João Roberto Vasco Gonçalves...18 Jfiflfi Rfiapítfi Vulofi Gfi18u92pl Ol 03uí456pl 4fi...

193
João Roberto Vasco Gonçalves

Transcript of João Roberto Vasco Gonçalves...18 Jfiflfi Rfiapítfi Vulofi Gfi18u92pl Ol 03uí456pl 4fi...

João Roberto Vasco Gonçalves

1ª Edição - 2015 Vila Velha - ES

João Roberto Vasco Gonçalves

© 2015—Above PublicaçõesEditor ResponsávelUziel de Jesus

RevisãoIgor Carvalho

CapaRaquel Vieira

Pré-ImpressãoIgor Carvalho

Diagramação Jairo Bonellá

Todos os direitos reservados pelo autor.É proibida a reprodução parcial ou total sem a permissão escrita do autor.

Editora Above(27) 4105-3374www.aboveonline.com.br

Prefácio

A história da humanidade é realmente muito interessante e esclarecedora para compreendermos o presente e útil para pla-nejarmos o futuro. Devemos estudar imparcialmente as pessoas e os fatos simplesmente como eles são: agentes da história viven-do em suas próprias épocas e inseridos no seu próprio contexto.

Nós e nossos contemporâneos também somos parte da história que vivenciamos em nossa época. Em nosso meio exis-tem muitos contadores de histórias que sobrepõem a ficção aos pilares da realidade, produtos de sua imaginação, criando, assim as lendas. Essas são muitas — bem interessantes e divertidas.

Ao mesmo tempo é também um grande prazer falar de nossa história, nossa terra e nossa gente, nossa cultura, incluin-do aí nossas lendas e também nossas lembranças. Essa é a mi-nha proposta: falar de tudo isso costurando ficção à realidade de uma forma tão sutil que mal se possa divisar onde termina uma e começa outra. Como já foi dito, de certa forma, as lendas fazem isso. O trabalho aqui não foge à regra: toma alguns fatos históricos, adiciona coisas à realidade atual, toma algumas coisas das lendas, adiciona a ficção imaginada pelo autor e finalmente constrói uma história.

Dando um toque de seriedade, está em discussão o legí-timo desejo de preservar monumentos importantes para a his-tória da humanidade, tanto os mais recentes como aqueles que remontam a épocas muito antigas mencionadas no antigo testa-mento bíblico e em outros documentos.

Na trama, discute-se ainda a fraqueza humana de se utili-zar da necessidade de proteger e guardar essas antiguidades para conseguir realizar vis objetivos — como enriquecer rapidamente e com poucos esforços, mesmo que para isso tenha de utilizar in-dignamente a fé e a santidade das religiões, desrespeitando seus leais seguidores e até denegrindo alguma crença; ludibriar pes-soas, vandalizar ou até destruir relíquias da história da humani-dade. Tudo é feito para transformar em dinheiro aquilo que não tem preço. Há, ademais, a tendência juvenil da caça ao tesouro, descobrir segredos milenares e desvendar os reais sentidos de teorias conspiratórias. A ideia de tesouro está sempre atrelada a valores materiais em espécie ou os que podem transformar-se nele com os menores custos possíveis. Tudo depende, na verda-de, do juízo de valor. Muitos segredos são subjetivos, culturais, fontes de conhecimento que, à primeira vista, são supérfluos e não geram lucro algum, mas podem ser sumamente benéficos à humanidade.

Segredos de conhecimento têm por assim dizer um prazo de validade, podendo tornar-se obsoletos e até não fazer mais sentido a sua guarda a sete chaves. Alguns conhecimentos que deveriam ser passados adiante ao longo dos milênios precisaram ser descritos em forma de metáforas ou alguma linguagem codi-ficada, de modo que pudessem ser encaixados em qualquer épo-ca e estágio de desenvolvimento cultural, social ou científico. Em muitos casos, isso dá margem a especulações e desenvolvimento

de teorias paralelas, como a Cabala, que sempre capta algo mais nas entrelinhas do que foi dito.

A Bíblia judaico-cristã, ou as Sagradas Escrituras, dos oci-dentais, principalmente, é das mais completas e antigas fontes de história da humanidade, embora nem tudo tenha comprovação e haja divergências cronológicas entre fatos, localidades e perso-nagens. Por outra, temos versões das tradições que depois foram escritas, transliterações e outras dificuldades linguísticas poten-cializadas com as múltiplas traduções — além da exegese de cada pessoa ou escola de pensamento. Também temos outras “bíblias” (não necessariamente de cunho religioso) espalhadas por várias partes do mundo, algumas guardadas e jamais encontradas. Em tudo que o homem faz, está sempre presente a satisfação de suas necessidades básicas. Há sempre um prazer orgânico ou algum tipo de estímulo dessa natureza atuando como agente impelidor da realização. Ele precisa comer e beber para manter-se vivo, co-pular para gerar seus descendentes, guerrear para expulsar seus concorrentes das áreas de que precisa para plantar ou pastore-ar, etc. Aprendeu cedo a estocar alimentos, prevendo possíveis dificuldades futuras baseado em algum fato conhecido ou pres-sentido, produzir meios de transporte cada vez mais possantes, velozes e sofisticados, construir abrigos cada vez mais eficazes para sua proteção contra os mais diversos tipos de ataque — que ficam cada vez mais perigosos com a evolução tecnológica.

A preservação da espécie também ocorre de forma glo-bal. Um exemplo disso é a formação de um banco genético que possa ser utilizado mais tarde como referência para continuar as espécies em casos de cataclismos naturais ou provocados pelo próprio homem. A arca de Noé (que provavelmente é uma ale-goria ou uma citação em forma metafórica) é um exemplo disso.

Existe hoje uma versão atual com um grau de sofisticação muito maior, mas o sentido é o mesmo. Existe hoje um banco de conhe-cimentos sendo estocado como um legado à posteridade em caso de semiextinção, mas essa ideia também é antiga. A biblioteca de Alexandria é um exemplo disso na antiguidade e provavelmente existem outros em outras partes, possivelmente guardados em locais onde as condições de preservação sejam mais favoráveis — e possivelmente com linguagens próprias ou algum tipo de codificação.

Lamentavelmente, muitos documentos importantes fo-ram destruídos ao longo do tempo pelo próprio homem, por ra-zões diversas. A biblioteca de Alexandria, ideia próxima de um campus universitário de hoje, que possuía praticamente tudo que se conhecia desde os mais remotos tempos até sua época, todavia foi destruída várias vezes. Consta que uma das últimas, senão a última destruição importante, foi causada por um incêndio proposital a mando de Julio Cesar, general romano, na ânsia de derrotar Pompeu — seu principal rival no primeiro triunvirato, uma vez que Crasso era de pouca expressão no aspecto militar. Segundo registra a história, ele teria incendiado tudo, além dos navios, até mesmo os de sua frota, para que seu oponente não fugisse e ele tivesse a certeza de tê-lo visto morto.

A Santa Inquisição (que nada tinha de santa), além de matar pessoas e queimar suas casas e pertences, providenciou a queima de muitos livros científicos por pura ignorância (consi-derando-os bruxaria) e outros tantos filosóficos (considerando--os nocivos à humanidade por corrompê-la), julgando-se os do-nos da verdade. Na verdade, o alto clero e o próprio cristianismo foram usados como joguete nas mãos dos reis e poderosos mi-nistros de estado para exterminar seus adversários sob o preten-

so aval de Deus. Zelosos do seu dever de transmitir à posteridade esses reais tesouros, alguns abnegados providenciaram a oculta-ção do que conseguiram salvar — muitos ao preço de sua própria vida. A esses agentes da história, façamos nossa reverência. A ideia principal de um livro como instrumento de divulgação da cultura é informar, divertir e educar. Assim, no intuito de inserir o leitor no contexto histórico e geográfico dos lugares por onde os personagens passam, faço um relato suscinto sobre cada um desses lugares. Aqui, por tratar-se de dados reais e emitidos por entidades oficiais, não há como inventar nada: praticamente se transcreve o que consta nas fontes de pesquisa citadas na biblio-grafia, muitas vezes resumindo, simplificando, trocando palavras por outras equivalentes mais usuais e arranjando tudo da melhor forma possível.

