Jornalismo Especializado

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O Reino Encantado de Hollywood Por Camila Franchini [email protected] Legenda: Charlize Theron como a Rainha Ravena na nova versão de Branca de Neve Foto: Divulgação Contos de fadas oferecem enredos para o cinema há séculos. Entre animações e longa metragens, diversas foram as adaptações para as histórias, que conquistam o público com a tradicional temática dos mocinhos e vilões. E em meio à crise de originalidade hollywoodiana que acomete a indústria cinematográfica há certo tempo, e a forte demanda por produções inspiradas em heróis de quadrinhos e vampiros que arrecadem números em bilheteria, o último filão resgatado pelos estúdios em produções para o cinema e até mesmo TV é justamente este. A temática, quando bem aplicada ao audiovisual, é molde quase certo de garantia de sucesso para as produtoras. Hollywood procura loucamente por uma nova forma de contar e aposta suas fichas em longas live action. Passou a áurea fase dos Estúdios Disney, quando princesas eram consideradas mocinhas indefesas e viviam felizes para sempre antes dos créditos finais. Muito além da beleza e do romance retratados até então, as novas produções parecem agora retornar ao sentido literal dos contos, ambientados em épocas em que os conflitos morais e a temática adulta falavam mais alto que a simples história. Cômicas ou sombrias, as novas releituras encaram seu reinado. Ivan Ferrer Maia, professor de Cinema da Universidade Anhembi Morumbi e doutor em Audiovisual e Mídia pela Unicamp, acredita que o fato de as novas histórias desmistificarem o tradicional felizes para sempre conquista o novo público. “As produções tentam mesclar a linguagem a ponto de atrair o maior alvo possível sem serem excludentes. Uma ação politicamente incorreta de um personagem pode excluir o público infantil, mas por outro, pode atrair um público jovem, de presunção subversiva. O mesmo acontece com homens e mulheres. Hoje, muitas produtoras tentam agradar a família, ou seja, crianças e adultos. Assim, lançam mão de elementos linguísticos e mercadológicos que ora se comunicam com o público adulto, ora com o infantil, tudo em um mesmo produto.” As primeiras animações eram voltadas para os adultos e já apresentavam uma temática ousada no roteiro, como vemos, por exemplo, em Plane Crazy (1928) em que Mickey assedia a Minnie. E o uso do humor também tem dado o tempero para as produções atuais, que fazem apelo ao politicamente incorreto. “Jovens nascidos a partir da década de 80 tendem a questionar o papel das instituições e os valores proferidos por elas graças a diversos fatores socioculturais”, comenta Maia. As produções atuais têm utilizado desses preceitos para construir narrativas que questionam valores de uma

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Jornalismo especializado da disciplina da Professor Rose Bars

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O Reino Encantado de Hollywood

Por Camila Franchini

[email protected]

Legenda: Charlize Theron como a Rainha Ravena na nova versão de Branca de Neve

Foto: Divulgação

Contos de fadas oferecem enredos para o cinema há séculos. Entre animações e longa metragens, diversas foram as adaptações para as histórias, que conquistam o público com a tradicional temática dos mocinhos e vilões. E em meio à crise de originalidade hollywoodiana que acomete a indústria cinematográfica há certo tempo, e a forte demanda por produções inspiradas em heróis de quadrinhos e vampiros que arrecadem números em bilheteria, o último filão resgatado pelos estúdios em produções para o cinema e até mesmo TV é justamente este.

A temática, quando bem aplicada ao audiovisual, é molde quase certo de garantia de sucesso para as produtoras. Hollywood procura loucamente por uma nova forma de contar e aposta suas fichas em longas live action. Passou a áurea fase dos Estúdios Disney, quando princesas eram consideradas mocinhas indefesas e viviam felizes para sempre antes dos créditos finais. Muito além da beleza e do romance retratados até então, as novas produções parecem agora retornar ao sentido literal dos contos, ambientados em épocas em que os conflitos morais e a temática adulta falavam mais alto que a simples história. Cômicas ou sombrias, as novas releituras encaram seu reinado.

Ivan Ferrer Maia, professor de Cinema da Universidade Anhembi Morumbi e doutor em Audiovisual e Mídia pela Unicamp, acredita que o fato de as novas histórias desmistificarem o tradicional felizes para sempre conquista o novo público. “As produções tentam mesclar a linguagem a ponto de atrair o maior alvo possível sem serem excludentes. Uma ação politicamente incorreta de um personagem pode excluir o público infantil, mas por outro, pode atrair um público jovem, de presunção subversiva. O mesmo acontece com homens e mulheres. Hoje, muitas produtoras tentam agradar a família, ou seja, crianças e adultos. Assim, lançam mão de elementos linguísticos e mercadológicos que ora se comunicam com o público adulto, ora com o infantil, tudo em um mesmo produto.”

