José Afonso, Génio da Canção Popular · PDF filesuas...

6

Click here to load reader

Transcript of José Afonso, Génio da Canção Popular · PDF filesuas...

Page 1: José Afonso, Génio da Canção Popular · PDF filesuas canções que nos ... musical e na canção portuguesa, cujos músicos mais inovadores se LA TI UDES n° 16 - décembree 2002

O ntem era o sentimentopoético e melódico dassuas canções que nos

mobilizava e reconfortava na opo-sição ao marasmo social. Hoje, avisão retrospectiva do cantor defados e baladas de Coimbra quese transmuta em músico de inter-venção independente, em pesqui-sador e intérprete da beleza musi-cal interveniente. Tudo imagensde uma figura ímpar da cançãopopular portuguesa do nossotempo, nascida e desabrochada nagrande precaridade, mais, naconstante frontalidade com umpoder e umas instituições mancu-manadas para banir a diferença, arevolta e sufocar a liberdade dosportugueses. Eis o personagemímpar que vamos tentar apresen-tar aos leitores.

José Afonso descende dosCerqueiras de Aveiro. O pai, JoãoNepomuceno Afonso, era magistra-do e a mãe, Maria das Dores, pro-fessora. Um parente fez jornalismo.João, seu irmão mais velho, já can-tava fados de Coimbra. Tinha trêsanos quando o metem num barcopara Angola. Aí, e depois em

Moçambique, descobre um univer-so que o fascina. Mas logo regressaà Metrópole onde faz os seus estu-dos, longe dos pais, destacados emTimor. Frequenta em Coimbra oLiceu D. João III e começa a repar-tir o ócio entre o futebol e a guitar-ra que praticava em noitadas edeambulações secretas pela cidadecom um pequeno grupo demeliantes. O pai foi amigo íntimodo poeta e fadista Edmundo deBettencourt, ele frequentou, no bair-ro de Celas, a casa do músico FlávioRodrigues, tornado o mestre incon-testado dessa geração de guitarristase de acompanhadores, em cuja arteCarlos Paredes também bebeu. Jámatriculado em Histórico-Filosóficas,“marcou presença no OrfeãoAcadémico e na Tuna e ajudou afundar o Coral de Letras”. Desseperíodo estudantil de Coimbra, Zeca,numa entrevista1, destacou as fugasde Coimbra quando esta o atrofiavae se raspava de auto-stop de capa ebatina: “deambulações muito impor-tantes para mim”, dizia. “Era frequen-te em Coimbra trocar de camisa comoutros gajos. Era um símbolo, umtestemunho de amizade... (p. 40)Cita os seus companheiros, oAntónio Guarda Ribeiro, o EduardoValente da Fonseca, o Gonzalez (JoséCarlos) e o Pignatelli (Luís deAndrade), que se afirmariam comopoetas e alguns com canções nosseus álbuns. Quando teve de ganhara vida foi professor em colégios eescolas técnicas de várias cidades dopaís até voltar a Moçambique.

Gravou o primeiro disco, Fadodas Águias, nos anos 50, ainda em78 rotações, e outro, Fados deCoimbra (1956), durante o períodocoimbrão, já em companhia dos gui-tarristas António Portugal e AntónioBrojo. Neles interpreta composiçõesde Menano, Carlos Figueiredo,Ângelo Araújo e Tavares de Melo, àmistura com as suas, aparecendoneste último uma balada de música

sua sobre letra popular açoriana. Aseguir, Zeca Afonso é também in-fluenciado pelo movimento popularcriado pela campanha eleitoral deHumberto Delgado, que marcouuma autêntica ruptura na rejeiçãodo regime de Salazar.

Habitava então Faro e frequenta-va um núcleo de jovens poetas. Pro-curando distinguir-se do fado coim-brão, passa a chamar baladas à suamúsica, compondo ainda em 1960(1958 segundo outros) a Balada deOutono, com a ajuda de AntónioPortugal, que assinala uma autênti-ca viragem musical e poética, queirá enraizar-se nos anos seguintes.

