Jornal-Mural "Matador"

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Curso de Jornalismo da UFSC Atividade da disciplina Edição Professor: Ricardo Barreto Edição, textos, planejamento e editoração eletrônica: Gabriel Coelho Serviços editoriais: A Ditadura Envegonhada, de Élio Gaspari, www. ig.com.br, www.memoriasdeumaguerrasuja.com.br Colaboração: Júlia Schutz, Mateus Vargas, Centro Acadêmico Livre de Jornalismo Adelmo Genro Filho Impressão: Postmix Novembro de 2012 matador Florianópolis, 29 de novembro de 2012 | Edição 1 | Ano 1 Confissões sangrentas Antigo matador da ditadura expõe de modo cru a maneira como atuava P articipei das execu- ções de terroristas em vários pontos do país e também estive presente aos atenta- dos que visavam a ampliação da vida do regime militar. É deste modo que Cláu- dio Guerra, ex-delegado do Depar- tamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Espírito Santo, resume suas atividades como agente da dita- dura brasileira. Seu relato foi colhido pelos jornalistas Rogério Medeiros e Marcelo Netto, durante quase 3 anos e publicado no livro Memórias de Uma Guerra Suja (291 páginas, Topbooks, 2012). Muitos termos podem ser utili- zados para definir o teor da obra, mas o mais utilizado - e provavelmente mais adequado - é “chocante”. Guerra - um assassino experiên- ciado, com uma contagem de corpos que se aproxima de uma centena - re- vela como friamente matou, explo- diu, ocultou - e queimou - corpos para defender e prolongar a existên- cia do Estado de Exceção. Foi tão eficiente como matador que acabou promovido a estrategista, planejando homicídos e atentados, sendo impor- tante na comunidade de informações - formado pelos or- gãos estatais da re- pressão, militares e o Serviço Nacional de Informações (SNI). O livro alter- na entre a primeira pessoa - exigência dos autores, que disseram à Guerra estarem interessados em ouvir e publicar apenas o que ele pu- desse assumir - e a escrita dos jornalis- tas. A estrutura se- gue uma ordem lógica e trata de dois momentos distinos: a repressão e a manutenção do regime. Começa na primeira pessoa, narrando a elimina- ção dos adversários do regime militar e as execuções em que Guerra esteve envolvido. Depois, conta sobre as me- didas tomadas para desaparecer com corpos de militantes. As páginas seguintes, na terceira pessoa, são dedicadas aos coman- dantes do ex-delegado, como o Co- ronel Freddie Perdigão e o Coronel Magalhães, bem como a estrutura da comunidade de informações - que fica clara na descrição da decisão de assassinar outro agente da repressão, o delegado Sérigo Fleury. Chega-se, então, ao segundo perío- do: o combate à redemocratização. A ideia era clara: “gerar ambiente de in- segurança que prejudicasse a abertura política. O plano era provocar derra- mento de sangue, e culpar a esquerda” afirma Guerra, que planejou e execu- tou diversos atentados, como o ao Esta- do de S. Paulo, em 1983. O ex-delegado conta também como se envolveu com a Operação Condor e participou do infa- me episódio (e fracasso) do Riocentro. Diversos crimes são contados numa rápida sequência: as tentativas de assassinar Leonel Brizola e Fernan- do Gabeira, um atentado simulado à casa de Roberto Marinho, a morte do jornalista von Baumgarten. Uma reve- lação importante e inédita é a explosão da Rádio Nacional de Angola, para matar a cúpula do Partido Comunista do país africano. Os detalhes são muitos: desde o financiamentos dos crimes, feito por empresários e banqueiros, passando pela auxílio recebido de algumas em- presas da mídia até o envolvimento de agentes da CIA (agência de inte- ligência dos EUA) e o imenso poder que a repressão possuia - poder tão grande que parte dela se rebelou con- tra o próprio regime, com a proximi- dade da abertura política. Uma das revelações mais impactantes do ex-delegado é sua participação na crema- ção de 12 militantes na usina de açúcar Cambahyba, em Campos (RJ) - dois dos quais se lembrou apenas depois do livro, ao visitar a usina acom- panhado pela Polícia Federal. A iniciativa de revelar os crimes cometidos partiu do próprio Guerra. Até a década de 1990 era poderoso no ES, reconhecido e temido como justiceiro e matador. Rogério Medeiros publicou uma série de reportagens sobre o policial, expondo sua face verdadeira: responsável por assassinatos encomendados e chefe do crime organizado no estado, liga- do ao jogo do bicho e ao tráfico. Foi exonerado e preso, cumprindo pena pelo homicídio do bicheiro Jona- thas Bulamarques - crime que afirma não ter cometido. Na cadeia, encon- trou-se com a religião e virou pastor da Assembleia de Deus. Influenciado pela fé e pelo Subsecretário de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos do governo Lula, Perly Cipriano, resolveu revelar as atrocidades feitas. Para tanto, entrou em contato com Rogério Medeiros - um dos maiores responsáveis por sua derrocada no poder do Espírito Santo - que logo viu a importante história que tinha nas mãos: apesar de ter sido