Jos de Mesquita · II Os caminhos do coração 75 Cap. III Ricardinho 81 Cap. IV Um amante...

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José de Mesquita Do Instituto Histórico e da Academia Mattogrossense de Letras P P i i e e d d a a d d e e R R o o m m a a n n c c e e Color d'amore, e di pietá sembianti, Non preser mai cosi mirabilmente Viso di donna, e per vider sovente Occhi gentili e dolorosi pianti. (Dante — La Vita Nuova, XXXVII) ESCOLAS PROFISSIONAIS SALESIANAS CUIABÁ 1937 JOSÉ DE MESQUITA 2 José Barnabé de Mesquita (*10/03/1892 22/06/1961) Cuiabá - Mato Grosso Biblioteca Virtual José de Mesquita http://www.jmesquita.brtdata.com.br/bvjmesquita.htm

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José de Mesquita Do Instituto Histórico e da Academia

Mattogrossense de Letras

PPiieeddaaddee

RRoommaannccee

Color d'amore, e di pietá sembianti, Non preser mai cosi mirabilmente Viso di donna, e per vider sovente Occhi gentili e dolorosi pianti.

(Dante — La Vita Nuova, XXXVII)

ESCOLAS PROFISSIONAIS SALESIANAS CUIABÁ

1937

JOSÉ DE MESQUITA

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José Barnabé de Mesquita

(*10/03/1892 †22/06/1961) Cuiabá - Mato Grosso

Biblioteca Virtual José de Mesquita

http://www.jmesquita.brtdata.com.br/bvjmesquita.htm

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SEGUNDA PARTE Cap. I Luz que se apaga 71 Cap. II Os caminhos do coração 75 Cap. III Ricardinho 81 Cap. IV Um amante platônico 86 Cap. V Visita ao cemitério 94 Cap. VI Inquietude 102 Cap. VII Um Caso de loucura 106 Cap. VIII Começo de crise 112 Cap. IX Amor de Piedade 118 Cap. X A crise 124

TERCEIRA PARTE Cap. I A rival 133 Cap. II Nuvens no azul 140 Cap. III Lua de mel 145 Cap. IV Primeiras sombras 151 Cap. V Uma reunião elegante 157 Cap. VI Capricho vencedor 163 Cap. VII Veranico 169 Cap. VIII Noticias da sociedade 176 Cap. IX A piedade 183 Cap. X Ao toque do ângelus 191

ÍNDICE

PRIMEIRA PARTE Cap. I Manhã perdida 7Cap. II Mãe Roberta 10Cap. III Noite em branco 16Cap. IV A confissão de Álvaro 21Cap. V “Flôr das morenas" 27Cap. VI Nas touradas 38Cap. VII A viuvinha 43Cap. VIII Festa de núpcias 50Cap. IX Amor à antiga 58Cap. X Planos sobre planos 64

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A AFONSO COSTA e

CRISTOVÃO DE CAMARGO PPRRIIMMEEIIRRAA PPAARRTTEE amigos e confrades

O.D.C.

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bafado. Subiu, quasi correndo, a velha escada de madeira, gasta e escurecida pelo tempo, e ao empurrar a porta, deu com o Cardozo, o velho solicitador, e o seu primo Léo, que o aguardavam. Dispunha-se a sentar se, quando o primo lhe perguntou si não sabia ainda o que havia acontecido.

— Que foi? indagou, calmo, mas ao notar a

feição grave do Léo, uma idéa lhe veio, repentina:

— A Glorinha morreu? Sabia-a bem doente, a sua prima, e dali o

rebate súbito que lhe viera nesse instante.

CCAAPPIITTUULLOO II —Não, respondeu Léo, quem morreu foi mãe Roberta.

MMaannhhãã ppeerrddiiddaa — Mãe Roberta? Mas, como? Ainda esta noite estava boa, conversando na sala de jantar.

PAULO deixara, mais cedo que de costume, o conforto da casa pelos trabalhos do gabinete, pois estava resolvido a liquidar, nesse dia, a encantada questão da concordata do Freitas. Ao passar em frente ao portão do major Assis, viu os pequenos brincando e deu-lhes uns caramelos, como era de seu hábito. Menos de nove horas, já o sol ardente punha fulgurações vivas de luz nas pedras da calçada e crispações súbitas nos nervos, dando a impressão de um dia tórrido e a-

— Pois morreu esta manhã. Morte repentina... Logo depois que tomou o guaraná, cedo como era seu costume, começou a sentir-se mal... uma apoplexia quasi fulminante.

Paulo, já de pé, visivelmente nervoso, endireitando a gravata, exclamou:

— Que desastre! Eu vou até lá, preciso vê-la... Si vocês quiserem podem ficar, ou então Pobre mãe Roberta! E Glorinha já sabe?

— Não era possível ocultar-lhe... Você bem vê, ali, na mesma casa...

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— Que desastre! repetiu Paulo, fechando a pasta, de que retirara um maço de papeis para entregar ao Cardozo.

— Si vier o André, o Andrézinho, sabe? você lhe dê estes papeis, dizendo-lhe que hoje não me é possível tratar de nada... Mas pode assegurar-lhe que o seu caso vai bem encaminhado.

Já falei ao Curador, que está concorde. E adeusinho. Quando vocês quiserem descer é só avisar o Nazario na porta que feche o gabinete.

CCAAPPIITTUULLOO IIII

MMããee RRoobbeerrttaa — Eu vou com você, disse Léo. Pelo

caminho, continuou Paulo indagando as circunstancias da morte inopinada, a impressão produzida nas pessoas de casa e as providencias tomadas para o enterro, que seria no dia seguinte, cedo, pois mãe Roberta sempre dissera que queria passar uma noite em casa, depois que morresse e, assim, seria satisfeito o seu desejo.

MÃE ROBERTA ainda estava no seu

quarto, já trazendo o vestido preto de gorgurão, enfeitado de vidrilhos, à espera que a removessem para a sala onde se armava a câmara ardente. Na sala de jantar, D. Francisca, tia de Paulo, contava a umas visitas as passagens dessa manhã. O moço cumprimentou-as e acompanhado das primas Regina e Ercilia, dirigiu-se ao quarto da velha ama, no interior da casa. A porta quedou-se um momento como hesitando. Estava a defunta estendida no seu leito de madeira em que dormira ainda essa noite e estampava-se-lhe no rosto o vinco da agonia, que fôra curta, mas dolorosa. Junto, Maria da Piedade, segunda filha de D. Francisca, compunha, caridosamente, umas flores em dois jarros so-

Quando chegaram à porta de casa, Paulo inquiriu si Alvaro, seu irmão, já tinha sido a. visado.

— Mandamos lá, mas só encontraram a Naninha. Alvaro estava no serviço... Trabalha agora em dois expedientes, para ver si ganha mais um pouco. E enquanto Léo descia a rua, Paulo, a passos rápidos, galgou a escadinha da entrada e penetrou no corredor amplo e sombrio do velho casarão dos Monteiros.

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bre o velho toucador preto e ao ver o primo voltou-se para saudá-lo. Entreolharam-se todos silenciosos, como si não achassem uma palavra a dizer nesse instante. O quarto de mãe Roberta, como era chamado, ficava no fundo do corredor comprido que partia da sala de jantar e ia terminar na cozinha. Espaçoso e com duas portas que se abriam para o terreiro ajardinado, confinava-se com a vasta dispensa cheia de tulhas e que servia, ao mesmo tempo, de depósito do mobiliario antigo, que se ia aposentando do serviço por invalidez irreparável. Enchia-se o quarto de mil cousas de uso da velha ama—canastras vetustas, de couro negro com incrustações que traziam, em metal, os nomes dos proprietários, banquetas e mochos, uma arca de pau, enorme, um tear, com os seus pertences, e, sobre a mesa tosca de pinho, ao canto, o oratório grande, de vidraça, com uma grande imagem de S. João, que era uma perfeição, legado da Sinhá-Grande, à mãe das "meninas", que era como mãe Roberta tratara toda a vida D. Francisca e D. Carlota, a mãe de Paulo.

as sementes de melancia para fazer orchata e mais um mundo de causas pequeninas espalhadas pelos cantos, em cima das canastras e dos tamboretes — os seus "badulaques” como costumava dizer a velha preta, referindo-se chistosamente aos mesmos.

Paulo circunvagava os olhos contristados por tudo, com a impressão dolorosa de acabamento e dispersão que deixa a morte de uma pessôa querida, quando olhamos o centro de sua vida, o seu lugar habitual de trabalho, abandonado e deserto... Nunca mais ali viriam, por certo, escutar as historias interessantes de mãe Roberta, consultá-la a cerca do tempo, que a velha tão bem conhecia pela experiência e pelo seu "Lunario Perpetuo" que, em sóbria e rija encadernação de couro, à portuguesa, se alinhava junto das "Horas Marianas", constituindo a sua livraria, bastante para satisfazer — ó feliz mãe-preta! — todo o seu anseio e curiosidade do temporal e do espiritual. Não mais lhe seria dado e aos primos, assistir aos curiosos serões, vendo a boa velha fazer os seus mataimes ou bilros, ou preparar os saborosos cuscús, o aluá refrigerante com que os regalava nos dias de festa na família! E viam-na, muito limpa, muito alegre, o seio de ébano a reluzir sob a ombreira da camisa, como era seu costume ficar nas horas abrazadas da sesta, a saia de roda, de uma velha fazenda de florões, o "ben-

Pelas paredes viam-se outros "registros" de santos e sobre a mesa, a par de peças de trabalho, como o crivo, os bastidores, os fusos, achavam-se ainda um urú cheio de miudezas, a grosa, o copinho facetado de guaraná, com a colherinha de prata, um pacará de abanar

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tinho" do Carmo ao pescoço e os brincos de longos pingentes às orelhas... Tudo passado! Tudo acabado e para sempre! Novamente se entrefitaram os primos. Ercilia, a mais nova, a que a idade fazia mais toleráveis as feridas da alma, deu-se pressa em levantar-se e ir ver na sala os preparativos fúnebres. Paulo ficou largo tempo, entre as duas primas, a olhar a morta querida. Mãe Roberta era a pessôa mais velha da casa e, por assim dizer, encarnava as mais caroáveis tradições familiares. Fôra-lhes, desde a infância, a companheira de todos os dias, a que lhes contava as historias da carochinha e de "quando Nosso Senhor andava pelo mundo", a que os levava às esmolas do Divino, às procissões e às touradas, a que, mesmo depois de crescidos, continuara a chamar-lhes "minhas crianças" e "meus neguinhos"...

nha vivido. Falava com enternecida saudade de Sinhô-velho dos moços, — como soía chamar os maridos de D. Francisca e D. Carlota e da casa grande do "engenho", onde passaram muitas temporadas, antes das meninas se casarem e virem para a cidade. Ninguém como a velha ama saberia relatar, com extranha minudencia, cousas passadas ha muito tempo, quando o velho "engenho", cheio de escravos, era um foco permanente de alegria e de trabalho. Hoje, pobre tapera abandonada, na zona deserta da "Serra acima", que a decadência lenta invadira e empolgara, lá estava, a mostrar nos esqueletos do madeiramento e nos velhos muros carcomidos, escondidos quasi entre as lixeiras e as goiabeiras silvestres, todo um período de grandeza e esplendor passado! Paulo, sobretudo, aprazia-lhe ouvir as narrativas da velha ama e provocava-lhe a memória, para despertar um ou outro episodio antigo, que ia notando, sofregamente, no seu caderno, armazenando assim elementos para a sua grande obra — um estudo de costumes e revivescência de antanho, que pretendia escrever. E era-lhe um prazer enorme. Alí no quartinho humilde de mãe Roberta, escutara-lhe os recantos singelos que a preta lhe fazia no tempo antigo, na velha intimidade de família, ao lado dos primos, entre exclamações de espanto ou de tristeza, como outrora quando lhes narrava, em criança, as com-

Tendo criado D. Francisca e a mãe de Paulo, viera ainda a criar lhes os filhos, pois vivêra repartindo-se entre as duas casas, até quando D. Carlota convolára a novas núpcias, indo residir no "sitio" distante. Paulo, afim de continuar os estudos, ficara com os Monteiros, até seguir para o Rio, a matricular-se na Escola de Direito. Mãe Roberta era bem o traço de união, vivo e constante, entre as duas famílias. A sua memória, boa mau grado a idade, conservava, fiel como uma placa de retratista, toda a vida passada da casa, onde nascera e ti-

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plicadas historias do "príncipe dormidante", da "moura torta" ou da "Branca de Neve"...

— Pobre mãe Roberta! exclamou Regina, para romper o silencio que se tornava angustioso.

Quem o poderia pensar? Ainda esta noite estive aqui...

— Hoje de manhã ainda falou em você, disse Piedade. Sabe o que foi? A respeito do que você disse de titia Carlota.

Ah! fez Paulo, como abstraído. E mamãe que vai ter um choque quando souber. Será melhor escrever-lhe, não acha?

CCAAPPIITTUULLOO IIIIII

NNooiittee eemm bbrraannccoo — É, ponderou Regina. Um aviso assim, de

chofre, pode assustá-la... DURANTE a noite Paulo não dormiu um só

minuto, apesar das instantes ponderações da tia e das primas que lhe faziam ver a conveniência, ao menos, de repousar por algum tempo. Deixou-se estar na sala, sentado a uma cadeira de balanço, velando o cadáver. Ouvia donde estava todos os rumores da casa, os mínimos incidentes do triste velório. Impressionava-o, sobretudo, a tosse constante da Glorinha, num compartimento mais retirado, mas que, no silencio da noite, lhe chegava perfeitamente aos ouvido. A moléstia da prima vinha-o mortificando extraordinariamente. Glorinha, sua contemporânea, era, talvez por isso, das primas a que sempre tivera a sua preferência. Forte, moça,

— E titia Carlota é tão nervosa, coitada! ponderou Piedade.

Nesse momento entraram umas pessôas da vizinhança no quarto. Paulo retirou-se, indo para a sala ver os trabalhos da decoração que o armador fúnebre executava. Sentia-se mal, uma extranha emoção o tomava e não quisera demonstrá-la na presença das primas que sempre o tiveram por um homem calmo e muito equilibrado. Nesse momento foi ferido o seu ouvido por uns gritos lancinantes e prolongados que vinham do quarto da morta. Correu para ver o que era e deu com Alvaro que, de joelhos, abraçado á velha ama, rompera em soluços, mergulhado na sua dôr aguda e pungente.

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bonita, beirava os vinte e dois, quando, conseqüente a um resfriado a que não dera a importância devida, se lhe declarara uma tuberculose pulmonar, de forma violenta e rápida. Magrecêra consideravelmente em poucos meses e as suas feições delicadas se cobriram da lividez característica dos tísicos, na qual apenas, durante as horas da febre, duas rosas vermelhas desabrochavam sinistramente... Certa do seu estado, que já não era possível dissimular, revelava-se de uma conformidade admirável. Paulo sentia-se cruelmente mortificado com o estado de Glorinha e mais o impressionava a freqüência com que na família se manifestavam esses casos de tísica, quasi sempre de marcha fulminante e fatal... Talvez uma predisposição, uma fraqueza congênita, pensava, com horror, o jovem advogado, o fizesse também uma futura presa do insidioso mal. Procurava, em vão, rebater esses pensamentos que, teimosos, lhe voltijavam em torno á mente, presa de uma verdadeira obcessão. Nessa noite, fosse o local, ou o abalo que lhe causara a morte imprevista da velha ama, ou a tristeza do velório, Paulo se sentia mais nervoso ainda que de costume. Ao seu lado, Léo, recostado ao sofá, dormitava serenamente. Paulo punha-se, por desenfarar-se a evocar a sua vida, passada, a sua infância, as historias de mãe Roberta, e essas lembranças trouxeram-lhe outras, a da sua mãe, durante

dos dias longos da viuvez, na sua companhia, até quando o deixara pelo segundo esposo, — era então ainda bem criança — indo de vez para o sitio distante, donde raras vezes vinha à cidade. Uma profunda tristeza sentimental lhe enchia a alma de permeio às recordações. Crescera no seio da família da tia, a bôa D. Francisca, que sempre o tratara como filho, não sabendo distinguir entre os sobrinhos e os nascidos do seu sangue... Mas uma secreta magua lhe vinha, que nunca a ninguém confessara, ao sentir-se privado tão cedo do carinho materno e, no exclusivismo do seu sentimento de grande amoroso, como que inculpava a mãe de o ter deixado pelo padrasto... Procurava banir da idéa esses pensamentos que o perseguiam, na longa expertina; todavia, tanto mais os espantava, mais freqüentes lhe vinham. Só, sentia um grande vácuo na sua vida, que a remembrança do passado vinha fazer maior. Com a velha mãe Roberta ia enterrar-se, talvez, toda a sua infância feliz: era um capítulo da sua vida, uma porção da sua alma que se apagava na noite fria da morte, ao fundo negro de uma sepultura... Doeu lhe o pensar em si. Sentiu-se muito só e muito triste. Ia fazer 23 e parecia um velho, acabado, já sem esperanças nem sonhos. Restava-lhe esse doce ambiente familiar em que anda se sentia viver, partícipe das alegrias e tristezas alheias...

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Mas, isso mesmo até quando poderia encontrar? Mãe Roberta morta, Glorinha prestes a morrer, Regina noiva, dentro em breve essa doce convivência acabaria aos poucos, e a casa iria tomando nova feição, com a entrada de extranhos e o êxodo das velhas pessôas tão ligadas à sua existência! A própria tia Francisca não ia bem de saúde e esses choques seguidos poderiam arrastá-la ao tumulo. E que seria, quando só, no meio de uma sociedade fátua de extranhos, cheia de frivolidade, onde ninguém o entenderia e a ninguém estimasse se visse como um extrangeiro na sua própria terra? Paulo, pelo seu feitio nervoso, era de uma esquisita sensibilidade, de uma constituição profundamente romanesca, a que as leituras e a vida ensimesmada que levava contribuíram rara tornar mais delicada ainda. Talvez a solução de seu caso fosse o casamento, mas quem lhe asseguraria que pudesse amar uma mulher e fazer-se sinceramente amado? Sentia-se muito descrente, alma cheia de impressões desconsoladas e incapaz de volver a ser o que fôra, de regenerar-se pelo amor e tornar-se puro, crente e bom, o Paulo ingênuo e feliz de outros tempos. Entanto, preciso ser homem, enfrentar resolutamente a vida, sem pieguices e sentimentalismos doentios. Era preciso... Mas, como? Paulo viu nesse momento uma criadinha entrar com a bandeja do café. Enquanto, no silencio da sala, se ou-

viam os sussurros da conversa e as velas, nos candelabros altos, luziam macabramente, alumiando o rosto lívido e descarnado da defunta, Paulo, fechando os olhos, presa de profunda tristeza, debatendo-se em dolorosas perguntas que olhe torturavam a alma, quedava-se a ver essas extranhas lucilações multicores, que, como vagas visões vindas de outro mundo, nos acodem nas noites prolongadas de vigília e a ouvir, no marasmo que o invadia, vozes veladas que, qual acusma inexplicável, lhe povoavam os ouvidos.

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vida. E o peior, era que procurava, com extrema cautela, esconder, mesmo aos mais chegados, essa especial feição da sua alma que lhe parecia um estigma de inferioridade mental, uma neurose hereditária, reforçada pela sua educação e pelas muitas leituras românticas de que saturara o espírito. A morte inesperada da velha preta viera aguçar-lhe a extranha emotividade e noutro dia achava-se na sua sala, sozinho, a pensar ainda no acontecimento da véspera, o espírito sobrecheio de idéas mortificantes, fumando cigarros sobre cigarros, quando ouviu baterem de leve à porta. Levantou-se e indo abrir viu que era Alvaro, seu irmão mais moço, o qual, pelo nenhum pendor manifestado pelos estudos, se encarreirara, contra o seu gosto, na burocracia, trabalhando como amanuense numa repartição pública.

CCAAPPIITTUULLOO IIVV

AA ccoonnffiissssããoo ddee ÁÁllvvaarroo FÔRA assim desde criança e agora não via

como transformar o seu temperamento, a sua organização. Profundamente sentimental, de um forte nervosismo, Paulo sabia-se dotado de uma extraordinária sensibilidade, de uma aptidão invulgar para o padecimento, convertendo os menores casos, as mais ligeiras referencias em causas de recônditas e indizíveis torturas intimas. Trazia — como costumava dizer para si mesmo — a alma à flor da epiderme. Não sabia a arte de dissimular, de encouraçar-se contra as dores da

— Olá! então como passou? Perguntou-lhe, logo de entrada, o rapaz.

— Menos mal, Alvaro.. Sempre consegui dormir alguma cousa. E você?

— A maldita estatística me fez ficar despertado até tarde e depois não pude mais dormir. Escuta, Paulo, eu quero lhe fazer uma consulta, ou antes, uma confissão ..

Paulo extranhou a gravidade do irmão ao dizer-lhe essas palavras. Embora não tivessem sido criados juntos, pois Alvaro ficara sempre em companhia de D. Carlota de quem só de pouco se havia separado, para casar-se, tinham

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os dois irmãos recíproca e cordial confiança que quasi excluía a idéa de um segredo na vida de qualquer um. Que seria, pois, o objecto daquela extranha confissão?

— Ouça-me com calma e concluirá si tenho ou não razão em minhas suspeitas. Não sei como tenho conseguido dissimular até hoje o estado horrível dos meus nervos. Mas sinto que, em pouco tempo, já não poderei esconder o meu mal. Não será fácil explicar-lhe corno isto começou. Antes de me casar deve lembrar-se você que sempre fui muito casmurro e tristonho. Duas ídéas me torturavam constantemente, dois desejos impossíveis me obsidiavam o cérebro. Um era o de poder ser formoso, não da formosura vulgar dos homens que agradam, mas sim da perfeita, dos paradigmas de raça, deuses e semi-deuses lendários. O meu ideal era ser um homem forte e másculo, de linhas gregas perfeitas e admiráveis. O segundo desejo era quasi que uma conseqüência do primeiro. Sendo formoso como um deus, eu aspirava ao amor integral e supremo. Essas idéas, porém, que, a principio, me torturavam a ponto de degenerar numa quasi monomania, numa neurose aguda, quando comecei a namorar a Naninha como que se evaporaram ou, pelo menos, já não me perseguiam com tamanha insistência. Julguei ter encontrado na que é hoje minha mulher o ideal de meu coração e dos meus sentidos e essa febre de amor, que antes sentia imprecisa e impessoal, se apaziguou à vista dessa moça, franzina e meiga, de lindos olhos, enternecidos. Casei-me, como você sabe, muito cedo, aos vinte incompletos. Foi um

— Sou todo ouvidos, Alvaro... É alguma complicação amorosa? Trata-se de algum caso sentimental? Use de toda a sinceridade e franqueza. Demais, você sabe que sou autorizado para dar conselhos em demandas dessas em que o coração é parte interessada... Sou um advogado insuspeito, pois nunca me deixei prender por essas lábias nem aprisionar-me em semelhantes arapucas.

— Ouça, Paulo, e depois você me dirá, com a mesma franqueza com que lhe vou contar o meu caso, a sua opinião, o seu modo de entender a respeito...

— Vamos... E não se esqueça que, alem de seu amigo, sou seu irmão e seu natural confidente e conselheiro.

Alvaro que arrastara a cadeira larga, estufada, para bem junto da secretária, começou, após uma ligeira hesitação logo dominada, a abrir o seu coração a Paulo que, silencioso, o escutava.

— Paulo, mais dia menos dia, eu sinto que vou enlouquecer... Não se espante, nem se horrorize. Vocês serão forçados a mandar-me para o hospício, quando menos esperarem...

— Enlouquecer, você, Alvaro? Como? Porque?

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romance, um amor de poeta... As nossas famílias impugnaram a princípio o nosso namoro, que éramos muito crianças, sem juízo nenhum. A Naninha faltava-lhe a idade legal que houve mister completar para que o casório se fizesse. Casados — vai por vinte meses — deveria começar para nós a felicidade de dois seres que se amam e acham na confusão perfeita dos corpos e das almas o segredo da ventura terrena. Assim devêra ser e assim foi realmente, nos primeiros tempos. Mas ha pouco, cousa de uns três meses atrás, o mal começou a manifestar se de uma forma bem diversa e alarmante. Já não era a antiga obcessão, nem o vago desejo de um imponderável amor; a sua última feição se reveste agora de um impulso irresistível para o crime. Tenho ciúmes de Naninha. que você sabe dotada de um gênio expansivo e alegre, sempre risos e festas para todos. Tenho horríveis ciúmes de tudo o que Naninha faz, diz, e até do que póde pensar. Si está triste, pensativa, acode-me que é porque já me não ama e idealiza outra vida melhor que a que lhe proporciono. Si loquaz, rideira, cuido que busca dissimular, femininamente, o que lhe vai n’alma. E padeço, Paulo, padeço, como você não pode imaginar. Para derivar a minha idéa, abrandar o meu estado, atiro-me ás maiores extravagâncias, que, dia a dia, mais me extenuam. E, com um prazer doentio, devoro quanto livro me

vem ás mãos que trata do arrebatamento passional, sentindo-me dia a dia arrastado, mau grado a mim mesmo, nesse lançante trágico do crime...

— Você faz mal em lêr esses livros, Alvaro, interrompeu o irmão, só servem para complicar o seu estado.

— Mas si você soubesse o que é esta tortura diária, permanente, que nem no dormir me abandona e persegue-me sob a forma horrível dos pesadelos! Ultimamente, o meu maior receio é que minha mulher desconfie do meu estado e passe a ter medo de mim. Já um dia destes, quando eu lhe falava, procurando dar ao tom da voz um timbre carinhoso, que mal lhe velava a ternura, Naninha, como assustada, evitando-me, exclamou:

— Você está muito nervoso! Acalme-se... O que é isso Alvaro?

— E assim vivo, Paulo neste inferno! Que será de mim?

O infeliz, com os olhos esbogalhados, o rosto lívido, as mãos frias, trementes, quasi chorava. Nesse momento, bateram a porta da saleta chamando para o café.

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noite a um café ou a um ponto de reunião alegre e ruidoso. Lá se desaborreceria e poderia tambem conversar a gente da casa, ainda sob a impressão recente da morte da mãe preta. Encontrou na varanda o Tenente Decio, noivo de Regina, cujo casamento se marcara para dali ha um mês, logo depois das "touradas", e mais uma senhora da vizinhança, mãe de duas moçoilas magras e loquazes. D. Francisca e as três filhas — Regina, de dezoito primaveras, Maria da Piedade, de quinze e Ercilia, de onze, tomavam parte na conversa, cujo assumpto obrigatório era ainda mãe Roberta, considerada ali menos que uma creada, uma pessoa da família. Mais tarde chegaram também Léo e a tia Carolina, velha irmã de D. Francisca, que se conservara solteira, e morava só com um rapazinho que criava. D. Carolina era madrinha da segunda filha dos Monteiros, Regina, que seria, dizia, a sua herdeira, na casinha, que era seu único haver. Vieram á balha as historias de Mãe Roberta, e como a vizinha D. Felicia se referisse com interesse a certo episódio que lhe ouvira ha tempos, do qual, entretanto, se deslembrára, pediu Paulo, sempre amante dessas narrativas, que a tia lhes contasse alguns casos. No meio do respeitoso silencio que se fez em torno, na ampla varanda que um grande "belga" clareava, a velha senhora passou a reproduzir os curiosos trechos da vida de fa-

CCAAPPIITTUULLOO VV

FFlloorr ddaass mmoorreennaass DEPOIS que o irmão partiu, Paulo quedou-se

largo tempo a pensar na confissão imprevista que lhe ouvira e lhe deixara uma angustia surda e incontida na alma profundamente sensitiva. A sua melancolia, que já vinha de ha dias, o seu nervosismo exacerbado pela surpresa da morte de mãe Roberta, acirrava-se à lembrança dessa confidencia dolorosa que lhe abria ao espírito os horizontes das mais tétricas conjecturas. A tarde, após o jantar, o torturado moço tomou quasi automaticamente o rumo da casa da tia Francisca. Desagradava-lhe ter que ir essa

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milia que a tradição havia conservado através da linguagem simples e expressiva da velha ama. Depois que tinha relatado dois ou três casos, pediram as meninas, instantemente, que contasse a historia da "flor das morenas", D. Francisca sorriu, numa sorte de embaraço satisfeito e disse:

era Rosa, mas que o povo poeticamente cognominara "Flor da morenas", sendo assim mais conhecida que pelo seu próprio nome.