Roberto Vasco

Sumário

Prefácio ....................................................................................................... 5

Parte IA predestinação .......................................................................................15

Capítulo I .................................................................................................17Coimbra ....................................................................................................17

Capítulo II ................................................................................................33Coimbra ....................................................................................................33

Capítulo III ...............................................................................................37História do professor Paschoal D’Ávila. ................................................37

Capítulo IV ..............................................................................................45História do professor Pedro Cintra ......................................................45

Capítulo V ................................................................................................57Amsterdã ..................................................................................................57

Capítulo VI ...............................................................................................69Amsterdã – Conhecendo a cidade ........................................................69

Capítulo VII .............................................................................................73Moshê ........................................................................................................73

Capítulo VIII ............................................................................................83Pedro encontra Deborah .......................................................................83

Capítulo IX ...............................................................................................89Deborah Bilischt ......................................................................................89

Capítulo X .............................................................................................95Lisboa ........................................................................................................95

Capítulo XI .............................................................................................101Lisboa – Conhecendo a cidade ............................................................101

Capítulo XII............................................................................................109A Torre do Tombo ................................................................................109

Capítulo XIII ..........................................................................................113O estudo do livro ...................................................................................113

Capítulo XIV ..........................................................................................129A companhia de Jesus ...........................................................................129

Capítulo XV ...........................................................................................141Considerações pré-viagem ...................................................................141

Capítulo XVI ..........................................................................................147Brasil ........................................................................................................147

Capítulo XVII.........................................................................................159Vitória .....................................................................................................159

Capítulo XVIII .......................................................................................167Os fantasmas do palácio .......................................................................167

Capítulo XIX ..........................................................................................173A Igreja dos Reis Magos .......................................................................173

Capítulo XX ............................................................................................187Anchieta ..................................................................................................187

Capítulo XXI .........................................................................................193Os telefonemas .......................................................................................193

Capítulo XXII .........................................................................................201João ..........................................................................................................201

Capítulo XXIII .......................................................................................217A serpente mutilada ..............................................................................217

Capítulo XXIV .......................................................................................229A subida do Rio Benevente ..................................................................229

Capítulo XXV.........................................................................................237A gruta ....................................................................................................237

Capítulo XXVI .......................................................................................255A sagração ..............................................................................................255

Capítulo XXVII......................................................................................267O regresso ...............................................................................................267

Capítulo XXVIII ....................................................................................275Um trabalho realizado ..........................................................................275

Capítulo XXIX ......................................................................................283Comentários finais da parte I ..............................................................283

Parte IICapítulo I ..............................................................................................287A retomada .............................................................................................287

Capítulo II ..............................................................................................295O Grão-mestre Constantino e a Confraria do Torah Moshê ..........295

Capítulo III .............................................................................................299Nova York ...............................................................................................299

Capítulo IV .............................................................................................311Visita à Estátua da Liberdade ...............................................................311

Capítulo V ..............................................................................................315Volta a Coimbra e compilação das informações ..............................315

Capítulo VI .............................................................................................325Comentários finais da parte II .............................................................325

Parte IIICapítulo I ................................................................................................329A caminho do oriente – Encontro com o passado ............................329

Capítulo II ..............................................................................................335Istambul – Conhecendo a cidade ........................................................335

Capítulo III .............................................................................................341A cidade eterna ......................................................................................341

Parte I

A PREDESTINAÇÃO

Capítulo IV .............................................................................................345Jerusalém – Conhecendo a cidade ......................................................345

Capítulo V ..............................................................................................353História de Alexandria .........................................................................353

Capítulo VI .............................................................................................367Estudo do material colhido e discussão final .....................................367

Capítulo VII ...........................................................................................373Os tesouros da confraria .......................................................................373

Epílogo ...................................................................................................377Bibliografia .............................................................................................381

Capítulo I

Coimbra

Universidade de Coimbra

O professor José, diretor do departamento de história da Universidade de Coimbra, mandou a secretária chamar dois competentes e dedicados professores para uma reunião para dali a meia hora. Eles estavam em seus gabinetes envolvidos nas suas habituais atividades quando receberam o recado através de tele-fonema interno da secretária do departamento:

— Professor Paschoal?

— Sim.

— Bom dia, professor.

— Bom dia. Em que posso ser útil?

— O senhor e o professor Pedro têm uma reunião com o professor José, chefe do departamento, daqui a meia hora na Ala A, sala B.

— Sim, obrigado. A senhora poderia me adiantar o assun-to?

— Infelizmente não, professor, pois também não fui in-formada.

Deveria ser algo importante para interromper as ativida-des que desenvolviam no momento. Além de tudo, deveria ser

18

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

19

algo muito reservado para que a secretária não soubesse exa-tamente o que era, conforme sempre ocorria. Talvez fosse uma avaliação crítica do resultado do seu trabalho, seu desempenho ou até mesmo uma bronca; civilizada, mas uma bronca. O moti-vo era invariavelmente o mesmo: custos. Aliás, o pessoal sempre achava que os recursos eram pequenos demais, enquanto a ins-tituição sempre achava que eles eram altos demais. Esse conflito de custos existe em todas as empresas, e a universidade não fu-giria à regra.

Comunicou ao seu colega de equipe, o professor Pedro e os dois saíram alguns minutos antes para o novo compromisso no local indicado.

No horário marcado já estavam à porta da sala de reuni-ões.

— Bom dia, professor José — saudaram quase em unísso-no.

— Bom dia. Queiram entrar e sentar-se, por favor.

— Obrigado, senhor. Desculpe-nos, não trouxemos ne-nhum material para essa reunião, pois não sabíamos o seu teor.

— Não se preocupem. Vou explicar tudo. É de interesse deste departamento produzir um trabalho que poderá corrobo-rar com outros afins e mais tarde poderá ser publicado e apre-sentado. O senhor e o seu assistente, o professor Pedro, foram os escolhidos para pesquisar e desenvolver todo o trabalho, devido à comprovada competência e a confiança que deposito nos se-nhores.

— Obrigado, professor. Mas qual é exatamente o tema?

— O tema será: O Cristianismo na Europa do século XVI e sua influência no desenvolvimento socioeconômico do mundo novo.

— Parece interessante. Teremos prazer em realizar esse trabalho.

— Ótimo, eu tinha de certeza que o Senhor iria gostar.

— Sim, mas quando começamos?

— Imediatamente professor.

— Algumas informações já estão disponíveis?

— Não, professor. Deixo tudo por sua conta.

— Alguma recomendação adicional?

— Sim, professor. Como sempre, estamos limitados por custos e outros fatores que o senhor conhece tão bem.

— Certamente. Mas e o prazo de conclusão estimado?

— O mais breve que conseguirem.

De volta ao gabinete, conversavam:

— Pedro, você sabe o que isto significa?

— Sim. Teremos de passar todo o trabalho que estamos fazendo para o restante da equipe a fim de nos liberarmos para essa nova tarefa, assim não perderemos tudo que já foi produzi-do. Além disso, parar agora para começar depois seria um balde de água fria no moral da equipe, e quando voltássemos ficaría-mos perdidos por um bom tempo antes de pegar novamente o fio da meada.

— Sim, e talvez tenhamos de arranjar gente emprestada com outros departamentos que não estejam tão sobrecarregados.

— Isso é quase certo, afinal nossa equipe já é tão peque-na...