A crise académica e a rupturacom o fado de Coimbra

A situação política nacional (einternacional) que se vivia no iníciodos anos ‘60 está relacionada com amutação verificada no movimentomusical e na canção portuguesa,cujos músicos mais inovadores se

15n° 16 - décembree 2002LLAATTIITTUUDDEESS

José Afonso, Génio da Canção Popular Portuguesa

Daniel Lacerda

António Menano, estudante e cantor emCoimbra, 1922-23.

De capa alentejana fincado na terra.Azeitão, 1980 - foto Inácio Ludgero

Page 2: José Afonso, Génio da Canção Popular · PDF filesuas canções que nos ... musical e na canção portuguesa, cujos músicos mais inovadores se LA TI UDES n° 16 - décembree 2002

inscrevem no quotidiano do devirsocial. Coimbra, cuja Universidade éa primeira a achar-se em luta comas instituições do regime, vai conhe-cer em Zeca Afonso e em AdrianoCorreia de Oliveira os dois princi-pais impulsionadores dessa transfor-mação através da forma do fadoestudantil de Coimbra. Com aAssociação Académica dirigida pelaesquerda e em plena crise de ‘62,Manuel Alegre e Adriano Correia deOliveira reforçam o grupo e, labo-rando a balada/trova, criam a Trovado vento que passa (poema de M.Alegre, música de António Portugale voz de Adriano C. de Oliveira),que se torna o hino do movimentoassociativo. Desta forma, Balada deOutono (de Zeca) e Trova do ventoque passa (de Adriano/M. Alegre,1962) são dois marcos dessa vira-gem que solapam a mordaça impos-ta pelo regime.

Zeca Afonso conhece uma fasede grande criatividade. Já com acolaboração também do jovem vio-lista Rui Pato, edita, em 1962,Baladas de Coimbra, que incluitemas como Menino de oiro, Tenhobarcos tenho remos, No lago do breue Senhor poeta. Anota Viriato Telesque musicalmente se distinguiamdo fado pelo acompanhamentosimples, duma única viola, e “pelasinflexões vocais mais determinadaspelo texto do que pelas exigênciasdo estilo, tornando-se elas própriascomponentes da criação melódi-ca.”(p.176)

No ano seguinte, lança novodisco incluindo títulos de sucesso

como: Os vampiros,Menino do bairronegro e As pombas,cujos temas corres-pondem ao desejode denúncia, de soli-dariedade e resistên-cia a que os estu-dantes e ajuventude, maltrata-dos pela políciarepressiva, se identi-ficavam. Ainda em1964, antes da jorna-da de África, o autor-compositor afirmainequivocamente oseu posicionamento

nas canções: Coro dos caídos, Ó vilade Olhão, Canção do Mar e Maria.Esta última canção, dedicada a Zélia,sua mulher, encerra o melhor liris-mo, “pureza interpretativa” e meló-dica que caracterizam a música deZeca Afonso.

Este movimento engrossa tam-bém a partir do exílio. Refugiadoem Paris, Luís Cília, nascido emAngola, inicia aí a sua carreira demúsico, editando na renomadacolecção Chant du Monde, o álbumPortugal, Angola - Chants de luttede denúncia mais ousada da guerracolonial, e dum país amordaçado,após a edição dum pequeno forma-to difundido clandestinamente emPortugal. José Mário Branco fará aí,nas margens do Sena, a sua univer-sidade de música interventiva nocontacto com o movimento populare associativo. José Jorge Letria dedi-

ca um capítulo do seu livro ACanção Política em Portugal à acti-vidade dos músicos de intervençãofora do país, sobretudo em Paris eFrança, onde muitos jovens portu-gueses se refugiaram e, junto aosemigrantes, atingiram um milhão depessoas!

O movimento musical continuaa alargar-se. Multiplicam-se assessões de canto, ainda que frequen-temente interrompidas ou perturba-das pela polícia política. No final de‘60, a Televisão, abre-lhe uma jane-la, no programa Zip Zip, bem comoa católica Rádio Renascença nos pro-gramas Limite e Página Um, ondepassam Manuel Freire, FranciscoFanhais, José Jorge Letria, PedroBarroso...