As primeiras animações eram voltadas para os adultos e já apresentavam uma temática ousada no roteiro, como vemos, por exemplo, em Plane Crazy (1928) em que Mickey assedia a Minnie. E o uso do humor também tem dado o tempero para as produções atuais, que fazem apelo ao politicamente incorreto. “Jovens nascidos a partir da década de 80 tendem a questionar o papel das instituições e os valores proferidos por elas graças a diversos fatores socioculturais”, comenta Maia. As produções atuais têm utilizado desses preceitos para construir narrativas que questionam valores de uma

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maneira leve, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, tentam propagar valores moralistas no final do conto.

Para Arlindo Gonçalves Junior, psicólogo e professor da PUC-Campinas, não são os contos que persistem, mas sim os arquétipos encontrados neles, modelos míticos que já estavam presentes desde as primeiras histórias. “O conto de Eros e Psique, por exemplo, foi um gancho para vários outros contos de fadas, e ali a gente encontra os principais arquétipos que são reutilizados no contexto cultural em que a história é contada ou reescrita. São questões fundamentais que dizem respeito ao homem de forma atemporal, mas repaginadas em função da subjetividade de um determinado momento cultural. E não podemos esquecer da questão do infantilismo do adulto, abordada por Adorno. Ele será consumidor deste produto para permanecer infantilizado em relação à sua subjetividade. E isso invoca a memória, uma memória inconsciente, que corresponde a vivencia de aspectos lúdicos da criança e está presente em todos”.

Desta forma, em 1991, a história de Peter Pan, o menino que cresceu e se tornou empresário de sucesso em Londres, foi mostrada em Hook – A Volta do Capitão Gancho. Em Para Sempre Cinderela, de 1998, a plebeia se apaixona pelo príncipe enquanto conversa poeticamente com personagens como Da Vinci e os próprios Irmãos Grimm. Mas foi a franquia Shrek, da Dreamworks, que em 2001 reabriu as portas para que os contos já conhecidos fossem reaproveitados. Na sequência de quatro filmes protagonizadas pelo ogro verde anti-herói, não faltou liberdade e humor para recriar histórias que pouco tinham em comum com as originais.

Desde então, Alice cresceu e retornou a um país das maravilhas muito mais sombrio e intimidador; Rapunzel ganhou sua primeira animação, e também uma personalidade moderna, defensiva e radical; Chapeuzinho Vermelho tornou-se objeto de desejo sexual entre moradores de um vilarejo atormentado pela presença do lobo, que mata impiedosamente num suspense decepcionante e Bela e a Fera buscam por amor e beleza na cosmopolita Nova York.

Da safra recente destacam-se as duas versões de Branca de Neve, interpretadas por Lily Collins e Kristen Stewart. No resultado final são duas produções bem diferentes, adaptadas do conto alemão compilado pelos Irmãos Grimm entre 1812 e 1822, o que justifica o lançamento quase simultâneo de Espelho Espelho Meu e Branca de Neve e o Caçador, o segundo com promessas de virar franquia.

Segunda maior bilheteria da semana desde sua estréia no Brasil, entre 01 e 03 de junho, perdendo apenas para MIB Homens de Preto 3 (R$6,3 milhões), Branca de Neve e o Caçador (R$5,3 milhões) apresenta cenários sombrios e parcerias inusitadas. Montada a cavalo, a versão modernizada da princesa/guerreira clama por seus direitos com muita guerra e ação na companhia do fiel Caçador. “Isso tem a ver com o modelo de mulher de hoje e a dissociação do sexismo. A ideia da mulher boa, pura, passiva e que não desempenha um papel de tomada de decisão vem sendo quebrada a partir dos novos paradigmas, e isso passa a modificar a própria estrutura da história em função do atendimento dessa nova demanda. Não vamos mais encontrar apenas a donzela positiva, mas também a guerreira, que passa a ser espelho de uma mulher contemporânea”, explica o psicólogo.

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Depois de inundar os cinemas com franquias míticas e de super heróis, parece que a indústria voltou-se para o público feminino, com heroínas que defendem seus interesses e tornam-se o ponto alto da história pegando em escudos, espadas, arcos e flechas. O que logicamente também atrai, e muito, o público masculino.

Produções live action impõem desafios maiores. “Os contos de fadas não podem lançar mão de maneira tão despojada dos recursos de fantasia da animação, porque com isso os roteiros ganham ainda mais valor. E essa é a maior dificuldade em qualquer uma destas adaptações. Quando a técnica tenta superar em demasia o roteiro, assistimos uma história precária. Talvez este seja o principal problema e questionamento em relação as adaptações atuais. Algumas produções se encantam em demasia com as tecnologias em 3D e efeitos especiais e o investimento em bons roteiros, consequentemente, acaba em segundo plano, o que resulta em histórias previsíveis e insatisfatórias”, comenta Ivan. E ainda vêm por aí Maleficent, nova adaptação de A Bela Adormecida contada pela ótica da Rainha, interpretada por Angelina Jolie; Hansel e Gretel: caçadores de bruxas, a famosa dupla João e Maria tem até uniforme e se defende com armas de fogo; e novas versões de A Bela e a Fera, Cinderela e A Pequena Sereia.

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