20

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

21

— Bem, mãos a obra, mande a secretária convocar nos-sa equipe para uma reunião daqui a trinta minutos. Avise que é para que tragam todo o material disponível contendo tudo que já foi feito, tudo que está em andamento e o que já está planejado para fazer.

— Sim, farei isso imediatamente.

Saiu rapidamente, falou com a secretária na sala ao lado e foi buscar o seu próprio material. O professor Paschoal ficou pensativo por alguns instantes, tentando elaborar em sua mente a melhor maneira de começar. No fundo, sabia que todo trabalho sempre começava por uma boa troca de ideias com seu assisten-te, o professor Pedro, principalmente nesse trabalho, pois seu companheiro parecia ter algum conhecimento sobre algumas religiões monoteístas e era versado em latim, grego e hebraico. Um telefonema do professor Pedro avisando-o de que faltavam 3 minutos para a reunião despertou-o de seus devaneios. Foi o tempo suficiente para recolher seu próprio material e sair apres-sadamente, chegando à sala de reuniões onde já o esperavam.

— Bom dia, senhores.

— Bom dia — responderam todos.

— O motivo dessa reunião é que precisamos conversar sobre o andamento do nosso trabalho, examinar o nosso crono-grama e comparar tudo que já produzimos com o que ainda falta e o todo previsto. Preciso também avaliar o domínio que cada um tem sobre o assunto e a capacidade que o grupo tem de pros-seguir o trabalho sem a minha presença e a do professor Pedro, pois fomos designados para outra tarefa e não gostaríamos de perder tudo que já fizemos. Preciso também analisar a necessi-dade de mais pessoas.

Depois de tudo apresentado e devidamente avaliado, ficou acertado que os assistentes imediatos dos professores Paschoal e

Pedro assumiriam a coordenação e arranjariam mais dois em-prestados para completar o grupo. A reunião terminou no tem-po previsto, hábito característico do extremamente metódico professor Paschoal. Saíram todos para as suas salas ainda ligei-ramente atordoados. Os professores Paschoal e Pedro voltaram para o gabinete da coordenação, que agora seria do novo projeto.

— Pedro, você é cristão?

— Olha, Paschoal, eu tenho uma história de vida passada por três culturas e religiões diferentes. É difícil dizer exatamente o que sou.

— Sim, mas, pelo que sei, você não é ateu. Aliás, sempre se confessou monoteísta.

— Certamente. Porém, sem ofensas, o meu Deus é bem melhor do que o dos cristãos e judeus, por exemplo.

— Não entendi muito bem, pois no monoteísmo só se ad-mite um Deus.

— Corretíssimo. Na verdade, acredito que exista um Deus verdadeiro. Os outros são os reflexos da mente de cada um, se-gundo suas culturas e como foram educados.

— Curiosa essa visão. Mas como você analisa o Deus da bíblia judaica e cristã?

— Penso que foge aos conceitos filosóficos de Deus. Ali há uma inversão. Em vez de o homem ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, parece que se dá o contrário, criaram um Deus à imagem e semelhança do homem.

— Interessante. Mas como você chega a essa conclusão?

— Eles exageraram nessa semelhança e, além de asseme-lhar-se nas qualidades, assemelham-se também nos defeitos, como os deuses da mitologia grega. Escreveram e falaram de um

22

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

23

Deus passional que tem ciúmes, ira, sede de vingança, capaz de amaldiçoar até a terceira e quarta geração, que exige sacrifícios de sangue como tributo, que elege um povo em detrimento dos outros; como se, em vez de ter criado a humanidade, tivesse cria-do um povo, que precisa testar a fé daqueles que criou e que de-veria conhecer profundamente sua índole. Além de muitas coi-sas que estariam em desacordo com os conceitos de onisciência, onipresença e onipotência.

— E como você analisa o fato desse suposto engano ter perdurado por tanto tempo?

— As tradições e o rigor religioso são comuns nas culturas orientais, e isso tem sido vital para manter os povos coesos em torno das leis religiosas, que no seu caso são as próprias leis civis. Isso tem contribuído para a perpetuação da raça, mesmo quan-do perdem a pátria física. Isso torna o seu Deus, raízes de suas tradições e sustentáculo moral de sua raça e sua pátria, o mais importante e único.

— Mas e o Deus cristão não é o mesmo judaico? Pelo que sei, o antigo testamento é praticamente o mesmo para as duas religiões. Será que houve algum tipo de flexibilização nos con-ceitos?

— De certa forma, creio que sim. Jesus, apesar de não ter vindo para abolir a lei e aos profetas, como diz no evangelho, deu uma nova dimensão à lei. Depois dele, a salvação não é mais só para os judeus, como pensaram os primeiros seguidores, mas para toda a humanidade. Já não existia mais a figura do gentio, o impuro de raça, ou só o irmão de raça como o próximo. Depois dele, o próximo era qualquer ser humano, inclusive os inimigos. A lei do talião foi trocada pelo pacifismo de dar a outra face a quem ferisse uma. A expiação dos pecados através do sangue do cordeirinho foi substituído pelo sangue dos próprios homens, conforme as palavras ditas na última ceia, segundo consta no

evangelho. E, conforme ficou esclarecido no primeiro concílio de Jerusalém, para ser cristão não precisariam mais cumprir os rituais judaicos como a circuncisão e outros. Isso só foi possível porque o apóstolo Paulo, o grande evangelizador, entendeu per-feitamente a mensagem universal de Cristo e defendeu veemen-temente essa ideia no concílio de Jerusalém, o que lhe valeu o título de “Apóstolo dos gentios”. Se não fosse por ele, creio que o cristianismo seria hoje apenas um segmento do judaísmo.

Ele continuou:

— E os dez mandamentos são mantidos, mas com a expli-cação de que na verdade só havia dois: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo”. O próximo, como já foi dito, era qualquer ser humano, mesmo que fosse inimigo. O restante seria apenas uma consequência desses.

— Interessante a sua tese. Contudo, se no fundo as reli-giões têm as mesmas raízes, por que não houve uma aceitação mútua ou, pelo menos, uma tolerância ou convivência pacífica? Isso parece nunca ter acontecido em nenhum lugar do mundo, especialmente aqui na Europa, aliás muito pelo contrário, houve perseguições e morticínios.

— Os povos têm uma dificuldade natural de abrir mão de suas crenças, pois seria como trair a causa. Mas existem outras causas subjacentes, as principais são as econômicas e as sociais. A primeira seria: quem é dono do dinheiro. A segunda é: quem manda. Em última análise, há uma relação de poder. Isso existe até mesmo dentro do cristianismo. Na Europa do século XV, por exemplo, existiu uma ferrenha disputa entre a Igreja e vários ou-tros Estados. Muitos temiam a Igreja enquanto estado pela sua riqueza e sua influência política, e muitos dos nobres pleiteavam seu comando. Houve uma época que a crise chegou a tal ponto que existiam três papas: Um em Roma, na Itália, um em Avig-non, na França e um em Pisa, região da Toscana, na Itália. O mo-

24

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

25

vimento iluminista pleiteava a desvinculação do poder da Igreja sobre os Estados ou a eliminação de sua influência.

Tantas intrigas culminaram com a Santa Inquisição, que perseguiu e matou muita gente.

— Sim. E, pelo que sei, os judeus foram também muito perseguidos. Alguns foram trucidados, outros expulsos e muitos fugiram.

— Certamente.

— Ótima explanação. Mas o que você sugere que estude-mos para embasar o início do nosso trabalho?