Em 1964, José Afonso parte paraMoçambique onde colocara os fi-lhos junto dos pais, mas levando aideia de compreender o povo afri-cano insurgido contra o colonialis-mo. Em 1967, regressa e logo aseguir é expulso do ensino e, assim,remetido às explicações em casa,para não morrer de fome. Liga-se àCDE2 por ocasião do Congresso daOposição Democrática de Aveiro;frequenta a emigração e mantém“contactos com vários leques deesquerda, desde o PC à LUAR”.

Cantares do Andarilho, editadoem 1968, pertence a essa “fase maisinterveniente, política e culturalmen-te da sua arte”. (p. 179) Mas o discoé sobretudo assinalado por uma“genuína inspiração popular”(Senhora do Almortão e Resineiro

16 n° 16 - décembre 2002LLAATTIITTUUDDEESS

Festa de Homenagen em Viana do Castelo, 1985.

Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Armaldo Trindade, seu editor

Page 3: José Afonso, Génio da Canção Popular · PDF filesuas canções que nos ... musical e na canção portuguesa, cujos músicos mais inovadores se LA TI UDES n° 16 - décembree 2002

engraçado) e lírica (Canção deembalar, Endechas a Bárbara escra-va (poesia de Camões) e duas com-posições mais pessoais:a surreali-zante Chamaram-me cigano eVejam bem, esta obtendo grandeaceitação.

Com a abertura caetanista de ‘69,Zeca aproveita para apresentar, jun-tamente com a composição anti-guerra colonial Menina dos olhostristes (poema de Reinaldo Ferreira),uma versão da canção de contra-bandistas do folclore da Beira Baixa:Canta camarada canta, que setorna numa espécie de hino antifas-cista3. O álbum seguinte, Contos vel-hos, rumos novos, ao lado de can-ções do cancioneiro tradicional,inclui temas de denúncia e resistên-cia: a Cidade (letra de Ary dosSantos) e Era de noite e levaramsobre poema de Luís Andrade. Em1970, grava em Londres Traz outroamigo também, com a novidade deincluir cantares com as primeirasreferências a África (Avenida deAngola e Carta a Miguel Djéje) e aodesterro da emigração (Canção dodesterro4, para a qual actuava emdiversos países europeus, noeada-mente em França, perante um públi-co de apreciadores. Outros temaspoéticos e de sucesso melódicodeste disco: Maria Faia e Verdes sãoos campos (poema de Camões).

“Em 1970 fui a Cuba - declara -começo a sofrer um controle poli-cial muito grande e acabo por serpreso...” (p.52). É na malfadadaprisão de Caxias que nasce a can-ção Venham Mais Cinco. No iníciode 70, Manuel Freire obtém grandesucesso com a canção Pedra filoso-fal, sobre poema de AntónioGedeão. Contudo com a edição dosLPs Traz outro amigo também eCantigas do Maio Zeca Afonso afir-ma-se como “o líder involuntáriodesta autêntica revolução na revo-lução, através da qual deixa de seconsiderar importante apenas o quese diz, para se favorecer o modocomo”. V. Teles considera a realiza-ção do 1° Festival de Vilar deMouros (Agosto 71), que reuniucerca de trinta mil jovens e no qualmarcou presença Zeca Afonso,como uma ruptura contra a “indife-rença que até então se vivia”, embo-

ra se não tratasse de música popu-lar ou de intervenção. No entanto,“a renovação musical portuguesaera já um fenómeno imparável”.(p.154)

Revolução musical e resistênciaà opressão

Data de 1971 Cantigas de Maio,que Viriato Teles considera o “maishistórico e referencial de todos osdiscos da música popular portugue-sa.” Gravado em França, “com arran-jos e direcção musical de José MárioBranco, este disco assinala a primei-ra viragem de fundo na revoluçãomusical iniciada por Zeca uma dúziade anos antes. O tratamento instru-mental de cada tema - acentua aque-le comentador - a beleza poética ea subversão temática atingem aquium nível nunca anteriormente possí-vel”. (p. 183) O disco foi considera-do, efectivamente, em 1978, como omelhor de sempre da música popu-lar portuguesa por vinte cinco críti-cos e jornalistas5. O título alude aduas canções líricas da mais belainspiração popular. Entre as cançõesde luta, além de Grândola, vilamorena, inclui: o já citado Coro daPrimavera e Cantar alentejano,dedicado à mártir Catarina Eufémia,cujos versos, mobilizadores, dizem:“Acalma o furor campina/Que o teupranto não findou/Quem viu morrerCatarina/Não perdoa a quem matou”.