um dos maiores matadores do regime militar, a participação de Cláudio Guerra na repressão era ainda um fato inédito. Lei da Anistia impede punições As revelações feitas por Claú- dio Guerra no livro motivaram a sua convocação para depor na Comissão Nacional da Verdade (CNV), além de investigações do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal (PF). O objetivo é apurar a veracida- de das informações e garantir que ve- nham à tona os métodos, responsáveis e vítimas do regime militar citados no relato do ex-delegado do Depar- tamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Espírito Santo - mas não necessariamente punir os culpados. A Comissão da Verdade, como define a própria lei de sua criação, não terá “caráter jurisdicional per- secutório” - portanto, tem o dever de esclarecer os crimes, mas não pode aplicar pe- nalidades. Além disso, tanto o MPF quanto a PF esbarram na Lei da Anistia, pro- mulgada em 1979 pelo general João Figueiredo, então presidente, trans- formando em inimputáveis pelos crimes cometidos tanto os agentes do regime quanto os que o combatiam. A auto-anistia que se concederam os militares é questionada por diver- sas entidades, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Corte Interameri- cana de Direitos Humanos - que condenou o Es- tado brasileiro pela impunidade dada aos respon- sáveis pela morte dos guerrilheiros do Araguaia - e a Anistia Internacional - que recomen- dou à presidenta Dilma Rousseff a revogação da lei. A Advocacia-Geral da União e o Supremo Tribunal Fe- deral, no entanto, entendem que a anistia é irrestrita e os criminosos da ditadura não podem ser punidos. Alheias às possíveis consequên- cias, prosseguem as investigações baseadas em Memórias de Uma Guerra Suja. Acompanhado pela Polícia Fe- deral, Guerra já visitou dois locais citados no livro como cemitérios clandestinos: a Usina Cambahyba e um matagal em Minas Gerais, onde o membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) Nestor Veras teria sido morto. Além disso, o ex-de- legado depôs ao MPF e à Comis- são da Verdade, para esclarecer as atrocidades cometidas e se dispôs a trabalhar em conjunto com a CNV para procurar restos mortais de de- saparecidos políticos. Claúdio Guerra trabalha como Oficial de Justiça em Minas Gerais e se envolve com disputas agrárias. Em uma só diligência, 40 pistoleiros e líderes camponeses são mortos Em 31 março de 1964, os militares tomam o poder. Freddie Perdigão, de- pois comandante de Guerra, usa seus tanques para defender os golpistas e ajudar a depor Jango, no Rio de Janeiro Já como conhecido e temido delegado do DOPS do Espírito Santos, Guerra é recrutado para a repressão pelo coronel Perdigão e torna-se um agente do regime militar brasileiro Guerra começa a ser acionado e a exe- cutar diversos adversários políticos da ditadura. São pelo menos cinco víti- mas naquele ano, em São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Recife Estado mata os próprios agentes Trinta e cinco dias. Esse foi o período que Florisvaldo de Oliveira sobreviveu após ser libertado da prisão. Passado o tempo, foi assassinato com 18 tiros. A morte de Cabo Bruno - nome pelo qual Florisval- do ficou conhecido em São Paulo, ao chefiar um grupo de extermínio - teve dois motivos apontados: vingança ou queima de arquivo. Matar para apagar rastros é algo familiar para Cláudio Guerra - que foi, inclusive, ameaçado ao prestar depoi- mentos para o livro Memórias de Uma Guerra Suja. Mas sua experiência com o assunto é anterior. O caso mais célebre é o de Sérgio Paranhos Fleury, delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo. Um as- sassino a serviço da Ditadura, assim como Guerra, o delega- do “não respeitava a auto- ridade dos coronéis”, usava o poder em seu benefício e estava fora de controle - por isso, “tinha que morrer”. Após a morte do delegado, uma paranoia se espalhou pela comunidade de informa- ções. “Passamos a conviver com o medo. Quem seria o próximo?” O medo era justificado. “‘Aci- dentes’ serviam para mascarar os assassinatos do nosso pessoal. Uma equipe de po- liciais do Rio foi totalmente eliminada”. Várias mortes por queima de arquivo ocorreram no período, nem todas de pessoas que faziam parte dos orgãos da repressão. Um exemplo é o jornalista Alexandre von Baumgarten, que, como conta Guerra “recebia dinheiro para apoiar o governo militar” por meio da revista Cruzeiro. No en- tanto, teria se tornado muito ambicioso e teve sua morte decretada. Acabou assassi- nado durante a “Operação Dragão”, montada com esse único objetivo. “Eu era convocado e matava. Muito eficiente, passei a ter importância crescente na comunidade de informações”Guerra A trajetoria de um assassino a servico do regime militar segundo ele mesmo Comissão da Verdade: esclarecer, não punir Hisórias de um assassino reunidas 1964 1972 1973 Linha-dura queria Ditadura eterna Arquivo Pessoal de Golbery do Couto e Silva/HF Roberto Stuckert Filho/PR Dec 1960 i i i i i i i i i i i i A1 MATADOR