— Acho que deveríamos estudar a bíblia e vários outros documentos importantes, até chegarmos aos diversos processos que a Inquisição instaurou aqui em Portugal contra muitos cris-tãos novos, fazermos um apanhado histórico sobre a evolução do cristianismo no Império Romano, sua universalização e sua hegemonia na Europa. Além disso, creio que não podemos des-prezar fatos importantes para o nosso estudo, como as cruzadas, as grandes navegações para a América e a disseminação do cris-tianismo no novo mundo, ao mesmo tempo em que colonizavam e exploravam. Proponho que estudemos também a evolução da própria Igreja até a Inquisição.

— Ótimo, Pedro. Vejo que já tem em mente o esboço bem traçado de um programa de estudos.

— É só uma ideia, Paschoal, passível de alterações e con-testações.

— Não, Pedro, assim está ótimo para começarmos. Come-cemos já.

Foram para a biblioteca da universidade e passaram al-guns dias estudando muito e fazendo anotações. Depois, no ga-binete, tiveram uma nova conversa:

— Pedro, por que você acha que foi importante termos estudado a Bíblia?

— Como conversamos anteriormente, o cristianismo tem suas raízes no judaísmo e suas fontes históricas são principal-mente a Bíblia. Creio que ali estão os mais importantes subsídios para o início do nosso estudo.

— Fale-me então sobre a evolução do cristianismo no Im-pério Romano e como esse se disseminou através dele.

— Logo depois de Cristo, seus seguidores começaram a aumentar muito por todos os territórios ocupados e governados pelo Império Romano, principalmente pela ação dos pregadores. Os governantes romanos eram politeístas, mas separavam mui-to bem as crenças religiosas dos assuntos do Estado civil, e este certamente tinha primazia. Roma inicialmente não proibia seus vencidos de exercer seus próprios costumes e praticar sua pró-pria religião dentro do território vencido, desde que obedeces-sem irrestritamente suas leis civis e pagassem os tributos. Com o aumento cada vez maior do número de cristãos, da capacidade de liderança dos pregadores, sua influência sobre a massa e o respeito e apoio total à causa, isso começou a incomodar muito e tornar-se, enfim, um perigo para o Estado. Os cristãos, àquela al-tura, passaram a ser perseguidos sempre com a desculpa de não adorarem os deuses pagãos e se recusarem a cumprir seus pre-ceitos, fora as muitas e constantes acusações de insurreição, atos terroristas (como incêndios) e outras depredações, forjados com o intuito de incriminá-los e demonizá-los. Então, se reuniam em locais ocultos. No ano de 313 d.C., apareceu a oportunida-de de contornar essas dificuldades com os cristãos. O imperador Constantino, estando em desvantagem numa batalha contra o inimigo, disse ter visto no céu a imagem da cruz e ouvido uma voz dizendo: “Pace est cum vos” e também: “In hoc signo vinces”, ou seja: “A paz está convosco” e “Com este sinal vencerás”. Ele ga-

26

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

27

nhou a batalha. Grato, publicou o Édito de Tolerância em Milão, concedendo liberdade religiosa aos cristãos, considerando sua fé como religião lícita. Consta que ele próprio teria se converti-do e apoiado os cristãos, pelo menos por algum tempo. Isso era muito conveniente, pois conferia ao cristianismo ares de religião oficial, o que viria a acontecer de fato no governo do imperador Teodósio que se converteu ao cristianismo no ano de 391. Como essa pregava que o seu reino era no outro mundo, depois desse, poderia conviver pacificamente a religião e o Estado civil. Assim, acabava a figura dos agitadores e conspiradores e o estado pode-ria manter tudo sob controle.

— Ótimo, Pedro. E depois?

— A partir do século IV começaram a acontecer as inva-sões bárbaras que culminaram com a queda do Império Romano ocidental em 476 d.C. Houve um esfacelamento cultural em toda a Europa e o conhecimento ficou restrito aos mosteiros. Durante a idade média, a Igreja era praticamente a única instituição orga-nizada e acabou por enriquecer e se tornar grande proprietária de terras. Com isso, tornou-se um poder paralelo, competindo com os reis da época e tornou-se mesmo uma grande potência na Europa. O Império Romano Oriental (que veio a chamar-se império Bizantino) durou muito mais, até 1453, com a queda de Constantinopla, sua capital. Esse ponto é também considerado o fim da idade média.

— E sobre o aparecimento dos judeus na Europa?

— Segundo os registros da história, os judeus que migra-ram para a Europa são ditos asquenazitas, descendentes de As-quenaz, bisneto de Noé, que teriam vivido numa região próxima ao monte Ararat. Consta que entre os séculos VII e IX, se esta-beleceram na região norte dos Alpes e Pirineus. No século X, já estariam estabelecidos em todo o norte da Europa.

— E o que você me diz sobre as cruzadas?

— Também são desse período. Em 1095, o papa Urbano II, durante o concílio de Clermont, lançou a ideia de libertar a terra santa, como chamavam a Palestina, então sob o domínio turco, de religião Muçulmana, e colocá-lo sob o domínio cristão, com sede em Jerusalém. Consta que houve nove cruzadas entre 1096 e 1303. Eram assim chamadas porque os cavaleiros usavam uma roupa onde era desenhada uma Cruz Vermelha. Os nobres que apoiaram investiram muito e, é claro, esperavam obter vultosos lucros nessa empreitada. Foi uma triste página da história, uma enorme carnificina onde muitos povos foram trucidados, inclu-sive os próprios cristãos e judeus. Ocorreram todos os tipos de atrocidades difíceis de imaginar que um ser humano seja capaz de fazer. Para além disso, potencializou as animosidades entre o Cristianismo e o Islamismo e os desentendimentos que cristãos e muçulmanos têm até hoje. O único fator positivo talvez tenha sido o desenvolvimento econômico e cultural que culminaram com o Renascimento, quando houve uma verdadeira explosão cultural na Europa. Até então a cultura estava restrita aos mon-ges, guardiões de todo o conhecimento, dispondo de poucos li-vros traduzidos para o latim — daqueles que conseguiram resistir ao tempo e as depredações. A própria bíblia romana, a vulgata, é uma tradução do grego para o latim a partir da septuaginta grega, sendo São Jerônimo o seu tradutor. Mas, a partir de então, inúmeros documentos em grego e árabe foram introduzidos e multiplicou-se também o número de universidades na Europa. A invenção da prensa e seu desenvolvimento potencializaram a propagação dos conhecimentos.

— E o que você me diz sobre a Inquisição?

— A Inquisição foi criada inicialmente para combater o sincretismo que teve suas raízes numa cristianização superficial e mal feita dos povos pagãos, que misturaram os ensinamentos

28

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

29

cristãos a elementos de sua cultura, produzindo ensinamentos divergentes do cristinanismo que a Igreja pregava. Aliado a isso, alguns praticavam o culto ou adoração a animais e plantas, uti-lizavam artifícios como métodos de adivinhação do futuro e muitos outros. Tudo isso era chamado de heresia. Até mesmo as experiências científicas da época eram consideradas ocultismo e bruxaria, sendo, portanto, heresias.