Zeca encontra-se numa fase degrande empenhamento político, queo levará novamente à prisão deCaxias, quando edita Eu vou sercomo a toupeira, apresentado comoum trabalho de grupo, onde sobres-saem os nomes de Carlos AlbertoMoniz, José Jorge Letria, José Niza eTeresa Silva Carvalho. Os temas queo compõem reflectem os ventos de“mudança que se avizinham”enquanto afirma mais coragem nadenúncia (A morte saíu à rua), evo-cativo do assassinato pela Pide doescultor comunista Dias Coelho, eno aceno a um preso político (Portrás daquela janela) ou na alusãoao cadáver salazarista (O avô cada-veroso).

“Praticamente impedido de can-tar em Portugal, Zeca apresenta-se

ao vivo em Espanha e França e, em1972, participa no VII FestivalInternacional da Canção Popular doRio de Janeiro, por designação dosleitores do Diário de Lisboa, inter-pretando precisamente”. A mortesaiu à rua, tema de grande implica-ção social que aquele público,porém, não compreendeu6. O músi-co estabelece então contactos comalguns dos mais notáveis músicosbrasileiros.

No final de 1973, volta a Parispara gravar Venham mais cinco,novamente com a colaboração musi-cal de José Mário Branco e um gran-de elenco de músicos, incluindovários temas escritos por Zecaenquanto se achou detido emCaxias. São “dez cantigas onde o tra-dicional lirismo de José Afonso sefunde com uma grande modernida-de semântica (Era um redondovocábulo) atravessada em algunscasos por uma crueza ímpar (Paz,poeta e pombas ou Rio largo de pro-fundis)”, comenta V. Teles. E, comosempre, a agitação: A formiga nocarreiro e Venham mais cinco. Estaúltima composição entrando na clas-se superior dos hinos.

Autêntico anúncio de fim doregime - acentua o autor desse tra-balho - foi o concerto histórico rea-lizado no Coliseu dos Recreios deLisboa, a 29 de Março de 1974, poriniciativa da Casa da Imprensa. Neleparticiparam as principais figurasdo movimento: José Afonso, AdrianoCorreia de Oliveira, Manuel Freire,

17n° 16 - décembree 2002LLAATTIITTUUDDEESS

Page 4: José Afonso, Génio da Canção Popular · PDF filesuas canções que nos ... musical e na canção portuguesa, cujos músicos mais inovadores se LA TI UDES n° 16 - décembree 2002

Fausto, José Jorge Letria, CarlosParedes, Fernando Tordo, JoséBarata Moura, Ary dos Santos eVitorino. Diga-se que a autorizaçãodo espectáculo teve de ser arranca-da à força às autoridades caetanistaspela direcção da Casa dos jornalis-tas.

“Grândola Vila Morena” e o 25de Abril

Depois de ter sido escolhidapelos Capitães de Abril como sinalsecreto do desencadeamento, namadrugada de 25 de Abril, da insur-reição militar contra o poder fascis-ta, a nova canção portuguesa deintervenção, até aí proibida, perse-guida e marginalizada, acede final-mente à rádio e à Televisão.Grândola vila morena, canção com-posta por José Afonso, torna-se osímbolo musical da revolução. Facea esse deslumbramento, depois deuma pausa para reflectir sobre o quedevia fazer, Zeca Afonso conta quefez “as sessões mais espantosas dasua vida, junto da nata do povo aolado do Camilo Mortágua, doFanhais e de outros”. (p.60)

Lançado na acção do movimen-to popular assim desabrochado,Zeca Afonso, fez posteriormenteargutas declarações acerca da suaexperiência nesse período de inten-sa agitação política: “Não confundocanção de intervenção com panfletopartidário, embora em determinadaaltura, eu tenha incorrido nesseerro”, declarou ao Jornal de Letras.E crescentou: “A canção de inter-venção implica um espírito derenúncia a um triunfalismo fácil,bem como ao vedetismo; implica anoção de que estamos a fazer músi-

ca mais como servi-ço público do quecomo forma de aver-bar glórias7”..