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Trabalho sobre o livro "Memórias de Uma Guerra Suja", produzido para a disciplina "Edição", na Universidade Federal de Santa Catarina. Novembro de 2012

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Curso de Jornalismo da UFSCAtividade da disciplina EdiçãoProfessor: Ricardo BarretoEdição, textos, planejamento e editoração eletrônica: Gabriel CoelhoServiços editoriais: A Ditadura Envegonhada, de Élio Gaspari, www.ig.com.br, www.memoriasdeumaguerrasuja.com.brColaboração: Júlia Schutz, Mateus Vargas, Centro Acadêmico Livre de Jornalismo Adelmo Genro FilhoImpressão: PostmixNovembro de 2012

matadorFlorianópolis, 29 de novembro de 2012 | Edição 1 | Ano 1

Confissões sangrentasAntigo matadorda ditadura expõe de modo cru a maneira como atuava

Participei das execu-ções de terroristas em vários pontos do país e também estive presente aos atenta-dos que visavam a ampliação da vida do

regime militar. É deste modo que Cláu-dio Guerra, ex-delegado do Depar-tamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Espírito Santo, resume suas atividades como agente da dita-dura brasileira. Seu relato foi colhido pelos jornalistas Rogério Medeiros e Marcelo Netto, durante quase 3 anos e publicado no livro Memórias de Uma Guerra Suja (291 páginas, Topbooks, 2012). Muitos termos podem ser utili-zados para definir o teor da obra, mas o mais utilizado - e provavelmente mais adequado - é “chocante”.

Guerra - um assassino experiên-ciado, com uma contagem de corpos que se aproxima de uma centena - re-vela como friamente matou, explo-diu, ocultou - e queimou - corpos para defender e prolongar a existên-cia do Estado de Exceção. Foi tão eficiente como matador que acabou promovido a estrategista, planejando homicídos e atentados, sendo impor-tante na comunidade de informações

- formado pelos or-gãos estatais da re-pressão, militares e o Serviço Nacional de Informações (SNI).

O livro alter-na entre a primeira pessoa - exigência dos autores, que disseram à Guerra estarem interessados em ouvir e publicar apenas o que ele pu-desse assumir - e a escrita dos jornalis-tas. A estrutura se-gue uma ordem lógica e trata de dois momentos distinos: a repressão e a manutenção do regime. Começa na primeira pessoa, narrando a elimina-ção dos adversários do regime militar e as execuções em que Guerra esteve envolvido. Depois, conta sobre as me-didas tomadas para desaparecer com corpos de militantes.

As páginas seguintes, na terceira pessoa, são dedicadas aos coman-dantes do ex-delegado, como o Co-ronel Freddie Perdigão e o Coronel Magalhães, bem como a estrutura da comunidade de informações - que fica clara na descrição da decisão de assassinar outro agente da repressão, o delegado Sérigo Fleury.