Ele prosseguiu:

— A primeira Inquisição de que se tem noticia foi orga-nizada em 1184 para combater a heresia dos cátaros no sul da França. A Inquisição espanhola funcionou de 1478 a 1821. A In-quisição portuguesa, de 1536 a 1821. Por trás de causas religiosas estavam muitas causas políticas e nacionalistas e muita cobiça. Entre outros povos, estavam incluídos os judeus e os mouros — e todos os descendentes desses. Quando a Espanha expulsou os ju-deus e mouros, eles foram para Portugal, que se beneficiou com as riquezas materiais e culturais, enfim, de todo o material huma-no de boa qualidade. Então, a Espanha percebeu o prejuízo que levava e como aquilo beneficiava e fortalecia Portugal, portanto, criou uma forma de pressioná-lo a instalar a inquisição por lá também. Dom Manuel I, rei de Portugal, inicialmente fazia vis-tas grossa à presença de mouros e judeus, que tanto contribuíam para o engrandecimento do país. Pressionado, trabalhou para que os judeus e árabes e seus descendentes se convertessem ao cristianismo, porém isso não funcionou. Muitos preferiam dei-xar o país. Isso era um grande inconveniente, pois, se ocorresse uma evasão em massa, haveria um desastre econômico. Mesmo se seus bens fossem expropriados, iriam embora muitos homens cultos, os homens de negócios nacionais e internacionais, os pro-fessores, filósofos, em suma, a massa pensante. Então, não hou-ve dúvidas, o rei baixou um decreto convertendo forçadamente todos os judeus, os árabes e seus descendentes, que oficialmente passaram a constar como cristãos, mas, em particular, continua-

vam com suas religiões e costumes de origem. Esses ficaram co-nhecidos como “cristãos novos”. Isso soava como um pejorativo, como se fossem cidadãos de segunda classe, constituindo discri-minação e segregação racial, o que potencializava a xenofobia já existente no país.

O pessoal da Inquisição, no entanto, não se deixou enga-nar e os perseguiu. Causaram-lhes muitos problemas e conde-naram muitos deles a penas diversas, que iam desde os simples inquéritos até a morte, passando por confisco de bens, queima de livros, objetos e casa, alem de prisões e torturas.

— Uma coisa é intrigante. Afinal essa perseguição da In-quisição era laica ou religiosa?

— As duas coisas. Talvez muito mais laica do que possa parecer inicialmente. Reis de vários países dos mais influentes da época pressionaram os papas e todo o alto clero, pretensos representantes de Deus e com grande ascendência sobre o povo em cujo meio havia alguns nocivos aos seus interesses. Em geral, o clero era utilizado como pesquisador e juiz dos casos, mas a decisão final de condenação e execução era dos Estados. A Igreja foi usada pelo tempo que lhes foi conveniente. Quando acharam, contudo, que começava a atrapalhar, logo pensaram uma manei-ra de se livrar dela, sempre com artimanhas (como intrigas, acu-sações e toda sorte de planos especialmente arquitetados para isso). Muitos religiosos foram condenados e executados. Toda a documentação sobre a Inquisição está na torre do Tombo, aqui em Portugal.

O professor Paschoal fazia perguntas ao professor Pedro como se desconhecesse o assunto ou como se quisesse sabati-ná-lo. Na verdade, ele adorava ouvi-lo. Apreciava muito a sua capacidade de organizar ideias e transmiti-las de modo simples e conciso. Convidou-o para a sua equipe depois que assistiu a uma palestra sua. Sabia que ele possuía uma excelente folha de

30

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

31

serviços e um currículo como poucos. Aliás, o professor Pascho-al primava por acercar-se de pessoas competentes e tinha um faro especial para encontrá-las e convidá-las para a sua equipe. O professor Pedro também admirava muito a cultura do Profes-sor Paschoal e tinha certeza de que de antemão ele sabia tudo sobre o que perguntava e que gostava de ouvir sua opinião, que, na verdade, era um eco da sua própria, tal era a sintonia de suas mentes.

— Ótimo, Pedro. Vejo que voce pesquisou muito mesmo. Diante de tudo isso, penso que deveríamos prosseguir os estudos a partir dos cristão novos.

Resolveram, então, estudar mais um pouco sobre esses e descobriram que a quase totalidade continuou com sua religião original de forma oculta. Como a Inquisição continuou a per-seguição, muitos dos judeus preferiram fugir para a Holanda, onde havia tolerância religiosa e não seriam perseguidos. Esse país, portanto, se beneficiou tremendamente, pois os judeus eram homens de negócio e foram parte dos grandes investidores e administradores da companhia das Índias orientais e ociden-tais — que monopolizava o comércio de açúcar e muitos outros produtos no oriente e nas Américas.

— Pedro, voce acha que os judeus ocultavam algo de es-pecial?

— Há indícios de que esses possuíam uma organização secreta cuja finalidade precípua seria proteger antigos segredos, mas isso pode ser apenas uma lenda.

— Concordo. Ainda assim, é uma lenda muito intrigante.

— Paschoal, o que você pretende que façamos imediata-mente?

— Acho que deveríamos fazer uma viagem até Amsterdã e ver o que conseguimos descobrir, afinal, estamos estudando o cristianismo e o desenvolvimento do novo mundo. Já sabemos que os cristãos novos eram judeus e que, após serem perseguidos aqui em Portugal pela Inquisição, fugiram para a Holanda, que foi o berço da companhia das Índias Ocidentais e que monopoli-zava o comércio do açúcar e vários produtos nas Américas. Isso, sem sombra de dúvida, contribuiu para o desenvolvimento do novo mundo, então tem tudo a ver com o nosso trabalho. Creio que na Holanda encontraremos muitos documentos antigos so-bre a companhia das Índias Ocidentais e seus grandes investido-res, muitos dos quais eram cristãos novos ou judeus.

Trataram de planejar a viagem e rumaram para a Holanda.

Capítulo II

Coimbra – Conhecendo a cidade

Coimbra é uma importante cidade Portuguesa que dista de Lisboa 206 km, referindo-se à rodovia conhecida como via A1. Possui uma posição estratégica, por ser região central e pos-suir ligação com a auto estrada A1, que liga o país de norte a sul. É também ligada à cidade vizinha de Figueira da Foz, no litoral, pela via A14.

O aeroporto internacional mais próximo é o de Francisco de Sá Carneiro, a 130 km, no Porto, mas existe tambem o Ae-roporto da Portela, a 190 km, em Lisboa. Não possui aeroporto, mas possui aeródromo.

Pertence à sub-região do Baixo Mondego e da Beira Lito-ral. É banhada pelo rio Mondego, possuindo o município 319,4 km² e 143.396 habitantes — de acordo com o senso de 2011.

A Universidade de Coimbra, fundada em 1290, é a mais antiga de Portugal e uma das mais antigas da Europa. Conta atualmente com 30.000 estudamtes.

É limitada ao norte pelo município de Mealhada, a leste, por Penacova, Vila Nova de Poiares e Miranda do Corvo; ao sul, por Condeixa-a-Nova; a oeste, por Montemor-o-Velho e a no-

34

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

35

roeste, por Cantanhede.

É uma das mais importantes cidades portuguesas porque, além de sua importância histórica, possui boa infraestrutura, or-ganizações e empresas, está geograficamente bem posicionada e é tambem referência em ensino e saúde.

O dia da cidade, feriado municipal, ocorre em 4 de julho em honra e memória da rainha Santa Izabel de Aragão, a pa-droeira da cidade. Já foi a Capital do Reino e foi berço de 6 reis da primeira dinastia, Inclusive Dom Afonso Henriques, o fun-dador do reino de Portugal — em 1139. Habitaram por lá muitas personalidades famosas ao longo da história, tais como: José de Anchieta, Irmã Lúcia, de Fátima e muitos outros.

Possui muitos monumentos de interesse histórico e turís-tico, dente eles há igrejas, palácios, torres, bibliotecas, museus e muitos outros. Possui ligação ferroviária ao norte e ao sul, pos-suindo 4 estações: Velha, Nova, do Parque e São José.

Além da conhecida Universidade de Coimbra com as suas 8 faculdades, existem muitas outras escolas e institutos de ensino superior públicos, tais como: Instituto Politécnico de Coimbra e Escola Superior de Enfermagem de Coimbra. Há também os pri-vados: Escola Universitária Vasco Da Gama, Instituto Superior Miguel Torgqa, Instituto Superior Bissaya Barreto, Escola Uni-versitária das Artes de Coimbra.

A Universidade de Coimbra foi durante vários séculos a única universidade portuguesa.