Tinha, porém, o Ouvidor, homem idoso e viúvo, mas ainda válido, bastante mulherengo, as vistas voltadas para a formosa mocinha, que, a titulo de amparo, mas antes tomado de criminosos intentos, trouxera para casa. "Flor das morenas" ia pelos quatorze quando Monteiro a conheceu. A assiduidade do sargento em casa do Ouvidor acabou por impressionar a moçôila, que viu no porte gentil do miliciano, em suas feições delicadas, de tez alvíssima que o sol ainda não crestára, nos olhos claros, cor de mel, nas mãos delicadas, no falar macio, algo que jamais imaginara no meio rústico e asselvajado em que fôra criada.

— Ora! isto é uma espécie de historia do tempo da russiana. Já perdeu sua graça e vocês vão achar fora da moda.

Insistiram tanto, dizendo Paulo que "bonito não envelhece" e que todos eram "gente de outro tempo", que D. Fancisca se dispôs a fazer-lhes o gosto:

"Quando o sargento Monteiro veio de Portugal era um moço guapo e forte, a beirar pelos vinte e cinco e o seu espírito corajoso e amigo de aventuras o arrastou até este fundo ele sertão que se povoava na febre ansiosa do ouro e da riqueza, seduzindo levas de gente ávida de fortuna fácil.

Monteiro era de família abastada e de muito bom sangue, mas, dotado de um temperamento esquisito e indomável, expatriara-se por haver sido contrariado pela sua gente, que lhe quisera impor enlace indesejável com uma parenta velha e rica, ao tempo em que seu coração se inclinava por uma tricanazinha de corpo de âmbar e olhos dormentes como as águas do Mondego. Por se não vender, como si almas e amizades se mercassem ou se pudessem aleiloar, Monteiro sentou praça e fugiu da própria terra e fez-se de vela para outros mundos, que lhe enfeitiçavam desde criança a imaginação.

Em aqui chegando, deu logo de amizade com o Ouvidor, seu patrício e velho conhecido, nascidos que eram no mesmo conselho e logarejo. Em casa do magistrado, numa noite de "luminárias", viu uma menina assaz nova e muito bonita, filha de uma índia que fôra apresada no alto sertão por urna força encarregada de abrir caminhos e bater o gentio. Enamorou-se o sargento pela pequena, cujo nome na pia

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A formosura virginal e deslumbradora da caboclinha foi para o moço reinol uma revelação inédita em que viu encarnar-se e tomar corpo a própria terra nova, o sertão desconhecido com a alma errante e vária, volúvel e caprichosa das suas sereias, dos seus encantamentos irresistíveis. O seu todo arisco de veadinha, os seus gestos bregeiros como os dos sagüis, o seu andar balanceado na cadencia das jaguatiricas novas, a sua cútis morena como o jambo e macia e pubescente com as folhas da malva, as suas mãozinhas irriquietas como dois beija-flôres, as suas comas negríssimas tal a plumagem do anum, os seus lábios que eram duas pitangas maduras, o seu seio de pomba-rola, a sua voz langue e pausada como o canto da jaó, no entardecer, os seus olhos que dardejavam lumes como as lagoas ao sol da alvorada — tudo respirava para o moço a magia da natureza tropical, o sentido profundo das cousas nunca vistas, a formosura virgem e intemerata da terra ainda mal esflorada pelo contacto humano.

sa em, sob pretextos outros que mal velavam a maligna intenção que o devorava, seqüestrar a pequena aos olhos dos seus adoradores. Rosinha era filha da selva e tinha o sentimento da liberdade, com o sangue que lhe corria nas veias. Burlando a perspicaz vigilância do seu Cérbero domestico, emprazou o sargento para um encontro no portão dos fundos, que dava para o carrego. Era uma noite de junho, enluarada e fria. Pela infidelidade do recadeiro, que deu à língua, vieram os dois outros enamorados a saber da combinada entrevista e concertaram armar uma "tocaia" em que perecesse o feliz escolhido do coração de moça. Desprecavido se foi Monteiro para o prazo dado, que lhe deveria de ser fatal. Junto ao "arrombado", esperava-o a pequena, trazendo o leve roupão de cabaia sobre o corpo, descalça, soltas as lindas tranças que, como um véu negro, lhe envolviam os ombros e as espáduas.

Tomou-lhe o sargento as mãozitas que o susto e a emoção gelavam e ouviu da sua boca a declaração resoluta de que o acompanharia para o "sertão grande", para onde fosse, pois o que não podia era continuar na companhia execrada do seu algoz, mascarado de patrono e amigo.

"Flor das morenas" tinha, porém, a sua posse disputada, com ânsia, além do velho Ouvidor, pelo filho do Mestre de Campo, um rapaz forte e temido pela sua audácia e ainda pelo alferes Rodrigues, do corpo de dragões, do serviço e confiança do Capitão General. Freqüentavam todos a casa do Ouvidor, que, em lhes percebendo os desígnios, se deu pres-

— Gosto de vancê, porque vancê me respeita, me mostra um querer bem, sem abusar, como esses outros que pensam que, porque

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sou filha de bugre, sou ignorante e não tenho o direito de escolher a quem dar meu coração. Hei de ser sua, Monteiro, ou de mais ninguém...

— Valha-me, minha Nossa Senhora do Carmo, que estou ferido! gritou o moço.

Os facínoras correram ao grito de socorro e o pobre alvo dos cruéis empreiteiros do crime conseguiu arrastar-se, gemendo, até uma vendóla, noutra esquina, que conservava a porta cerrada, apesar de já haver tocado o "recolher".

Abalado ante a sinceridade dessa creatura inculta e rude, mas de uma extraordinária firmeza moral, Monteiro propôs-se acompanhá-la na fuga.

— Mas olhe que vancê vai sacrificar-se. Perde sua carreira. Do que vai viver depois? Esteve uns dias entre a vida e a morte, mas o

cirurgião pode tirar o projétil que se alojara junto à clavícula direita. A menina, causa involuntária do drama, ao ser informada do que accorrera, ficou a braços com um desespero enorme. Vendeu os seu "lavrados" para ajudar Monteiro no tratamento. Impossível qualquer aproximação entre ambos, devido às redobradas cautela que punham no sondar-lhes os passos os seus pertinazes pretendentes. O Ouvidor vigiava-a dia e noite; o alferes Rodrigues pusera guarda pelos arredores da sua casa, sob pretexto de averiguações do crime e, por sua parte, o filho do Mestre de Campo, sem descontinuar, rondava os passos dos outros competidores.

— Viverei como os seus viviam antes de vir parar nas mãos destes bandidos. Uma cuia de mel de manduri, umas frutas de marmelada ou de jatobá, carne de paca ou de tatu, água fria do buritizal, valem mais que as melhores iguarias, dando Deus saúde e vivendo a gente junto de quem seu coração deseja... Mais tarde, quem sabe, poderemos voltar e ainda ser "gente" neste mesmo lugar. A ruindade dos homens tem de bom que passa, como água no rio.

E ficou acertado que na Semana seguinte fugiriam para o alto sertão. Monteiro beijou a mão da moça com a reverencia com que se beija uma Santa, e afastou-se, ainda voltando-se da esquina para vê-la, ao clarão da lua cheia. Dera alguns passos mais quando, da sombra de um oitão, o assaltaram três embuçados, com varas e faças. Destro no manejo do pau, Monteiro os pôs á distancia, procurando correr, quando uma bala de bacamarte o prostrou, partida do grupo sinistro.

Uma noite escura e feia de Outubro — Monteiro já estava quasi bom da ferida, Rosa surgiu no rancho do miliciano, sozinha, trazendo, numa trouxa, toda a sua bagagem. Espantou-se de sua coragem o sargento.

— Eu já dei a vancê meu coração e não

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sei desdar o que já foi dado. O Ouvidor me disse que pela lei eu não posso ainda casar. Eu não entendo dessas cousas. Sei que o que se quer é ganhar tempo e como já recebeu ordem para recolher para São Paulo, disse que me ha de levar para lá. E como eu não vou mesmo, vim procurar vancê para ver o que resolvemos...

deposição do governador Magessi, que levara consigo o alferes Rodrigues, da partida do Ouvidor, ralado de ciúmes e de febres, da morte do filho do Mestre de Campo, nas lavras do Medico, por um escravo a que tentara roubar a "parceira", tendo assim o justo castigo à sua vida de estróina e peralvilho. Monteiro, que tinha na Junta Governativa um amigo, resolveu votar à cidade. Correu-lhe tudo á mercê dos desejos. Foi-lhe perdoada a pena de deserção, levada à conta do estado de confusão em que se encontrava a Capitania. Afastado das armas, deram-lhe um lugar no Senado da Câmara, onde havia um camarista que o protegia. E, pela festa do Espírito Santo, casaram-se os dois protagonistas deste romance à antiga e fôram muito felizes, pois que já haviam pago em dores antecipadas o tributo que o amor costuma exigir dos seus eleitos, dos que verdadeiramente se entrequerem e fazem do amor sincero e mutuo a única, a suprema razão de existir...".

Nessa mesma madrugada partiram. "Flor das morenas," com a sua acuidade peculiar, com

o sentido atávico da sua raça, servia de guia no sertão áspero e hostil. Houve dias de nada comer e andar de sol a sol. A moca tinha o faro dos "lobinhos" a agilidade das lebres, mergulhava como os biguás, alternando, com as patativas e curiós, o seu canto suave, nas horas dê melancolia, em que Monteiro parecia ceder ao império da nostálgica recordação da sua terra distante.

Passaram meses na selva, enganando todas as esculcas que o Mestre de Campo e o alferes de dragões lhes puseram na pista. Cortando pântanos, varando brejos, varando rios, ou atravessando-os a nado ou sobre "pinguelas", dormindo ao sereno, alimentando-se de caça e frutas silvestres, peixe e resina, viveram todo esse tempo como verdadeiros filhos da natureza.

— O que é que o amor não vence, meus filhos? disse, concluindo, com um sorriso benevolente, a boa D. Francisca,

— Não vence a morte, disse Paulo. Si Monteiro tivesse sido morto no dia da entrevista... Um dia, passou por ali uma tropa que rumava

ao Rio Grande. Souberam pelos arrieiros dos acontecimentos havidos na cidade, da

— Rosinha continuaria a amá-lo, retrucou vivamente Piedade.

— Quem sabe lá... voltou Paulo, na sua

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estudada descrença, mais para contrariar a prima. — Continuaria, sim, — interveio D.

Francisca. Nem todas as mulheres são como "Flor das morenas", mas é preciso reconhecer que, entre muitas levianas e doidas, ha ainda algumas dessa massa... A questão é ter a felicidade de encontrá-la.

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NNaass ttoouurraaddaass RETIRADOS a um canto do "botequim", os

dois rapazes conversavam, quando, vendo-os a distancia, para lá se dirigiu o Cardozo, num expansivo amplexo, a exclamar:

— Vocês já viram a rainha do "Campo de Ourique"?

— Não. Quem é? perguntou, mostrando pouco interesse o moço advogado.

— Quem mais ha de ser sinão a formosa viuvinha Eunice, a menina dos olhos do nosso caro Major, disse, num piscar de olhos, meio irônico, Léo.

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— A filha do Azevedo? insistiu Paulo, fingindo-se esquecido.

te passada, quando a musica deu o aviso da entrada do toureador. Accorreu para as proximidades da arena gente de todos os rumos e os botequins ficaram momentaneamente vasios. O próprio Léo, acompanhado do Cardozo, precipitou-se para o "camarote" a ver um dos episódios mais curiosos da diversão empolgante que as "touradas" proporcionam. Era Léo um fanático por essas corridas, ao contrário do primo que as "touradas" deixavam frio, tendo antes repulsa por essa diversão, não a demonstrando, porém, pelo receio de parecer mole e demasiado puritano. Era desses que se deixam levar pela maioria, peja tradição, e todas as vezes ia ao "Campo de Ourique" porque toda a gente ia e ha muito se procedia assim, si bem que, no íntimo, isso tudo lhe parecesse estúpido e atrazado. Com pouco o estrugir dos busca-pés, as pa]mas e gritos da assistência, a musica ruidosa, denunciaram a "primeira sorte". Nas alamedas em torno dos "camarotes" não se via quasi ninguém. A cidade em peso acompanhava, com a alma suspensa do lábios, em exclamações, corrimaças e vivas, o desenvolver emocionante da corrida. Agora eram os "capinhas", descalços, de calça branca e blusa escarlate, empunhando a banceirola na mão esquerda, com que acenavam ao animal e a "garrocha" na direita — uns, ágeis vaqueiros acostumados ao trato áspero do campeio, outros,

— Qual Azevedo, homem! Você onde está que não se recorda mais da galante pequena que tanto o impressionou à primeira vista? Não se lembra mais da moça que lhe fez repetir outro dia, no jardim, um soneto inteiro do... do Luiz... ora agora a mim me esquece o nome...

— Pistarini, disse Léo, desapurando o massante gamenho. E sempre mais fácil guardar os nomes das viúvas bonitas que os dos poetas...

Cardozo, entanto, sentara-se numa cadeira ao lado e pedira chope e pasteis de nata. Os dois primos se entreolharam sorrindo. Estava o velho amigo fiel na execução dos seus planos que consistiam em utilizar-se sempre da boa vontade dos "camaradas" para demonstrar-lhes a confiança que tinha nos mesmos.

Á essa hora, o rumor no vasto Campo se fazia sentir numa animação crescente. Novas famílias chegavam e os palanques estavam quasi todos cheios, vendo-se igualmente apinhados de gente as "cercas" e os "botequins". A temperatura favorecia o prazer popular, pois a dois ou três dias frígidos, de cerração, seguira-se uma tarde linda, azul, claríssima, de doçura primaveril.

Começara Cardozo a relatar a Paulo um começo de rolo que ia havendo no curro, a noi-

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gente da cidade, habituada a diversos misteres, mas que, nesses três dias, se convertiam em "capinhas" para ganhar mais facilmente dinheiro. Alguns havia até que começavam como "máscaras" para cujo papel se não exigem qualidades próprias, bastando agilidade em subir "na cerca"' e um pouco de chiste barato para divertir as galerias. Eram, ao depois, a vista da habilidade e coragem reveladas, elevados a "capinhas" o que equivalia a uma promoção no conceito público. Não assim o "toureador", que era sempre o mesmo, espécie de dignidade vitalícia, substituindo-se uns aos outros, e só com a morte perdendo o titulo e as honras. Ao de agora precedera um já algo idoso, o “Mirandeiro" como se fazia conhecido e a quem coube a glória de morrer em pleno campo, não de uma forte marrada ou de uma queda, mas de um mal do coração, o que, para a consagração lendária de seu nome, teria sido a mesma causa. Também as honras de "jacuba" — prestimoso auxiliar e escudeiro do "toureador", eram personalíssimas e duravam de uma para outra corrida. O jacuba não necessitava mais do que ser prudente, evitar cautamente a aproximação do touro e acompanhar o seu amo e senhor, menos quando ia fazer as sortes, o que é perigoso. Muita gente, note-se, faz na vida este papel de "jacuba" sem o sentir: são os amigos dos bons

dias e das horas de prosperidade que fogem aos riscos das "sortes". É uma posição de lustre, muito prática e desejável nestes tempos que correm... Voltemos, porém, aos "touros". Terminadas as primeiras "sortes" começou a gente a abandonar os "camarotes”, e se povoou de novo a avenida dos passeantes. O lado da "sombra" era naturalmente preferido, sendo que ali é que se constroem os "botequins". Ostentava a praça, cerca das 3 horas da tarde, um ar animado, com as cores vivas dos "camarotes” e botequins, a graça e elegância das transeuntes e a alacridade que a todos dominava.

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mulher que se sabe formosa e admirada. Viúva havia quinze meses, Eunice era um verdadeiro enigma para todos os que a conheciam. A sua vida de casada, curta e sem episódios, não dava margem a que se interpretasse si fôra feliz ou não, e, interrogada, pelos mais íntimos, a esse respeito, se limitava a sorrir sem nada dizer. O seu processo de desnortear as vistas mais audazes era sempre pelo sorriso, invencível, enigmática e poderosa arma de que se servia superiormente. Mulheres ha cujo encanto reside no gesto vago, ondulante ou expressivo; outras seduzem pela voz cariciosa e cheia de influxos magnéticos; de algumas é o olhar o encantador talisman a que se não resiste. Esta tinha o seu condão no sorriso único, imperscrutável, lindo e fatal como, talvez, o da Monna Lisa, que Leonardo tentou perpetuar na sua tela... Com esse sorriso animava e resistia aos seus adoradores, verdadeira legião incontável, e, por certo, si toda a gente a julgava leviana, namorista, ninguém, ao de leve, poderia apontar uma sombra que lhe empanasse a honestidade. De Eunice diziam todos sêr o primeiro partido da terra, e um dos que a cubiçavam tinha definido a sua superioridade sobre as meninas casadouras nesta jocosa expressão: — Mais vale esta em segunda mão que todas as outras em folha. Traz tirocínio da vida e reputação firmada em apólices e títulos» Realmente, quando Eu-

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AA vviiuuvviinnhhaa PAULO, indo a passear, deu logo com

Eunice, linda no seu vestido de seda cor de morango, chapéu de plumas pretas, risonha e expansiva como era do seu costume e natural. Fazia-se acompanhar de duas amigas solteiras, bonitas e loquazes, não tanto, porém, como a viúva. Cumprimentou o advogado com um sorriso insinuante, cujo merecimento maior teria sido o de pôr à mostra a fieira alvíssima dos seus dentes, lindos e pequenininhos, como as perolas que lhe cingiam o pescoço alvo de neve. Paulo voltou-se pa ra vê-la, esplendida no seu meio desgarre de

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nice enviuvou, houve quem dissesse, na câmara ardente, ainda em presença do esposo, o capitalista Nogueira:

da vez é porque detestava o primeiro marido e quando um homem se consorcia de novo é porque adorava a primeira esposa" teríamos já então uma "lei" acerca das segundas núpcias ou dos que reatam o nó partido da maridança. Os acontecimentos, porém, contestam e desmentem o princípio wildeano, pois estamos a ver freqüentemente se remaridarem mulheres que adoravam com verdadeiros extremos os seus esposos e homens que em nenhum apreço tinham as suas primeiras consortes...

— Está ali, está casada... "Viúva moça, bonita e rica, viúva não fica".

Mas ficara, ia ficando, pelo menos, não que faltasse quem se dispusesse de boa mente a tirá-la desse estado. Sem os desenganar de vez, antes como que os animando a se manterem fieis ao seu culto, Eunice ia levando o seu tempo, e gozando a sua liberdade. Dali o concluírem alguns desses adoradores mais perversos que o primeiro ensaio lhe não fôra favorável e não lhe deixara desejo de repetir. Argumento frívolo e, demais, contraproducente, de espíritos apaixonados e, por isso, suspeitos, pois também se poderia presumir que a sua abstenção proviesse do receio de não encontrar outro igual, isto é, outro casamento feliz como o primeiro. Assim é que a imparcialidade faz ver o outro lado das cousas e nos faculta a nós, que não amamos a viúva, por isso mesmo que a não amamos, defendermo-la dos que a querem ardentemente. De resto, nisto de casamento, entre ou não o amor, tudo é muito relativo, precário, fuginte às assertivas categóricas, como tudo o que se refere às mulheres no seu trato com os homens. Si fosse possível dizer, como Wilde, num dos seus paradoxos, que "quando uma mulher se casa segun-

Eunice, por si só era um desmentido vivo a todas as leis imagináveis, tal a sua instabilidade que a ninguém dava tempo de formular um juízo seguro acerca de sua pessoa. Era dessas criaturas cujas pensamentos e inclinações, gostos e vontades só se poderiam aquilatar por um anemômetro, tal a sua variabilidade e inconsistência. Sabia, entanto, ser volúvel sem dar a impressão de que o fosse e, isto porque, ao certo, em dado momento, todos tinham a impressão de que a viúva os amava a cada um de per si, com exclusão dos demais, quando, no fundo, a verdade era que só se amava a si mesma, através do culto que lhe prestavam os seus amadores. Vaidosa a mais não sêr, dissimulava a sua garridice que assim ficava parecendo natural dom de sua formosura e por espontânea qualidade de espírito se tomava o que aliás pareceria arrebique de loureira.

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impressões acerca das "touradas" e só. Eunice despedia-se, pretextando ligeira dor de cabeça, que a forçava a tomar rumo de casa.

Paulo sentia-se arrebatado de admiração pela encantadora viuvinha desde que, no jardim, lhe fôra, certa noite, apresentado. Na sua manobra habitual, nisso que constituía a sua estratégia do coração, fingia a grácil viuvinha não perceber o que tão evidente se fazia nos olhares expressivos do moço. Ali nas "touradas" achou, porém, ensejo para se aproximarem e melhor se conhecerem. Tinha para si o Machiavel de saias, Talleyrand aperfeiçoado pela astúcia atávica de Eva, que é conhecendo-se bem que se pode evitar-se melhor. Paulo até ali fôra-lhe um perigo, porque o não conhecia e desejava conhecê-lo para o poder malpresar. Todos os homens que antes se lhe a figuravam cheios de qualidades e encantos, mal os privava um pouco, reconhecia ficarem aquém do seu "ideal". O mesmo seria com este, pensava. Conhecer é desenganar-se, dizia-se Eunice, traduzindo, sem o saber, o pensamento do poeta que declarou ser o conhecimento fonte de tristeza: knowledge is sorrow. Paulo, ao invés, cuidava achar na intimidade da viúva prazeres e alegrias para a sua vida de frade leigo, de solitário no meio do mundo. Movidos assim por intentos diversos, andaram nessa tarde se buscando, sem querer dar motivos a que ninguém lhes suspeitasse os desejos recíprocos. Já pela tardinha, conseguiram falar-se. Mas pouco, guasi uma troca de palavras fúteis,

— Como isto vai ficar deserto e triste! galanteou Paulo.

— Por quê? perguntou, entre ingênua e irônica, a viuvinha.

— A senhora bem o sabe... Porquê vai entrar o sol que nos dá luz e calor.

Num gesto vago apontava o poente, distante. Eunice, com o mais faceiro sorriso, retrucou,

lisonjeada: — Mas virá dentro em pouco a lua... Há

muito gente que prefere o luar: é mais poético: Estendeu-lhe a nívea mãozinha, delicada

como uma flor, alva camélia quintipetalar aromada a Coty...

Paulo teve ímpetos de beijar-lha. Porque não conservamos os velhos hábitos cavalheirescos que autorizavam beijar-se galantemente em publico a mão das senhoras? — pensou o advogado.

Eunice, sem dar peja perturbação do moço, afastara-se, casquinando uma risada argentina a uma observação que lhe fizera uma das amigas. E Paulo, acompanhando a com os olhos, pôs-se a pensar a que se referiria a ardilosa viúva quando falara na lua, mais poética, que muitos preferem ao astro do dia...

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Léo chegara-se-lhe de súbito, convidando-o a fazer um repasto... E dando pela sua emoção, percebeu o que lhe ia pelo interior e, com riso malicioso, declamou-lhe, a meia voz, o final do soneto a que se referira Cardozo poucas horas antes:

«Contudo eu dera sonhos e alegrias, Para deixá-la, após a união de uns dias, Viúva, meu Deus! pela segunda vez!..»

CCAAPPIITTUULLOO VVIIIIII

FFeessttaa ddee nnúúppcciiaass

NA SEMANA que se seguiu às touradas foi o

casamento de Regina. As cerimônias, contra o que pretendia D.

Francisca, revestiram-se de certa pompa, consoante o desejo do noivo, que assim pretendia mostrar aos seus amigos a importância do enlace que ia fazer. Décio era um pouco frívolo, algo vaidoso, mas de bons sentimentos e melhores costumes. Escolheu testemunhas entre as pessoas de maior representação social, vindo nesse dia à casa da viúva Monteiro, como disseram as folhas, o escol da sociedade.

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Um dos padrinhos do nubente foi o Coronel chefe da guarnição, a quem Décio devia já finezas que o habilitavam a esperar por outras maiores. Houve cuidado em convidar gente boa e escolhida, tendo assim Regina um lindo cortejo de damas de honra e cavalheiros a acompanhá-la à igreja.

de... Somos velhos conhecidos, mas, com franqueza, o senhor hoje não tem olhos para ninguém sinão para Eunice. Dissera-lhe isso com uma ironia que Paulo achou graciosa e ali ficaram seguramente um quarto de hora, palestrando, sozinhos, pois Piedade pouco depois pedia licença e se retirava a acudir a um chamado de dentro. Esteve Paulo a considerar, numa demorada observação, a figura esbelta e pouco vulgar dessa moça. Não era, decerto, a primeira vez que a via e que a sua presença o impressionava. Alta, muito clara, cheia de formas, olhos pretos que coavam dentre os cílios longos uma luz velada e mortiça, não era, todavia, a expressão do rosto de Teresa Lemos que mais seduzia a imaginação de quem a visse, antes o seu maior encanto residia no conjunto do corpo, de linhas bem traçadas ao torno de uma natureza que os estatuários imitam mas raramente lhes é dado igualar. Os seus braços grossos e roliços, de uma epiderme alvíssima, fina, onde as veias transpareciam aniladas, vestiam-se ao de leve, de um sombrejo que fazia lembrar a pubescencia delicada das folhas da malva. O seu todo harmonioso desprendia essa fatal e perturbadora impressão de mocidade robusta e sadia, numa estranha mescla de candura e malícia, cujo estigma se lhe via nos lábios um tanto grossos e nos olhares que pareciam cúpidos e

Paulo, que, desde as touradas, vinha perseguindo a formosa Eunice, com olhares insinuativos e constantes passagens pela sua casa, achou ali ensejo mui propicio para a desejada aproximação. No baile dançou com a viúva as melhores contradanças, gabando-lhe a exímia perícia; no chá, que se serviu às dez da noite, descobriu jeito de casualmente sentar-se-lhe ao lado e conversá-la todo o tempo. Findo o chá, ao voltarem para o salão, notou, certa vez, Maria da Piedade que, a um desvão meio obscuro, o fitava, acenando-lhe com a mão. Encaminhou-se para lá e viu que, ao lado da prima, quasi escondida pela cortina branca, outra pessoa se encontrava, da qual, embevecido no seu namorico com a viúva, mal se havia até essa hora apercebido.