Chega-se, então, ao segundo perío-do: o combate à redemocratização. A ideia era clara: “gerar ambiente de in-segurança que prejudicasse a abertura política. O plano era provocar derra-mento de sangue, e culpar a esquerda” afirma Guerra, que planejou e execu-

tou diversos atentados, como o ao Esta-do de S. Paulo, em 1983. O ex-delegado conta também como se envolveu com a Operação Condor e participou do infa-me episódio (e fracasso) do Riocentro.

Diversos crimes são contados numa rápida sequência: as tentativas de assassinar Leonel Brizola e Fernan-do Gabeira, um atentado simulado à casa de Roberto Marinho, a morte do jornalista von Baumgarten. Uma reve-lação importante e inédita é a explosão da Rádio Nacional de Angola, para matar a cúpula do Partido Comunista do país africano.

Os detalhes são muitos: desde o financiamentos dos crimes, feito por empresários e banqueiros, passando pela auxílio recebido de algumas em-presas da mídia até o envolvimento de agentes da CIA (agência de inte-ligência dos EUA) e o imenso poder que a repressão possuia - poder tão grande que parte dela se rebelou con-tra o próprio regime, com a proximi-

dade da abertura política.Uma das revelações mais

impactantes do ex-delegado é sua participação na crema-ção de 12 militantes na usina de açúcar Cambahyba, em Campos (RJ) - dois dos quais se lembrou apenas depois do livro, ao visitar a usina acom-panhado pela Polícia Federal.

A iniciativa de revelar os crimes cometidos partiu do próprio Guerra. Até a década de 1990 era poderoso no ES, reconhecido e temido como justiceiro e matador. Rogério

Medeiros publicou uma série de reportagens sobre o policial, expondo sua face verdadeira: responsável por assassinatos encomendados e chefe do crime organizado no estado, liga-do ao jogo do bicho e ao tráfico.

Foi exonerado e preso, cumprindo pena pelo homicídio do bicheiro Jona-thas Bulamarques - crime que afirma não ter cometido. Na cadeia, encon-trou-se com a religião e virou pastor da Assembleia de Deus. Influenciado pela fé e pelo Subsecretário de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos do governo Lula, Perly Cipriano, resolveu revelar as atrocidades feitas.

Para tanto, entrou em contato com Rogério Medeiros - um dos maiores responsáveis por sua derrocada no poder do Espírito Santo - que logo viu a importante história que tinha nas mãos: apesar de ter sido um dos maiores matadores do regime militar, a participação de Cláudio Guerra na repressão era ainda um fato inédito.

Lei da Anistia impede puniçõesAs revelações feitas por Claú-

dio Guerra no livro motivaram a sua convocação para depor na Comissão Nacional da Verdade (CNV), além de investigações do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal (PF). O objetivo é apurar a veracida-de das informações e garantir que ve-nham à tona os métodos, responsáveis e vítimas do regime militar citados no relato do ex-delegado do Depar-tamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Espírito Santo - mas não necessariamente punir os culpados.

A Comissão da Verdade, como define a própria lei de sua criação, não terá “caráter jurisdicional per-secutório” - portanto, tem o dever

de esclarecer os crimes, mas não pode aplicar pe-nalidades. Além disso, tanto o MPF quanto a PF esbarram na Lei da Anistia, pro-mulgada em 1979 pelo general João Figueiredo, então presidente, trans-formando em inimputáveis pelos crimes cometidos tanto os agentes do regime quanto os que o combatiam.

A auto-anistia que se concederam os militares é questionada por diver-sas entidades, como a Ordem dos

Advogados do Brasil (OAB), a Corte Interameri-cana de Direitos Humanos - que condenou o Es-tado brasileiro pela impunidade dada aos respon-sáveis pela morte dos guerrilheiros do Araguaia - e a

Anistia Internacional - que recomen-dou à presidenta Dilma Rousseff a revogação da lei. A Advocacia-Geral da União e o Supremo Tribunal Fe-deral, no entanto, entendem que a anistia é irrestrita e os criminosos da

ditadura não podem ser punidos.Alheias às possíveis consequên-

cias, prosseguem as investigações baseadas em Memórias de Uma Guerra Suja. Acompanhado pela Polícia Fe-deral, Guerra já visitou dois locais citados no livro como cemitérios clandestinos: a Usina Cambahyba e um matagal em Minas Gerais, onde o membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) Nestor Veras teria sido morto. Além disso, o ex-de-legado depôs ao MPF e à Comis-são da Verdade, para esclarecer as atrocidades cometidas e se dispôs a trabalhar em conjunto com a CNV para procurar restos mortais de de-saparecidos políticos.