A cidade possui tambem muitas escolas públicas e priva-das de ensino básico e secundário. No aspecto cultura e lazer, a cidade possui muitos pontos interessantes, dentre eles: Museu Nacional de Machado de Castro, na Sé nova, instalado no Palácio Episcopal de Coimbra, que possui coleções importantes de pin-

tura, escultura, ourivesaria, cerâmica, têxteis e outros. A univer-sidade possui importantes museus. Dentre outros: instrumentos científicos dos séculos XVIII e XIX, Museu de Física, coleções de antropologia, zoologia, botânica e mineralogia, Museu de Histó-ria Natural e outros. Possui 31 galerias de arte, recebendo cerca de 200.000 visitantes por ano, (referência de 2003). Em 1993, a cidade sediou os Jogos Sem Fronteira, participando cidades de sete países.

Clima:

Coimbra tem um clima chamado Mediterrâneo. A tempe-ratura no inverno varia entre 15 °C de dia e 5ºC à noite, podendo chegar a 0 °C nas frentes frias. No verão, varia entre 29 °C de dia e 16 °C à noite. No período entre 1971 a 2000, a variação máxima foi entre - 4,9 °C e 41,6 °C. Os registros de 1943 informam que variou entre -7,8 e 42,5 °C.

Economia:

Segundo dados de 2005, o distrito possui 5.441 empresas, com um faturamento anual de 2.318 Euros. 83 dessas empresas figuram entre as 1.000 maiores do país. Possui uma indústria de alta tecnologia voltada para a áres de saúde e empresas de servi-ços também voltadas para essa área. Tem também empresas em várias áreas, tais como: defesa, aeroespacial, financeira, teleco-municações, etc.

Possui empresas a nível internacional que têm colaborado com a NASA, ESA e a China.

Em Coimbra está a maior encubadora de empresas do mundo. Existem na cidade 3 hospitais centrais:

Hospital da Universidade de Coimbra (HUC), Centro Hospitalar de Coimbra (CHC) e Hospital Pediátrico e Materni-

36

João Roberto Vasco Gonçalves

Capítulo III

História do professor Paschoal D’Ávila.

Afeganistão

— Ali ub, você já fez a lição que te passei?

— Sim, mamãe, já terminei.

— Então, agora vá para a cama porque amanhã você tem de acordar bem cedo para pastorear as cabras.

— Sim, mamãe.

No outro dia.

— Ali ub, seu alforje já está preparado com as provisões de que precisa.

— Obrigado, mamãe. Acabando de comer, irei logo.

— É bom se apressar, o sol já está quase nascendo.

— Estou pronto mamãe, já estou indo.

Ali ub era um menino esperto e já trabalhava muito. Fica-ra órfão de pai muito cedo e vivia com sua mãe numa humilde casa do interior. Aprendia a ler e escrever com a própria mãe quando chegava em casa ao pôr do sol. Antes de o sol nascer já estava saindo para pastorear as cabras e ovelhas, sua fonte de ren-da. Sua família era de uma etnia minoritária na região, por isso eram discriminados e frequentemente atacados e perseguidos.

dade de Bissaya Bareto, além do Instituto Português de Oncolo-gia (IPO).

As zonas industriais da cidade são o Parque industrial de Taveiro, o Parque industrial de eiras e o Polo de Pedrulha e Eiras. É igualmente notório o Coimbra iParque, que não somente é ca-paz de receber unidades industriais, mas também espaços para escritórios, auditórios, salas de formação e de reuniões.

Coimbra ocupa o terceiro lugar no ranking de importân-cia econômica, ficando depois de Lisboa e Porto. Possui um po-der de compra per capita de 139,5 euros — segundo dados de 2009.

Existem tambem grandes centros comerciais: Coimbra Shoping e o Dolce Vita Coimbra. O concelho de coimbra possui 18 freguesias, sendo que estão na área urbana Ceira, Almedina e São Bartolomeu, Eiras e São Paulo de Frades, Santa Clara e Cas-telo Viegas, Santo Antônio dos Olivais e Ribeira de Frades.

38

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

39

Um tropel de cavalaria avançava pela região e se aproxi-mava da casa onde Ali morava com sua mãe. Parecia uma turba de desordeiros que fazia enorme algazarra. Estavam bem arma-dos e pareciam dispostos a atropelar o que passasse à sua frente. Quando chegaram à casa, entraram e saquearam o pouco que havia. Ao encontrarem a mulher que se escondia e, principal-mente, percebendo sua etnia, cometeram todo tipo de violência e a machucaram muito. Ela lutara desesperadamente, todavia fora uma luta inglória, pois eram homens fortes, em grande número e armados até os dentes. Depois de saquearem-na e deixarem-na semidesfalecida ainda atearam fogo à casa com ela dentro e fo-ram embora. Despertou com o calor das chamas próximo a ela e, reunindo suas últimas forças, conseguiu a duras penas chegar ao lado de fora. Seriamente ferida e intoxicada pela fumaça, morreu no desespero da solidão, porém feliz, pois seu filho fora poupa-do, por não estar presente.

Após o pôr do sol, quando voltou para casa, Ali ficou de-solado. Sua casa estava completamente queimada, algumas pa-redes haviam ruído e sua mãe estava morta do lado de fora com marcas de violência por todo o corpo. Lutara heroicamente até a morte. Sentiu um misto de dor, revolta, abandono de suas for-ças, desânimo e perda do sentido de viver. Na manhã seguinte, após velar sua mãe ao relento, teve de enterrá-la com as próprias mãos, sozinho e suportando sem consolo o peso da dor. Aprovei-tando uma fenda no terreno pedregoso, alojou ali o corpo se sua mãe e o cobriu com escolhos de pedra que conseguiu arranjar pela região. Saiu dali muito triste, pensando sobre o que faria da sua vida. A angústia tomou conta do seu coração. A única ideia que lhe ocorria era vender as cabras e ovelhas e sair pelo mundo.

No dia seguinte, passou por ali uma caravana de merca-dores. Ao perceber sua etnia e verem-no tão desprotegido, usur-param seu rebanho e ainda o levaram para ser vendido como

escravo — o que de fato ocorreu ao chegarem às cercanias da cidade mais próxima.

Os mercadores que o compraram exigiram que ele apren-desse árabe e serviços de casa, pois pretendiam vendê-lo como escravo doméstico. Designaram alguém para ensiná-lo a língua e instruir-lhe nos afazeres de casa. O garoto era esperto e, talvez impulsionado pela necessidade de comunicar-se para viver ali, aprendeu rapidamente. Ali Ub passou algum tempo com aquelas tarefas. Aquilo era ruim, contudo, ao menos estava vivo, alimen-tado, vestido e abrigado. Ainda assim, aquilo não lhe bastava, ele precisava voltar a ser livre e dar um rumo à sua vida.

— ...Ah! Encontramos um bom comprador para o meni-no. Um homem da cidade precisa de um escravo doméstico que seja novo e capaz de aprender rapidamente. Propôs um ótimo pagamento.

— E quando virá concretizar o negócio?

— Dentro de duas semanas. Até lá temos de preparar a mercadoria segundo suas exigências.

— Que exigências são essas?

— Deve estar sadio, bem disposto e ser eunuco.

— Mas esse não é eunuco.

— Sim, por isso temos de mandar castrá-lo pelo menos dez dias antes de o comprador chegar. Já acertei isso com o ho-mem que faz esse serviço. Então, temos de alimentá-lo, tratá-lo bem e cuidar para que não se machuque, para não estragar a mercadoria. Ali estava presente, porém oculto. Escutou com muito pesar aquela conversa do pessoal da casa. Era horrível ser tratado como uma mercadoria. Para piorar, iriam castrá-lo para atender às exigências do cliente, tornando-o eunuco, como era costume na região para os escravos domésticos. Ficou apavorado

40

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

41

e tratou de arranjar um bom plano para fugir dali o quanto antes. A oportunidade finalmente apareceu.

