancipavam das regras mais elementares do servio de amor, vamos dar directamente a Fernan Rodrigues de Calheiros, ao seu cancioneiro de amigo e, sobretudo, ao mais emblemtico dos poemas que o compem, aquele a que temos atribudo a designao Cantar do Cavaleiro:

    Madre, passou per aqui un cavaleiro e leixou-me namorad'e com marteiro;

    ai, madre, os seus amores ei ! Se me los ei,

    ca mi os busquei, outros me lhe dei;

    ai, madre, os seus amores ei!

    Madre, passou por aqui un filho d'algo e leixou-m'assi penada com'eu ando;

    ai, madre, os seus amores ei! Se me los ei,

    ca mi os busquei, outros me lhe dei;

    ai, madre, os seus amores ei!

    Madre, passou per aqui quen non passasse e leixou-m'assi penada, mais leixasse;

    ai, madre, os seus amores ei! Se me los ei,

    ca mi os busquei, outros me lhe dei;

    ai, madre, os seus amores ei!27

    27 B 632/ V 233

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    Em comunicao que apresentmos em 1994 ao V Colquio Galaico-Minhoto28 tivemos a oportunidade de defender que o cantar de amigo surgiu no contexto trovadoresco e, provavelmente, surgiu em absoluto da colaborao entre trs poetas, dois deles trovadores29 Calheiros e Vasco Praga de Sandim e um outro, jogral30 Bernal de Bonaval , e ainda que tal ter ocorrido entre 1223 e 1229 num palco de fronteira entre a Galiza e Portugal, situado entre Toronho a norte e as terras de Riba de Lima a sul. Pareceu-nos ento que e continuamos a afirm-lo , pela consistncia e intencionalidade dos textos que os trs apresentam, ter sido Fernan Rodrigues de Calheiros o grande promotor desta experincia potica, que se caracterizou pela abertura de um espao imaginrio que rompia com a doutrina da vassalagem de amor tpica dos cantares de amor. Lembremos que, semelhana do que se passava na cultura trovadoresca europeia, tambm entre ns esta disciplina potica implicava um princpio de sujeio e resignao do homem perante a mulher ausente, funcionando como disciplina imposta aos jovens membros da aristocracia nobre, visando a domesticao do mpeto e turbulncia de que frequentemente davam mostras31.

    28 Ver o nosso j atrs mencionado Calheiros, Sandim e Bonaval: uma rapsdia de amigo,

    agora em GUARECER on-line, Dezembro de 2007. 29

    Relembre-se que, ao contrrio do que sucedia em mbito occitnico (ver MIRANDA, Jos Carlos Ribeiro, Da finamors como representao da sociedade aristocrtica occitnica, in Amar de Novo. Participaes no Ciclo de Conferncias da Associao de Professores de Filosofia, Porto, 2005, pp.123-150), trovador uma designao que se aplica, na rea galego-portuguesa, unicamente a cavaleiros de linhagem. Sobre este assunto, ver OLIVEIRA, Antnio Resende, O Trovador galego-portugus e o seu mundo, Lisboa, 2001, pp. 15-22. 30

    Em rigor, segrel. Sobre esta designao, ver OLIVEIRA, Antnio Resende, Segrel, in Dicionrio da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, dir. LANCIANI, Giulia/TAVANI, Giuseppe, Lisboa, 1993. 31

    Cfr. KHLER, Erich, "Observations historiques et sociologiques sur la posie des troubadours", Cahiers de Civilisation Mdivale, VII (1964), pp. 27-51, e ainda o notvel conjunto de ensaios reunidos em Sociologia della finamor. Saggi trobadorici, Padova, 1976; DUBY, Georges, Mle Moyen ge. De lAmour et autres essais, Paris, 1988, pp. 34 e seg..