Claúdio Guerra trabalha como Oficial de Justiça em Minas Gerais e se envolve com disputas agrárias. Em uma só diligência, 40 pistoleiros e líderes camponeses são mortos

Em 31 março de 1964, os militarestomam o poder. Freddie Perdigão, de-pois comandante de Guerra, usa seus tanques para defender os golpistas e ajudar a depor Jango, no Rio de Janeiro

Já como conhecido e temido delegado do DOPS do Espírito Santos, Guerraé recrutado para a repressão pelocoronel Perdigão e torna-se um agente do regime militar brasileiro

Guerra começa a ser acionado e a exe-cutar diversos adversários políticos da ditadura. São pelo menos cinco víti-mas naquele ano, em São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Recife

Estado mata os próprios agentesTrinta e cinco dias. Esse foi o período que Florisvaldo de Oliveira sobreviveu após ser libertado da prisão. Passado o tempo, foi assassinato com 18 tiros. A morte de Cabo Bruno - nome pelo qual Florisval-do ficou conhecido em São Paulo, ao chefiar um grupo de extermínio - teve dois motivos apontados: vingança ou queima de arquivo.Matar para apagar rastros é algo familiar para Cláudio Guerra - que foi, inclusive, ameaçado ao prestar depoi-mentos para o livro Memórias de Uma Guerra Suja. Mas sua experiência com o assunto é anterior.O caso mais célebre é o de Sérgio Paranhos Fleury, delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo. Um as-sassino a serviço da Ditadura, assim como Guerra, o delega-do “não respeitava a auto-ridade dos coronéis”, usava o poder em seu benefício e estava fora de controle - por isso, “tinha que morrer”.Após a morte do delegado, uma paranoia se espalhou pela comunidade de informa-ções. “Passamos a conviver com o medo. Quem seria o próximo?”O medo era justificado. “‘Aci-dentes’ serviam para mascarar os assassinatos do nosso pessoal. Uma equipe de po-liciais do Rio foi totalmente eliminada”. Várias mortes por queima de arquivo ocorreram no período, nem todas de pessoas que faziam parte dos orgãos da repressão.Um exemplo é o jornalista Alexandre von Baumgarten, que, como conta Guerra “recebia dinheiro para apoiar o governo militar” por meio da revista Cruzeiro. No en-tanto, teria se tornado muito ambicioso e teve sua morte decretada. Acabou assassi-nado durante a “Operação Dragão”, montada com esse único objetivo.

“Eu era convocado e matava. Muito eficiente, passei a ter importância crescente na comunidade de informações”Guerra

A trajetoria de um assassino a servico do regime militar segundo ele mesmo

Comissão da Verdade: esclarecer, não punir

Hisórias de um assassino reunidas

1964 1972 1973

Linha-dura queria Ditadura eterna

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Curso de Jornalismo da UFSCAtividade da disciplina EdiçãoProfessor: Ricardo BarretoEdição, textos, planejamento e editoração eletrônica: Gabriel CoelhoServiços editoriais: A Ditadura Envegonhada, de Élio Gaspari, www.ig.com.br, www.memoriasdeumaguerrasuja.com.brColaboração: Júlia Schutz, Mateus Vargas, Centro Acadêmico Livre de Jornalismo Adelmo Genro FilhoImpressão: PostmixNovembro de 2012

matadorFlorianópolis, 29 de novembro de 2012 | Edição 1 | Ano 1

Relação entre delegado e repressão era secreta

Durante dois anos, os capi-xabas Rogério Medeiros e Marcelo Neto convive-

ram com as memórias de Cláudio Guerra, expondo casos surpreen-dentes da atuação da ditadura e a real história por detrás dos fatos.