Uma tarde, por ocasião da quarta oração, os homens da casa saíram para ir rezar na mesquita mais próxima. Ele se es-condeu dentro de casa, pegou o que pôde de abrigo e provisões e fugiu pelas estradas, abrigando-se numa região de difícil acesso nas montanhas, enfrentando todos os perigos. Quando os ho-mens chegaram e não o encontraram, ficaram furiosos ante a possibilidade do prejuízo. Mas não o foram procurar, pois acre-ditavam que ele voltaria logo com medo da escuridão, de ficar sozinho e por causa do frio. Na pior das hipóteses, quando aca-bassem as provisões, voltaria implorando para ficar e então re-ceberia o castigo merecido pela fuga. O que eles não sabiam era que Ali, apesar de menino, não era assim tão dependente. Ficou órfão de pai muito cedo e tivera de se virar. Era acostumado a passar muito tempo pelos campos pastoreando, sabia controlar sua ração, conhecia muitas ervas e frutos comestíveis, sabia en-contrar água, caçar, procurar abrigos e se proteger contra ataques de animais. Além disso, eles não tinham ideia de que ele ouvira a conversa a respeito de suas intenções para com ele. Mesmo se tivesse de voltar, não seria para eles.

Alguns dias depois, eles tiveram de viajar outra vez para comerciar. Não se preocuparam mais com ele por acharem que ele já estaria morto. De fato, isso quase aconteceu. Ali sobrevivia, mas a vida não era nada fácil naquele local. Havia água por per-to, o que era ótimo, mas fazia muito frio à noite. Contudo, isso ainda não era nada comparado aos perigos de ataques de ani-mais maiores e também de aranhas, escorpiões e outros insetos. Também havia outro inconveniente, logo acabaria a comida e ele teria de caçar e comer a erva do mato para não morrer. Numa da-quelas madrugadas ele acordou com uma dolorosa ferroada de um inseto, o que o obrigou a deixar a toca onde estava escondido e tentar procurar outro lugar. Ele começou a descer a montanha.

O ferimento doía muito, mas ele seguiu em frente. Chegando ao sopé do monte, estava ofegante, esgotado e sentindo um tremen-do mal estar; suava frio e sentia tonturas, precisava pedir ajuda. Ele precisava rezar para que Deus mandasse alguma alma cari-dosa que não o maltratasse nem o vendesse como escravo. Tra-balharia para pagar seu sustento. Quando chegou às margens da estrada estava muito doente, faminto e maltrapilho. Desmaiou. Uma caravana viajava por aquela estrada e resolveu fazer uma parada. Acamparam ali para descansar antes de seguir a longa e penosa viagem.

— Salim, corre aqui, por favor. Encontrei um menino mo-ribundo. Parece estar machucado e está ardendo em febre.

Salim o levou imediatamente para a sua tenda. Ali trata-ram dos ferimentos. Viram o que parecia ser uma picada de inse-to. Fizeram-lhe um torniquete e, a seguir, uma sangria no local. Deram-lhe um chá de ervas que traziam e deixaram-no descan-sar até que a febre cedesse. Salim e Munira eram casados havia alguns anos, porém nunca tiveram filhos. Salim antes de casar-se com ela era viúvo sem filhos, pois os dois que sua finada mulher lhe dera haviam morrido de doença ainda crianças. Munira, que a essa altura já era tratada pejorativamente como útero seco, vi-via rezando e esperando que os céus lhe mandassem um filho. Isso de fato aconteceu. Talvez não da forma que ela imaginava inicialmente.

A caravana seguiu viagem e o levou, pois não podiam deixá-lo ali naquelas condições; depois, conforme souberam, o menino era órfão de pai e mãe, estava longe de sua terra de ori-gem, que, aliás, fora invadida; a maioria dos seus habitantes esta-va morta e o que restara de seu povo havia fugido. Enfim, ele era sozinho no mundo.

O menino era esperto, educado, sabia alguns trabalhos de casa, pastoreio e já falava e entendia razoavelmente o árabe, in-

42

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

43

clusive já escrevia algo. Acabaram afeiçoando-se a ele e ele tam-bém correspondia àquele sentimento. Trataram-no como filho. Munira acabou entendendo que aquele não era o filho do seu ventre, mas do coração, o que os céus lhes mandaram. O meni-no também acabou adotando-os como seus pais. Acabaram por perfilhá-lo legalmente, registrando-o como turco e dando-lhe o sobrenome “Abdula”. Salim, agora seu pai, que procurava estabe-lecer-se, encontrou uma boa oportunidade em Chipre, na parte turca da cidade. Lá, colocaram-no numa escola onde concluiu o ensino fundamental e o médio. Àquela altura, ele já ajudava nos negócios do pai, que estava bem satisfeito com a prosperi-dade que haviam alcançado. Diversificou e ampliou o negócio e já possuíam uma unidade em Ancara, para onde se mudaram depois. A seguir, mandaram-no estudar em Istambul, onde con-cluiu o curso superior com brilhantismo e foi até contratado para lecionar.

Numa das visitas a casa, conheceu uma bela moça por quem se apaixonou e pretendia casar-se em breve, se sua família e a dela aprovassem. Voltou à universidade. Passaram-se os me-ses e chegaram finalmente as férias de verão. Quando se prepa-rava para viajar para casa, recebeu a triste notícia de que seu pai estava nas últimas. Sua mãe e sua namorada também estavam doentes. Era um surto de peste que assolava a região. Apressou-se a ir para casa, mas, infelizmente só teve tempo de vê-lo morrer. Providenciou o funeral. Depois do enterro, voltou para casa com aquela sensação de vazio. No entanto, tinha de manter a sobrie-dade, pois deveria empenhar-se no tratamento de sua mãe e dar uma atenção especial aos negócios. Conforme logo descobriu, esses já não andavam tão bem devido a sucessivas crises econô-micas e conflitos internacionais na região de influência deles. A situação, na verdade, não era nada boa. As dívidas se acumula-vam, a carteira de clientes diminuiu muito e já estavam se desca-

pitalizando. Teve inclusive de vender algumas propriedades para saldar as dívidas e honrar compromissos junto aos fornecedores.

A epidemia avançou na região, os hospitais estavam abar-rotados de enfermos e ocorreram de fato muitas mortes. Passa-dos alguns dias, sua mãe piorou muito e acabou morrendo. Ele ficou desolado. No entanto, sua tristeza ainda não acabara. Sua namorada, a quem muito amava, também piorou e morreu pou-cas semanas depois. Ele sentiu o peso da solidão, do vazio e do desespero. Parecia que todos aqueles antigos pesadelos voltavam a assolar sua alma, que seu mundo já havia acabado e não havia mais nada a fazer por ali. O reinício do ano letivo já estava bem próximo. Então, ele resolveu se mudar de vez para Istambul. En-cerrou os negócios, pagou todas as dívidas, vendeu tudo o que sobrou e foi embora para nunca mais voltar. Além do mais, não era seguro ficar por ali muito tempo e sujeitar-se também a con-trair a doença, apesar de ele já ter sido vacinado.

O ano letivo começara e ele começou a lecionar e se afogar em trabalho na tentativa de esquecer as tragédias passadas, mas não conseguia dominar a angústia que as lembranças traziam. Passado algum tempo, ele conseguiu uma bolsa de estudos para especializar-se na universidade de Coimbra, em Portugal. Não perdeu a oportunidade. Uma das primeiras providências foi ado-tar um nome português muito comum, o que, além de ajudar na comunicação por causa da pronúncia, também evitava especula-ções e até mesmo discriminações. Assim, abdicou de seu nome “Ali ubh Abdulah” e tornou-se o professor “Paschoal D’Ávila”. Es-tudou mais três anos em Coimbra e concluiu com brilhantismo seu curso. Logo, foi convidado a lecionar e pouco depois já che-fiava uma equipe no departamento de história. Aliás, já estava cotado para ocupar a chefia do departamento com a iminente aposentadoria do professor José.