— Quero apresentar-lhe a minha amiga Teresa Lemos, que faz muito gosto em conhecê-lo, Paulo, disse a prima, apontando a moça, que, sem embaraço ou acanhamento, antes naturalmente, lhe estendeu a mão, risonha:

— Dr. Paulo... É uma caçoada de Pieda-

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amorosos. Si bem lhe observassem as feições e as particularidades não seria caso de a qualificar formosa, no rigor dos códices de arte, mas a mulher não é como uma estatua, um painel que se desarticula traço por traço e linha por linha, para dizer da sua graça. Quantas vêmos que, num total de perfeições, se nos antolham desagradáveis e antes nos prende e seduz uma bôca seu tanto maior ou um nariz seu tanto mais pequeno que o exigido pelos legisladores da arte. Si possível fosse repetir-se a fatal Helêna, numa outra que reunisse os trinta pontos da formosura integral recapitulados pelo Cornigero, estou — e você, também, leitor — que nós lhe preferíamos qualquer moreninha picante, mas graciosa, de nossa intimidade. De Teresa o mesmo se poderia dizer: a cútis do seu rosto, com ser branca, era marcada de pequenos pontinhos de cataporas, que, diga-se a verdade, só se viam bem de perto, ou com o microscópio de uma observação muito especial. Para um rigorista dos cânones femininos não assentaria bem certa excrescência ligeira e escura na face lisa, mais que pinta e menos que verruga, e, entretanto, a arte que nos perdoe, como isso lhe ia bem, deliciosamente bem, a ponto de nos parecer um complemento indispensável ao seu it, a que sem isso faltaria qualquer expressão! Arguir-lhe-ia o purista o exagerado de certas formas, a

meia adiposidade do seio farto, dos músculos glúteos, de algo mais que poderia ser menos, sem prejuízo da harmonia relativa. Não pensava assim o moço Paulo que, sem perceber quando lhe punham reparo nessa disquisição prolongada, continuava a fitá-la e, enquanto o tempo corria os segundos e os minutos, a devorava gulosamente com os olhos. Via em Teresa uma das suas criações de mulher. Depois que deixara, na enseada vintaneira, os sonhos de adolescente e renegara Lamartine por Baudelaire, bem lhe parecia que, ao invés de uma figura feminina superior e única, deve cada homem, ao sabor da vida e ao léu das circunstancias, ter um "ideal" de momento que lhe satisfaça os anseios Djalma. Era bem esse o ideal por que ansiava. Sem possuir, como Piedade, essa graça pura e virginal, cheia de candor e doçura adolescente, que parecia evolada de um quadro de Renoir, nem, como Glorinha, a pureza dolente de uma visão angélica e medieval, a esvair-se na penumbra de um tumulo, nem ainda, como Eunice, a gentil viúva, essa formosura fatal, estonteante e perturbadora, que enliça, e arrasta para o fundo, o que fez dizer a Anatole ser para a mulher a formosura a maldição do céu — Teresa, entretanto, tinha, nessa hora, no seu desgarre incomparável, para o seu espírito abalado de tantas emoções, o irresistível elan de uma inclinação que se so-

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brepõe á nossa vontade e nos faz querer contra nós mesmos. Durante o resto do baile o culto de fervoroso apaixonado das déas se dividiu por egual entre a solteira e a viúva. Sem que nenhuma se pudesse melindrar, Paulo esteve, no seu borboleteante temperamento, ora ao lado de uma, ora de outra, passando assim o resto da noite num duo interessante. O seu sentir, o seu gosto, a sua inclinação de artista levava-o para Teresa, mas a sua curiosidade espiritual o seu temperamento amante de aventuras romanescas, o arrastava antes para a inquietante e tentadora viuvinha. Soára já meia noite quando começaram os convivas a dispersar-se, em grupos de famílias residentes nos mesmos bairros e que, assim, aproveitavam a companhia para a volta. Restantes apenas os íntimos, fôram conduzir os noivos para casa, costume curioso e que religiosamente se conservava até bem pouco tempo entre os provincianos.

pretendia absolutamente fazer a infelicidade de ninguém, ligando-lhe a vida à de um homem doente, e mais esquisito e incontentável como se presumia ser.

— Porque, Paulo? perguntou Piedade, que ia no grupo, de moças que seguia logo adiante.

— Você não imagina quem sou eu! Criei, no meu sonho de poeta, um ideal irrealizável, de uma mulher perfeita na forma, no moral e na mente, creatura que reúne, fundidas em um só ser, todas as graças que a natureza distribuiu sem equidade às mulheres do mundo todo, e, n’alma, como em um cadinho, todas as qualidades capazes de fazer a ventura do homem que elegesse para seu esposo. Ora, positivamente, essa mulher não existe, não pode existir... Seria uma deusa, pois só Deus é perfeito, mas a religião que professamos excluiu dos altares as deusas e, de conseguinte, a suprema perfeição feminina. Para que uma mulher satisfizesse ao meu ideal fôra preciso que pudesse ser, ao mesmo tempo, a melhor cooperadora de minha obra, a maior inspiradora de meus versos, a superior razão de minha vida, a única e suprema finalidade de minha arte...

Décio fizera o seu ninho de amor numa elegante casita, recenconstruída no caminho do Porto. Ao percurso, embora um tanto longo, favorecia o doce luar, a noite fresca de maio. Paulo, Álvaro e Léo seguiam atraz do cortejo, que puxavam os dois esposos. De caminho, Léo perguntou ao primo quando teriam o prazer de também acompanhar em circunstancias como essa, ao que lhe respondeu Paulo ser isso cousa fóra de toda probabilidade, pois não

— Si essa mulher existisse, Paulo, disse Piedade, com vivacidade incontida, você não a poderia amar.

— Não poderia? E porque? — Porque imperfeitos, e fracos, nós só

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amamos o que é, como nós, imperfeito e fraco... Só a Deus amamos de perfeito, e isso mesmo emprestando-lhe qualidades nossas, limitadas e quasi sempre falhas.

Paulo calou-se. Nunca lhe parecera poder uma simples menina, de relativa cultura, dispor de tão profundos argumentos com que demonstrasse a fraqueza da sua erudição livresca, de que tanto se gabava. E quem sabe, pensou para si mesmo, é com Maria, talvez, que está a razão...

CCAAPPIITTUULLOO IIXX

AAmmoorr àà aannttiiggaa

OS DIAS que se seguiram foram para Paulo

de desvarios e de sonhos. Todo entregue aos dois amores em que se repartia a sua vida e o seu tempo, o da formosa viúva, e o de Teresa, pouquíssimas vezes vinha em casa de D. Francisca e os amigos mesmos deram de reparar na sua completa reviravolta de hábitos e maneiras, Ao cabo de três ou quatro semanas, foi-lhe impossível sustentar a extranha duplicidade do seu namoro e, entre as duas que lhe compartiam o coração, não lhe custou muito optar pela Tere-

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sa, que mais fundo o impressionara. Dura e rude prova ao amor próprio e à vaidade da viúva foi ver-se, de uma hora para outra, destituída e preterida pela outra. Alguém, porem, sentira ainda mais esse rompimento, e foi Piedade, que percebeu quanto mais grave era agora o namoro de Paulo, que antes, com duas, seria sempre um capricho e, ora, com uma única, poderia passar a ser uma paixão.

celebrante. Com o andar do tempo, na constante

freqüência da casa, por parte do primo, foi se lhes reatando a antiga familiaridade, despida de cerimoniosos convencionalismos, e Paulo que sempre manifestara, deste menino, certa preferência pela Maria, mesmo por ser a afilhada de D. Carlota, começou a sentir-se lhe perto no mesmo ambiente agradável e bom que nos proporciona o convívio de uma irmã mais criança do que nós. Semelhante intimidade crescia de igual passo para ambos e cresceu mais depois da morte de Mãe Roberta, acontecimento que, na sua significação dorida, veio aproximal-os ainda mais na co-participação dos mesmos sentimentos. Com uma confiança verdadeiramente fraterna, Paulo lia à prima os seus verses que destinava à publicação na imprensa e até alguns mais íntimos, em que desprendia os mais recônditos perfumes de seu coração sentimental. Maria, por vezes, dava o seu juízo acerca dos trabalhos, com uma franqueza e segurança de vistas que impressionavam o rapaz.

Maria da Piedade amava o seu primo, desde que o vira chegar dos estudos, sendo que mesmo antes já, por vezes, pensava em Paulo quando, distante, ouvia que se referiam ás noticias de suas conquistas acadêmicas. Nunca, porém, a menor, a mais leve demonstração se lhe lobrigara desse amor esquivo, tímido e profundo. Vira-o, desde o regresso, amável e cortês, tratando-a com gentileza, longe, entretanto, da velha intimidade de outros tempos, si bem que continuassem a tutear-se, pois que, procurando chamá-lo — senhor — nos primeiros dias, fôra advertida pelo primo, que, em tom de doce censura, lhe dissera:

— Vamos mal com este tratamento cerimonioso! Vejo que ainda acabo dando de Alteza às minhas antigas companheiras de brinquedo — E comadres... ajuntara risonha, D. Francisca, referindo-se graciosamente aos antigos compadrescos de bonecas, em que, geralmente, Paulo fazia de padrinho, e Álvaro de

Tinha senso crítico essa pequena, que daria uma boa esposa para um homem de letras, necessitado da cooperação do lar nos seus trabalhos de gabinete. A idéa, porém, que, às vezes, lhe vinha de namorá-la e fazê-la mais tarde, a doce companheira da sua vida, aba-

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nava a cabeça, num gesto de repulsa viva, a dizer-se:

olhar, ponderou: — Ha muita cousa na literatura que não ha na

vida... — Não! Ou eu vim muito cedo ou a prima muito tarde para sermos um do outro!... — Não acredita, então, num amor assim?

perguntou Paulo. Um dia encontrou-a lendo os seus contos que deixara, por acaso, em poder do Léo. Entrou a furta-passo, na sala de visitas, e deu com Maria da Piedade sentada no mochinho do piano, toda entretida na leitura. Quando percebeu que era o primo, procurou, debalde, esconder o caderno, mas foi tardio o seu gesto.

Não. Para mim o amor verdadeiro nasce do longo convívio, da amizade sincera, do mutuo conhecimento. O mais é fogo-fatuo...

Doutra feita conversavam, na varanda, e havia presentes umas amiguinhas e veio ao léo da palestra o velho caso da volubilidade.

— Sim, senhora! Lendo os meus contos? — Para mim, sentenciou a Carmem, uma das meninas que se achavam ali, não ha homens constantes... Todos são volúveis. Ha os que fingem e os que não sabem fingir...

— É verdade, disse Maria, corando, com um olhar mixto de candura e pejo. Fiz mal? Ha qualquer cousa reservada?

— Não. Mas perdeu o seu tempo, que poderia melhor utilizar estudando, por exemplo, o seu Schubert ou a sua lição de bordado... Mas já que os leu, diga-me, de qual gosta mais?

— Eu penso, acudiu Paulo, que não ha distinguir entre sexos neste capitulo de constância. O homem é fiel, quando encontra fidelidade na mulher e a volubilidade de um incentiva naturalmente a de outro. Piedade corou ainda mais ante a pergunta e,

para evitá-la, respondeu genérica e vagamente: — Pois eu, acudiu Décio, marido de Regina, creio mais na fidelidade dos homens... — De todos, Paulo. São todos igualmente

bonitos. Interveio, meiga e conciliadora, Maria da Piedade: Dias depois, referiu-se a um dos contos, cuja

tessitura sentimental revelava a gênese de um amor rapidamente nascido em uma curta convivência entre os protagonistas, amor coup de fondre, como dizem os franceses. E Piedade, risonha, pondo certa malicia grácil no

— Ninguém é volúvel porque queira, homem ou mulher. É volúvel por temperamento, natureza ou educação. A gente, quando nasce, traz o seu destino e ha pessoas talhadas para um amor eterno e outras que precisam cada dia de um novo amor.

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Paulo sorriu. Haveria nisso intencionalidade, com referencia aos seus vulgivagos amores? Dando-se por desentendido, despedia-se dali a pouco, para, olvidado da conversa que o aborrecera, ir render o seu preito a Teresa, a formosa creatura que, nos últimos tempos, lhe empolgara a imaginação e lhe arrebatara os sentidos.

Ao voltar, passou pelo casarão dos Monteiros, silencioso e já fechado e si lhe fosse dado enxergar, através da matéria, seus olhos veriam, num dos compartimentos mais discretos, o doce e sereno perfil de uma virgem que, diante do oratório, olhos marejados de lagrimas, pedia a Deus a conversão de uma alma que julgava perdida para o seu amor.

CCAAPPIITTUULLOO XX

PPllaannooss ssoobbrree ppllaannooss NA sua vida volúvel e instável de rapaz

procurava, todavia, Paulo guardar, desde os tempos acadêmicos, uma linha de superioridade moral, que jamais lhe consentira ludibriar qual quer mulher.

Cavalheiroso e galanteador, sentindo uma irresistível inclinação pelas damas, jamais seria capaz, entretanto, de levar o seu jogo de amores além dos limites que a conveniência estabelece, burlando de boa fé uma creatura que se lhe entregasse de corpo e alma, na obcessão apaixonada.

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A sua situação, bem por isso, junto da filha do Lemos se tornava dia a dia insustentável, pois via que a intimidade crescente entre ambos, pela moça precipitada algumas vezes, o iria forçar dentro em pouco ou a declarar-se ou a uma retirada honrosa e coadunante com o seu temperamento e seus princípios.

formas e as linhas do rosto à semelhança da linda Tereza, e, de tal modo se entrepareciam a moça recenchegada e a aristocrática filha do Lemos, que ver uma era estar vendo a outra, perfeita e inteira.

Numa de suas excursões de rara esturdice, deu Paulo de conhecimento, num baile popular, com a já então multifalada Negrita, que pelo rapaz se tomando de viva inclinação, quís, a viva força, conquistá-lo.

Teresa impunha-lhe à viva força essa escolha terrível: impetuosa em seus sentimentos, franca por demais em suas expressões, conseguira convencer o moço de que nunca fôra amado dessa maneira.

Notou o moço a identidade de maneiras que, afinando com a das feições, quasi fazia de Negrita uma Teresa de serralho e desta uma Negrita de salão, ou ver em Negrita uma antiga Teresa degenerada, e, nesta, talvez, uma futura Negrita... Quem sabe as linhas passadas e futuras do destino?

Nem por isso se sentia Paulo mais feliz ante as apaixonadas manifestações dessa jovem formosa que para muitos seria o ideal supremo da existência. Tão verdade é que "o prazer do amor consiste no amor e somos mais felizes pela paixão que nutrimos do que pela que inspiramos" no dizer de celebre moralista, que o moço advogado, convencido de poder contar incondicionalmente com o amor de Teresa, começou a perder todo o antigo ardor que lhe despertava, quando, desdenhosa, o acolhia.

De uma não diversificavam, realmente, os meneios insinuativos e as doces intimidades da outra, antes de tal sorte se ajustavam, que, posto, mau grado seu, entre a viva fuzilaria com que ambas, cada qual a seu modo, buscavam empolgá-lo, acabou. Paulo, enfarado e descontente, por buscar meios e geitos de habilmente fugir-lhes. Veio-lhe dali uma crise de tédio e desconforto moral. Enfarava-o a vida estúpida e sem explicação que vinha de ha tempos levando. A sua obra não passara até então de grandioso esboço, sem coordenação. A sua vida, como a sua obra, parecia. lhe tam-

Por esse tempo, surgiu na cidade uma infeliz ave ele arribação que, de extranhas plagas, viera ali parar, no ingrato mister de alquilar o seu amor a quem lho melhor pagasse. Chamava-se Negrita, nome de guerra que lhe escurecia e mascarava o de família, já perdido. Curiosa coincidência talhara-lhe a plástica das

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bem vasia, inútil, sem rumo ou significação. Chegou a pensar seriamente em um passo que, em criança, muitas vezes se lhe deparara como a sua carreira: a vida religiosa. Voltava a retomar-lhe o espírito a crença antiga, dando-se, ultimamente, como que uma revolução no seu espírito versátil que, após um prolongado mergulho nos prazeres mundanos, propiciados no conhecimento da formosa Negrita, buscava redimir-se a seus próprios olhos em leituras suaves, doces contemplações e pensamentos elevados. Fôra, de resto, sempre assim, mescla extravagante e inexplicável de anjo e demônio, de espiritualismo puro e carnalidade, de idealização e concupiscência. Extranha duplicidade do seu sêr moral o fazia deleitar-se, no mesmo dia, com espaço de horas, nas paginas de um S. Francisco de Assis, elevadas e sublimes, como vôos no azul, e nas folhas de um Casanova, tresuantes de torpes encantos. A sua vocação sacerdotal passou também, ao cabo de quinze dias, e novos pendores, novos planos entraram de esvoaçar-lhe na mente.

o pleno consorcio com a natureza, passeios ao luar, de batelão, pescarias, banhos de água corrente, um pouco de equitação, o bom leite espumante no curral, às primeiras luzes do dia, tudo, porfim que forma a poesia rústica das nossas casas de campo.

Glorinha, porém, tinha peiorado muito nas ultimas semanas e foi-lhe forçado adiar a execução dos seus planos diante do estado da prima. Por outro lado, certos boatos que vinham correndo de uma possível viagem de sua mãe à cidade o detiveram nessa espectativa mais algum tempo. Uma noite, em casa dos Monteiros, conversava-se acerca do casamento da Lídia, uma amiga da casa, com o Esteves, engenheiro recém-chegado à terra.

— Este comeu logo, "cabeça de pacú," disse Décio, referindo-se à tradição local que faz crer que o saboreio da cabeça desse peixe determina um definitivo enraizamento no lugar por parte dos adventícios.

— Ou bebeu "água da Prainha", replicou D. Francisca, sorridente. Também a nossa "água" tem suas propriedades milagrosas e prende os forasteiros.

Iria passar um mês ou mais no sítio de um amigo, na Beira-rio. A quadra era propícia. Pela vasante, no começo da seca, a zona ribeirinha povoava-se de encantos admiráveis. Levaria uma Flaubert para as suas caçadas, um bom anzol para fisgar peixes, nos cardumes, da primeira lufada, ensaiaria a vida ao ar livre,

— A mim é que não me prenderia jamais, apressou-se em dizer Paulo.

— Ora, mas você é daqui mesmo! disseram os presentes, a uma voz, rompendo numa gargalhada gostosa.

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— Por isso mesmo... Mas digo que nada me prende — contra a minha vontade. A própria terra natal, desde que me dê motivos de desgosto, sou capaz de deixá-la para sempre e sem remorso algum.

— A terra não é que prende ninguém, Paulo, atreveu-se a dizer, timidamente, Piedade. Nós nos prendemos à terra pelas pessoas... O nosso amor humaniza a terra, mas, no fundo, o que nós queremos não é a terra, são os que vivem na terra.

— Pois, olhe, por onde tenho passado, tenho deixado... amizades... inclinações... dessas cousas que prendem a gente... E nada, entretanto, até hoje me prendeu.

SSEEGGUUNNDDAA PPAARRTTEE Gostava de gabar-se, com certo ar fanfarrão, diante das primas... Parecia que assim se dava mais valor. Ninguém retrucou à sua tirada, sinão Piedade que, baixinho, disse, quasi para si mesma: — E que você ainda não padeceu de verdade... só a dôr verdadeira é que ensina a amar!

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relíquia familiar que recebera o ultimo suspiro de três ou quatro gerações, confortando, no angustioso transe, velhos e crianças, moças em flor e encanecidas avós. Viera do Reino, com o chefe da casa, quando se pusera mar em fora, a cata de aventuras, e atravessara sertões inhospitos, galgara serras e vadeara torrentes, vindo ter a esse recanto esquecido do mundo onde o velho luso se radicara e se prendêra definitivamente nos braços da formosa "flor das morenas", a grácil Rosinha, que fôra o tronco da nova raça, nascida na terra nova e virgem da América. Recebia esse Jesus macerado, de feições suaves e divinas, o ultimo suspiro de um rebento da raça forte dos Monteiros que, em plena adolescência, se alava ao desconhecido e Paulo contristava-lhe ver o quadro lúgubre desse aposento cujo silencio só as lagrimas abafadas quebravam. D. Francisca tinha sido retirada quasi à força do quarto, desde que, após a segunda crise, o Dr. Lima percebera estar próximo o desfecho da moléstia de Glorinha. O leito fôra posto no meio do compartimento, cujas portas se abriam à luz morrente do crepúsculo. Regina e o marido, Piedade, a velha tia Carolina, compunham toda a assistência desse doloroso drama. O Padre cura, chamado, á pressa ministrara a enferma o último sacramento retirando-se para assistir a outro doente grave, o Coronel Mei-

CCAAPPIITTUULLOO II

LLuuzz qquuee ssee aappaaggaa NA sala, para onde a haviam transportado por

determinação do medico, Glorinha agonizava. Paulo se contivera entreportas, sem animo de entrar. A hora era devéras pungente. Sob o lençol alvíssimo, o corpo da moça desenhava-se esquálido, recostado aos travesseiros, e no seu rosto via-se já o vinco doloroso e fatal que a morte imprime aos eleitos do seu ósculo de gelo. As mãos de longos dedos esguios, com as unhas arroxeadas, apertavam ao seio um crucifixo de marfim, linda obra de arte e maravilhosa imagem de fé,

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ra, cardíaco e às voltas com a influenza que o prostrara. Regina chorava silenciosamente, toda unida ao esposo, o Tenente Decio, que, também mal conseguia dissimular a sua emoção. D. Carolina e Piedade, cada uma de um lado do leito, procuravam, com dois grandes abanicos de palha, diminuir as ânsias que torturavam a moritura. As sombras iam invadindo a sala e, da varanda visinha, vinham os brados dos canários de Léu e o monótono tiquetaquear do grande relógio de parede. Levantou-se Piedade, na ponta dos pés, sem rumor, para fazer luz no candelabro sobre a mesinha de jacarandá. O silencio se tornara maior, mais augusto, mais profundo. O pulsar do seio da enferma diminuía sensivelmente, dando a impressão de que ia melhorar ... Era, porém, não, a melhora, sim a libertação definitiva da dor que a excruciava, o desprender-se da carcérula do corpo dessa alma pura de virgem que longos penares redimiram. Léo entrou, acompanhado do Doutor que tivera de ir fóra para acudir a outro chamado, Sorprezou-lhe, encontrar ainda viva a doente. — Boa constituição tem Glorinha, segredou a Paulo. Não fôra esta moléstia cruel...

deu-se-lhe, sob a camisola de rendas... Uma lagrima deslisou-lhe, lenta, pela face cavada, cujas feições se sobrenaturalizavam, emaciada pela morte, que aprezava, porfim, a sua escolhida. Num grito, Regina precipitara-se sobre o leito. Todos correram em torno de Glorinha, que deixara de viver... E ninguém poude conter uma pessoa, que, aos gritos, penetrara no aposento e, debruçando-se sobre o cadáver ainda cálido; exclamava, em soluços:

— Minha filha! Era D. Francisca.

A agonizante, entretanto, cerrara os olhos, depois de os passear por toda a sala, numa demorada observação. Estendeu a mão esquerda à irmã solteira como a despedir-se. Num arquejo mais forte — o ultimo — o seio disten-

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ma um apoio moral à sua existência, Como, porém, aproximar-se-lhe pelo amor, si o que entre ambos havia de franca intimidade excluía, só por si, um sentimento diverso e passional. De que maneira fazer sentir à doce creatura os seus intuitos, si via em Piedade antes uma irmã, uma amiga, uma companheira da meninice, do que a perturbadora mulher que nos infunde o amor e nos prende durante toda vida?

Parecia-lhe, entanto, que no seu estado de

doença, diante da sua idéa da vida, neste período de dissolvência em que a sociedade se arrasta, nenhuma outra poderia assegurar-lhe um porvir sereno e sem tragédias íntimas, senão essa ingênua menina, viva, atilada, mas sem noção do mal, bonita e meiga, criada sob as suas vistas, no recatado ambiente familiar, no meio de gente à antiga, zelosa das tradições honestas e puras do lar brasileiro.

CCAAPPIITTUULLOO IIII

OOss ccaammiinnhhooss ddoo ccoorraaççããoo NO começo da crise que se manifestara no

espírito conturbado de Paulo, a morte de Glorinha fôra um elemento poderoso, contribuindo para mais exacerbar-lhe o nervosismo hereditário.

Dispor-se-ia a moça, porém, a tamanho sacrifício, qual o de renunciar a partidos vantajosos que se lhe poderiam deparar, tão criança que ainda era, e graciosa? Só o amor infunde essa virtude suprema de renuncia, esse poder sobrehumano do holocausto do seu futuro, das suas alegrias, do seu conforto, pelo prazer único de conviver com o ser amado.

Conta salutar revide, veio-lhe, numa onda de saudade, todo o seu passado à memória e começou daí a planear um futuro que tivesse no passado os seus alicerces. Voltava-lhe o pensamento, tantas vezes vindo e revindo, de procurar no consorcio com a pri- Que certeza poderia ter de inspirar a Piedade

outro sentimento que não fosse essa

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fraternal e recíproca amizade que sempre se haviam demonstrado, tão longe, entanto, do verdadeiro e apaixonado amor? De interrogação em interrogação, de duvida em duvida, ia-se o espírito do moço pairando assim num mar de indecisões, de receios, de desejos que não tomavam corpo, porque temiam a realidade, sendo lhes mais propicio esse intermúndio do sonho e das idealizações. Não podia furtar-se, mau grado a si mesmo, a certa perturbação que de algum tempo lhe causava a só presença da prima. Via a ligada, por elos de uma cadeia invisível, mas que se fazia sentir imperiosamente, a todas as recordações mais gratas do seu passado distante ou próximo. E o passado, mesmo, quando o não queríamos, exerce um papel importante e decisivo em nossa vida. Ninguém consegue furtar-se lhe a influencia boa ou nociva e, por mais frio e prosaico, que homem haverá que se esquive de todo ao poder dessa força imperiosa da evocação? Paulo, temperamento de romântico retardatário, vivendo no meio de uma sociedade burguesa, avessa ás idealizações, sentia mais que ninguém esse prazer da segunda vida, da vida mental, superior à vida quotidiana e banal. E, por isso, o amor que sentia por Piedade começou a deitar raizes profundas em seu coração.

esperanças e sonhos, de utopias e desejos amor em que cooperam, de meeiras, a esperança e a imaginação; maior é o amor que se entretém de realidades, confina-se no presente, alimentando-se do gosos ou prazeres, que a hora fugidia leva como águas correntes do viver; acima desse, porém, máximo em sua ultrapotencialidade, é o amor que se arraiga profundamente no passado, como arvore que, frondejante, se infiltra radicalmente no mais secreto do terreno, amor que se liga a cada evocação e a cada saudade, feito culto e tradição da religiosidade mais intima e universal, a do sentimento.

Paulo se apercebia do que realmente se passava na sua alma e presentia na inclinação que insensivelmente o arrastava para Piedade, menos que o lento desabrochar de uma paixão, o desenvolvimento gradual de uma velha e sincera amizade, quando muito essa forma particular da amizade amorosa que inspirou a Stendhal o motivo de uma obra e que, no dizer de Semaitre "é mais do que o amor, por ter deste todos os encantos e nada dos seus percalços e grosserias."