Matador - São citadas ameças no livro, que fizeram com que a obra fosse concluida mais rapidamen-te. Como foi trabalhar desse modo? Foram tomadas precauções?Rogério Medeiros - Desviamos o foco. Ardilosamente, a gente conseguiu que a imprensa local, que não tinha no-ção de nada, recebesse a informação e corresse atrás dele, alguém que tinha cometido muitos crimes no Espírto Santo quando estava a frente do DOPS e tinha vira-do um pastor dentro da cadeia, etc e tal. Com-binamos previamente com ele, a imprensa mordeu a isca e foi atrás da história dos crimes “comuns”. Isso nos permitiu trabalhar com mais segurança, porque não se sabia da relação com os crimes políticos. Como ele estava numa casa de idosos a gente teve que fazer um trabalho maior, algumas coisas sendo ajustadas. Para nós era interessante que ele falasse, como executor e depois es-trategista do SNI, ai já com uma parti-cipação diferenciada, com atentados e para atribuir a esquerda. A gente traba-lhou para ele falar e para convencê-lo de que, no resultado final, ele deveria con-tar o que havia feito, não que fulano ou beltrano fez. Para nós, não interessava, pelas controvérsias que isso certamente iria gerar.

M - Efeitos como o depoimento de Guerra à Comissão da Verdade fo-ram pensados ao escrever a obra?RM - Não tenho informações sobre a Comissão da Verdade, as inveti-gações. Depois do livro, não tenho relação com o Guerra. Tive alguns encontros até, mas não trato mais do assunto. Pra mim acabou no livro. Agora é com ele, Comissão e etc. Mas

Por sugestão de Guerra, corpos de mili-tantes assassinatos começam a ser quei-mados na usina de açucar Cambahyba, no Rio de Janeiro. Ele participou da incineração de, ao menos, 12 cadáveres

Sérgio Fleury, do DOPS-SP, é assassi-nado por ordem dos militares. Guerra assume a equipe de extermínio dele - inclusive recebe a insíginia do delega-do eliminado, conservando-a até hoje

Guerra dá apoio a Chacina da Lapa: em reunião do PCdoB, dirigentes desarma-dos foram mortos

Com apoio da FAB, Guerra participa de uma operação para explodir a Rádio Nacional de Angola

Reunião marca o início de sua partipação na Opera-ção Condor. Explosões são planejados para im-pedir a redemocratização

Atentados em todo o país, para culpar a esquerda e tulmutuar a abertura, como no Riocentro (fracas-sa) e no Estado de S. Paulo

Perde prestígio, é exonerado e preso. Na cadeia, se con-verte e vira pastor da Assembleia de Deus

“Foi impossível definir em quantas mortes Cláudio Guerra esteve envolvido, com motivação política ou não” Os autores

Agente oculto da

Os civis que apoiaramEntre os que ajudaram a

defender o Estado de Exceção, estão empresários, banqueiros e jornalistas. No livro, Guerra rela-ta o apoio recebido da sociedade. A relação fica clara quando ele conta sobre pagamentos: alguns de seus colegas recebiam pelo Banco Sudameris, enquanto sua remuneração vinha de uma conta no Mercantil. Segundo Guerra, o dono do banco, Gastão Vidigal, não só sabia da operação como ajudava a arrecadar fundos para a repressão.Os recursos vinham de empre-sários que recebiam em troca benefícios do regime militar - e até encomendavam assassinatos, como o de José Roberto Jevaux, dono de um jornal em Vitória, executado após tentar chantagear o proprietário da Viação Itape-mirim Camilo Cola. Também são citados por Guerra, como alguns dos financiadores, os donos da loja Mappin e os da Gásbras - que teve um de seus diretores, Henning Boilesesn, morto por militantes de esquerda em 1971.Outro setor que abrigava alguns dos aliados da ditadura era a im-

prensa: o ex-delegado do DOPS denuncia o uso de veículos - depois incediados por militan-tes de esquerda - da Folha de S. Paulo na Operação Bandeirantes (OBAN), no final da década de 60, para executar prisões de forma discreta. Mais uma revelação está ligada ao jornalismo: Roberto Marinho, presidente das organizações Globo, teria, em 1976, enco-mendado um atentado à própria casa, para dissimular seu apoio à ditadura - na época, diversos veículos da mídia sofreram ata-ques de radicais de direita (entre eles, Guerra), que não queriam a redemocratização.

Perfil de um homicidaUm assassino. Essa é a defini-

ção clara, objetiva e direta de quem é Cláudio Guerra. Um assassino que espera misericórdia divina - misericórdia que nunca teve com suas vítimas. Um assassino que quer contar as famílias a verdade sobre destino de entes queridos mortos - verdade que escondeu ao ocultar e queimar corpos.

Muito matou - tanto que não sabe precisar um número. Estima--se que sua contagem de corpos su-pere uma centena. Não era de hesitar nem de ser atrapalhado por conflitos éticos ou morais.