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    De facto, lidos estes primeiros cantares de amigo com a necessria ateno, verificamos que neles consistente um princpio de devoluo ao homem da supremacia sobre a mulher, quando no mesmo de autntica arrogncia masculina face a um mundo feminino que apresentado sem reservas e sem defesas. A omisso do vocabulrio, dos motivos e das situaes que no cantar de amor davam corpo vassalagem do homem prestada mulher total e completa, configurando uma autntica subverso daquilo que era o imaginrio potico institudo at ento, em sintonia com um imaginrio social que, por seu lado, ajudara a fermentar e a conformar32.

    O pequeno cantar acima transcrito, aquele que mais directamente ter motivado as duras recriminaes de Martin Soares, , alis, disso bom exemplo, sem precisar de detalhado enquadramento hermenutico. O eco que veio a ter, espelhado tambm no atrs mencionado poema de Pero da Ponte, onde este trovador substitui o termo-chave cavaleiro por escudeiro, confirma ainda a ideia que adiantmos, segundo a qual esse por ns designado "Cantar do Cavaleiro" ocupava uma posio de exrdio do cancioneiro de amigo de Calheiros, como se de um verdadeiro manifesto potico se tratasse33, de tal modo as ideias fundamentais que percorrem o conjunto desse cancioneiro l esto j presentes. Ora a inteno de ruptura com a ordem potica estabelecida, encetada por Calheiros, revela-se tambm no plano formal, pelo recurso sistemtico ao dstico monrrimo com refro, ocasional rima toante (2 cobla do "Cantar do

    32 Cfr. OLIVEIRA, A.Resende/MIRANDA, J.Carlos, "A Segunda Gerao de Trovadores

    Galego-Portugueses: Temas, formas e realidades", in Medioevo y literatura. Actas del V congreso da la Asociacin Hispnica de Literatura Medieval, vol. III, Granada, 1995, pp. 499-512; e ainda IDEM, Le surgissement de la culture troubadouresque dans l'occident da la Pninsule Ibrique. I-II, in Le rayonnement des troubadours. Actes du Colloque de lAssociation Internationale dtudes Occitanes, Amsterdam, Rodopi, 1998, pp. 85-95 e 97-105. 33

    Sobre a funo dos textos guia ou textos fundadores para a definio do gnero a que pertencem, ver LANCIANI/TAVANI, A Cantiga de Escarnho, p. 17.

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    cavaleiro": algo/ando), e ao verso longo e cesurado, mais prprio da tradio narrativa pica do que do preciosismo formal trovadoresco34. H ainda alguns casos em que no passa despercebida alguma flutuao mtrica, que se vir a tornar corrente na deriva do gnero que mais de perto assumir a herana destes fundadores35. Por outro lado, como sabemos h muito, estas condicionantes formais impem um perfil especfico s opes retricas e discursivas, acentuando as tendncias iterativas que a potica galego-portuguesa comporta desde os primrdios36. Cremos que esta descrio dos processos poticos utilizados por Calheiros nos seus cantares de amigo37 no poderia caber melhor na crtica de natureza formal contida no texto de Martin Soares. Mas sobretudo a ruptura com a disciplina corts do servio de amor que exaspera este trovador e que o faz lanar a pesada acusao de vilania, traduzida na vistosa enumerao dos estados plebeus que se poderiam rever na nova doutrina potica que o trovador no entendia ou que, entendendo, no aceitava de todo. A sua opo foi consistente e radical ao longo da sua vida, traduzindo-se na recusa do cantar de amigo, qualquer que fosse a sua formulao. Teve com ele, alis, inmeros trovadores da segunda gerao, tais como Joo Soares de Valadares, o Somesso, que se mantiveram tambm afastados do gnero.

