José Aurélio

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José Aurélio “A escultura é um acto de fé. São precisos muitos anos (…) Até o pequeno objecto tem um tempo de fazer que envolve toda uma série de processos que criam situações difíceis porque durante a execução já estou noutra...” 1 A obra de José Aurélio elabora uma compreensão profunda da heterogeneidade de linguagens na escultura contemporânea em Portugal. Reencontra-lhes uma coerência plural, ainda que singularizando momentos e séries, onde se incluem simultaneamente figuração e abstração, informalismo e geometrismo, simbologias e sinaléticas, conceptualismo e objetualidade, donde não se encontra isenta a ironia, o onírico ou o sentido de absurdo inteligente. A versatilidade demonstrada através dos inúmeros desafios cumpridos — na expressão frequente de trabalhos tridimensionais de índole e função várias — reconhece-o como um escultor crítico e empenhado na reconversão de valores plásticos e no desbloqueamento de estipulações estéticas. A diretriz avançada para o desenvolvimento das peças fundamenta-se no exercício da imaginação, relacionada à atenta observação das coisas, ao questionamento de ideias e convicções, pretendendo o escultor responder às circunstâncias e vivências societárias mais prementes, nomeadamente quanto envolve a implantação de esculturas em espaços públicos. Durante um período significativo, José Aurélio estreitou laços com o concelho de Santa Maria da Feira, manifesta a presença de obras em locais mapeados e que agora se revêm nas maquettes, esbocetos e peças apresentadas na exposição. O trajeto de visitação às suas peças de inscrição pública desenvolve-se, culminando num confronto de conciliação com o 1 José Aurélio entrevistado por Rocha de Sousa, Catálogo Exposição Galeria Municipal de Arte, Almada, 1989, p.13

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Texto Catálogo Museu de Sta. Maria da Feira (Portugal)

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José Aurélio

“A escultura é um acto de fé. São precisos muitos anos (…) Até o

pequeno objecto tem um tempo de fazer que envolve toda uma série

de processos que criam situações difíceis porque durante a execução

já estou noutra...”1

A obra de José Aurélio elabora uma compreensão profunda da

heterogeneidade de linguagens na escultura contemporânea em Portugal.

Reencontra-lhes uma coerência plural, ainda que singularizando momentos

e séries, onde se incluem simultaneamente figuração e abstração,

informalismo e geometrismo, simbologias e sinaléticas, conceptualismo e

objetualidade, donde não se encontra isenta a ironia, o onírico ou o sentido

de absurdo inteligente.

A versatilidade demonstrada através dos inúmeros desafios cumpridos —

na expressão frequente de trabalhos tridimensionais de índole e função

várias — reconhece-o como um escultor crítico e empenhado na

reconversão de valores plásticos e no desbloqueamento de estipulações

estéticas. A diretriz avançada para o desenvolvimento das peças

fundamenta-se no exercício da imaginação, relacionada à atenta observação

das coisas, ao questionamento de ideias e convicções, pretendendo o

escultor responder às circunstâncias e vivências societárias mais prementes,

nomeadamente quanto envolve a implantação de esculturas em espaços

públicos.

Durante um período significativo, José Aurélio estreitou laços com o

concelho de Santa Maria da Feira, manifesta a presença de obras em locais

mapeados e que agora se revêm nas maquettes, esbocetos e peças

apresentadas na exposição. O trajeto de visitação às suas peças de inscrição

pública desenvolve-se, culminando num confronto de conciliação com o 1 José Aurélio entrevistado por Rocha de Sousa, Catálogo Exposição Galeria Municipal de Arte, Almada,

1989, p.13

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meio envolvente. A relacionalidades resolvida das obras com as

circunstâncias morfológicas e a aferição de conteúdos semânticos é

denotativa de um equilíbrio, ao qual o escultor nos habituou.

Sem pretender abordar todas as peças em exposição e em percurso pelo

Concelho, assinalo e sistematizo algumas, destacando as figuras de cariz

religioso e/ou ontológico:

Nossa Senhora do Tempo (destinada a ser colocada na Igreja da

padroeira que se prevê seja construída) e que acolheria em lugar

cimeiro o Resplendor – do qual se apresentam, nesta exposição,

vários estudos e maquette;

Pietá, demonstrativa de uma expressividade que atinge uma

dimensão simbólica e de sublimidade;

Humus, a esfera com 31 gomos – alusivos às freguesias de Santa

Maria da Feira - e que considero ser uma obra de síntese superior,

reunindo os elementos “matriciais” na sobranceria do espelho de

água.

Por outro lado, a incidência de remissão antropológica-simbólica converge

em Régua do Tempo, consignando uma nova alusão à dimensão do humano

e simbólico, desenvolvido o conceito a partir de um objeto que reúne

similitude às “medidas-padrão”. Essa conjugação de aceções de tempo,

enquanto múltiplo e sobreposicional, é celebrado pelo autor, mediante a

escolha de figuras paradigmáticas no mapa das gerações literárias da

nacionalidade: Camões (estudo e maquette), Manuel Laranjeira - o escritor

amigo de Amadeo de Souza-Cardoso, cúmplice doloroso do Modernismo

Português, convergindo para a memória de Fernando Pessoa, num

hieratismo, singelo e existencial.

A genuinidade do olhar do escultor, enquanto humanista, está subsumida

nos estudos e peça alusiva à emblemática de Antoine de Saint-Exupéry –

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Principezinho, num desenvolvimento narrativo que acompanha todos os

tempos e memórias.

A criação, seu pensamento e atuação subjazem à peça Erótica, onde a

sinuosidade e volúpia circunscrevem a carne e espessura que o

tridimensional suscita à perceção visual – na sua condição sinestésica do

táctil.

Um percurso empreendido, que nos conduz desde localizações em

proximidade de acesso/saída da Auto-estrada, passando pela implantação

em Rotundas e/ou situações privilegiadas na malha urbana, permite-nos

discernir as linhas orientadoras da conceção teórica que fundamentam as

suas criações. A linearidade volumétrica concilia a leveza e recorte

abstracionalizados no espaço; a voluptuosidade metálica conformadora de

situações surrealizantes e de certa fantasmagoria; a articulação cinética das

formas quase que em suspensão; a enfatização do geometrismo, associada à

exploração dos materiais com mestria, define um estilo bem

individualizado.

A escultura de José Aurélio obriga a um resituacionar de evocações

originárias imprescindíveis, pois o trabalho plástico se unifica às intenções

exigidas por uma estética de ordem matérica e telúrica — edificação e

criação. Relembre-se quanto a abordagem de mitos e símbolos da história

proporcionou a reinterpretação tridimensionalizada de protagonistas ou de

acontecimentos que alcançaram ser substância do imaginário coletivo (e

público): A Padeira de Aljubarrota, Monumento a Humberto Delgado,

Origens de Porto de Mós...

Os valores artísticos e estéticos, patentes nas peças de sustentação

tridimensional, são igualmente transmitidos nas realizações temáticas no

âmbito da medalhística. Quer no tratamento de peças de grande dimensão,

quer na acuidade prestada aos trabalhos mais minuciosos e detalhados, o

rigor e a inventividade são traços nítidos da sua frontalidade. A capacidade

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final para resituar os temas - quer em termos representativos, quer quando

na sua ausência explícita - e a configuração de significações múltiplas que

lhes estão associadas, resulta de uma síntese dos tempos, da convivência

dos elementos mais arcaicos com a especulação poética das coisas - dos

objetos autónomos - no mundo.

Maria de Fátima Lambert

Museu de Santa Maria da Feira - 2015