A coerência eraseu apanágio. Nofinal de 1974, gravaCoro dos tribunaisem Londres, acom-panhado dum gruponumeroso de com-panheiros músicos:Adriano Correia de

Oliveira, Fausto, agora o responsá-vel da direcção musical, Vitorino,José Niza, etc. Recusando o popu-lismo e apregoar falsas ilusões, preo-cupa-o a revolução que resta porfazer. No seu estilo sóbrio, lançaalguns avisos como na canção Oque faz falta, que se tornará umautêntico lema.

Em 1975, Zeca grava para aLUAR (Liga de Unidade e AliançaRevolucionária) o single Viva o poderpopular/Foi na cidade do Sado,cujos temas se inseriam nas peripé-cias da acção popular. A segundacanção referia as movimentaçõesdas camadas populares em oposi-ção a um comício do PartidoPopular Democrático (actual PSD)em Setúbal8. Nesse período excep-cional de movimentação popular,outros “baladeiros” inspiravam-seno abandono das empresas (J. MárioBranco), no controlo operário nasfábricas, nos julgamentos populares,em palavras de ordem do movimen-to social (Sérgio Godinho) e nou-tros temas da mais imediata acçãosocial e política.

De 1976 data o álbum Com asminhas tamanquinhas, “o seu tra-balho mais directo e mais interve-niente, espelho da rea-lidade política e socialde 1974 e 1975”, queZeca prefere àsCantigas de Maio. Porum lado, retrata “assituações únicas einesquecíveis” do“período maravilhosoque foi o PREC”(Zeca), por outro sati-riza causticamente anova ordem militarque surgiu após o 25de Novembro (incluin-

do Eanes), que pôs fim ao movi-mento popular. Viriato Teles, conci-ta o exemplo de Bertold Brecht ede Maïakovsky para realçar em ZecaAfonso a “capacidade de intervirartisticamente de forma eficaz, emtermos imediatos, sem prejuízo dosvalores estético-formais” (p.189),recusando o realismo primário. Pelamesma fase de transição social ficouassinalada a gravação do álbumEnquanto há força, mistura de espe-rança e humor, de denúncia e fer-vor revolucionário. Zeca vai maislonge na colaboração com Fausto oqual, pela primeira vez, participa naconcepção musical de duas canções.Na interpretação participa um gruponumeroso de grandes músicos, entreos quais: Carlos Zíngaro, PedroCaldeira Cabral, Rão Kyao, AdrianoCorreia de Oliveira e SérgioGodinho. Os versos marcavam umaatitude resistente: Enquanto à força/no braço que vinga/que venhamventos/ virar-nos as quilhas.

No início dos anos ‘80, JoséAfonso faz uma espécie de regressoàs origens voltando a cantar o fadode Coimbra, e aproveita para pres-tar homenagem a EdmundoBettencourt e “ao seu contributopara a renovação e dignificação damúsica popular”.

Minado pela estranha doençaque duramente o castigava nessesanos, José Afonso fará em 1983 assuas derradeiras interpretaçõespúblicas, no Coliseu de Lisboa e noPorto, onde, rodeado dos principaisnomes da música ligeira portugue-sa, na sua maioria discípulos, apre-sentou um roteiro das fases maisimportantes da sua obra: “Desde ossonhos adolescentes das margens

18 n° 16 - décembre 2002LLAATTIITTUUDDEESS

Zeca Afonso com Otelo, Fausto e Vitorino Porto, 1980.

Com Sérgio Godinho.