    34 Opo presente em dois textos: Direi-vos agora amigo, tamanho tempa passado (B 629/ V

    230), e Disse-mi a mi meu amigo, quando sora foi sa via (B 632/V 234). 35

    Tal flutuao detectvel em Estava meu amigatendende chegou (B 631/V 232) e ainda em Direi-vos agor'amigo, tamanho temp'a passado (B 632/V 233). Sobre estes aspectos de potica formal e respectivo significado, veja-se FERREIRA, M. do Rosrio, Paralelismo perfeito: uma sobrevivncia pr-trovadoresca?, in Figura, Edio da Universidade do Algarve, Faro, 2001, pp. 293-309. 36

    Cfr. ASENSIO, Eugenio, Potica y Realidad en el Cancionero Peninsular de la Edad Mdia, Madrid, 1970 (2 ed.), pp. 69-133. 37

    Uma abordagem mais detalhada da potica formal dos cantares de amigo da fase inicial e respectivo significado ser por ns levada a cabo em Os Versos dos Fundadores. De novo Calheiros, Sandim e Bonaval, a publicar brevemente em Guarecer on-line.

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    A ser assim, estamos, portanto, perante uma tempor manifestao de recepo activa do cantar de amigo da fase inicial, que se traduz numa sonora rejeio. Se a cronologia por ns proposta para a produo dos primeiros cantares de amigo for aceitvel, ento ser necessrio datar este texto dos anos finais da dcada de 122038. Em todo o caso, se mais recente, no muito longe desses anos39.

    Porqu esta oposio to radical entre dois trovadores, ou entre dois grupos de trovadores, que parece manifestar-se no reino de Portugal pelo final dos anos vinte e ao longo da dcada de trinta do sc. XIII? Haveria um to grande afastamento ideolgico entre eles, a ponto de motivar to empoladas invectivas? A resposta a esta questo obriga-nos a ponderar alguns dados histricos conhecidos no sentido de tentar perceber que coerncia possui a respectiva ponderao. sabido que o ambiente vivido no seio da nobreza portuguesa um dos suportes, a par com a nobreza galega, da implantao ocidental da poesia trovadoresca em galego-portugus se definia por uma profunda ciso em dois blocos, situao cuja origem remontava provavelmente aos ltimos

    38 lgico acreditar que deva ser algo posterior ao Pois boas donas som desemparadas

    onde, embora com referncia a uma situao concreta, igualmente condenado um comportamento que viola as normas da conteno masculina face mulher desejada, a classificado como "rousso". A relao entre a encenao do "rousso" da mulher e o surgimento dos cantares de amigo , todavia, assunto que esperamos desenvolver brevemente em sede prpria. 39

    Como se compreende, a datao de textos deste tipo, mesmo quando possuidores de alguma referencialidade, incerta e apoiada em hipteses argumentativas que se vo afinando medida que progride o processo de averiguao global de todos os planos em que possvel situ-las. Perante o exposto, dentro do limite cronolgico que avanmos para o surgimento dos primeiros cantares de amigo 1223 a 1229 (cfr. MIRANDA, Calheiros, p.8) ser de preferir os anos mais recentes, j que se conformam melhor com a proximidade implcita no apenas no carcter polmico do presente texto, mas tambm no atrs mencionado poema de Pero da Ponte (B 831/V 417), cuja relao intertextual com o "Cantar do Cavaleiro" por demais evidente.

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    tempos do reinado de Afonso Henriques, e regncia do seu filho Sancho. De um lado, a poderosa linhagem dos Souses, que ento emerge e atinge a supremacia no reino durante um longo perodo, mas que se veio a encontrar arredada das esferas do poder rgio durante boa parte da dcada de 1210 a 1220. Activa no apoio rebelio das infantas contra o rei Afonso II, retorna a uma posio de influncia durante a menoridade de D. Sancho II. No lhe faltavam apoios, a comear pelos infantes, filhos legtimos ou bastardos de D. Sancho I, prolongando-se por algumas linhagens a que se tinha aliado e a outras mais pequenas que lhe deviam fidelidade. tambm conhecida a ligao desta linhagem a Toronho40, na poca que estamos a considerar, e tambm linhagem galega de Lima, com a qual troca alianas matrimoniais.