Atilado observador de almas, que se julgava ser, não lhe acudia, como, em geral acontece em se tratando de casos de auto-observação, que o nosso espírito é essencialmente dotado de uma força evolutiva a que só se fur-

Grande é o amor que vive do futuro, de

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tam os que, em qualquer grau, alcançaram o estado de perfeição, a perfeição que concretizamos na "santidade" e é para os hindus representada no nirvana absoluto.

ração, da especialização, da libertação individual nos domina e pensamos que o amor seja um jugo por demais pesado, e sacudimo-lo, si o podemos, para, mal libertos, buscarmos, ansiosos, novas prisões. Entre a utopia da liberdade e a do amor, esta. é a que vence, pois o homem póde ser definido — o sêr que procura o amor, quando o não tem, e foge deste, quando o possue. Feliz o que achou na fé o seu ideal, em Deus a sua aspiração, o que tem na arte pura o seu único amor!

A amizade, por mais franca, limpa de interesse ou malicia, tende fatalmente, entre sexos diversos, a converter-se em amor, em desejo, quando não de intimidades maiores, em ânsia de maior identificação moral, que acaba, procurando fundir os seres diversos em um sêr...

Pela lei dos contrastes, soberana no mundo espiritual, como no da matéria, o amor também, com a convivência, se inclina a fazer-se amizade pura, dês que se percebe a impossibilidade dessa fusão desejada, ardentemente tentada e irrealizável. Um anseio ou uma vibração nos leva da mais serena amizade ao amor mais ardente; uma decepção, um dissabor, nos reconduz da paixão mais violenta à primitiva amizade. Nesse circulo vicioso está toda a historia natural do coração humano, eternamente desejoso e eternamente insatisfeito, amando e desenganando-se do amor para novamente amar. Tendemos, por essência, à fusão, à unificação, à integração com um ser que pressentimos melhor que nós, moral ou mentalmente: o ser amado. Buscamo-lo através de todos os seres, e depois de muito nos enganarmos, julgamos o haver encontrado, e ainda nos enganamos. A lei inversa da sepa-

Isto pensava Paulo, absorvido na sua agitação interior, oito dias corridos sobre a morte de Maria da Gloria. Estava só no gabinete, esperando a hora emprazada para ir, com Léo e as primas, ao cemitério, quando vieram avisá-lo da visita de um velho amigo, que desejava instantemente dizer-lhe duas palavras.

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e prompta a externar-se em manifestações de toda espécie como a do filho do professor Pereira.

Ricardinho era mais velho que Paulo quasi um lustro e terminado o seu curso preparatoriano, no qual revelara especial aptidão para os estudos de vernáculo, abrira um curso particular que lhe dava os parcos elementos à sua subsistência e de duas irmãs que tinha em sua companhia. Jamais conseguira empregar-se, e de uma feita o haviam mesmo desenganado nas suas pretensões, fazendo-lhe ver o seu todo desalinhado e falto de certa compostura para o desempenho de um cargo publico.

Outros havia peiores e, todavia, bem

arranjados, poderia ter redarguido, si o seu natural receio e a esquerdice do seu gênio lho não empecessem semelhantes franquezas. Resmungou qualquer cousa e, entre risonho e iroso, despediu-se do "chefe" e veio para casa, onde, como única represália, rasgou o seu titulo de eleitor, jurando para os seus botões nunca mais dar o seu voto a esses "ingratalhões da

CCAAPPIITTUULLOO IIIIII

RRiiccaarrddiinnhhoo

ESTE amigo era o Ricardinho e merece que

lhe consagremos um capitulo. Antigo companheiro de infância de Paulo, conservara, através do tempo decorrido e das varjas vicissitudes da vida, uma estima respeitosa e sincera ao velho vizinho de banco dos estudos e, não obstante a grande distancia que os haveres e a posição social interpunham entre os dois, Paulo não lhe lembrava jamais de outra amizade tão carinhosa

politica". O seu fraco, porém, diga-se sem rodeios, não

eram os empregos, de que logo desistia, e sim as meninas, que o faziam padecer e das quaes não se conformaria jamais em abrir mão, apezar dos dissabores que lhe traziam ao coração simples e exageradamente piegas.

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Ricardinho era a figura do homem mulherengo, do fraldeiro, que só se sente bem à sombra amparadora das barras de saia, como si a consciência de sua natural inferioridade mental lhe incutisse a necessidade moral de um apoio na existência, que só o carinho, sinão a compaixão feminina, lhe poderia dar. Infeliz, porem, ainda nisto, não lhe fôra possível encontrar até os seus 29 janeiros, que os tinha bem contados, a compassiva criatura cujo amor o redimi-se a seus próprios olhos e o soerguesse ao nível dos demais homens que "são amados". Parece até que a intensidade com que exteriorizava o seu amor, numa franqueza assas desagradável para o seu alvo, contribuía para o nenhum êxito das suas investidas junto às mulheres, legitimas herdeiras da mãe-Eva, que preferiu a todos os frutos que se lhe apresentavam, viçosos e maduros, pendentes das arvores edenicas, aquelle pomo defeso e pouco accessível, cuja provança lhe insinuára a serpe insidiosa. Como quer que seja, Ricardinho tinha bem pouco da serpente, porque não sabia tentar e nem dissimular os fins para obter o que queria. Ver uma pequena graciosa e terna, impressionar-se e declarar-se rendido aos seus encantos — tudo isso era-lhe uma só cousa um só estado de emoção. As divas, preferem, ao invés, quem as procure sem demonstrar-se rendido de todo e a-

mam vencer certos embaraços para mais tarde disso se gabarem. Ha até as que, não tendo rival verdadeira, a criam, para deleite da sua imaginação e pábulo de ciúmes que, com serem vagos, não são menos intensos. Ricardinho, este, coitado, não amava sinão uma de cada vez e ardorosamente... Radicara-se ultimamente na paixão por uma loura esplendida de viço e radiante de mocidade. Era o paradigma que lhe agradava, pela lei dos centrastes, de poderosa influencia nas relações do amor. A sua cor terrosa de mestiço sorria a perspectiva de uma esposa bem clara e ruiva, como Helenita, em que todos os seus traços de retardario, marcado por uma cruel degenerescência, encontravam o complemento feliz, o que justamente lhe faltava. A sua testa estreita, os seus olhos acanhados e ajaponezados, o seu nariz rombo, os seus cabellos curtos e grossos, o seu todo mal ajambrado e anguloso estavam a pedir, na ânsia da Natureza pelo corrigir seus defeitos e apurar-se em um estagio melhor, essa fronte vasta e radiosa, esses olhos glaucos e lúcidos, como duas gelosias rasgadas para o azul, esse perfil aquilino, cortado à grega em mármore humano, aquella coma vasta, ondeada, fulgurante de tons de sol e de luar, o completo, porfim, de perfeições vivas que fazia da moça da Rua de Cima a criação ideal dos sonhos de Ricardi-

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nho, justamente por ser o seu inverso. Helenita não déra por si na muda e ardente

idolatria que, na sua pessôa, votava o obscuro professor ao radioso sexo a cuja conta corre, segundo os mais autorizados testemunhos, a perdição da humanidade. E dali a tortura do infeliz, entregue, mais do que ao ridículo publico, que lhe passava despercebido, ao próprio e irreparável ridículo de que a sua mesma consciência o apodava.

Nesse dia viera disposto a um entendimento definitivo, mas tímido, incapaz de deliberar por si mesmo, a sua hesitação o aconselhara a tomar ainda um parecer com o seu velho companheiro. E ali está porque, tão cedo, em hora inadequada, se pusera a caminho do gabinete de Paulo, onde o vamos encontrar.

CCAAPPIITTUULLOO IIVV

UUmm aammaannttee ppllaattôônniiccoo NÃO conseguiu Paulo reprimir um

movimento de contrariedade ao ver em sua frente o velho amigo, presentindo logo o motivo da sua visita matinal. Ao notar, porém, em Ricardinho, veio-lhe antes uma vontade doida de rir, que com esforço, conteve, tal a canhestrice do rapaz, o seu todo mal ajambrado num terno de brim riscado, segurando na mão esquerda um chapéo de côco e na outra o guarda chuva velho, de cor cinzenta, as varetas pendentes fora dos noêtes. fê-lo sentar-se e, depois dos cumprimentos, vieram as perguntas pela saúde, que Ricardinho tornava minuciosas:

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— Então o meu presado amigo bem, não é? E os seus, todos? A Exma. D. Carlota, tem tido notícias? E o nosso caríssimo Álvaro, e a sua Esposa como estão?

— Excusa dizer que os meus livros estão sempre à disposição do caro amigo... E dizer por onde quer começar suas leituras.

E levantando-se, num gesto elegante, a ageitar a gola do pijama azul com alamares creme, foi até perto da estante de embuia, a pequenina estante de obras clássicas, para a qual, ávido, Ricardinho lançava os olhares curiosos.

— Todos bons, agradecido, responde a Paulo, num laconismo irritado.

Ricardinho, sem perceber a indisposição do amigo, passeava os olhinhos piscas e gateados pelo gabinete, dizendo, em pronunciado tom encomiástico:

— Tenho aqui o Camões em diversas edições... O Fernão Mendes... Sá de Miranda .. "A Vida do Arcebispo"... — O amigo é que sabe viver... Uma casa bem

arranjada, uma sala de primeiríssima, sim senhor! E que magnífica livraria escolhida e numerosa!

Oh! isto é admirável! exclamou, num assomo incontido, o ledor dos bons mestres da língua.

Qual! apenas o necessário! retorquiu o advogado, intimamente lisongeado e já sentindo melhores disposições ante o elogio de Ricardinho. E você, tem muitos livros? Um professor deve lêr muito, não?

— E, em outro gênero, o Bocage, o Tolentino, o Felinto... Esta prateleira é só Castilho... Aqui em cima, as obras de Herculano... Si você prefere os modernos...

Ia Paulo passar para a outra estante, dos autores contemporâneos, mas Ricardinho o deteve, vendo que o tempo se consumia, sem que pudesse abordar o caso que o trouxera à casa do advogado.

— Alguma causa, meu amigo. As posses, porém, não facultam se tenha quanto se almeja... O preço dos livros hoje é muito alto para os que não dispõem de grandes recursos pecuniários. — Não... Não... A mim me apraz de

preferência a leitura dos clássicos... O amigo bem sabe. Hoje o que ha por aí são lantejoulas falsas, com que sóem se ataviar os Eças et concomitante... Não. Vale mais o brilho do ouro de lei. Os antigos sobrepujam em tudo esses renovadores...

Paulo sorriu. Agradava-lhe, como um desporto mental, provocar a loquacidade do antigo companheiro e ouvi-lo falar, na sua linguagem meio preciosa, empolada e cheirante a classicismos tirados de velhos quinhentistas. E para ser gentil, esclareceu: Paulo sorriu e veio-lhe a idéia de contes-

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tar a Ricardinho, mas percebendo.lhe a impaciência no olhar, voltou para o divan e enquanto acendia um cigarro, interrogou o outro, para cortar-lhe a indecisão e forçá-lo a entrar no caso.

— Jamais, meu amigo, jamais. Os elos que nos unem são assaz fortes, que só a morte os desliará. A família entretanto, é que se recusa formalmente ao nosso enlace. Tomados de preconceitos absurdos, pretendem que eu não esteja na altura de ser o esposo de Helenita...

— Como vão os seus amores com a encantadora Helenita?

Num pigarro que lhe acudia toda a vez que era assim arrastado, de chofre, para motivo tão sublime, respondeu o enamorado rapaz:

— Oh! que absurdo, realmente! fez Paulo, num gesto estudado de revolta. E a moça?

— A despeito da campanha contra mim movida, sobretudo pelo pai, e pelos irmãos, permanece-me fiel, guardando, todavia, como recatada e submissa filha, certa frieza, a meu respeito. Oh! mas eu tenho a certeza plena e integral do seu amor!

— É, em parte, o que me demoveu a vir hoje procurá-lo, meu amigo. Dias atrás já vinha alimentando este desígnio, porém o infortúnio que pesou sobre a sua nobre família, com o chorado passamento da sua prima a Exma. Sra. D. Glorinha, não me consentiu satisfazer antes este desejo. E, a propósito, a Exma. Sra. sua tia vai passando bem, mais confortada? E as suas Exmas. Primas?

— Já lho disse alguma vez, naturalmente... — Isso não, meu amigo A pudicícia lho

vedaria, mesmo quando ensejo se nos deparasse a uma conversa. Tal ensejo, porém, ainda não houve, até ao presente, tão custodiada vive a minha adorada deidade!

— Que fazer meu, caro, nestas circunstancias, sinão conformar-se? Vão passando melhor, obrigado.

— Perfeitamente. Ao que dizia, deveria o ter buscado já ha alguns dias para consultar a sua experiência e tomar um aviso do antigo com-discípulo acerca de certas cousas...

— E as demonstrações que o autorizam a essa certeza são eloqüentes, não? inquiriu Paulo, curioso.

— Eloquentissimas! Olhares e sorrisos inequívocos .. Piscares de olhos, cumprimentos amáveis, acenos de cabeça que não deixam dúvida. Deante dos parentes e de extranhos a coitadita tem que dissimular os seus véros sentimentos. Imagine que um dia destes, porque ia acompanhada do irmão, chegou a deitar-me a língua —

Ricardinho reticenciou o seu pensamento e Paulo, vendo-o hesitante, esporeou-lhe a coragem com uma pergunta:

— Dar-se-á que tinha havido algum rompimento?

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ó e com que graça! dizendo-me: — Você não se conhece, seu quarta feira?

dizer Paulo, ansioso por terminar a estulta conferencia, só agora se lembrando do compromisso de sair com o Léo às 9 horas. — Fingimento, de certo, ponderou Paulo,

quasi a estourar numa risada. — Sim... Isto é, desejava saber do amigo, que é jurista e consumado causídico, si diante da impugnação da família, Helenita...

— Isso mesmo. Pura dissimulação, A pequena é hábil e maneirosa. Ama-me, tenho a certeza. Lá isso, em presença dos parentes, poderia para os não desgostar, até atirar-me pedras... Ninguém me dissuade do seu amor!

— Ah! lá isso não! Helena é menor ainda e precisa o consentimento paterno para casar-se. A menos que, — disse, rindo, ironicamente — se aventurasse a um passo em falso por sua causa. O casamento será então... como se diz, a reparação...

Paulo, que via até ali o lado cômico da paixão de Ricardinho, apiedou-se sinceramente do amigo e teve ímpetos de abrir-lhe os olhos, fazendo-lhe ver a sua ridícula posição. Pensou, entretanto, na inutilidade de seu gesto, que só determinaria uma decepção para o outro, que vivia tão feliz no seu voluntário engano. Dali, talvez, nem Ricardinho acreditasse e ainda se fosse desconfiado de sua amizade, o que seria realmente penível, pois, apesar de tudo, estimava o amigo e aprazia-lhe o seu convívio, no qual se divertia.

— Oh! isto nunca! meu amigo. Nem o faria a pequena e nem os meus princípios inflexíveis o consentiriam!

Paulo pensou, com malícia na fábula lafontaineana da raposa e as uvas, mas, para velar o seu pensamento, disse, como terminando a resposta ao consulente:

— Haverá ainda o recurso do pedido de autorização ao juiz, mas isso é mais complicado e menos fácil... — E a sua consulta? perguntou, curioso.

— É que... O amigo bem vê, sou um homem, um homem feito, em plena virilidade... Fiz ha um mês atrás os meus 29 janeiros. Ora, não me é possível viver assim em estado de solteiro, visto que, pelo meu temperamento e modo de pensar, sinto tender-me natural e irresistivelmente para a vida conjugal. Desejo, pois....

Sim, mas, é legal pois não é? Eu o prefiro a qualquer outro meio.

Paulo sentiu de novo uma profunda compaixão pelo pobre Ricardinho e vexou-se ao imaginar que esse infeliz, que a paixão obcecava a ponto de não ver que era um jogral da sua amada, pertencia ao seu sexo, era um homem, também, e que, à guisa desse, muitos ou- — Pedir a menina, não é? apressou-se em

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tros havia, mais lúcidos, mais raciocinantes, mais apresentáveis, figurando na sociedade e vestindo boas roupas, e que, no fundo, não passam de outros tantos Ricardinhos, no amor, nos negocio, na carreira...

Durante uma pausa que se fez na palestra, Léo entrou e percebendo a situação do primo, pôs-lhe termo, forçando delicadamente a retirada de Ricardinho com estas palavras:

— Você até agora ainda está assim? Ande. Olhe que as meninas estão já vestidas, à sua espera, para irmos ao cemitério!

CCAAPPIITTUULLOO VV

VViissiittaa aaoo cceemmiittéérriioo AO transporem o portão de ferro da silente

cidade dos mortos, uma emoção singular assaltou-os pensando na que iam ali visitar. Que restaria a essa hora, sob o frio chão, da Glorinha formosa, vivace, alegre, de outros tempos? Massa empodrecida a se deformar dentro das quatro taboas do féretro, eis o destino da que inda ha pouco irradiava a sua graça e formosura nos salões e nos passeios, eis, alfim, a sorte que estava reservada a todos, também aos que hoje iam fazer essa macabra visita em que se não vê o alvo da fúnebre ho-

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menagem, porque, si fosse para vê-la, ninguém se animaria a tanto, por maior o amor e por mais sincera a amizade que lhe devotasse.

cia. As duas; moças ajoelharam-se, detendo-se em prolongada oração, que se entrecortava de soluços e ais pungentíssimos. Paulo e Léo conservaram-se em pé, num respeitoso silencio. Ercília foi a primeira que se levantou, no que foi logo acompanhada pela outra, dirigindo-se o grupo, depois de ter deixado sobre o jazigo as flores trazidas, a procura de outra campa silenciosa, junto ao muro do fundo, que apenas uma cruz de madeira singela identificava no meio das sepulturas rasas e sem nome que a cercavam. Dormia ali a querida Mãe Roberta, que recebeu da saudade filial dos seus "pequenos" e das suas" meninas" a homenagem das preces e das flores. Já de regresso, enquanto se detinham curiosos, aqui e ali, lendo as palavras de saudade gravadas sobre os mármores das lousas ricas ou nas placas das cruzes humildes, reconhecendo velhos amigos cuja memória se perdera no turbilhão da vida, foi-lhes a vista despertada pelo chegar de um préstito fúnebre. Era o enterro de uma mocinha, pouco mais que uma criança. O caixãozinho branco, com enfeites dourados, vinha sobraçado por quatro meninas e deveria estar muito leve, tal a fácil e desembaraçada maneira por que o conduziam. O acompanhamento era, em maior porção, constituído por moças e crianças, vindo atrás uns dez ou doze homens apenas. Entreparados, a um dos lados da ave-

— Ai do homem, ai de nós outros, pensou Paulo, que, sem o espiritualismo, não passamos de miseras larvas da terra!

Fazia um dia magnífico, um desses dias límpidos, de começo de inverno, muito claros, de céu azul achamalotado de nuvens brancas, com uma viração suave a percorrer o espaço, trazendo o olor distante da vegetação prenhe de seiva, na floração radiosa... Do alto da Piedade viam-se, para a esquerda, precinta azul a fechar os horizontes, os recortes da grande Serra, bem nítidos na transparência desse dia de sol, parecendo, à distancia, uma visão de sonho, o descortino sobrenatural de uma paragem encantada de extranho orientalismo...

Pelas portas dos casebres que circunvizinham o campo-santo, garotinhos nus e mulheres maltrapilhas e sujas estadeavam à grande luz a sua miséria sórdida, como um eloqüente quadro da vida, ali perto da mansão da morte. Paulo e os primos — pois D Francisca não se amimara a vir, combalida como se achava — tomaram lentamente, mudos, o rumo da sepultura de Glorinha. Num recanto sombrio, para a esquerda da alameda principal, a terra fresca, revolvida de pouco, lhes indicaria o local, si já não o conhecessem de referen-

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nida central, deram Paulo e suas companheiras passagem ao cortejo. O féretro aberto deixou-os ver a morta, uma doce feição macerada de monja, olhos fundos, longa e formosa coma, sob a grinalda de botões de laranjeira.

— Ia fazer doze agora no mês que entra, apressou-se, solicita, em informar uma moça do grupo, que, pelos modos, parecia da família da defunta.

— De que morreu? perguntou Ercília, animando-se a obter novos informes que satisfizessem à sua curiosidade.

— Noiva da morte... disse Paulo, baixo, ao ouvido das primas. Que triste noivado!

— Quem é? Você conhece? Perguntou Ercília.

— Sei lá... respondeu, num muchocho a outra, uma rapariga esguia, alta, meio amulatada, de uma gaforinha enorme. Diz que foi da tal gripe. Mas para mim foi de sentimento...

— Não. Gente lá das bandas do Areão, segundo me informaram...

Ercília, na sua curiosidade meio infantil, propusera que assistissem ao enterro.

Lobrigando um romance, reticencêado no "caso" da infeliz morta, as Monteiros calaram-se, emocionadas, entreolhando se discretamente. Ercília, pouco depois, quando punham a tampa do caixão, tornou à conversa com a cabrochinha do cortejo:

— Para que? perguntou Léo, que se dava pressa em retirar-se. Vai ficar muito tarde.

Paulo, porém, votava pela proposta da menina e já, acompanhado das primas, se punha a caminho do local onde u grupo estacara. — De quem era filha esta menina?

— Da Joaquina Sacupéva... Uma mulher moça, que mora lá pros lados do Areão.

Contrariado, Léo deixou-se ficar sentado num dos bancos que margeam a alameda, em palestra com um amigo que viera atrás do acompanhamento. — E era só esta? Não tinha outras irmãs?

A beira da cova, os três primos se detiveram, bem junto ao esquifezinho, que as carregadoras tinham repousado no chão.

— Póde que sim... disse ingenuamente a informante. A Sacupéva andou muito tempo lá pro Norte, no seringal. Mas em companhia só tinha esta, a Briolânja, por alcunha Birí. — Tão pequenina! Quasi um "anjinho"...

ponderou Piedade, penalizada. Os coveiros, entrementes, haviam atado às alças do caixão duas cordas com que o soergueram a altura dos braços, descendo-o depois lentamente até o fundo da sepultura. Houve um sussurro surdo nos circunstantes e

— Que idade teria? disse Ercília, numa vaga interrogação.

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choros abafados se ouviram, partindo do grupo que viera acompanhando o corpo. Cada qual, conforme o costume da terra, tratou de apanhar uma flor, um ramo, um torrão de terra, que atirasse sobre o féretro. Começavam a tombar as primeiras pazadas, num som oco e sinistro, sobre a fazenda do tampo. Já alguns se retiravam, notando episódios do acompanhamento, quando Paulo e as meninas vieram encontrar Léo, na avenida. Adiantara-se-lhes a cumprimentar as pequenas o rapaz que ficara ali em palestra. Era um elegante moço, muito bem posto e trajado, mostrando meia idade, feições regulares, notando-se-lhe apenas ligeiro cacoete nervoso consistente em constante piscar de olhos. Léo apresentou o ao primo:

linguagem, tão em contrário à polidez de maneiras que Paulo sempre manifestara, Léo lhe explicou tratar-se de um bacharel recenformado, filho de rico fazendeiro de um município vizinho e que ali viera advogar. De caminho veio-lhe contando ser Gonzaga moço de muito futuro, vaticinando-lhe brilhante carreira a sua riqueza, seu talento, e o prestigio político da família.

— Está ali, está deputado pelo menos, concluiu rindo.

— Pois olhe, pode limpar as mãos a parede, disse Paulo, visivelmente contrariado com os encômios do primo ao Gonzaga. É um sujeito petulante e audacioso, que, por isso, nunca me entrará, com toda a riqueza e talento que possa ter...

— O Dr. Léo Gonzaga, meu chara e amigo. — Meu primo, Dr. Paulo Barbosa.

E, olhando intencionalmente para as primas: — Onde vocês o conheceram?

Trocaram algumas palavras de cortezia e amabilidade. O recemchegado acompanhou-os até o portão, prodigalizando gentilezas às Monteiros, sobretudo à Piedade, a quem parecia ter a idéa de agradar.

— Na casa dos Bragas, é primo ou cousa que o valha, da mulher do Braga.

— E já têm tanta intimidade? — Oh! Paulo! acudiu, conciliadora, Piedade.

Que intimidade viu você entre nós e este moço? As moças recebiam com um sorriso discreto,

mas amável, os galanteios que lhes eram dirigidos, fingindo, porém, não os entender. Mal os deixara o Dr. Gonzaga, perguntou Paulo, meio bruscamente, ao primo:

A intervenção inesperada da prima, em vez de apaziguar-lhe os nervos irritados, o pôs num. exaspero maior, que debalde procurou reprimir.

Assim é que, vivamente, retrucou:

— Quem é este pernóstico? Extranhando-lhe a rudeza deshabituada da

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— Que intimidade? Pois, porventura, a um moço que se conhece de uma simples apresentação, cujos antecedentes se ignoram, que tanto pôde ser um homem digno como um réles valdevinos, se trata pela maneira por que você tratou o tal.. do doutor Gonzaga?

Piedade não replicou, abaixando a cabeça, num gesto de humilhação que, em consciência, via não merecer. As outras continuaram caladas e o grupo seguiu, silencioso e contrafeito, até a primeira esquina, onde Paulo, pretextando uma visita que tinha a fazer no Peagaú, separou-se, numa despedida meio canhestra, que foi o melhor gesto encontrado para se livrar da situação critica e embaraçosa.

CCAAPPIITTUULLOO VVII

IInnqquuiieettuuddee O jovem advogado em vão deitara inculcas

afim de colher algum resultado, que viesse confirmar as suas desconfianças acerca das relações da prima com o Gonzaga. De uma parte e de outra nada conseguira apurar e bem lhe parecia agora que fora precipitado nesse primeiro gesto, impulsivo e rude, com que se delatara aos olhos suspicazes da moça. Já se arrependia, posto que se não confessasse, do modo áspero que usara para com a prima. Que iria pensar Piedade dali por diante a seu respeito? Alma simples,

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titante cadencia de um tango a la moda. Brilhava ao longe, na doçura da noite, o foco do Arsenal, brilhante e fulgívago como um astro ao nível da terra. O vento, mais forte, farfalhava as lindas palmeiras, num extranho rumorejar de mar bravo, de cachoeiras, de pororocas invisíveis... No morro vizinho, o sino desferiu, plangentemente, o primeiro toque da Ave Maria. Uma velha que passava por ali persignou-se, pondo-se a rezar, baixinho. Paulo sentiu uma agulhada fina, profunda, que lhe atravessava a parte posterior do tronco, quasi à altura da espádua. Nervoso, propôs ao primo que voltassem, ao que o outro não fez a menor dúvida.

e, mais, boa e gentil, merecia siquer a sombra de uma suspeita como a que o seu arrebatamento lhe emprestara? De si para si jurava não a ver enquanto uma explicação lhe não acudisse, com que justificar o seu proceder. Essas idéas lhe vinham e revinham, fugindo e refugindo, enquanto, no seu passeio do costume, tendo Léu a seu lado, descia a rua Treze, á hora doce do entardecer. Numa casa, perto do jardim, tocavam, ao piano, uma valsa dolente, melodiosa, de extranha sentimentalidade. Entrepararam, sob o pretexto de tirar os cigarros. Ventava furte e começava, lentamente, a descer a sombra da noite sobre a cidade deserta. A valsa, muito peculiar em sua feição e gênero, era uma dessas composições da terra, de pouca arte e muito sentimento, puro romantismo musical que constitue uma verdadeira escola sobrevivente apenas nos meios provincianos.