Page 5: José Afonso, Génio da Canção Popular · PDF filesuas canções que nos ... musical e na canção portuguesa, cujos músicos mais inovadores se LA TI UDES n° 16 - décembree 2002

do Mondego até às utopias deseja-das do presente, da inquietação deOs vampiros à esperança colectivade Grândola, da simplicidade daCanção de embalar à raiva de Amorte saiu à rua”. Ainda nas pala-vras de Viriato Teles, seu perspicazcomentador: “Ao longo de cerca deduas horas de espectáculo noColiseu, Zeca não só provou ser oprincipal representante da MúsicaPopular Portuguesa como o seu cria-dor mais actuante. O único, ainda,capaz de transmitir a força suficien-te para recriar em palco o ambientefestivo e interveniente de Grândola,vila morena, levando os própriosrepresentantes do poder instituído acurvarem-se perante a sua arte, oseu talento, a força das suas pala-vras e da sua música”. (p.73) Foiuma consagração, com Zeca rodea-do dos seus amigos de várias áreas,incluindo a política: VascoGonçalves, Otelo e RosaCoutinho.Tempo depois, a Televisãoacabou por difundir o vídeo entãoastutamente realizado, embora comembaraços técnicos, por Luís FilipeCosta.

No mesmo ano, edita o discoComo se fora seu filho, onde, à suamaneira multifacetada, combina “opopular e o erudito, a história e ailusão, a crítica e a meditação” (P.Pyrrait in Expresso). É o último discoem que “participou activa e integral-mente”, mas os arranjos, sobre ideiassuas, foram repartidos por JúlioPereira, José Mário Branco e Fausto.

Deixava mais um disco “capazde sobreviver aos tempos e às fron-teiras”(p.196), marcado pela extra-ordinária variedade do seu tempera-mento, entre o desejo, a memória e

o sonho: a reflexão serena, a angús-tia sem renega, a crítica acutilante,o prazer de novos sons e de expe-riências e uma esperança imorredoi-ra...

O último disco, Galinhas demato, com Zeca doente, foi tambémelaborado com a colaboração estrei-ta de Júlio Pereira e Zé MárioBranco. Impossibilitado de cantar,contou com a particicipação comointérpretes de Helena Vieira, NéLandeiras, Luís Represas e JanitaSalomé. Incluía alguns temas musi-cais elaborados há tempo, incluindoem África, como Galinhas de matode acento africano. Noutra cançãoevoca o telurismo russo em home-nagem ao cineasta Tarkovsky, cujosfilmes admirava.

Dada a sua popularidade, a parda sua mensagem musical, a sua ati-tude enquanto cidadão/artista eraigualmente perscrutada como umsinal a seguir. Recusando debatesestéreis, persistia em sustentar que asua música era comprometida, jáque como cidadão era um homemcomprometido. Em cada campanhaeleitoral escolhia o seu campo:Otelo (Saraiva de Carvalho) por duasvezes... mas procurou sempre man-ter-se independente. Era o primeironas festas de solidariedade. Com oregresso dos milionários em fuga, ea instalação do desencanto face àsesperanças do 25 de Abril, apontouo deixar andar e o consentimentopermitido de quem possuía respon-sabilidades intelectuais e políticas(canção Os eunucos). Conhecidopelo seu humor e de instinto provo-cador, pressentido em múltiplas dassuas composições de acento surrea-lista, a amargura sentida com esse

desfeixo, - que levariaconsigo ao deixar omundo - mereceu-lheeste retrato: “Há umacobardia historicamen-te constitutiva nestepaís. Não somos fada-dos para os actosredentores, para asgrandes heroicidades.Somos um país de can-tineiros e de vende-dores”...

Passado poucotempo, na madrugada

REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS• A. F. org.: Cantares de José

Afonso, ed. Nova Realidade eAssociações de Estudantes, 1968,e 1970, 99p. + fotografias. É a pri-meira publicação que lhe éconsagrada. Devido à censura, asAssociações de Estudantes reedi-taram a inicial edição, apreendi-da, da Nova Realidade . O orga-nizador da edição, ManuelSimões, reuniu 51 letras/poemasacompanhadas de surpreendentesnotas explicativas do seu contex-to e das intenções do autor, e umbreve texto autobiográfico deZeca. As inicias A. F., que assi-nam o Preâmbulo, era um estrata-gema para evitar a perseguiçãopolicial.

• Elfriede Engelmayer: José AfonsoPoeta, Lisboa, Ulmeiro, 1999.