    notvel como o mundo trovadoresco reflecte este alinhamento. Com efeito, ao longo dos anos vinte sobressai a figura de Garcia Mendes, talvez o mais importante dos Souses no apoio a trovadores, ele prprio tambm poeta, embora ocasional, figura qual se vem juntar um infante-trovador, Gil Sanches, e pequenos cavaleiros aguerridos, como Rui Gomes de Briteiros. Fernan Rodrigues de Calheiros tambm um destes pequenos cavaleiros e o seu bando em parte coincidiria certamente com a mesnada dos Souses. Do outro lado, h os que se lhes opem, pelo menos na fase que estamos a considerar. Liderados pela linhagem dos Soverosa, secundada por outras linhagens, como Valadares, Nvoa e at Riba de Vizela, apoiaram o partido rgio nos conturbados tempos de Afonso II. Embora durante a menoridade de D. Sancho II (1223-1228) as tenses se tenham atenuado, o desastre de Elvas

    40 Um panorama actualizado sobre os incios do trovadorismo galego-portugus pode ler-se em

    MIRANDA, Jos Carlos Ribeiro, Aurs mesclatz ab argen. Sobre a primeira gerao de trovadores galego-portugueses, Porto, 2004.

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    em 122641 marca um retorno do conflito aberto, com o afastamento dos Souses da esfera do poder rgio, a que se seguir mesmo, por parte de alguns dos seus membros, um abandono do pas em conjunto com o poderoso infante Pedro Sanches42. Como sabido, desde ento at guerra civil de 1245 a situao ir-se- progressivamente degradando43. Entre os que se alinham contra os Souses esto naturalmente o senhor de Parada e o trovador Martin Soares. A cultura trovadoresca tambm nestes meios ganhou adeptos, no s como manifestao de prestgio e superioridade, mas tambm como a poderosa arma de ataque que os textos podem documentar. Um ponto importante do exacerbar de tenses entre estes dois grupos ter ocorrido quando os Souses fecham os olhos perante o "rapto", levado a cabo por Rui Gomes de Briteiros, de Elvira Anes da Maia, jovem filha de Joo Peres da Maia e de Guiomar Mendes de Sousa, guarda da linhagem materna devido morte do pai, o ltimo senhor da Maia. Como j tivemos oportunidade de indicar noutro local44, Martin Soares ento chamado a interpretar uma reprovao do dito "rapto" e do consentimento da linhagem que no apenas dele mas sim de todo o grupo da nobreza hostil aos Souses. Fora um acto de indisciplina social e como tal ter sido severamente recusado.

    Pelo que pudemos entender a partir da leitura que propusemos do texto de Martin Soares, provavelmente pela mesma altura ter-se- o trovador de Riba de Lima confrontado com outro acto de rebeldia proveniente exactamente

    41 Cfr. FERNANDES, Hermenegildo, D. Sancho II, Lisboa, Crculo de Leitores, 2005, pp. 148-

    154; SERRO, Joel/ MARQUES, A.H. (dir), Nova Histria de Portugal, vol.III, Lisboa, 1996, p. 108.

    42 Cfr. PIZARRO, Jos Augusto, Linhagens Medievais Portuguesas, I, Porto, 1999, p. 222.

    43 Cfr. MATTOSO, Jos, "A Crise de 1245", in Portugal Medieval. Novas Interpretaes, Lisboa,

    1985, pp. 57-75. 44

    Cf. MIRANDA, Os Trovadores e a Regio do Porto: (II) Pois bas donas...", pp. 375-381.

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    dos mesmos meios, mas desta vez rebeldia de natureza potica, subverso do imaginrio, na forma dos primeiros cantares de amigo. A reaco foi a que observmos. Sendo grande a percia do trovador na manobra da retrica do vituprio, pensamos todavia que a contundncia que o texto ostenta, na oposio ao esprito do novo imaginrio potico institudo nesses textos, no seria a mesma se no fosse o pano de fundo constitudo pela acentuada conflitualidade vivida no seio da nobreza portuguesa no qual essa oposio se inscreve.

    Jos Carlos Ribeiro Miranda Universidade do Porto

    Maro de 1999/ Dezembro de 2007