Daqui ha um mês estou deixando esta terra... — disse Léo com um suspiro, que mal encobria a sua satisfação de partir para os estudos. Hesitara D. Francisca em mandá-lo, sendo o único filho, mas, ultimamente, resolvera fazer o sacrifício pelo bem do rapaz. O estado de Glorinha fôra, a princípio, um pretexto que, no seu egoísmo, antepusera à separação, mas agora era força ceder, e cedeu. E essa partida de Léo — seu amigo de infância, criado junto, com mais tempo de convivência do que o seu próprio irmão, era um golpe à emotividade excessiva de Paulo e foi com pezar que ouviu o primo referir-se à aproximação da data do seu embarque.

— É a "Cruz do Martírio", não? Perguntou Paulo, para dizer alguma cousa.

Não... "Saudades da família", respondeu Léo. O título da musica, a hora, a emoção

crescente que o tomava, tudo contribuía para mais avivar o sentimentalismo do rapaz. Foram andando, devagar, sem dizer mais palavra. A musica cessara e, à distancia, lhes vinha agora, como espelhando os contrastes da vida, a sal-

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Por outro lado, uma guerra íntima se estabelecia no cérebro e no coração do mancebo. Piedade, sem que o quisesse, começava a empolgá-lo extraordinariamente, a ponto de banir da sua imaginação o vulto e a lembrança das outras mulheres, que, como em um filme, a sua volubilidade até ali repassara em amores fáceis e caducos como flores de outono... Via que não sentira por nenhuma outra pendor tão pronunciado. Si, realmente, o picara o áspide do ciúme, ante o encontro do cemitério, em que a prima sorria amavelmente a um desconhecido, certo é porque, insensivelmente, caminhara, em seu íntimo, sentimento que ameaçava degenerar em paixão. Era o tempo preciso de recuar. Não tinha o direito de a enganar nem de fazer a sua infelicidade, unindo-se-lhe sem ter a certeza de a amar. Si fosse essa inclinação que começava a sentir pela prima, simples engana-vista, miragem do seu sentimentalismo exagerado? Melhor era fugir-lhe, evitá-la pois, quando era possível ainda, e não percebia da sua parte nenhum indício de correspondência. Com estes pensamentos, tinha chegado à casa de D. Francisca e Léo o convidou para entrar, mas Paulo, pretextando um encontro marcado no café, excusou-se e despediu-se do amigo, subindo sozinho a rua silenciosa.

CCAAPPIITTUULLOO VVIIII

UUmm ccaassoo ddee lloouuccuurraa A partida de Léo só veio a realizar-se três

meses depois, porquê D. Francisca adoecera gravemente depois da morte da filha, chegando a inspirar cuidados o seu estado.

Quando convalescia, um outro acontecimento, imprevisto, veio, como um raio, tombar, sobre a família já duramente provada. Álvaro enlouquecera, subitamente. No dia seguinte à partida de Léo, Paulo foi procurado em casa pela Naninha que, em, prantos, lhe relatou a longa e penível historia da loucura do marido. Vinha de muito tempo e, para os não aborrecer,

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tudo agüentara caladamente, mas, por último, se tornaram de tal sorte crescentes as crises de furor, que lhe não era mais possível sonegá-las à vizinhança, que de tudo ia sendo informada, sinão pelas criadas, que presenciavam as crises diárias do Álvaro, pelo próprio marido que, perdido o respeito de si mesmo e o receio do escândalo, desandara em descomponendas grosseiras. Si Paulo pudesse imaginar a centésima parte das extravagâncias, absurdos e vexames a que, sob capa, a princípio de simples caprichos, o marido a forçara, e que encontravam de sua parte fraca resistência, pois a levava, de um lado, o amor que lhe tinha e, de outro, o medo de contrariá-lo, nervoso e irascível como, dia por dia, se fazia e cada vez mais! Mas fora num crescendo tal que já se lhe impunha reagir, sob pena de perder o direito ao bom nome de mulher de sociedade e o respeito e consideração dos próprios vizinhos. Encontrando resistência aos seus desatinos, Álvaro exacerbou-se e passou a maltratá-la rudemente, chegando a atirar-lhe as peiores invectivas, e, por fim, a suspeitá-la das cousas mais ignóbeis. O seu ciúme desarrazoava-o completamente e Naninha não podia falar a um homem, fosse o lenheiro, o carregador d’água, o homem do açougue, que logo não se lhe assanhasse a gana contra a mulher e não viesse, iracundo, interrogá-la acerca do que dizia

nessas "conversazinhas", nessas “intimidades com gente da ralé". "Desde que se modificou dessa maneira, passando a vigiar-me dia e noite, chegando à insensatez de dizer que eu queria envenená-lo para dar um outro arranjo à minha vida, começaram, pela vizinhança, uns chin chin chin, umas intriguinhas, que nada me agradavam, e uns inimigos gratuitos nossos passaram à propalar boatos desfavoráveis à minha honra, em confirmação às doidices que Álvaro mesmo se encarregava de espalhar. Sentindo-me ferida assim no que a mulher tem de mais precioso, disse a meu marido que me retirava para a casa de meus pais, onde, quando estivesse em melhores disposições, poderia ir procurar-me. Álvaro fez nesse dia um escândalo tremendo, só não chegando a bater-me porquê me refugiei no quintal, cuja, porta fechei por dentro, rompendo em trajes caseiros, pelo portão, e de lá me dirigi para a casa de um vizinho de nossa amizade. Quando Álvaro se acalmou um pouco, voltei para casa, já disposta a ali ficar, esquecida do que se passara, mas, à noite desse mesmo dia, impressionou-me a feição de meu marido, que, depois que eu me deitara, se pôs a passear muito tempo pela sala de jantar, falando alto e gesticulando... Seriam nove horas ou pouco mais, quando Álvaro penetrou no quarto de dormir e logo, pelo seu todo perturbado, olhar vítreo, mo-

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dos agitados, percebi que a crise da manhã lhe voltava novamente. Dirigiu-se para mim, e, em termos que não ouso agora reproduzir, verberou o que dizia o meu infame procedimento, abandonando-o, um homem digno e honesto, para viver "à gandaia, ao Deus dará". Fiz-lhe ver mais uma vez que não tinha o direito de falar-me assim e que jamais o meu proceder autorizara as desconfianças vergonhosas de que me vivia cercando, mas nem eu acabara de pronunciar essas palavras, eis que Álvaro investe para mim, armado de uma faca de cozinha e gritando; — Pois bem! Eu é que sou o mentiroso, mas dês tá que acabo já com você, sua bruaca de uma figa! Imagine, Paulo, a minha horrível situação. Tive de correr pela casa toda em combinação como estava, e meu marido empós de mim, com a arma em punho, num berreiro, já então fóra de si, até que uns vizinhos, entrando pelo arrombado, penetraram na casa, a tempo justamente de socorrer-me, pois, esfalfada, ia prostrar-me o seu furor assassino...

pidamente a minha vida por causa de um louco! Doeu a Paulo essa expressão final com que a

cunhada se referia a seu irmão e ficou-a olhá-la, sem dizer palavra, considerando mentalmente a trágica explosão em que acabava esse amor tão ardoroso no começo. Boa parte de culpa cabia à Naninha nesse desenlace. Fôra a esposa que, pela sua leviandade, pelo seu nenhum amor à casa e ao marido, pelo descuido em que deixava o lar para se entregar à vida frívola de festas e pique-niques, contribuirá para de certo modo acirrar o estado mental de Álvaro, já de natureza mórbido. Histérica e sem filhos, vendo-se adorada pelo marido, obrigava-o a gastos além do possível, desequilibrando-lhe as finanças, forçando-o a assumir enormes compromissos que não conseguia, com as suas possibilidades próprias, saldar e, quando contrariada em suas pretensões, ameaçava-o sempre com o voltar para, a casa dos pais “onde vivia bem e que nunca devera ter deixado". Tudo isto, junto à vida trabalhosa que tinha, ao nenhum conforto e até às privações que se impunha para satisfazer os desejos de ostentação da mulher, que idolatrava, acabaram por dementar o pobre Álvaro, até que, na crise de ciúmes, reflexa do seu aloucado amor, a paranóia se declarasse, fatal e inexorável.

Naninha estacou, afogada numa crise convulsiva de choro.

— E que é feito do Álvaro? — Isso foi esta noite. Eu, mal o conseguiram

dominar, arrancando-lhe a faca, vesti-me, e dali me fui para nunca mais voltar. Deus me livre! Tudo pode ser, menos perder assim estu-

Paulo consolou Naninha com algumas palavras de cortês amabilidade e, em seguida,

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pediu-lhe licença para ir ver o irmão. Antes que chegasse em casa do Álvaro — uma modesta casinha no alto do Lavapés — soube, por um amigo, que uns vizinhos, apiedados da sorte do infeliz, o tinham feito levar nessa manhã mesmo para a Santa Casa.

CCAAPPIITTUULLOO VVIIIIII

CCoommeeççoo ddee ccrriissee O desenlace impressionante desse romance de

amor calara fundo no espírito doente e sentimental de Paulo. Vira o irmão sacrificar o futuro, a carreira, a saúde, tudo por essa menina, que, agora, quando mais Álvaro precisava, o abandonava covardemente, e, espavorida, à primeira crise de loucura, esquecia dos compromissos sagrados que assumira diante de Deus e da sociedade, voltando para a casa paterna, donde se limitara a pedir a. internação do marido num hospício... Era, então, assim que as mulheres

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entendiam o amor? Devotamento, até o sacrifício, paixão integral e que não mede conseqüências, recíproco esquecer de tudo para se fundir numa só pessoa que resume o universo — tudo lindas tiradas dos livros romanescos, que, na vida, só se repetem nos dias felizes e descuidosos e de que se foge ante o primeiro sopro da adversidade! E Naninha não era nenhuma rapariguinha do povo, inculta e ignorante, pois a sua família, a sua educação, tudo fazia da moça o expoente da época, o padrão da senhorinha de hoje, prendada, fina, de cultura esmerada, que sabia ler em duas ou três línguas, bordar perfeitamente, jogar o tennis, dançar o rig-time à perfeição. . Era a uma, dessas que um homem poderia confiar o seu futuro, a sua vida, a sua felicidade? Si toda a existência fôsse a lua de mel, a viagem de núpcias, a calma enseada dos primeiros meses de casados... Mas depois vêm os filhos, as enfermidades, a morte dos queridos, os azares da fortuna, a miséria muitas vezes, a desdita quasi sempre. Para esses dias não ha contar com as Naninhas frívolas e mundanas, que vivem aos saracoteios, de festa em festa, sem um fundamento moral, sem uma base de educação religiosa, tímidas ante o primeiro escolho a vencer, acovardadas se encontram qualquer adversidade pela frente. Ali estava o seu Álvaro — carne igual à sua e sangue do seu

sangue — inutilizado, quiçá para sempre, e abandonado quando mais necessitava de assistência e conforto. No entanto, esse casamento se fizera por amor, exclusivamente por amor; contrariando até a vontade das duas famílias e eram de ver-se o carinho, os extremos com que se entrequeriam os dois até bem pouco tempo! Uma perspectiva sombria se desvendava aos olhos de Paulo diante desse desfecho doloroso de um drama que já suspeitava de ha muito, através da confidencia do irmão. Também se sabia um doente, um nervoso, um sensitivo e bem lhe parecia que em breve uma crise semelhante lhe adviria e, então, que esperança lhe ficava, sinão a de um triste fim de vida, solitário, num quarto de qualquer, casa de saúde, onde, sem um carinho siquer, a vida se lhe esvaísse num sopro ignorado do mundo, morrendo como um paria, um sem nome, um sem família, um simples numero de quarto, "o 16, o 23, que expirou esta noite." Gelavam-se-lhe as carnes à previsão desse quadro macabro. E faltava-lhe força para enfrentar a vida, encarar o porvir que só lhe surgia à alma combalida, terrifico, povoado de nuvens escuras, caliginosas e de visões dantescas. A sua educação caseira, o vírus romântico que trazia atavicamente e se lhe exacerbara devido às muitas leituras e ao modo de vida que tinha, concorriam para tornar mais pe-

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nosa e cruel a sua situação. Não se animava a dar um passo decisivo que o libertasse de seus terrores e de suas indecisões. Era bem um irmão espiritual de Werther, René, Adolphe, Obermann, ser sem vontade, todo nervos, sensitividade, impregnado do mal romântico pela hereditariedade e pela cultura... O caso do irmão, que fôra obrigado a manter como pensionista na Santa Casa, até que pudesse removê-lo para o Hospício dos Alienados do Rio, tivera larga repercussão pela cidade e os seus inimigos certamente teriam explorado com esse acontecimento, levando à carga dessa tara familiar a casmurrice e os seus modos esquisitos desde certo tempo. Via Paulo a necessidade de reagir logo contra o seu nervosismo e para isso nada mais conveniente que afastar-se algum tempo dali. Planeou, pois, uma viagem à Chapada, que desejava conhecer marcou-a para o mês seguinte, Setembro, antes que as chuvas amiudassem. Levaria poucos livros — três ou quatro — os clássicos latinos de sua preferência, Virgilio e Ovídio, um volume de Maupassant, e as poesias de Mousset. Os trinta dias que ficasse na serra seriam aproveitados para passar a limpo as suas poesias, de que desejava dar uma edição muito em breve. A outra obra, o seu romance de costumes, ficaria para as ferias do fôro, pois que, trabalho de maior fôlego, exigia mais tempo e cuidados.

Assente nessas idéas, deu-se pressa em tratar a viagem com um sertanista seu amigo e marcou para dali a uma semana o passeio. Essa noite foi à casa da tia Francisca e lá esteve de palestra até tarde. Ao saberem do seu plano, as meninas admiraram-se muito e Piedade chegou a manifestar o desejo que sempre tivera de conhecer a Serra:

—É a terra de nossos avós, o sitio histórico da família... disse, como para justificar a sua curiosidade.

Oito dias depois Paulo realmente partia, só voltando ao cabo de vinte dias, tendo reduzido a sua permanência, quer porque já se sentisse, com pouco tempo, enfarado dessa monotonia de vida rústica, em um logar decadente e triste, quer porque interesses de sua banca de advogado o chamassem mais cedo á cidade.

Logo de chegada soube do ajuste de casamento da Teresa Lemos com um dos seus amigos, o Amaral, filho de rico negociante e um dos chefes políticos da terra: esse evento, que meses atrás poderia calar no seu espírito de forma desagradável, deixou-o displicente, tanto evolvêra na sua alma o sentimento que outrora o prendia à vistosa filha do Lemos.

Perto de uma semana após o seu regresso, achava-se Paulo à sacada do seu gabinete, quando viu passarem, na calçada contrária.

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D. Francisca e as filhas solteiras. Tinham ido fazer umas compras na "queima" de um turco, na esquina. Desceu e atravessando a rua, as fez parar, convidando-as a que entrassem para fazer uma visita ao seu "retiro":

— É curioso, disse D. Francisca, que residindo você aqui ha tanto tempo, nunca tenha havido um ensejo de conhecermos a sua casa...

E entraram, rindo-se, acompanhadas de Paulo, que as encaminhou para a sala de visitas, no pavimento superior do edifício.

CCAAPPIITTUULLOO IIXX

AAmmoorr ddee PPiieeddaaddee Lá, enquanto o moço se entretinha em

conversa com a tia, andaram as meninas, curiosas, a correr a casa, sob o pretexto de a conhecer melhor. Ercília, sempre buliçosa e trêfega, desceu, aos saltos, a escadinha que dava para o terreiro e ficou a admirar as lindas parasitas que Paulo cultivava em latas dispostas sobre o parapeito. Dali passou a examinar as gaiolas que, em número de sete ou oito, se viam dependuradas ao longo da varanda. Entrementes, Piedade, dando uma volta pela sala de jantar, como a burlar a vigilância do primo, penetrou pela porta que dava entrada ao gabinete de trabalho do moço advogado.

FOI num mixto de curiosidade e receio que a

moça penetrou no gabinete de escrever de Paulo. Essa tão súbita e inesperada visita despertara-lhe o desejo de aproveitar o ensejo e ficar conhecendo o que seu primo chamava a sua tenda de trabalho. Que havia de inconveniente nisso? pensou, nos breves instantes que medearam entre a idéa que na sua mente formulara e a sua realização. Não era Paulo seu amigo, seu companheiro de infância, quasi seu irmão, que irmãs lhes, eram as duas mães, donde ambos provinham? Bem certo que si Paulo, chegando de sorrate, a encontrasse ali, nada teria a increpá-la... Descerrou a porta e, na pontinha dos pés, entrou no vasto aposento

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silencioso. Logo ao ingressar tolheu-a imprevista emoção: esse quarto deserto ia revelar-lhe talvez modalidades da alma do primo que, aliás, a moça nunca suspeitaria. O "interior" duma pessoa mostra melhor a sua alma do que um espelho lhe reproduz as feições. Na intimidade de sua alcova retrata-se, ao vivo, em suas inclinações e pendores mais secretos, a alma de uma virgem que pode, cá fora, vestir-se de cores diversas para o mundo, mas, no seu recatado aposento, se dá toda inteira, em toda a sua sinceridade, espelhando-se-lhe a alma nas cousas menores que a cercam, como no aço do toucador se lhe revelam as formas do corpo, no desalinho do despertar. Assim no quarto de um homem, de um artista, deve por força, ficar-lhe impressa, vincada, a vida moral, a sua feição interna, de maneira indelével. Presentindo isto, Maria da Piedade teve um assomo de voltar, cerrando empós de si a porta que lhe viria, quiçá, perturbar a serenidade de espírito, infundir-lhe idéas extranhas acerca do primo, trazer-lhe talvez uma decepção inesperada. Mas a curiosidade não cede terreno aos escrúpulos que procuram tolhê-la e ou não se lhe satisfaz o primeiro impulso ou é preciso contentá-la integralmente, nunca parando a meio caminho. Num rápido volver de olhos a moça percorrera em muda observação, todo o aposento, largo, batido de sol pelas duas portas abertas

para o jardim. Estantes altas e severas, de imbuia negra, tomavam a parede do fundo, deixando o espaço livre de uma porta que dava para o pateozinho interno e que constituía a entrada do quarto, quando Paulo não queria utilizar se da passagem pelo interior da casa. Havia, ao lado da secretária, outra estante, esta baixinha, encimada por dois bronzes artísticos, e, no canto inverso, um largo divan forrado de estofo cor de fumo, tendo ao lado uma pequena mesa de fumante, com um cinzeiro de prata velha e uma estatueta representando um passo de caçada. Timidamente se achegara a moça até a escrevaninha pejada de livros e revistas, tendo ao centro o grande tinteiro de bronze — um lindo grupo de oreades dansando em torno de um velho Pan — e sentando-se na giratória, pôs-se a ler as lombadas dos livros apinhados sobre a mesa. Os "Pensamentos" de Marco Aurélio se acostavam às obras poéticas de Samain e sobre um «René,» cujas folhas pareciam ter sido cortadas nesse dia, pois ainda a espátula ficara dentro do volume, via-se, numa encadernação sóbria e elegante, uma "Imitação" que chamou as vistas de Piedade. Abriu-a e na primeira pagina deu com uma dedicatória tocante e singela: "Lembrança de sua mãe”. Embaixo a data e o nome todo da tia Carlota, em letra firme, mas já meio apagada e detida pe-

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lo tempo. Emocionou-a o achado que vinha evocar, um doce passado para sempre perdido. Ao lado da pilha, de livros havia um retrato do pai de Paulo, encaixilhado num quadro simples, de madeira escura e um de Glorinha, o último que tirara, este sem quadro algum, com expressiva dedica no dorso — "Ao querido primo Paulo — sua amiguinha, Glória". Piedade sentiu um abalo inexplicável, vendo ali esse retrato, no local de trabalho, portanto olhado a todas as horas e minutos pelo primo. Deveria ser satisfação, tanto amara a irmã quando viva e ainda agora depois que se fôra; entretanto, assim não era, misturando-se-lhe algo de magua, dissabor, qualquer cousa que, não definia e custava.lhe confessar a si mesma. Doutra parte da mesa havia um quadrozinho de Maria gravado em metal, e tendo aos pés uma rosa já fanada — lembrança, talvez, de alguma pessoa querida, pensou Piedade, com certo amargor. Sobre um retrato antigo de D. Carlota, depositou a moça um grande beijo amigo, e dirigindo-se para o divan encontrou um outro livro, naturalmente o que Paulo estivera por último a ler. Era o Journal de Mauricio de Guérin, de que uma vez o ouvira falar como sendo uma das suas obras preferidas. Abriu-o, curiosa, na página que ele deixara marcada e onde se lia, sob a data de 20 de Abril, o seguinte trecho, com os tópicos

sublinhados: "Ó meu caderno, não és para mim um masso de papel, uma cousa insensível e inanimada; não, tu és vivo, tens uma alma, uma vida interior, amor, bondade, com paixão, paciência, caridade, inclinação pura e inalterável. E's para mim o que eu não encontrei entre os homens, esse ser terno e dedicado que se liga a uma alma fraca e enfermiça, que a envolve de sua amizade, que unicamente entende a sua linguagem, advinha o seu coração, compadece de suas tristezas, inebria-se com suas alegrias, a faz repousar sobre o seu seio e se inclina passageiramente sobre a mesma para repousar-se por sua vez; pois é dar grande consolação a quem se ama, apoiar-se em seu seio para dormir ou descansar. É me preciso a mim um amor como esse, um amor de compaixão. Nada possuo que possa despertar um amor como se vêm tantos no mundo, amor de igual a igual, um amor de almas semelhantes, que vão uma para outra porque se viram reciprocamente grandes e fortes, como dois astros que, tendo-se percebido um a outro dos dois extremos do céu, se fossem juntar através do espaço. Para ser amado, tal como sou feito, fôra mister que se encontrasse uma alma que quisesse inclinar-se para outra inferior, uma alma forte que se prosternasse diante da mais fraca, não para a adorar, mas para a servir, a consolar, velar pela outra, como por um doen-

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te: uma alma, por fim, dotada de uma sensibilidade tão humilde quão profunda, que se despojasse do orgulho natural mesmo no amor, para amortalhar o seu coração num amor obscuro, de que o mundo nada entenderia, para consagrar a sua vida a um ser débil, languecente, e todo interior, para decidir-se a concentrar todos os seus raios numa flor sem brilho, fanada e trêmula, que lhe daria desses perfumes cuja suavidade encanta e penetra mas nunca desses que embriagam e exaltam até a feliz loucura do arrebatamento." Quando acabou a leitura, Piedade tinha os olhos razos de lagrimas. Uma emoção enorme a dominava à idéa de que seu primo, o seu querido Paulo; fosse, como o pobre Guérin, um enfermo da sensibilidade, um emotivo, um padecente. Com o fulgor e a celeridade do raio, uma idéa atravessou-lhe o espírito conturbado: — o plano absurdo, inverossímil, inexeqüível de ser para Paulo essa a alma forte que se prosternasse diante da mais fraca, não para a adorar, mas para a servir, a consolar, velar pela outra, como por um doente"... Diante dessa confissão muda, do estado d’alma do primo, Piedade — só então — medira todo o alcance do seu amor de devotamento e sacrifício. Passava ainda a manga da blusa sobre os olhos, para enxugar uma furtiva lagrima, quando, de chofre, Paulo entrou na sala.

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AA ccrriissee DEPOIS que Piedade partiu, Paulo ficou

longo tempo a considerar o que entre ambos se vinha passando desde a visita ao cemitério. Nunca se referiram ao caso e, todavia, nem um nem outro, o tirara da memória. Insensivelmente via Paulo operar-se no seu íntimo uma revolução moral a cuja evidenciada se não podia furtar. Passada a crise evidenciada pela tendência dispersiva dos amores levianos com Teresa, Eunice e outras que enchiam os claros deixados pelas duas, sobreviera ao seu espírito uma revolta salutar que lhe, fizera ver a imperiosa necessidade de encarar a vida sob um prisma sério e compatível com a sua idade, que já passava dos vinte e quatro. A sua doença, o

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"nervoso" como dizia, para diminuir, por vezes, a impressão da gravidade da mesma, voltava a atenazá-lo com repetidas crises que o punham em um estado de excitação irresistível. Foi num desses dias que a "crise" o empolgou de tal forma que quasi o arrasta a uma loucura do qual só o salvou uma circunstancia verdadeiramente extraordinária, que deveria dar novo rumo à sua existência.Quinze dias eram decorridos sobre a visita de Maria da Piedade a sua casa e fazia um dia horrível, chuvoso, humido e sombrio, próprio a exacerbar os nervos mais calmos e equilibrados. Á tardinha, só, no seu gabinete, um acesso de tristeza horrível o invadiu. Estendera-se no divan, enfiado em um sobretudo que vestira pela manhã, sobre a camisola de dormir, trajo que conservara por indolência e inércia o dia todo. Extranha sensação de desgosto mesclado a um langue desejo de conchêgo, de carícia, insatisfeito, lhe tomava o cérebro, na doce penumbra e no ambiente do quarto fechado completamente. Sem querer, o seu pensamento foi para Eunice, de quem uma indisposição, um arrufo ciumento, o afastara cerca de uma semana. Evocou-lhe, no recolhimento do seu quarto de rapaz, o doce perfil, as linhas tentadoras da plástica admirável, o mistério profundo de certos olhares penetrantes e indecifráveis, como o amor e a morte...