• J.H. Santos Barros, coord. : Textose Canções de José Afonso, Lisboa,Assírio & Alvim, 1986.

• José Afonso: Quadras Populares,Lisboa, Ulmeiro, 1980; 7a ed., 1999.

• José António Salvador: JoséAfonso, o Rosto da Utopia, Lisboa,Terramar, 1994; 2° ed. 1999,Apontamento.

• José Barata Moura: Estética daCanção Política, Lisboa, LivrosHorizonte, 1977..

• José Jorge Letria: A CançãoPolítica em Portugal, Lisboa, AOpinião, 1978, 2° ed. 1999,Ulmeiro.

• José Viale Moutinho: José Afonso,antologia, Porto, LivrariaPaisagem, 1972 e 1975

• Mário Correia: A MúsicaTradicional da Obra de JoséAfonso, Amadora, CâmaraMunicipal da Amadora, 1999.

• Mário Correia: Música PopularPortuguesa, um Ponto de Partida,Coimbra, Centelha/ Mundo daCanção, 1984.

19n° 16 - décembree 2002LLAATTIITTUUDDEESS

Com Rui Pato - foto Joaquim Lobo

Page 6: José Afonso, Génio da Canção Popular · PDF filesuas canções que nos ... musical e na canção portuguesa, cujos músicos mais inovadores se LA TI UDES n° 16 - décembree 2002

que retoma fados e baladas dassuas primeiras gravações; Filhosda Madrugada (1994, BMG),duplo CD de vinte das suasmais populares canções, numaespécie de homenagem, cadauma delas é interpretada poruma banda distinta, nele parti-cipando um colectivo extraor-dinário de músicos: osMadredeus, GNR, Sitiados,Vozes da Rádio, Tubarões, Peste& Sida, Ritual Tejo, Delfins,Diva, Opus Ensemble, Xutos ePontapés, Sétima Legião,Resistência, Entre Aspas, MãoMorta, Frei Fado D’el Rei,Censurados, Brigada Victor Jara,UHF e Essa Entente. Com doistemas inéditos deixados porZeca, (Entre Sodoma eGomorra e Nem sempre os dias

são dias passados) o sobrinho JoãoAfonso, José Mário Branco, e AméliaMuge, editaram Maio Maduro Maio(1995, duplo CD), completado poruma antologia de outros temas. OPrémio José Afonso, para o melhordisco de música popular portugue-sa, foi instituído pela CâmaraMunicipal da Amadora.

Diversos discos e canções de suaautoria foram editados em diversospaíses, nomeadamente em Espanha,França, RDA, Bulgária, Itália e EUA.Outras canções têm sido interpreta-das por cantores estrangeiros: osnorte-americanos Charlie Haden eCarla Bley, o espanhol Luís Pastor, abrasileira Gal Costa, e portugueses:Dulce Pontes, Amália, SérgioGodinho e Carlos do Carmo...

A obra musical de José Afonso,nascida na precaridade da rejeiçãoe da perseguição do salazarismo,emblemando a aspiração à liberda-de, à elevação social e ao convíviona arte de toda uma geração de por-tugueses, triunfou de diferentes for-mas, alastrando além fronteiras, epermanecendo eternamente vivanas sensibilidades mais diversas eexigentes. A adversidade que tevesempre de combater foi bem inter-pretada, num grande teatro de Paris,por Paco Ibañez, grande valor damúsica catalã com largo passado deactuação ao lado de portugueses,ao dizer: “Zeca Afonso é um dosmaiores cantores do mundo, que

20

de 23 de Fevereiro de 1987, a morte,que há anos o perseguia, levava-o.Várias dezenas de milhares de pes-soas vieram incorporar-se na home-nagem fúnebre realizada na EscolaSecundária S. Julião de Setúbal eacompanharam o féretro a caminhodo cemitério local, numa impressio-nante manifestação popular.