Suas motivações eram convicções políticas, fobia do comunismo, obe-diência cega. Isso, claro, nas execu-ções políticas - matou também por dinheiro, poder. Era tão eficiente em seu ofício de tirar vidas que foi pro-movido. De executor, passou para planejador. Comandou outros, ao in-vés de apenas ser comandado.

Além de assassinatos, também ex-plodiu - com alvos desde O Estado de S. Paulo até a Rádio Nacional de An-

gola, do outro lado do Atlântico.Acabou preso por um assassinato

que afirma não ter cometido - nem deve ter. Afinal, admitiu tantos crimes que não faria sentido esconder este.

Na prisão, encontrar a religião o teria mudado. “Aquilo que para mim era matar um inimigo ficou claro, com Jesus, não passar de crime hediondo, que a partir de agora todos vão co-nhecer” afirma, e parece acreditar.

O tão temido carrasco, que a tan-tas penas capitais deu cabo, hoje tem medo de ser condenado. Teme que os céus, como já fizeram tantos homens, amaldiçoem sua existência.

Carros da Folha foram incendiados

Perly Cirpiano (esq.) foi fundamental para convencer Guerra (dir.) a falar

Rogério Medeiros: “Minha parte acabou”

Guerra matou mais do que consegue contar

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o Guerra sabe muita coisa, que con-tou no decorrer da escrita e acabou não entrando. Tem que tratar disso na Comissão da Verdade e com outros jornalistas, no resto da mídia. A gen-te abriu as portas da comunidade de informações - que é muita coisa. Ele conta todas as vezes que esteve en-volvido - e todos que estavam envol-vidos com ele - em execuções, aten-tados, episódios como a morte do Fleury, a queima de cadávers. Fala o destino de corpos para familiares que não sabiam até hoje. O livro é isso aí. Mas a nossa parte acabou, fizemos ele aparecer para o público.

M - Como surgiu o livro? RM - Foi ele que veio atrás de mim e achei que era importante. Cláudio foi preso por denuncias que fiz - pra-ticamente nos tornamos desafetos. É condenado a dez anos e quando está perto de sair, ele me chama para um encontro e fala “Quase tudo que você escreveu sobre mim era verdade, quero entregar minha história.” Eu disse que sim - e que trataria ele como o assassi-no que era. O livro levou dois anos e foi feito por conversas e levantamento de dados - era muita coisa, porque ele

matava em muitas regiões, sem nem saber quem estava matando. E eu e o Marcelo fomos levantando, indo atrás do contexto. No trabalho de conven-cimento teve também o subsecretário de direitos humanos do governo Lula, Perly Cirpriano. Ele visitou o Guerra na cadeia, antes dele vir a mim, na epó-ca em que estava virando evangélico.. Perly que combateu o anti-comunismo dele, deu ideias de direitos humanos, da necessidade de denunciar a comu-nidade de informações. Guerra era um cara tão fiel aos militares que a ideia era amnesiar tudo que fez, tudo que sabia. Perly deu uma enorme contribuição,

uma autoridade dos direitos humanos no país, lá na cadeia para convencê-lo a dizer o que havia feito. O livro nasce nessas circuns-tâncias.

M - Como o senhor avalia o modo como a mídia cobriu o livro?RM - A mídia não tratou de alguns fatos porque mexeu com

seus interesses. Guerra contou que fez a simulação de um atentado na casa do Roberto Marinho, mexeu com os interesses da Globo. E contou que fez atentados usando carros da Folha de São Paulo, mexeu com interesses também. Mas não dá pra dizer que a grande mí-dia não deu, porque deu. Por exemplo, logo depois que saiu o livro, eu e Mar-celo Netto fomos convidados a fazer debates em São Paulo, Rio e Brasília. Ouvimos depoimentos emocionan-tes, de pessoas que atráves dos livros estavam encontrando seus familiares desaparecidos; ouvimos tantos depoi-mentos extraordinários, comoventes, de familiares que sequer sabiam onde estavam seus entes queridos. Tudo isso pra mim é uma surpresa. Mas agora é uma etapa que não é minha etapa. Não quero fugir de nenhuma responsabili-dade, mas a minha acaba toda no livro. Tem a Comissão da Verdade, tem a imprensa toda para ir atrás agora. Sei que há mais para saber, mas a partir de agora tem que ser com o Guerra, não comigo.

ditadura exposto

MATADOR