Deveria ser delicioso morrer ao seu lado, num êxtase dos sentidos. Tal pensamento, que antes nunca lhe acudira, deleitou-lhe a mente durante alguns segundos. Súbito, porém, um vago calafrio de terror o sacudiu dalto a baixo. Lembrara-se de Álvaro, da confidencia que lhe ouvira, o mês passado, nesse mesmo lugar e por uma associação de idéas lhe veio, repentino, o pensamento de que também poderia estar prestes a resvalar no abismo tenebroso e insondável da dementia. Não eram ambos irmãos, portanto pares no sangue e no espírito? Tentou reagir contra essas idéas que o apavoravam, lançando-o, como uma criança transida de horror, na obscuridade do desconhecido, do futuro impenetrável. A lembrança de Álvaro, a essa hora aferrolhado entre as grades de um manicômio, gelou-lhe de agoniada amargura a alma dolorida. Com a evocação de Álvaro, dos seus dias felizes de criança, lhe veio a de sua mãe, doente e longe, numa casa extranha, roubada ao seu amor extremado que a fazia quasi um ídolo vivo. Também D. Carlota era uma prêsa dessa moléstia indefinível e torturante do espírito, que o vulgo chama melancolia, nome que exprime mais ao vivo e realmente a face nosologica dos nervosos e doentes d’alma, que todas as complicadas e pedantescas denominações da medicina. Pobre mãe! Quem sabe o que seria desse ser tão frágil, de corpo franzi-

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no e de alma delicada, num meio ingrato, entre camaradas abrutalhados, assistindo diariamente a episódios horripilantes de espancamentos, "tronco" e barbaridades, cuja só narrativa causava horror! O marido era um rústico, bom e delicado para a mulher, mas fazia-a inconscientemente padecer no mal que aos outros infligia. Paulo negara-se até essa data a passar uma temporada na fazenda, porque lhe não iam com a apurada sensibilidade, as dantescas passagens que, de relance, lhe fôra dado assistir, quando menino. Porque não vinha para a cidade passear com a irmã alguns meses? D. Carlota, porém, justificava-se sempre com os transportes, penosos e demorados e a impossibilidade em que se via o marido de deixar os interesses entregues a gente mercenária e ambiciosa. Porfim, era a doença mesma, uma lenta consumpção que a ia minando, o maior impedimento da viagem. Pobre mãe! pensou de novo Paulo. Quem sabe si ainda a veria? Talvez uma viagem lhe fizesse bem, conseguisse diverti-lo, curar-lhe a terrível crise nervosa que, ultimamente, o tomava, tornando-o insociável, irritadiço em extremo, preso à casa, aos livros que cada vez mais lhe envenenavam a alma com as toxinas literárias das leituras ultra-românticas, que eram as suas preferidas. Sim, que bom lhe seria partir, viajar, correr o mundo, gastasse embora tudo o que possuía, a

troco de algumas emoções novas, que o fizessem esquecer as suas tristezas antigas. Pôs-se a imaginar uma excursão longa e pausada pela Itália — país querido — cheia de aventuras de amor e emoções de arte; uma demorada estadia em Paris, onde o desvairamento de Montmartre lhe sacudisse da alma esse torpor e inédia invadente; uma rápida corrida pelo Oriente, original e impressivo, o Oriente de Loti e Farrère, com amores extranhos, em tendas que tinham formas de lotos, cheias de crisântemos, onde as geishas e musmés lânguidas lhe adormentassem a magua ao som dos seus bailados; uns dias nas Antilhas, numa ilha toda verde, cheia de palmeiras ao lado de uma cubana cor de mel, perfumada a almiscar, de olhos negros, com amavios de sereia... Ao fim, depois desse peregrinar exótico, estaria satisfeita a sua alma de amoroso insaciado? Certamente que não... Clara se lhe figurava a inutilidade de qualquer esforço, resultante em exacerbamento ao seu tédio invencível. Precisava, entretanto, partir, fosse para esconder aos olhares curiosos o seu estado de perturbação. Vinham-lhe ímpetos de vaguear, a sós, pelos arrabaldes discretos, longe bem longe de todo o convívio humano, só com a natureza, sempre boa e amiga. Mas a natureza mesma lhe era hostil. Havia três dias a chuva não cessava, chuvinha miúda de fim de dezembro, esplenizadora e enervante. Como aventurar-se a

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viajar dessa forma, em risco de peiorar da sua tosse? Descerrou as persianas de reps vermelho e demorou-se a fitar a paisagem outoniça, fria e tristonha como uma tela de Corot. Voltou para o interior do quarto e foi, automaticamente, sentar-se à giratória.

estava com as cápsulas perfeitas, e, com um sorriso amargo, se dispunha a dar o passo supremo.

Quando, porém, o alçava, a mão ao gatilho, à altura do ouvido, os seus olhos deram no retrato de D. Carlota, sobre a mesa, e pareceu-lhe ver, na expressão dolorida do olhar materno, uma longa censura, uma exprobação muda à doidice que ia fazer. Sobresteve-se ante a idéa de que iria, talvez, precipitar-lhe a morte. Não, não tinha esse direito de poupar se à dor, fazendo penar aos demais. A lembrança materna trouxe-lhe de envolta a crença olvidada nesses longos dias de desvario. Como pudera engendrar e chegar quasi à realização desse plano macabro da própria eliminação? Não lhe ensinara sua mãe que a vida, boa ou má, não se limita ao presente, ao visível, ao sensível? E si sua mãe lhe dissera, em criança, essas verdades, não lhe mentira, por certo, que u'a mãe não mente jamais conscientemente a seu filho... Que seria, si fugindo à dor transitória e tolerável desta vida, fosse tombar na eterna dor do além irremediável? Os conselhos de D. Carlota, os seus convites à resignação, à caridade, á fé, que lhe enchiam as cartas, quando estudante, e eram como que o motivo habitual de suas palestras, vieram, na muda evocação do passado, se enfileirando na mente de

Sobre a secretária, aberto, viu o livro de Guerin que Piedade estivera lendo, e o seu pensamento voôu para a prima. Essa, talvez, pudesse fazer a sua felicidade. Mas quereria, teria a força de sacrificar-se, deixar o futuro sorridente de um consorcio de conveniência, como esse com que lhe acenava o Gonzaga, para dedicar-se a ser toda a vida uma enfermeira de um doente da alma e do corpo, cujo futuro se circunscrevia a alguns meses mais de padecimentos e a um tumulo solitário ao fundo do cemitério deserto? Não seria iniquo da sua parte, quando mesmo lhe percebesse esse intuito, deixar de preveni-la, evitando-lhe esse doloroso holocausto de sua mocidade radiosa a uma velhice prematura, entre as quatro paredes de um quarto de enfermo? Nada. A sua vida só servia de tortura para si e para os demais. Fardo ingrato, estava-lhe nas mãos alijá-lo a qualquer momento. Abrira, devagar, a gavetinha inferior da secretária, sacando do fundo o seu revolver Colt, pequeno e brilhante, na sua irradiação de metal novo. Olhou-o longamente, examinou-lhe a cravação artística, verificou que

Paulo, confortando-lhe o espírito conturbado,

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como um balsamo celeste. Lembrou-lhe, de repente, certa vez em que, menino ainda, brincava com as primas, no tempo da viuvez de D. Carlota, e esta, sempre sisuda e de poucas graças, tivera um gesto de carinho para Maria, sua a filhada, dizendo, enquanto lhe passava a mão maternalmente pela cabecinha castanha:

— Você, por meu gosto, será a mulher de Paulo, si algum dia meu filho resolver a tomar estado.

Essas palavras, ditas, talvez, em tom de pilheria, ou para dar à afilhada uma demonstração da ternura, nunca mais voltaram à memória de Paulo, no correr do tempo, e porquê só agora, nesse momento decisivo de sua vida, quando acabava de resnacer, após a crise violenta que quasi o levara ao suicídio, lhe vinham nítidas, reproduzidas na sua imaginação? Não seria uma dessas manifestações do sobrenatural, das forças ignotas do Destino, trazendo-lhe, na advertência de um aviso de mãe, através da distancia, no tempo e no espaço, a solução fatal e única do problema trágico do seu viver?

TTEERRCCEEIIRRAA PPAARRTTEE

Paulo estava resolvido. Dali a três dias era o natalício da prima. Pedi-la-ia nessa data em casamento. E, como para bem firmar-se na sua resolução, que lhe parecia obedecer a uma inspiração materna, tomou de sobre a mesa o retrato salvador — o mesmo em que Piedade depositara o seu ósculo enternecido — e o beijou, longa, suave, enternecidamente...

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tinha a correr atrás de uns cabritos, Paulo e Maria da Piedade, fatigados da longa caminhada e enervados pelo calor da tarde, se entrefitavam silenciosos, felizes dessa doce intimidade, longe da indiscreção e do tumulto da vida... Tomando entre as suas as mãozinhas da noiva, que se entregava num gesto de lassitude e, de renúncia, Paulo pôs-se a falar-lhe, num tom velado de ternura e de tristeza, os lábios quasi a roçar-lhe o rosto, e sentindo no correr da brisa leve, esvoaçarem-se-lhe as reixas finíssimas da nuca:

— Dentro de poucos dias; minha querida,

estará realizado o nosso destino. Sim, o nosso destino, Maria, bom ou máu, feliz ou infeliz, mas o nosso destino. Nada como o amor para fazer-nos fatalistas. Eu bem sinto que alguma cousa de mais forte que nós mesmos rege as nossas vidas. Será a Providencia, que a crença dos nossos maiores dá como dirigindo todo o mundo, desde os grãos de areia desta terra que pisamos, até os astros enormes que vão surgindo lá no alto... Providencia ou Fado, algo nos arrastava, irresistivelmente, um para o outro, desde o começo do nosso viver.

CCAAPPIITTUULLOO II

AA rriivvaall UMA tarde, em pleno noivado, como fosse

muito o calor, acudiu-lhes dar um passeio até o porto e lá se foram, depois do jantar, fazendo-se acompanhar de Ercília e do pequeno Hugo, filho de uns vizinhos dos Monteiros.

Foram pela rua do Campo, deserta e silenciosa, à hora langue do dilúculo vesperal. Ao chegarem perto do rio, deixaram-se ficar, algum tempo, sentados à sombra de umas árvores, no pinturesco Limoeiro, e enquanto Ercília, à pequena distância, vigiava o menino que se entre-

— Fomos feitos um para o outro, Paulo... sussurrou Piedade, premindo, mais forte, as mãos do amado. Não é o que sempre lhe digo?

— Sim, fomos feitos um para o outro, com-

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morenas" de que nos falava mãe Roberta, o primeiro capítulo do romance de que agora escrevemos, talvez, o último episódio... É bem o êxtase do luso, do reínicola, nostálgico e saudoso, diante da radiante formosura da filha da terra, da guapa e airosa descendente dos índios guaicurús, que se perpetúa e se eterniza em novas paixões através do tempo, e vem a produzir, em circunstancias diversas mas oriundas das mesmas causas, o deslumbramento que causou no meu cérebro a linha ideal da sua formosura... E assim como os meus antepassados portugueses amaram as suas avós indígenas, que os encantavam no frescor virginal da sua viçosa opulência, eu amo em você a pureza virgem da sua alma, não tocada pelas arestas da vida... Pesa sobre o nosso amor toda a fatalidade e a predestinação histórica destes dois séculos de conquista... E os nossos descendentes, si não lográssemos nós cumprir este imperativo destino que nos talhou um para o outro, continuariam, no futuro remoto, esta aproximação recíproca que age misteriosamente, como todas as leis fortes e irresistíveis, em que a fatalidade cósmica impera, buscando-se, na trajectória do tempo e na diversidade dos lugares, e tentando realizar a missão que, no milagre do amor, opera a transubstanciação das raças antigas em novas gerações... Ha no amor esse profundo segredo insondável

tinuou Paulo, já no tom de voz habitual das suas conversas íntimas, tom em que poderiam falar horas inteiras sem fadiga e sem que ninguém lhes percebesse o que diziam:

— Ainda éramos duas crianças e, nos folguedos infantis em que por vezes nos entretínhamos, eu sentia uma inexplicável força que me levava para o seu convívio amável e bom. Perto de você, como que me sentia melhor do que ao lado de outros nossos companheiros. Sobreveio após esse período de longo apartamento em que, eu nos estudos, você em casa, crescendo à sombra do lar amigo, apenas uma ou outra vez, em meio ao desvario da mocidade, nos lembrávamos um do outro... Mas ainda então, creia você, amávamo-nos, através da enganadora frieza dos nossos corações. O meu amor por você não nasceu nesta vida, vem de mais longe, de nossos antepassados, cujas tendências atávicas espelhamos, sem o saber, no mundo. Acredite, Piedade, que eu a amo ha três ou quatro gerações... Amamo-nos nos que, antes de nós, se amaram, fundindo-se no sangue, de que somos descendentes. Utopia ou loucura — e pouco vai de uma a outra — parece-me, por vezes, remontando a corrente dos dias, refluindo para o passado distante de nossa raça, ver no amor do sargento Monteiro, nosso bisavô, pela linda Rosinha, a "Flor das

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que faz, às vezes, que uma fusão que se não realiza numa geração, porquê óbices insuperáveis se lhe antepõe, preconceitos e ódios o impedem, venha a dar-se, mais tarde, nos filhos e descendentes, extinguindo velhas animosidades avoengas que, na ara santa do grande rito, se queimam, se esfumam e se evolam, ficando apenas o brazido de uma lembrança revivescente... Resta-nos a nós outros, idealistas, este suave consolo de podermos realizar o amor, que as condições da vida presente tornam impossível, mais tarde, em novas formas, no amor dos que, participantes de nossa natureza, pelo sangue que lhes herdamos, corporificarão os desejos, os anseios, os sonhos que nos não foi dado corporizar...

essa forma leve e fugitiva de que se reveste. Gozemos a ventura de hoje, sem a impressão de podermos prolongá-la até amanhã. Tudo o que é humano é fraco, é caduco e contingente.. Não nos atormentemos com esperar a dor futura, que ha de chegar fatalmente...

Nessa hora, um acesso forte de tosse interrompeu a conversa de Paulo. Num sorriso amargo, o jovem concluiu:

— Veja... O rebate doloroso da Morte, eis o que leio nesta tosse insidiosa. Vou para os braços do amor como para os da tenebrosa, que marca com o seu beijo frio os lábios dos que partem...

— Paulo! não lembre essas cousas tristes agora! Você é moço, pode sarar ainda. O seu organismo, a sua constituição, animam a esperar sinão uma cura completa, uma longa estagnação no curso da moléstia...

— A sua imaginação me arrebata e me estontêa, Paulo, retrucou, meiga e amorável, a noiva. Vivamos antes o nosso presente, tão feliz e tão rápido na sua passagem... — Engano, Piedade, puro engano da sua

parte. Ao contrário, a minha idade é desfavorável circunstancia no caso. Mas pensa você que receio a morte? Abomino-a, detesto-a, porque viria roubar-me aos seus braços, que para mim valem a vida, com toda a sua plenitude de prazeres e delícias. Não lhe dou, porém, a satisfação de acovardar-me diante do seu avanço, isso nunca!

— Tem razão, Maria. Que valem todos os devaneios em que se compraz o meu espírito apaixonado, perto de você, que é o ideal mesmo, o ideal feito carne, o meu sonho convertido em realidade?

— O sonho, porém, passa e o ideal foge com pouco tempo... Como prender as asas invisíveis destes momentos que, a cada instante, sentimos escapar-nos das mãos?

E si eu, Paulo, à força de carinho, dedicação e amor, conseguir vencer essa rival te-

— O que dá o valor à felicidade é mesmo

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merosa, que ousa querer roubar-me o meu eleito, e, como venci às demais que aspiravam a sua posse, tiver a fortuna, de ser a Mulher vencedora, a que dominou com seu amor invencível, a própria Morte?

Paulo teve o mesmo sorriso amargo, dolorido,

de ha pouco e limitou-se a dizer, num tom de ternura infinita:

— Isso você não conseguirá, estou certo,

Maria... Mas, vencida, fique sabendo que nem a rival vencedora, a odiosa rival, conseguirá arrancar de minha alma, no seio da sobrexistencia, este amor e esta lembrança de você, que viverão para sempre em mim...

CCAAPPIITTUULLOO IIII Interromperam a palestra à aproximação de

Ercília, que lhes fazia ver a conveniência do regresso. Já era noite quasi fechada e demais o travesso Hugo, numa de suas carreiras, tombara, magoando-se e pedia, instantemente, para voltar. Paulo levantou se, estendeu a mão à noiva que passando o braço pelo seu ombro, num gesto fraternal e amigo, se pôs a andar, cabisbaixa, meditativa, melancólica...

NNuuvveennss nnoo aazzuull O casamento se fez à capucha, como era do

desejo de ambos os noivos, e para justificar-lhe a intimidade, com a só presença de alguns parentes mais próximos e das testemunhas, havia o nojo recente na família, pela morte de Glorinha. As duas cerimônias celebraram-se em casa de D. Francisca. Armara-se na salêta um oratório privado, com a imagem de Nossa Senhora da Piedade, da invocação da noiva, sobre o altar de rendas brancas, guarnecido de fitas azues. Os poucos que

E, a passos lentos, o grupo mergulhou-se nas sombras da noite, tomando rumo da cidade.

assistiram, tiveram a impressão de que Maria esta-

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va linda, no seu singelo vestido tão modesto quanto estava a aconselhá-lo o dó pela irmã recenmorta. Paulo, no seu fraque preto de luvas cor de cinzas, estava discretamente elegante, mas notava-se-lhe maior lividez, devido à austeridade do trajo ou à emoção da cerimônia. Serviu-se uma mesa de doces na salão de janlar, bem clara, à luz de dois grandes "belgas" a irradiar sob os lucivelos dourados. Paulo, que nada comera, levara a sua mulher até a sala de visitas e ali se quedaram, sós, no largo sofá, testemunha do seu doce e fugitivo noivado, de poucos meses. Quando, passantes as dez horas, os últimos convidados se retiraram e a casa foi ficando deserta, D. Francisca veio até a filha, abraçou-a enternecidamente, deu-lhe um grande beijo na testa e recolheu-se aos seus aposentos, levando Ercília pela mão, a dizer, em tom de chiste, como para desfazer a impressão dolorosa do momento:

no silêncio e na treva. Como que nessa hora tétrica um temor

supersticioso assalfava os corações dos dois recencasados, mal entrados na sua câmara nupcial. Dispunha-se Piedade a retirar a grinalda que lhe cingia a linda fronte com os seus botões alvíssimos, quando ouviram, no silêncio da noite o sino grande da matriz vibrar a aguda sonoridade de um dobre prolongado. Ambos estremeceram e os seus olhos se encontraram, no mesmo impulso de terror e de solidariedade. Maria logo cobrou a sua coragem e percebeu, ao ver a extrema lividez do esposo, que começara desde essa hora o seu sacrifício, o seu apostolado de compaixão e de renúncia, ao qual, abrindo mão de todos os gozos e confortos da existência, se devotara espontaneamente. Paulo tremia e todo o seu nervosismo doentio parecia prestes a explodir na mesma hora. A mulher, num gesto de carinho e afago maternal que, mesmo as que nunca foram mães, sabem, quando preciso, demonstrar, achegou-se-lhe mais de perto, e sentando-se na ampla austríaca que havia junto ao leito, chamou-o para junto de si, como si fôra uma criança medrosa, e põs-se-lhe a falar lenta e persuasivamente, procurando dissipar-lhe os vãos temores nascidos desse evento casual de coincidir o seu casamento com a morte de um sacerdote qualificado da Cúria Metropolitana.

— Só me fica, de quatro filhas que, Deus me deu, esta... isso mesmo não sei até quando. Riram se, meio forçadamente, porque Piedade tinha os olhos cheios de lágrimas. Regina e o marido tinham partido por último e a casa, silenciosa e deserta, o velho solar dos Monteiros — onde parecia errar a alma de duas gerações, desde o filho do sargento-mór, avô das senhoras, que ali morrera depois de um lustro de loucura mansa e triste — foi-se mergulhando

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Desde a véspera já se espirava a qualquer momento o desenlace, o passamento do P. Custódio. Que havia demais nisso? Os dobres diziam que um ancião, cheio de trabalhos e de virtudes, se fôra desta vida... Nada tinham que ver com os dois que, moços e começando a existir para o amor e para a felicidade, estavam ali no seu quarto de núpcias e deviam pensar somente na sua ventura, antes tão desejada e óra conseguida para sempre.

sua prima, a sua amiguinha, a sua doce companheira da meninice. Era bem verdade tudo que acabara de presenciar ali nessa casa? A peça, em que, não como simples espectadores, e sim como protagonistas, lhes fora dado tomar parte, era, então, um capítulo vivido de um romance sentimental? Quanto duraria essa felicidade? Teria o amor de Piedade, violento, arrebatado, como sói ser a primeira paixão num seio virgem, a força de vencer a Morte, como lhe dissera na conversa inesquecível do “Limoeiro"? Ou antes, na sua impulsão irresistível, viria precipitar involuntariamente os dias, abreviando o seu fim? O seu pessimismo natural, e invencível o fez pender para esta última alternativa. E foi com uma expressão carinhosa, mas triste, que Paulo disse, dando à Maria da Piedade o seu primeiro beijo de esposo:

Paulo, mais calmo, passara-lhe os braços em torno do pescoço, cingira-lhe o formoso seio moreno, farto e cheio de viço e, procurando agora, reanimado, rir dos seus terrores de ha pouco, tomou-lhe das mãos a grinalda, que beijou longa e apaixonadamente, indo depositá-la sobre a "mesa de santo" a uma quina da alcova onde ardia, frouxa e vaga, sob o quebra-luz de seda, o lampeão de mortiça claridade. O seu abalo, porém não cedera de todo. Fitava a mulher, a sua mulher, a sua Piedade, com um sorriso de gratidão e de doçura indizíveis, como a abendiçoá-la e agradecer-lhe o primeiro passo dado na via crucis que se abrira para ambos. Intimamente, custava-lhe acreditar nos seu olhos e parecia-lhe tudo isso um sonho delicioso que, em breve, se dissiparia, como os vapores da madrugada que planam sobre as várzeas desertas... Sorpresava-o o pensamento de que estava casado com

— Guarda bem esta grinalda, minha querida. Servirá para depositar sobre o meu caixão, no

dia em que nos separarmos. E serão as flores da morte, as mais lindas da minha vida!

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E agora a partida de Maria da Piedade, que muitos, diziam, com certo fundamento, a preferida de D. Francisca, por ter mais pronunciados os traços do seu marido, morto em plena virilidade, mais a acabrunhava.

O "fria" reuniu, no dia seguinte, os membros

da família e amigos mais íntimos. Vieram Décio e Regina, com a filhinha, a galante Hébe, tia Carolina, o massante Cardozo, que brindou, ao almoço, à saúde do "jovem e esperançoso par, cujas vergôntea viriam honrar o nome augusto dos Monteiros e Barbosas".

CCAAPPIITTUULLOO IIIIII Tirada a mesa, ficaram ainda na vasta sala de jantar, conversando. D. Francisca sentara-se na sua rede — linda rede lavrada, de artística tessitura, vinda do Livramento, como presente do Paulo. Os casadinhos, foram, rindo, tomar o seu lugar da véspera, no sofá, um velho móvel "que tinha a sua história" no dizer da boa D. Carolina. Ao lado do sofá, no canto que dava para o terreiro, havia um poial, alto, onde se punham os potes d’água e foi ali perto que o Cardozo se aboletou, numa cadeira de balanço. A travessa Ercília viera sentar-se ao lado da mãe, enquanto Regina ia ver a pequena e Décio se dirigia para o terreiro a fumar o seu charuto.

LLuuaa ddee mmeell

FICARA combinado que os recencasados

passassem uma semana em casa de D. Francisca, enquanto a casinha de Paulo, na rua Grande, não estivesse concluída. Era um modo de suavizar para a boa senhora o golpe da separação, que, de cinco filhos, lhe deixara, no espaço de alguns meses apenas Ercília, já núbil, cujos verdores precoces faziam assim prever não ser duradoura a sua permanência no sojorno paterno. Regina se fôra, dezoito meses antes, casada, e, ultimamente, Glorinha para o túmulo e Léo para os estudos.

— Estamos em casa, minha gente. Á vontade! disse D. Francisca, que tinha o seu costume de sestear depois do almoço.

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D. Carolina trouxera de dentro um tamborete que dispôs ao pé do sofá e entretinha-se a contar histórias do outro tempo aos seus pequenos, como costumava chamar os filhos dos cunhados. Coubera-lhe a missão de substituir mãe Roberta no papel de historiadora da família e Paulo, a quem apraziam muito esses velhos recontos, interrogava-a, fazia-a falar, todo ouvidos, quando na sua linguagem simples e engraçada, de vivo colorido, a velha narrava os episódios dantanho.

dessa era. Cubiçavam-no para marido as meninas moças mais em evidencia e para genro os homens de boa fazenda da terra. Enamorou-se, porém, da Bárbara, uma rapariga pobre mas lindíssima como uma pintura ou um anjo da Igreja Matriz, filha de um capitão de milícia muito mal afamado e pouco benquisto. Vai então, roubou a moça, e foi pô-la no engenho do pai-grande, seu avô, de quem éra irmão. O Governo teve que agir contra o desatinado rapaz, a rogo do pai de Bárbara, que queria obrigá-lo ao casamento, em que via um bom partido. Sabem o que fez o Cadete? Ao cabo, que tinha ordem de prendê-lo e mais a moça, deu tamanha sova, que o infeliz voltou de lá estropeado e jurando que nunca mais iria perseguir um desalmado de tal marca. André voltou da Serra e casou-se com Bárbara, que outra não era sua intenção, mas não o queria fazer obrigado. Mas logo a perdeu, no primeiro parto, do que ficou de tal forma apaixonado que se fez padre e não quis mais saber de nada deste mundo...

Tomava notas de expressões e registava episódios para a sua obra, a grande obra que tencionava escrever — um romance meio histórico, em que reviveria o passado familiar, a grandeza e decadência da Serra-acima, a vida pomposa dos senhores de engênho e o romance sentimental do sargento Monteiro e da meiga Rosinha. Até então não conseguira coordenar os dados e apontamentos, verbetes e nótulas que lhe enchiam cinco ou seis cadernos, mas agora, casado, organisar-se-lhe-ia a vida e

levaria a cabo, seguramente, o seu intento. D. Carolina contava nesse dia uma passagem da vida do Cadete André, tio-avô de Paulo e de Piedade, irmão dos pais de D. Francisca. Cadete André foi o moço mais bonito do seu tempo. Para correr uma cavalhada, não havia outro nesta cidade do Bom Jesus! Dansava lanceiros à perfeição e era o primeiro marcante

Nesse meio tempo, o Cardozo, que cochilava na sua cadeira, despertou-se num grande grito que alarmou a todos. A garotinha da Ercília, que havia tomado desde a véspera à sua conta o gamênho solicitador, introduzira-lhe pela camisa a dentro, — um louva-Deus que apanhara na porta do terreiro... Cessado o a-

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larme verificada a causa do susto do pobre homem, que não veio a perceber donde partira a brincadeira, Paulo convidou a mulher para ir descansar um pouco. Não havia ali ninguém de cerimônia e o Cardozo, único extranho, poderia, entretanto, ser considerado da família.

lograra ser uma mulher quasi ignorante em cousas de amor.

Corria-se disso, dizia ao marido, que lhe replicava estar nessa virgindade d’alma o maior preço e valor da outra.

Paulo abençoava a sua sorte que assim lhe guiára uma tão meiga e dedicada esposa e ao mesmo tempo secreto pezar lhe vinha à idéa fixa que o dominava de que a teria de perder com pouco tempo. E como era mais angustioso possuir a felicidade, vê-la à mão tenente, colhê-la e ter, ao depois, de abandoná-la a meio, mal gozada, pouco usufruída!

— E o será em breve, gritou Ercília, pois si é o meu noivo e estamos emprazados para daqui ha três meses...

Todos riram, menos Piedade, que deitou à irmã um olhar de suave exprobação, pois, com mágua, verificava que a "caçula", como era tratada Ercília em casa, ia crescendo um tanto "sem modos". Nunca fôra por essas brincadeiras e intimidades com homens, mesmo sendo velhos e desfrutáveis como Cardozo. Por isso também crescera meio isolada, não tivera, como todas as meninas de sua idade, namoricos nem amizades intimas. Ficara meio encolhida, desconfiada, ensimesmada, nunca se abrindo siquer com as irmãs, que chegavam a censurar-lhe o que cuidavam ser reserva estudada e era pura simplicidade. Nada, porém de prejuízo disso lhe adviera. Valeu-lhe também essa reserva ter conservado certa candura virginal, raríssima em dias de hoje, manifestada em ingenuidades adoráveis que faziam o encanto de Paulo desde noivos, e mais ainda depois de casados. Nesta quadra de meninas sabidas,

Buscara espantar esses pensamentos, mas perduravam, nítidos, indomináveis, mesmo nas horas mais felizes da sua lua de mel.