Os maus fados retiravam assimaos portugueses um dos seusmaiores criadores da música popu-lar e de intervenção. Desapareciaassim alguém que, desde o primeiromomento, associou o seu géniomusical ao destino do povo, numabatalha quotidiana e audaciosa pelaliberdade e pela sua elevação social,sempre contra as peias da consciên-cia e da palavra, contra o marasmoda miséria. Alguém que, pelo seutalento particular, operou através demeios artísticos inovadores, asso-ciando a emoção do belo à perti-nência dos temas e interrogaçõesdo seu tempo, mas ultrapassando-os pelo arroubo dum lirismo maisuniversal.

A reedição da sua música ficoua cargo da Associação José Afonso,criada por amigos e sua família: JoãoAfonso, um sobrinho, guitarrista ecantor, prolonga a tradição musical.A associação organiza anualmente ofestival Cantigas de Maio. Depoisdo seu falecimento, foram lançadostrês discos a partir do seu espólio.De Capa e Batina (1996, Movieplay)

“De costas para o poder, sempre” foto Joaquim Bizano

apenas tem contra si o facto de...ser português” �

1 Viriato Teles: Zeca Afonso, as Voltasde um Andarilho, Lisboa, Ulmeiro,1999, 2ª edição aumentada da ante-rior saída na Relógio d’Água em1983. O livro é constituído por umarecolha de entrevistas, artigos e tex-tos diversos, publicados na sua maio-ria na revista Sete e Sérgio Godinhoassina o prefácio. Exprimindo omesmo espírito colectivo e camaradaque se respira neste excelente trabal-ho de registo e análise do trajectomusical de Zeca, o autor incluiu umtexto de homenagem e saudade aFernando Assis Pacheco. Nós deixa-mos aqui registada a nossa dívida àobra de Viriato Teles, que seguimoscapítulo a capítulo, na elaboraçãodeste artigo; todas as referências quenão tenham outra indicação se lhereferem.

2 Comissão Democrática Eleitoral cria-da para disputar as eleições de 1969,reunindo, inicialmente, toda a oposi-ção ao regime. Logo a seguir cinde-se em CED e CEUD, esta mais mode-rada, de tendência social-democrata,encabeçada por Mário Soares.

3 A letra prestava-se a essa transposi-ção política, dizendo: “Canta camara-da canta/canta que ninguém te afron-ta/que esta minha espada corta/doscopos até à ponta” e Viva a malta,trema a terra/daqui ninguém arre-dou!/quem há-de tremer naguerra/sendo homem como eu sou ?”O compositor Fernando Lopes Graça,que dirigia o Coro da Academia deAmadores de Música, integrou-a noseu repertório dos saraus efectuadosnas colectividades da região deLisboa, frequentemente interditospelas autoridades salazaristas. Estagrande figura da música portuguesacompôs no período do pós-guerra ascélebres “Canções Heróicas”, imedia-tamente anatemizadas pelo mesmoregime. Só o 25 de Abril possibilitoua sua reabilitação e reedição seguidaduma extraordinária sessão públicano Coliseu dos Recreios de Lisboa.

4 Com o subtítulo Emigrantes é umpoema de sete oitavas, que vemincluído em Cantares, dizendo Zeca,em nota, que a escreveu emLourenço Marques para “evocar aodisseia dos forçados actuais”. Eis aprimeira estrofe: “Vieramcedo/Mortos de cansaço/Adeus ami-gos/Não voltamos cá/O mar é tãogrande/E o mundo é tão largo/MariaBonita/Onde vamos morar”.

5 Votação organizada pelo jornal Sete.6 Acerca desta deslocação ao Brasil

ver o “dossier Rio de Janeiro” in JoséViale Moutinho: José Afonso, Porto,Livraria Paisagem, 1975, 2ª ed.

7 Jornal de Letras de 25/05/1982,entrevista de António Duarte, eViriato Teles, obra cit. p. 162.

8. A letra de Foi na Cidade do Sadodizia: Aos sete do mês de Março /quinta-feira já se ouvia/dizer à bocacalada/que o PPD era a Cia/ (...)/Eram talvez quatrocentos/gritando aplenos pulmões/abaixo o capitalismo/não queremos mais tubarões/(...) Aum sinal combinado/já quente apolícia vem/arreia, polícia,arreia/que o Totta Açores paga bem”.V. Teles, Ibidem, p. 163.