Assim se escoôu, célere, a semana e foram-se para a sua casinha poética e pequena como um ninho, onde, na ebriez da ventura, viram decorrer os seis primeiros meses sobre o dia do seu enlace. Maria redobrava-se, dia a dia, em meiguices e carinhos, e Paulo quasi lhe esquecera o insidioso mal, que, só ao cabo desse tempo, se fez lembrar por uma nova crise, decorrente de um resfriado que apanhara numa noite de junho, de volta de um passeio.

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mais perigosas parceiras no amor de Paulo. Pensou — e foi este o seu primeiro impulso — em consumir esse papel que vinha intrusamente perturbar a serenidade da sua alma. Teria, porém, esse direito, quando a carta não lhe era dirigida e sim ao seu marido? A linha segura do seu temperamento a fez logo recuar do primeiro propósito. Mostraria a carta a Paulo que, decerto, doente como estava, se excusaria de comparecer ao enlace, poupando-lhe assim algumas horas de constrangimento ou tristeza. Quando Paulo desceu, para tomar o seu chocolate, já encontrou a mulher que ia levar-lhe a chávena no quarto de dormir.

CCAAPPIITTUULLOO IIVV — Você porque deixou a alcova, meu bem?

Não vê que está fraco e este vento, este tempo humido lhe podem fazer mal?

PPrriimmeeiirraass ssoommbbrraass PAULO não se levantara essa manhã, pois

tinha passado mal a noite, com os acessos da tosse que pareciam, dia a dia, mais amiudados.

— Ora, que maior mal me podem fazer do que já tenho? replicou, meio agastado da observação, o enfermo.

— Não falei por mal, Paulo, mas é que você... Ao abrir a portada rua, Maria encontrou, com um número do jornal da véspera, uma carta de grande formato, toda branca, em papel fino e elegante. Curiosa, abriu-a e teve, à leitura, um pequeno choque que não poude reprimir. Era um convite para o casamento da Teresa Lemos, a sua antiga camarada de escola e íntima amiga e, depois, uma das suas

— Este chocolate está bem quente? atalhou, meio rude, Paulo. Ontem, porquê testava frio, me fez mal em vez de bem.

— Está bem quente, filho. Tirei-o neste instante do fogareiro. Ontem você viu que a demora do Cardoso é que fez esfriar... Eu já, o tinha chamado por duas vezes, não se lembra?

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se a presença e de quando a repulsasse e mostrasse até aborrecê-lo? Era esse o seu papel, a tarefa que se traçara e a levaria até o fim, a custa de todos os sacrifícios. E Paulo jamais, jamais desconfiaria do seu padecer, nem se aperceberia da sua muda. agonia. Entrementes, parecia-lhe que o marido se demorava muito na sala e já cuidava vê-lo iracundo, de volta, ao encontrar a bebida fria, como na véspera. Pé ante pé, pisando de leve na ponta das lindas babuchas de seda, Maria chegou até a porta da saleta e percebeu o final da conversa. Paulo dizia:

— É. Sempre os, meus amigos servem de desculpa a tudo o que se passa nesta casa... resmungou Paulo, entre dentes, nervoso, indo sentar-se à mesa, enquanto, Piedade o seguia com a chicara de chocolate.

Nesse instante, tilintou a campainha de ligação.

— Vou eu ver, Paulo. Olhe que o chocolate esfria outra vez...

Paulo não dera importância à observação da esposa. Que o deixasse... De nada adiantaria, desde que a cousa afinal era mesmo com dono da casa.

Piedade ficou só, de pé, no meio da varanda ensolada. Um aperto de coração lhe vinha desde cedo, com uma vontade louca de chorar. Ha dias que Paulo, desde que se sentira peiorar, a maltratava com maneiras ríspidas e tão diversas do seu carinhoso trato dos primeiros dias. Desde a véspera, porem, como que se excedera, chegando a parecer-lhe grosseiro e mau... Por que seria? Enjoara-se ou aborrecia-se, talvez, do seu carinho? Pensava em afastar-se, deixá-lo só no seu quarto ou no gabinete, mas um receio de qualquer causa inexplicável a fazia, mal a seu grado, ter necessidade de vê-lo a toda hora... Não jurara de si para si ser o seu anjo da guarda, a sua assistente desvelada, a sua amiga de todos os instantes, de quando a quisesse lhe reclamas-

— Sim. Irei, como não? Si são meus amigos? Mas, muito. Fique descansado que eu lhe conseguirei o convite. Então é depois de amanhã? Bem... Adeusinho. Não tenha receio que hoje mesmo falo ao Jorginho. . .

Voltando-se, de súbito, deu com a mulher, que, apanhada em flagrante, não poude sopitar a sua emoção e, para disfarçá-la, perguntou:

— Com quem você falava? — É o Antenor, o Antenor Ribeiro, que me

pede conseguir-lhe um convite para o casamento da Teresinha Lemos... Admira-me muito que ainda não me tenha vindo o convite.

Num visível esforço para dissimular sua perturbação, Maria fez saber ao marido que encontrara na sala, nessa manhã, a carta dos Lemos.

— Ah! veiu? Logo vi que não se esque-

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ceriam do velho amigo. E você porquê não me deu logo a carta? perguntou, fitando a esposa, com certa intenção maldosa, nos olhos.

no coração. Em seis meses e meio de casados, era a primeira vez que Paulo, abertamente a afastava de si, recusando o seu carinho. E doeu-lhe mais, não pela humilhação que havia nesse gesto ao seu pudor e ao amor próprio de mulher e amante, e sim pelo esposo mesmo, e pelas conseqüências futuras do seu proceder. Que seria de Paulo quando, nas horas de dor e de tristeza, não a quisesse mais perto de si, confortando-o, trazendo-lhe o balsamo carinhoso e maternal da sua compaixão infinita?

— Esperava que você acabasse de tomar o chocolate... Demais, animou-se a dizer, com visível esforço, não acho prudente, irmos a esta festa...

— Não acha prudente, diz você? E por que? — Você tem passado tão atacado, Paulo!

exclamou a mulher, com um tom exprobativo no olhar tímido. Poderia fazer-lhe mal esse esforço.

— Cuida você que eu já nem possa sair de casa? Ora isto é que não! Vou, e vou à festa dos Lemos. Que diriam por lá si eu não comparecesse, tão amigo da casa que sempre fui? Eram capazes de tomar por uma cousa acintosa ou, o que é peior, julgar-me completamente perdido...

Erguera a voz, nervoso, ante a simples ponderação da mulher, que, em lhe vendo a agitação, se lhe aproximou com um sorriso meigo; enquanto Paulo depunha sobre a mesa a chávena vazia.

Num gesto áspero, a afastou com a mão e levantou-se, dirigindo-se a largas passadas, para o gabinete.

A pobre sentiu como que uma punhalada

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gante, um vestido de crepe da China cor de havana, sem uma jóia, sinão uma corrente finíssima de ouro com uma pequena medalha de Nossa Senhora, sua madrinha. Vieram recebê-lo os Lemos, que introduziram a jovem senhora no vestiário, onde Teresa ultimava os preparativos da sua indumenta nupcial. Paulo ficara na sala e vira se logo cercado por alguns amigos que, interessados, lhe pediam notícias da saúde.

— Vou melhor, bem. melhor, felizmente... Por uma curiosa lei íntima sentia-se realmente

melhor, quando em presença de alguém tinha ensejo de referir-se ao seu estado. Enganava-se, tentando enganar aos mais. Num ligeiro golpe de olhos abrangeu a vasta sala, em que grupos de convivas conversavam animadamente. A um canto, perto de uma das portas, discutiam acaloradamente o coronel Seixas, fazendeiro e influência eleitoral e o Campos, um dos "novos ricos" da terra, que vinha se opulentando nas suas indústrias variadas e complexas. A conversa era, naturalmente, sobre à situação do país, as tributações onerosas, a lei orçamentária recenvotada e quejandos problemas econômicos reduzidos a feição prática e utilitária. Defendia o coronel o governo, que o outro, impiedosamente, atacava. Junto à porta lateral o doutor Clarimundo, um mestiço petulante, pontificava para uma roda de moços

CCAAPPIITTUULLOO VV

UUmmaa rreeuunniiããoo eelleeggaannttee A sociedade em casa dos Lemos era

numerosa, posto que escolhida. Viam-se ali, a festejar as bodas da formosa Teresa, todos os amigos do casal Lemos, que, por sua posição e prestígio social, timbrara em ostentar, nessa occasião faustosa do enlace da sua única filha, a pompa e o alarde de núpcias principescas. Paulo e Maria da Piedade chegaram cerca das seis horas da tarde e já o salão e os demais compartimentos do vasto palacete regorgitavam de famílias e cavalheiros... Maria escolhera para à festa um trajo simples e ele-

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acerca das obras de Gorki, de quem acabara de ler, pela primeira vez, um volume, fazendo crer-se, entretanto, assíduo freqüentador não só deste, como de todos os romancistas russos da época. Clarimundo era o perfeito cabotino jornalístico, político e literário. Redigia um semanário célebre pela linguagem descomposta e virulenta e vinha, nesse papel, sendo candidato do seu grupelho a uma cadeira legislativa, — candidato eterno, mas sempre esperançado em algum. imprevisto que, reviravoltando o eixo político, o guindasse às alturas da poltrona almejada. Ao seu lado, o doutor Padilha, alto empregado administrativo, que fazia consistir a sua maior aspiração na "vitória dos seus sonhos de verdadeiro republicano", dissertava, repetindo a um seu subalterno, em linguagem vulgar, os conceitos de que viéra impado o seu último artigo doutrinário na folha que honrava com o seu "calamo adestrado". Menos desenvolto que estes, antes canhestro e desageitado, a despeito de sua grande cultura adensada, o bacharel Carlos de Aguiar, professor e homem de letras, fazia-se ouvir em outro grupo, em que o eixo da palestra era a corrupção contemporânea e a infiltração perigosa de exóticos costumes no meio social. Viam-se ainda, em outros pontos do salão, o poeta Marcolino, magro e espectral, comido pela mesentéria e aquém a perversidade de um amigo íntimo dé-

ra o título de "poeta acabado" referindo-se antes ao seu corpo bem consumido que à perfeição de sua arte; o major Eiras, gordo e ventrudo, experto negociante e procurador de partes e ainda pai de meia dúzia de pequenas casadouras, cuja nubilidade vivia a apregoar, receioso de que lhe ficasse a mercadoria em casa; o jovem Promotor, um dos "talentos da nova geração", como o consagrara o órgão situacionista, após um memorável discurso em que citara Einsten, Sudermann, Zorrilla, os Cavalleiros do Apocalypse, a "cultura" germânica, o Kama-soutra, só lhe esquecendo a Bíblia e o Alcorão; os Paivas, arroz de festas, irmãos inseparáveis, tidos e havidos como os melhores "tesouras" da terra, a cuja perspicácia nenhum defeito escapava, si não os próprios; o Tenente Lourival, elegante e conquistador e muitos outros cujas especialidades de salão dispensam registo pormenorizado. Isto no que concerne à fauna masculina, como costumava classificar o Cardozo, nosso velho conhecido, também ali presente: no outro gênero, eram ainda mais variados os specimens, pois começava a diversidade desde o envólucro, o exterior, o vestuário. Ombreavam-se a aristocrática senhora Santos Lima, de ademanes fidalgos e maneiras que faziam lembrar o antigo regime; a pequenina Eleonora Paiva, elegantemente despida, mostrando aos olhares da assembléa, ali reunida a

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maior parte de suas formas, já de si reduzidas e franzinas, corno um fruto sorvado; a desdenhosa Alice Seixas, filha do coronel, um "partido inteiro" como paradoxalmente a rotulara o malinguismo das amigas; Lucila e Regina Tavares, as mais alegres meninas da época, hábeis recitalistas, sempre casquinando risadas a propósito ou mesmo fora; Leontina Veiga e a filha, em que o tempo passando parecia desforrar os ultrajes feitos à primeira, reproduzindo-lhe nos traços a fenecida graça materna; Rosita Aguiar, irmã do bacharel Promotor, padrão encantador pela sua originalidade de loura, num meio em que o moreno predomina quasi exclusivamente; d. Vidoca Braga, preciosa, absorvida em reivindicar os direitos femininos, esquecida, por isso, talvez, dos seus deveres; a senhora Padilha, garrida e loquaz, repetindo a empafia do esposo e os seus conceitos sociológicos, com a adorável inconsciência das vitrolas que reproduzem os discursos dos seus discos; e, por fim, a insinuante Béga Eiras e suas cinco irmãs, trajadas no mesmo padrão, moreninhas e buliçosas, "cortes de noivas" à espera dos pretendentes arrojados.

sol da sua coma de ouro e Eunice, melancólica e enlanguecida, perdida um pouco a magia do seu sorriso encantador, depois que o Seixas a abandonara pela Luisinha Veiga, filha de d. Leontina, menina-moça, porém magnífico esboço de mulher. Eunice ferrara ultimamente velas em conquistar o Seixas, viúvo também, rico e maduro, um marido que lhe servia. Desesperançada das manobras inócuas que vinha empregando com os moços, depois do seu fracasso junto de Paulo, resolvera casar-se e pareceu-lhe logo que para a levar à igreja ninguém melhor que o Coronel, o rico pai de Alicinha. Esta afagava os planos da viúva, muito sua amiga e, entretanto, com dolorosa decepção para ambas, Seixas vinha pendendo visível e escandalosamente para a Veiga, que no seu picante de fruta de vez, falava mais aos seus sentidos embotados de cincoentão ao que a formosa viuvinha.

A música chegara, no entanto, e Paulo, que se conservava à distância, num vão de porta, conversando com o Cardozo, sempre massante, foi convidado para ir; com mais alguns amigos, buscar o noivo que a essa hora já devia estar à sua espera.

Também lá estavam as nossas conhecidas Helenita, a amada ideal do Ricardinho, uma das figuras interessantes do salão, alta e esbelta, num esplendido vestido escarlate, uma rosa à cabeça, que parecia mesmo aberta ao

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mais dos Lemos, na sua megalomania conhecida. Por onde o cortejo passava, a pé, lento e hierático, Teresa sentia que os olhares a seguiam, invejosos uns, outros cheios de curiosidade ou desejo, e era tal como si uma princesa de sangue azul ou uma embaixatriz da Graça, visão dantanho desterrada na prosaica vida de hoje, deslisasse ante os olhos extáticos da turba.

Estava realmente linda a filha dos Lemos,

pois à sua formosura natural se unia, nessa hora, a consciência plena e integral do domínio que exercia sobre os homens e da supremacia que a alçava acima das demais mulheres, nesse acanhado meio de província.

CCAAPPIITTUULLOO VVII Luis Amaral, o feliz noivo, caminhava-lhe ao

lado, rodeado de amigos, que pareciam disputar-lhe a preferência, como si, porventura, se espelhasse em todo o sexo a gloria do seu representante que ia ser galardoado pela posse cubiçada da mais formosa moça da cidade.

CCaapprriicchhoo vveenncceeddoorr QUANDO Teresa surgiu à porta pelo braço

do pai, radiante de formosura, no seu vestido de noivado, a linda cabeça castanha coroada pela grinalda floral, houve, em toda a assistência apinhada pelas calçadas e portas da vizinhança, um sussurro de admiração, que a moça não deixou de perceber, envaidecida e cheia de emoção.

Paulo e Piedade seguiam logo atrás dos nubentes, de braços, silenciosos e contrafeitos. Exprobava, no íntimo, a pobrezita ao seu marido o tê-la trazido ali para assistir à glorificação da rival detestada? Não seria propriamente este o seu sentimento, pois, em seu peito de pomba, onde só a meiguice sem par encontrava guarida, a própria censura se revestia das cores da compaixão e o rancor mesmo se trans-

A distancia a percorrer até a igreja era um tanto longa, parecendo haver até na escolha do templo, a Matriz; quando mais perto havia a igreja do bairro, uma ostentação a

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mudava em tristeza e desengano. O que mais a maguava, durante o percurso, era o contraste que a sua idéa lhe fazia perceber entre a festa, revestida da pompa de um enlace real, e a simples, tocante e expressiva cerimônia que, ha sete meses atrás, presenciara, a do seu próprio casamento. Nessa diversidade externa bem se podia espelhar a dissemelhança dos sentimentos íntimos existentes em uma ou outra circunstância. Aqui era o alarde, a gala superficial dourando uma união de conveniência, num casamento em que ambos procuravam antes o brilho da posição, as larguezas da fortuna, a liberdade do novo estado, que emancipa a mulher e a põe mais à vontade e, ao mesmo tempo, cria para o homem um ambiente de respeitabilidade, que o habilita a viver melhor na sociedade; lá, nada disso, nenhuma cogitação material, de ordem positiva, apenas dois corações que procuravam um ao outro, buscavam entender-se e completar-se, e um homem doente, fraco, vencido pela sua sensibilidade excessiva, a quem, num transporte de dedicação, a mulher se consagrara, fazendo da sua vida um consciente e prolongado tormento, que agora mais se exacerbava dia a dia com as modificações do íntimo de Paulo, cada vez mais nervoso e impertinente.

Para o mundo, certo que os dois que iam agora a caminho do altar, para Deus, que não lê nos rostos e sim no âmago profundo das consciências, talvez, o outro...

Chegara o séqüito ao templo, onde o consorcio se realizou, com a pompa litúrgica, tendo o celebrante feito expressiva oração de congratulações aos noivos e aos seus “dignos e honrados progenitores". De, volta à casa, após o casamento da lei, começou o baile, animado, ruidoso, só interrompido, às onze horas, pela ceia opípara, no amplo varandão todo florido, onde as taças e as luzes punham fulgurações feéricas de deslumbramento. Assentados à cabeceira, os noivos presidiam ao bôdo, sem que do mesmo participassem, sinão com a presença. É de boa regra provinciana que os recencasados se abstenham do banquete nupcial, para o que, em geral, antes de chagarem os convidados, costumam forrar bem o estomago, podendo assim mostrarem-se enfastiados, sem que dessa inédia lhes venha prejuízo. Casualmente Paulo sentara-se ao lado da novel desposada, tendo em sua frente Piedade, que ficara entre o Seixas e o bacharel Aguiar. Quando, para o fim da refeição, serviram os cremes e gelados, Maria fez um gesto ao marido, num ligeiro mover de cabeça, que se abstivesse, receiosa pela sua saúde precária. A noite quente abafava e era realmente um pe-

Qual seria o mais feliz dos dois pares? — perguntou a si mesma, a mulher do advogado.

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rigo o uso dos sorvetes nessa hora. Teresa, com quem o moço mantinha discreta palestra, e, que percebeu o gesto da sua amiga, achou, entretanto, azado ensejo para infligir à sua antiga rival um vexame que ao seu orgulho de mulher parecia um laurel a completar-lhe as glorias da noite. Pedindo ao marido que lhe passasse o prato de creme de laranja, — um lindo o creme, louro como um grande topázio, — apresentou-o a Paulo, com o mais insinuante dos seus sorrisos de dominadora, dizendo em o voz bem alta e clara:

seu olhar, nesse momento, que si o marido a fitasse, talvez, subrestivesse no seu propósito. Mas, a sensível duplicidade do seu temperamento o fizera irritar-se com a observação da mulher, que lhe pareceu uma demonstração de domínio, em publico, a qual lhe parecia vergonhosa.

Por outro lado, Teresa o subjugava com o seu olhar imperativo. Sentiu toda a força do passado refluir-lhe à alma e, inerte, sem saber quasi o que fazia, deixou cair sobre o prato a fatia de creme que a sua encantadora vizinha lhe destinara. Houve em toda a vasta sala de jantar um murmúrio contido e prolongado, como a festejar mais uma capitulação que conseguira a rainha da noite e, no borborinho de vozes que se seguiu ao episodio à primeira vista sem importância, ninguém, ao certo, teria percebido o doloroso suspiro que, sem o sentir, a esposa desprezada deixara escapar do seu coração, torturado pela mais cruel das agonias...

— Dr. Paulo, quero ver se eu lhe apresentando este creme, o Sr. vae recusá-lo.Seria uma desfeita que eu não, perdoaria, no meu banquete de núpcias...

Paulo sentiu um frio percorrer-lhe a espinha. A mesa toda, cerca de setenta pessoas, tinha os olhos e o cuidado no que o moço iria fazer. Piedade, não se contendo, ao perceber a manobra da inimiga, menos pelo seu amor-próprio em jogo, que pelo receio que lhe inspirava a saúde precária do esposo, atreveu-se a dizer, com voz trêmula e nervosa:

— Perdão, Teresinha. Você não deve insistir, que o Paulo está convalescente ainda o da influenza...

E dirigindo-se ao marido: — Paulo! Veja o que você faz! Tamanha era a humildade e ternura do

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ra do seu querido doente e, pela manhã, as olheiras profundas que lhe vincavam a face denunciariam facilmente a qualquer observador menos perspicaz que não fôra só o estado de Paulo que a impedira de dormir e sim o secreto penar que lhe pungia o seio desde a hora malfadada do banquete.

O seu receio era que Paulo já a não amasse

como dantes ou, pelo menos, o seu amor se houvesse arrefecido com a convivência diária, que elimina estímulos necessários à existência da paixão em certos espíritos romanescos e caprichosos. Levantou-se cedo e, deixando o esposo ainda a dormir no amplo leito de casados, desceu para abrir a casa, como era seu costume. Na sala de jantar ainda fechada assustou-a o revôejar de um bicho que a obscuridade lhe não deixou distinguir. Abriu uma porta que dava para o terreiro e, à claridade incerta da manhã, poude observar uma grande borboleta negra, de asas pintalgadas de ouro, que, voando, fôra pousar sobre uma artística "Ceia" que adornava a parede central do aposento.

CCAAPPIITTUULLOO VVIIII

VVeerraanniiccoo A previsão de Maria da Piedade confirmou-se

plenamente e o mal que o seu coração vaticinara manifestou-se, logo nessa mesma noite, numa crise mais violenta que todas as anteriores, como até então Paulo ainda não tivera.

— Cruz! Passa fóra, agouro ruim! disse, à meia voz, Piedade, espantando o animalejo com uma toalha que apanhara do cabide. O mesmo enveredara, porém, rumo ao gabinete de Paulo, cuja porta ficara aberta e Piedade não poude conter uma viva contrariedade ante esse caso

A pobre, entretanto, nem uma palavra articulara com referenda ao seu procedimento imprudente, como causa do recrudescimento da sua enfermidade, temendo com isso molestá-lo e irritar-lhe mais a saúde, já de si precária.

Passou o resto da noite em vigília, à cabecei-

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que, ao seu espírito abalado de tantas emoções, parecia ter uma triste interpretação.

que sete meses de casados, já era tempo de alguma novidade...

— Felizmente, pensou, Paulo nada viu. Como não iria ficar impressionado... Deus o livre! E todo cheio de crendices e esquisitas abusões!

Maria retrucara, num riso meigo, olhando o esposo, sentado na rede, a seu lado:

— Para mim basta-me este filho... Deus bem sabe que não devo ter outros e por isso, certamente, não mos dará.

Acabou de abrir a varanda, a sala de visitas, o gabinete e viu a borboleta estender as asas à claridade e ir voando pela gelosia aberta para a rua toda em sol...

Referia-se, talvez, à enfermidade do esposo, que lhe absorvia todo o tempo, tratos e carinhos ou ao receio de que, em razão da mesma, os filhos lhes viessem doentes, sendo assim melhor que não tivessem próle?

— Não fosse agoureiro, era até bem bonito este bicho.

Nesse momento ouviu passos atrás de si e presentiu que alguém a acompanhava. Voltou-se e viu o marido que a recebeu nos seus braços.

Paulo sorrira. E, para confirmar de certa maneira o pensamento da mulher, disse, por sua vez: — Que imprudência, filhinho! Você veiu para

fora desta maneira, sem agazalhar-se? — É melhor assim... Ciumento como sou, acabaria me insurgindo até contra o carinho que Piedade tivesse pelos meus filhos. Quero-a minha, só para mim...

— Ora minha mãezinha, você é culpada, o que deixou o filho só no quarto e não voltou mais a vê-lo...

Era costume assim se tratarem, nas horas de carinhosa intimidade, referindo-se à materna solicitude de Piedade pelo esposo, que dizia sempre ser o seu filho, primeiro e último.

Pagou-lhe a mulher a expressão com um olhar cheio de infinita ternura, que não passou despercebido aos cunhados.

Na manhã que se seguira ao dia do banquete, Paulo se erguera decidido a pedir francamente perdão à mulher e reconciliarem-se definitivamente. Não tivera já o castigo no retrocesso com que fôra punida. a sua loucura, o seu estulto galanteio? Que lhe valia Teresa, os Lemos e o mundo inteiro, nas horas cruéis em que o seu mal o feria rudemente e que se-

Dias atrás, vindo Regina visitá-los com o marido e surgindo à tona da palestra o esperado nascimento do segundo filho do casal, a irmã lhes dissera, maliciosa e risonha:

— Vocês é que se têm atrazado... olhem

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ria então si não contasse com o desvelo, o amor, o cuidadoso trato de Piedade? A' esposa, pois, e só a esposa deveria devotar-se, sinão por amor, ao menos pelo dever de gratidão que existe em toda alma bem formada. Ao despertar via-se profundamente arrependido do que fizera e, dos modos com que a tratara durante a última semana, chegando a afastá-la asperamente, motivando-lhe apenas uma ligeira exprobração — Ah! Paulo! — a única que lhe ouvira em o longo período de casados.

cia alguma aos acontecimentos que tanto a tinham feito padecer, calou-se, conformada, dissimulando a meia decepção que lhe viera e buscando excusar o procedimento de Paulo pela idéa de que o silêncio era a melhor esponja sobre o passado e qualquer referencia infeliz poderia, resurgindo-o, engravecer ainda mais a sua situação.

Esse dia e o dia seguinte passaram-se na melhor cordialidade, na velha e amiga cordialidade do começo. Nem Paulo foi à rua, nem o procurou ninguém, salvante o Cardozo, que veio à tarde trazer uns autos e que Piedade, avisada pelo marido, despachou, sob o pretexto de que Paulo tinha passado por uma sésta.

Não vendo, entanto,. Piedade ao pé de si, nem a encontrando na alcova, resolveu-se a ir procurá-la, o que, realmente, fez, indo dar com a mulher no gabinete que acabara de abrir. Agradava-lhes esse veranico, verdadeiro

reflorir da sua deliciosa lua de mel, vivendo ambos longe do mundo e só para o seu amor.

A demora na imaginada explicação esfriou-lhe o propósito tomado e, desperto o seu amor próprio, essa noção de dignidade fictícia que, por vezes, nos tolhe os mais nobres movimentos da alma generosa, correu-se do que pretendia fazer e limitou-se a formular de si para si o plano de a tratar melhor, dali por diante, sem que, todavia, percutisse siquer levemente os acontecimentos anteriores.

Na tarde seguinte — era uma segunda feira — estavam sentados à porta do jardim quando bateram à porta do meio. Piedade levantou-se e foi abrir. Sem saber explicar-se a causa, pulsou-lhe o coração à vista do estafeta que lhe estendia um despacho. Recebeu-o, devolvendo o talão, e, de caminho, abriu-o e leu-o. Era da estação próxima ao "Recreio" e continha apenas no texto estas quatro palavras — "Carlota morreu hoje. Pedro".

Piedade esperava, no seu vaticínio de mulher, na acuidade da sua visão mental, o propósito que Paulo pretendera tomar a princípio e vendo-o procurá-la assim tão cedo e com afan deshabituado, cuidou ser a hora de uma justificativa. Não lhe ouvindo, porém, referen-

— Num relance, percebeu Piedade a grave situação que esse evento imprevisto vinha criar,

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acarretando, quiçá, uma crise aguda na moléstia de Paulo. Era tarde, porém, para recuar. Já o marido, desconfiado, se erguera da "marqueza" e viera-lhe ao encontro.

— Que é isso? Deixa ver... Donde é? — De... de... Dá notícias de sua mãe, Paulo... — Que foi? Teve alguma cousa? Morreu

mamãe, Piedade? Fale! Ande...

Piedade não se sentiu com coragem para dizer-lhe a verdade, nem para esconder-lha. Entregou-lhe o pedaço de papel verde que Paulo devorou com os olhos. A mulher teve tempo apenas de ampará-lo nos seus braços, evitando que Paulo tomba-se ao solo do jardim, numa vertigem que, subitamente, o tomara.

CCAAPPIITTUULLOO VVIIIIII

NNoottíícciiaass ddaa ssoocciieeddaaddee VOLTOU-LHES dali por diante a vida a ser

o que dantes fôra — uma intimidade, um conchego calmo e constante, sem altibaixos e revezes, apenas perturbada alquando pelas crises da enfermidade de Paulo, que prosseguia a sua marcha lenta e inexorável. O profundo abalo que lhe causara a notícia da morte da mãe, do qual despertara nos braços de Piedade, só melhorando quando conseguiu desabafar-se em um grande pranto convulsivo, contribuiu, no dizer do Dr. Lima, médico da casa, para majorar o seu depauperamento já não pequeno. Chegou o clínico a re-

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ceber qualquer manifestação, cerebral, oriunda de sua enorme fraqueza, mas não se verificando semelhante caso, cuidou a mulher que salutar reversão se seguisse à crise última.

xas; Helenita, a amada ideal do Ricardinho, num escandaloso namorico com o formoso e maricas Tenente Lourival; Eleonora Paiva, a "rainha da moda" a quem o fúnebre da cerimônia restringira no seu exagerado culto da elegância, trazendo um vestido que lhe deixava bem à vista as pantorrilhas e os braços, com pensando assim em liberalidades a avareza de carnes com que a tratava a natureza, tão pródiga para com outras.

Quís evitar que, o marido, fosse à missa do sétimo dia de D. Carlota, receiosa que lhe fizesse mal a decoração, impressionante da éça, das cerimônias litúrgicas, dos cantos profundamente doloridos dos réquiem e libera-me. Paulo, longe de contrariá-la, pondrerou, porém; o inconveniente de sua ausência à esse acto, num meio pequeno e malédico, onde já se assoalhara perversamente uma tensão de relações entre enteado e padrasto, cujo casamento diziam ter-se feito contra o seu gosto. Demais não ficaria menos nervoso e impressionado si se deixasse estar em casa nesse dia... E foram. A cerimônia foi simples e curta, si bem que tocante. Após a missa, rezada, desfilaram os presentes ante o catafalco, aspergindo-o de água benta. Pouca gente, mas escolhida. Lá estavam a formosa Eunice, já noiva de um Pedro Orzeñas, insinuante rapaz recenchegado, dando-se ares, de fidalgo, na realidade simples caixeiro-viajante; Teresa e o marido, de despedidas, pois Amaral fôra nomeado para o Norte, num importante cargo; o pleurédito escriptor Leôncio Ávila e seu inseparável amigo, o bacharel Aguiar, nosso conhecido; Luisinha Veiga, radiante, alardeando a sua árdega conquista do coração do velho Sei-

Terminados os cumprimentos da praxe e os abraços de pêsames, Paulo e Maria da Piedade estiveram ainda parados no adro, conversando com D. Francisca, Regina, Décio e Ercília. Fôra Décio promovido e estava, por esse motivo, de parabéns, mas augurava-lhe esse evento breve retirada para outra guarnição, que ali não poderia ser classificado. Mesclava-se, assim, de tristeza a alegria do casal, consoante sói acontecer na vida, em que toda a satisfação tem o seu anverso de mágua. No momento em que se desfazia o grupo, seguindo Paulo e a esposa rumo à casa e os demais em sentido inverso, uma figura inesperada se lhes deparou, evocando, um momento, num capítulo triste da vida. Cruzara-se numa esquina, fingindo não os ter visto, Naninha, a mulher de Álvaro, que atravessava a praça, acompanhada por um moço em quem Paulo cuidou reconhecer o Dr. Padilha, agora transformado,

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pois tirara os bigodes e usava um pincenez elegante, de aro de tartaruga. Padilha dera ultimamente para "leão", atirando-se para uma vida de aventuras ostensivas, de estúrdia e bonachira, que muito contristava a boa senhora Padilha já descrente um tanto das boas qualidades do erudito consorte. Vinha, nos últimos tempos, servindo de pasto à maledicência local a assiduidade do fazendário junto à esposa de Álvaro, cuja leviandade não cessara com o trágico desfecho que arrastara para as grades do manicômio o seu infeliz marido. Vivendo em companhia do pai, velho e hemiplégico, Naninha ficara inteiramente à solta, podendo dar livre expansão aos seus pendores para o luxo e a vida livre do grande mundo, Faltavam-lhe, porém, os meios precisos à mantença desse estadão a que se habituara, pois o pai, major reformado, mal tinha para a subsistência, nesses tempos de vida cara. O luxo traz o vício e, no lento resvaladouro, não sente a mulher onde vai parar quando quer à viva força sustentar uma vida artificial e fingida de ostentação mundana. Começou Naninha com receber a côrte do velho Seixas, que a enchera de presentes, quasi acarretando tal aproximação o desenlace do seu noivado com a Veiguinha; acabou, privada de todo o senso moral e livre de qualquer escrúpulo, autorizando francamente, o escandaloso amparo do Padilha, que, si

lhe não freqüentava a casa, vivia a acompanhá-la por toda a parte, sem rebuços ou melindres pelo que de ambos pudessem falar. Vendo-a passar, teve Paulo uma forte emoção. Essa mulher fôra o grande amor, o sonho supremo da adolescência do seu irmão, do pobre Álvaro, que expiava agora duramente, na solitude de um hospício, a sua insensatez de ir buscar esposa no meio, corrompido de uma sociedade que se dissolvia. Era Naninha o índice, o padrão perfeitamente identificado dessa época que, para cohonestar as suas faltas, creou a — amoralidade — o estado em que se prescinde da moral, como si entre a virtude e o vício houvesse estágio intermediário e a mulher que deixa de ser integralmente honesta não se equiparasse, por isso mesmo, às heteres vulgivagas. Piedade voltou-se ainda para vê-la e percebeu nos lábios de Naninha um riso escarninho de desdém. Que estaria a segredar ao ignóbil comparso? Padilha envergava um terno de brim branco, cintado, chapéu de Chile, e o levava aberta a sombrinha curta da companheira, com que a preservava do sol, ou antes do mormaço. Naninha trazia apenas sobre a leve “combinação” de seda, fitas e rendas, um vestido finíssimo de crepe, cor de cajá, os braços inteiramente nus que, ao menor movimento, lhe punham à mostra as axílas glabras, sob as correntes das ombreiras de prata, à melindro-

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sa. Ia-lhe a saia — ou melhor o saiote — pelos joelhos, e calçava sapatinhos Luiz XV e meias transparentes cor de carne, bem finas que davam a impressão de estar em pernas, tão ao vivo lhe revelavam a epiderme. Era todo um mundo de berloques, brincos de enormes pingentes com bolas verdes na extremidade, braceletes de varia cor e gosto, amuletos e figuras de "corcundinhas" ao pescoço, que a diríeis, antes que uma mulher, um bazar ambulante de artigos da moda. O seu andar flexuoso e sinuante desarticulava-a toda em requebros lascivos a realçar as formas mais recatadas, e nos olhos, que o bistre alongava ao fundo das olheiras artificiais, nos lábios que o rouge porpurejava, dando a impressão de um pequeno coração a deitar sangue vivo, nas faces carminadas, com uma pinta no canto da boca, nas melenas cortadas tal qual os de um rapaz, deixando à vista a nuca lisa e nua — no seu todo era bem Naninha a "boneca da moda" frívola e doente, infecunda e viciada, deixando nos espíritos uma impressão dolorosa de vácuo, de fatuidade, fútil creatura feita para os prazeres fugidios de uma hora e não para a continuidade honesta de um lar...

ta! Desde a cabecinha oca, até a ponta dos sapatos, nem um nada de naturalidade! Até nos seus enfeites é o superficial que predomina. Repare, Paulo, que o ouro de lei foi abolido pelas “elegantes" de hoje e substituído pelas missangas de pexisbeque e vidro, que facilita a equiparação de uma criadinha de servir e da mais alta dama... Oh! que nojo me faz a tal democracia, Paulo!

Isto não é democracia, é a sua corruptela, o vil plebeísmo, apressou-se em corrigir o moço.

— Tudo o que é nobre, antigo, sério, duradouro, foi posto a parte... Tão certo é que a pureza e a verdade repugnam a essa gente de agora! Oh! os lindos tempos, o progresso, a civilização! concluiu, com inconsciente ironia, a horrorizada moça.

Piedade condensou nestas palavras a impressão que lhe dava a cunhada de Paulo:

— Triste época a nossa, esta em que nos foi dado viver! Tudo engano, tudo fogo de vis-

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na sua candura serena, desconfiava. Pelo cérebro encandecido de Paulo perpassavam os mais trágicos pensamentos, chegando a imaginar, uma tragédia dúplice em que, no desespero de perdê-la, a arrastasse consigo para as tenebras do reino desconhecido, para o penetral do incognoscível, cuja nortada já parecia sentir nos dedos gélidos da tísica que o asfixiava. E acudiu-lhe propor à mulher morrerem juntos. Piedade agradar-lhe-ia o convite? Parecia-lhe que, talvez, fiel aos seus princípios religiosos, na sua firmeza de crente, isenta de fanatismos como de dúvidas, se negasse a esse passo e, então, peiores seriam as angustias e os seus temores no futuro. Si, ao invés, lentamente, num trabalho em que a mulher se conservasse insciente, a arrastasse consigo para a tumba? O fundo honesto do seu sêr, porém, se revoltava contra esses pensamentos egoísticos, que lhe faziam ver na dedicada amiga que lhe suavizava as torturas da moléstia e o acompanhava, dia e noite, em todos os seus padeceres da alma e do corpo, uma propriedade sua, cousa de que o seu amor exclusivista poderia dispor absoluta e incondicionalmente. Lembrava-lhe o dia em que lhe pedira autorização para solicitar a sua mão em casamento e as palavras que lhe dirigira em resposta:

CCAAPPIITTUULLOO IIXX

AA ppiieeddoossaa ttaarreeffaa COMEÇOU para Paulo um período de

tortura moral, caracterizado pelo que se poderia chamar o ciúme póstumo, o receio de que Maria da Piedade, deixada moça e formosa, numa viuvez prematura, acabasse por esquecê-lo, convolando a novos amores que fizessem delir da sua memória a lembrança do esposo. Surdos ímpetos de ódio lhe vinham contra a terrível ceifadora que se dispunha a eliminá-lo dentro em breve, essa poderosa e invisível inimiga que, nas noites de febre, lhe rondava o leito exagitado. De nada Piedade, — Bem sei, Paulo, que é verdade o que você

me diz, conheço essas circunstancias to-

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das. Sei que você é doente, é fraco, é um ser sensitivo e sem coragem para a vida. Que importa? Eu o quero assim mesmo. Serei não a sua esposa, apenas, mas muito mais do que isso. Serei a mãe que o destino lhe roubou, a irmã que Deus lhe não quís dar, a enfermeira dedicada de todos os dias, a amiga do seu espírito doente, a consoladora do seu coração ferido... pelejarei contra essa rival invisível e terei, dia a dia, hora por hora, instante por instante, o prazer de vencê-la à força de carinho e solicitude...

Tudo venci e hoje você é meu, a sua vida é minha e nem a morte nos desunirá, porque pode roubar-me o seu corpo, mas a sua alma será sempre minha, onde quer que vá. O que me fez você padecer, longamente já o tem redimido, em carinhos e bondade que me tem dado...

Pouco a pouco, as idéas de Paulo se iam dissipando ante uma visão mais perfeita da Morte, clareada pejo amor, da Morte continuando apenas a vida, em outras formas, em outros mundos, onde, no dizer arrebatado de Piedade, as almas que se conservavam virgens, ou fieis a um único voto, se uniam no verdadeiro enlace, fundindo-se em uma só essência, como esses astros gêmeos que a vista nos representa como um único no infinito dos espaços. Assim iam os dias lhes decorrendo com a mansa fluência dos regatos sem nome, que os compêndios desconhecem e que, nem por isso, são menos felizes, poéticos, cheios de arrebatadores encantos, mais que os grandes rios citadinos, ornados de pontes e praias, mas que arrastam, no torvelim de suas águas barrentas, tanta torpeza e miséria, quanta sujidade os vertedouros urbanos lhes carrêam diária e constantemente.

E assim, realmente, tinha sido. Recordavam-lhe, com amargor, os dias ingratos do passado, quando, seduzido pelas falsas Medéas e Circes enganadoras, pensava em desprezar a que se sacrificara por seu amor. Si, por vezes, referia-se, arrependido e choroso, ao seu passado, que o diminuía aos olhos da amante, Maria replicava-lhe:

— Não quero saber desse passado que não é o meu. Você pensa, por isso, que não me merece? Merece ainda mais, Paulo, porque, no meio dos descaminhos do erro e da vaidade, soube encontrar a estrada larga do amor e da verdadeira vida. Somos integral e eternamente um do outro. Que valem esses caprichos e essas loucuras que o tempo apagou? O que você me fez penar, Paulo! Quantas noites de vigília, só com Deus e as minhas esperanças!

Fóra, a vida continuava o seu curso, agitada, tumultuosa, prenhe de episódios trágicos, episódios cósmicos, episódios frívolos. Ali, no ambiente de intimidade, entre essas paredes discretas, não chegavam os ecos do mundo,

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ou, os que se atreviam chegar até ali, eram amortecidos pelo zelo de Piedade, que, qual um velador suave, abrandava as cruezas da claridade em penumbras, para que aos ouvidos de Paulo só fossem ter as bôas notícias, de cousas agradáveis e amigas. Discorriam, por vezes, acerca de arte, das obras que Paulo engenhara, algumas tracejadas apenas, constantes do delineamento de seus caderninhos de notas, outras em esboço, já toda a ossatura feita, faltando-lhes o enchimento e as ligações, e outras ainda desenvolvidas em vários o pontos, trechos inteiros já findos, narrados ao vivo, como blocos enormes de uma grande estátua, a que faltassem peças, mas podendo-se imaginar o todo qual seria pelas partes já criadas.

a sua vida! Só a aproximação da Morte nos ensina a ter á justa noção do que vale a existência e de quanto nos depreciamos em fúteis e criminosos passatempos. Bem razão assiste aos que ensinam a viver com o pensamento na morte, não para temê-la, mas melhor amá-la, e, através da morte, saber dar à vida o seu devido valor. Consolava-o Piedade dizendo-lhe que ninguém vivia, como lhe parecia, consagrado inteiramente a um único ideal. A miragem interior póde fazer nos parecer isso nas outras pessôas, mas todos têm os seus derivativos, inevitáveis, necessários mesmo. O sábio têm suas diversões, o santo seus passatempos, a própria tentação, que é um anverso da virtude, e que o persegue. O que vale e salva é a vontade interior de fazer o bem, de cultivar o amor — condensado nessa palavra tudo o que ha de superior na alma humana. Amar — dizia Piedade, meiga, acariciando o amado — é a palavra essencial, o verbo de Deus, pois equivale a ser, pois ninguém é, sem amar, e sem que outros houvessem amado para lhe dar o ser. Deus amou a sua obra quando a fez, pois achou-a boa, como se lê na Bíblia. Amar é criar novos mundos, e reviver em outros, ou na sua obra. Ama o artista, que faz o seu livro, a sua estátua, a sua musica e fica vivendo sempre na sua obra. E assim ia a pobre moça, torturada no seu íntimo pela previsão ou

— Si Deus me deixasse, ao menos, tempo de acabar a minha obra! Ah! quem me dera uma outra vida para consagrá-la toda à minha arte e ao nosso amor! Exclamava Paulo, nos momentos torturados em que sentia sobre si o adejo do arcanjo lívido, que corta as existências na flor do sonho e das esperanças.

Ah! como lastimava agora — e por isso vertia lágrimas de sangue — o tempo que a mancheias dispersara em frivolidades, em cousas inócuas ou nocivas, conspurcando a sua arte em trabalhos de fancaria, e o seu amor, em ignóbeis relações, que hoje só lhe traziam remorsos amargos pelo não ter sabido valorizar

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certeza de que o seu amor dentro em pouco perderia o sêr material, mas procurando inocular no espírito também acabrunhado do esposo o conforto balsâmico que fluía de suas palavras. E os dias lhe corriam na piedosa tarefa que se impusera, no doce mister, menos de amante que de enfermeira, que voluntariamente abraçara, fazendo em favor desse homem, por quem renunciara a tudo, o supremo holocausto de procurar, conscientemente, no próprio e amiudado convívio, adquirir-lhe o mal, que sabia de fácil contágio, afim de poder deixá-lo na segurança de que, si lhe sobrevivesse, seria por pouco tempo e que ninguém depois a desejaria. Uma tarde fria, de chuva e vento, Piedade, se convenceu da sua conquista: havia conseguido o milagre do amor, pois em lhe sendo impossível humanamente vencer a rival mais poderosa que lhe arrebatava o amante-amado, ao menos lhe era agora consolo saber que também seria dentro em pouco presa da mesma inimiga, que já assim se veria frustrada no plano sinistro de separá-los. E foi sorrindo, numa expressão de ternura infinita, que, na ampla sala de jantar, silenciosa e fechada, se dirigiu ao esposo, estendido numa espreguiçadeira, na sua crise espasmódica:

Era a primeira vez que esse anjo se referia, sem véus ou rebuços, à gravidade da moléstia do marido, mas fazia-o porque sabia que essa notícia, longe de mortificá-lo — ó egoísmo do amor do homem! — iria ser-lhe um grande conforto. E indicava, no solo, ao lado de uma pilastra onde floriam, num jarro, lindas parasitas vermelhas — uma grande mancha também vermelha, rubra mesmo, como uma flor

de sangue, flor de renúncia e de sacrifício supremo...

— Paulo... Paulo... Que feliz que eu sou! Deus deu-me a graça de participar do seu padecimento e acompanhá-lo na viagem.

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que um estacionamento do mal que o vinha minando, via a vida da que era o seu anjo da guarda, extinguir-se, num crepúsculo rápido, como esses dias de outono, merencórios e frios... D. Francisca, ao se inteirar, com profunda mágua, do estado da filha, que o médico declarara irremediável, viera, com Ercília, para a casa do genro, onde assumira o papel de ecônoma, dispenseira, dirigente dos serviços domésticos, no intuito de descansar a pobre doente, cujos desvelos ficavam assim reservados de todo em todo ao esposo. Passavam os dias ao lado um do outro, quasi todo o tempo: à noite, no quarto de dormir, que, a conselho do assistente, haviam transferido para o interior da casa, com saída para a área, e, de dia, no gabinete de Paulo. Posto mais fraca do que o marido, Piedade demonstrava grande animação e desenvolvia energia superior à que suas forças a autorizariam a ter. Era quem lhe fazia, cedo, o guaraná, trazendo-lho na cama. Numa solicitude de mãe, a que se mesclava confiante intimidade de filha, dispunha tudo na ordem e geito que sabia do gosto de Paulo, desde o arranjo dos livros e papeis sobre a secretária até o aconchego do acolchoado e das almofadas no leito ou na cadeira de espreguiçar, em que o marido passava grande parte do dia. Velava-lhe o dormir, do mesmo passo que o entretinha nas vigílias. Abanava-o com a vem-

CCAAPPIITTUULLOO XX

AAoo ttooqquuee ddoo âânnggeelluuss O mal, ou porque encontrasse o organismo da

moça mais exposto, dada a sua idade, ou porque a mesma se empenhasse em acelerar-lhe a marcha, cortando todos os meios de defesa, progrediu rapidamente em Maria da Piedade, assumindo feição quasi galopante. Com o inverno, mais rigoroso que de costume, exacerbou-se-lhe o estado, tornando-se extrema a sua debilidade. Ainda assim continuava a sua missão generosa de verdadeiro anjo custódio do marido, cuidando muito do esposo e de si própria quasi nada. Paulo, que sentira inesperada melhora, como

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tarola e ficava-se, horas e horas, disfarçando o seu próprio padecer, passando-lhe as mãozitas leve e leve sobre a cabeça empastada pelo suor das horríveis ânsias. Contava-lhe histórias — a vida da cidade, relatada pela mãe e pela irmã, ou lia-lhe trechos dos seus livros preferidos — Musset, Samain, Bilac, Amadeu ou Quental. Certa vez abrira o Alberto de Oliveira e entreparou a ler o soneto, modelo de lindo-horrível, que é a Visão do tísico, e que Paulo gostava de recitar quando ainda bom:

Em seguida, pôs-se a ler os próprios versos de Paulo, os versos dos dias felizes de noivos, que, com arte paciente, recopiara em um caderno — fôra seu último trabalho — sobrepondo-lhes um dístico de Musset e estas palavras: — "Maria, são teus estes meus versos... E quando me fôr, os lerás, pensando em mim, que pensava em ti ao escrevê-los..."

Nos dias bem claros e firmes, em que Paulo se sentia melhor, ia à secretária, arranjava papeis, dava disposição diversa aos livros, rasgava, passava a limpo e coordenava nótulas volantes. E vendo, por sua vez, Maria da Piedade mais disposta, pedia-lhe que tocasse ao piano as suas velhas músicas. Com visível esforço, disfarçando muita vez a dôr que a garroteava, lhe fazia o gosto, fazendo-se ouvir, com a expressão que punha no teclado, em lindos trechos de Schubert, Chopin, Schumann na deliciosa Reverie tão evocativa, mas sobretudo Beethoven, o maior artista do teclado, poeta dos sons, o profundo conhecedor dos infinitos da alma humana...

É agora esta mulher, que a rir nos acompanha! É a ladeira infinita! é a lúgubre montanha! É o céu negro! É no céu nem siquer uma estrella!

— Não, não leia isso hoje — pediu-lhe o

marido. Antes o trecho da Divina chimeza... E apontava sobre a mesa um livro fino, de

encadernação escura, severa. Piedade tomou-o e abriu a folha já marcada:

Noite que és a Beatriz que inspira e que conduz, — A música e a poesia são as mais lindas

cousas da vida — costumava dizer Paulo. São evocações do Infinito... farrapos do ideal... sonhos fluidificados... Mais se conhece que um homem se aproxima da Perfeição, que é Deus, quanto maior é o culto que dedica à Poesia divina e à divina Música. . . . . . . .

a ti suba o perfume alucinante e forte da flor que, às minhas mãos, esplendida, reluz!

É tua a febre ardente em que me torturei! Tu me cinges de sombra e a sombra é quasi a morte! Noite divina e triste, a ti tudo o que amei!

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quem se sacrificara, mas que nunca pensaria deixar por primeiro: Já tardinha, depois do jantar desse dia,

Piedade que vinha passando muito animada dias atrás, teve uma forte crise, que a deixou prostrada. Chamado à pressa, o Dr. Lima, após examinar a enferma, confiou reservadamente à D. Francisca o seu prognóstico desfavorável, diante da tremenda crise que se manifestava e da pequena, quasi nenhuma resistência, que o organismo já depauperado da jovem senhora oferecia ao mal virulentíssimo. Tomaram, pois, as precauções que o caso impunha, sendo chamado, à guisa de visita, para não assustar a doente, o padre Anselmo, velho amigo da casa, que não tardou a vir. D. Francisca, mandou buscar o velho crucifixo da família.e a vela benta, Piedade, a que a fraqueza extrema já não deixava erguer-se do leito, recuperara os sentidos após o delíquio prolongado em que parecia haver se esvaído com o sangue que perdera em grande quantidade. Um silêncio pesado, já meio funéreo, pairava por toda a casa, meses antes um ninho de amor, em que a felicidade arrulhava com ternura... Andava-se na pontinha dos pés, a furta-passo, para não molestar os enfermos.. Paulo viera, pelo braço da cunhada, Ercília, até junto do leito em que, Piedade jazia, inerte, exangue, presa de uma nova crise. Com sensível esforço, a pobre moça indicava a D. Francisca o esposo querido, por

— Mamãe, entrego-lhe o meu Paulo. A senhora perde uma filha, mas fica-lhe um filho, que vale muito mais do que eu... Cuida de Paulo como eu cuidei enquanto pude. Cuide como si fosse de mim que cuidasse... Paulo bem precisa e... bem merece.

Em roda choravam convulsivamente. Era um momento de intensa emocionalidade. Não se enganara o médico. Duas horas após a primeira crise, outra sobreveio, violentíssima. Sobresaltou-se Piedade, só então consciente perfeitamente do seu próximo fim. E viu, na dolorosa intuição do seu amor, que era chegada a grande hora final da separação. Lúcida, antevia que, dentro em pouco, não mais existiria e que — era esta a sua grande mágua, o seu receio maior — faltaria a Paulo, fraco e também prestes a tombar, o amparo compadecido do seu carinho. Quís que o marido lhe pusesse nas mãos o círio da agonia e lhe desse a beijar o Jesus que conforta os últimos instantes dos que têm a fortuna de crer... Paulo sentia-se morrer também: parecia.lhe monstruoso, absurdo, inacreditável que a sua consoladora, a sua enfermeira, essa cujo amor de piedade fôra o bálsamo dos seus padecimentos, não pudesse ser-lhe também viático para a eternidade... Que fazer, si. Deus assim o queria? Era a últi-

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ma, definitiva provação. Qual dos dois penaria mais: Paulo, vendo-a partir ou Maria, vendo-o ficar? Paulo tomou-lhe entre suas mãos delicadas e macias — as suas mãos de poeta, como Piedade costumava dizer — as esguias e exangues mãozinhas da mulher, que o frio da morte já começava a enregelar. Beijou-as de leve, pondo nesse gesto e no olhar que o acompanhou, toda a sua gratidão, todo o seu infinito reconhecimento pela meiga creatura que lhe sacrificara piedosamente a sua mocidade radiante, o seu futuro, a sua vida mesma. Baixinho, numa voz que já era um fio a perder-se no silêncio eterno, Piedade pediu que trouxessem água, Não lhe foi possível, porém, engulir. O estertor final começava. Os olhos grandemente abertos — abertos para sempre, porque os tísicos não cerram os olhos nem com a morte — se pousaram no esposo, cujas mãos premiu longamente, numa ânsia que já não encontrava palavras que a exprimissem.Fóra, na doce penumbra crepuscular, um sino dolente começava a planger o ângelus vespertino, a triste ave maria que é a oração da agonia das tardes flor de bronze a abrir-se na haste esguia do campanário, em lágrimas e suspiros de piedade infinita...

Acabou de imprimir-se este romance a 24 de dezembro

de 1937, nas Escolas Profissionais Salesianas, de Cuiabá.

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