44

João Roberto Vasco Gonçalves

Capítulo IV

História do professor Pedro Cintra

Curdistão

— Samir, você já se lavou?

— Sim, mamãe.

— Então venha comer, depois brinque um pouco e a se-guir faça a lição antes de dormir.

Samir emih hamur tinha oito anos. Morava com os pais numa aldeia do interior na região do Curdistão. Pertencia a uma etnia minoritária na região. Por causa disso, eram considerados inferiores. A rejeição era tanta que muitas vezes os hostilizavam e até agrediam física e moralmente. Aprendia a ler e escrever em casa com os pais, pois nem a escola conseguia frequentar. Viviam constantemente apreensivos com os possíveis ataques tanto dos que os espezinhavam quanto pelos ladrões que passavam em ca-ravanas e saqueavam tudo. Seu pai sustentava a família com um pequeno e modesto comércio e alguns pequenos serviços que fazia. Eram marcadamente pobres. Ele ajudava no que podia e tentava aprender o ofício do pai e algumas coisas de valor prático para a vida.

Numa fria tarde de outono, sofreram um ataque maciço por um grande número de homens armados que chegaram ve-lozmente e com muito estardalhaço, com uma sede de destrui-ção desmedida. Eram da etnia dominante e estavam dispostos

Com sua especial capacidade para encontrar talentos, conseguiu formar uma excelente equipe. Entre os mais talento-sos que encontrou estava o professor Pedro Cintra, que teve uma história de vida algo parecido com a dele e com quem compar-tilhava muitas ideias e acabou tornando-se amigo pela cordial convivência e dedicação ao trabalho.

46

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

47

a tomar suas terras e trucidar todos. Arrasaram o seu povoado, mataram seus pais e todos os vizinhos, saquearam tudo que pu-deram carregar e atearam fogo às humildes casas da região. Não sobrou nada, nem mesmo cadáveres para enterrar, tudo ficou re-duzido a um monte de cinzas.

Samir estava muito assustado, mas o seu instinto de pre-servação o fez esconder-se e depois fugir para uma colina pró-ximo dali, onde passou a noite com fome e frio abrigado numa gruta. Só conseguiu beber água de um filete que escorria pela fenda de uma pedra. No dia seguinte, passou uma caravana de mercadores pelo local. Faminto, e depois de observar e estudar bastante a situação, procurou encontrar algo que comer e aca-bou se alimentando com restos que os homens haviam deixado. Não podia ficar ali, pois a morte certa ocorreria em poucos dias. Pulou dentro de uma carroça e escondeu-se para tentar viajar até algum lugar menos desfavorável à vida. Seu esconderijo era apertado, calorento e mal cheiroso — demasiadamente descon-fortável. Vencido pelo cansaço, conseguiu dormir por algumas horas. Acordou com aquela agitação que faziam ao parar a cara-vana para descansar, dar de beber aos cavalos e camelos e tam-bém comer. Tinha de sair dali para urinar, esticar o corpo e en-contrar algo para comer. Ainda não poderia sair dali. O local era desabitado e inóspito.

Depois de satisfeitas as necessidades básicas, procurou voltar ao esconderijo e tentar viajar para outro local melhor, quando sairia. Mal acabara de entrar, alguém precisou de algo da carroça onde estava e o encontrou. Comunicou ao chefe da ca-ravana, que resolveu levá-lo e alimentá-lo durante o restante da viagem mediante alguns serviços no trato dos cavalos e camelos e ajudar a montar e desmontar as tendas durante as paradas.

— Chefe, que utilidade pode ter um menino para o traba-lho. Ele só vai ajudar a gastar a água e a comida. Vamos deixá-lo aqui.

— Não. Ele agora faz parte da mercadoria. Enquanto via-jamos, ele ajuda no tratamento dos cavalos e camelos e no que mais puder. Quando chegarmos a um local onde haja comprado-res, vou vendê-lo como escravo.

Samir, que estava oculto, ouviu a conversa e ficou muito triste e com muito medo. Precisava arranjar um jeito de fugir tão logo chegasse. O restante da viagem foi penoso, fisicamente incômodo e com um temor que devorava sua alma. Ele quase dormia na mesma desconfortável carroça, até que outra vez des-pertou com aquela algazarra característica de quando chegavam a algum lugar. Escutou quando alguém comentou. Chegamos ao mercado, esperamos fazer bons negócios com as mercadorias, que Alá nos abençoe e nos dê a prosperidade. O que chamavam mercado, não era mais que um aglomerado de acampamentos, onde na frente de cada barraca ficavam expostas as mercadorias que cada um trazia, uma enorme confusão de gente, produtos, animais e um enorme vozerio que tornava difícil escutar o que as pessoas falavam. O comércio era predominantemente baseado em escambo, mas em raros casos apareciam moedas e pedaços de ouro como pagamento. Era uma novidade. Em outras cir-cunstâncias seria até divertido, mas ali era diferente: Samir havia escutado os comentários feitos. É claro que sabia que ele estava incluído no rol das mercadorias, conforme escutara dias antes. Era hora de fugir, antes que fosse tarde demais.

Aproveitando a confusão, Samir pulou da carroça ainda em movimento e se misturou no meio daquela confusa massa. Seria difícil alguém perceber algo ali. Tratou de procurar as ex-tremidades daquele mercado e com muita dificuldade conseguiu atravessar pelos becos entre as tendas e tabuleiros. Enfim chegou à área livre, deu uma olhada na região e avistou uma colina bem próximo dali. Contorcendo-se aqui e ali, conseguiu chegar lá e esconder-se. Tudo que conseguira trazer consigo era um pão e um naco de carne defumada com uma gordura já rançosa. Pelo

48

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

49

menos encontrou água. Aquilo era ótimo porque não decretava sua morte imediata, mas não resolvia o seu problema, pois sabia que logo a fome e o frio o matariam. O mercado se desfez, as caravanas se foram, o local ficou deserto. A não ser pela sujeira deixada, nem parecia que antes havia tanto movimento. Samir desceu ao sopé da colina e começou a andar pelas redondezas, fazendo um reconhecimento da região. Foi até a margem da po-eirenta estrada. A despeito das suas preocupações, andava dis-plicentemente contra o vento, que lhe fazia um barulho enorme nos ouvidos — o que de certa forma era agradável por quebrar o absoluto silêncio reinante por ali. Nem percebeu o ronco de um velho caminhão atrás de si. Quando se deu conta, dois bruta-montes já o agarravam e conduziam até o precário veículo, nem fazendo caso dos seus gritos de protesto. Bem mais próximo des-te, ele protestou de novo. Um deles o esbofeteou. Jogaram-no na carroceria do caminhão, também subiram, e a viagem começou. Refeito do susto e do bofetão, percebeu que havia vários outros meninos, uns da sua idade, outros um pouco mais velhos e pou-cos até mais novos. Pareciam de várias etnias diferentes. Muitos só falavam seu próprio dialeto. Viajaram penosamente por vários dias por estradas poeirentas e cheias de buracos e pedras. Vez por outra faziam, breves paradas para fazer suas necessidades, alimentarem-se e fazer o abastecimento do veículo. Enfim che-garam ao destino, que ele veio a saber muito mais tarde tratar-se de um campo de treinamento, onde pessoas retiradas a força de suas casas ainda meninos ou recolhidos pelas ruas, campos e estradas eram submetidos a uma formação religiosa e militar. O objetivo era para que mais tarde fossem usados em invasões, ata-ques, e missões arriscadas e até suicidas em favor de uma causa que chamavam “Guerra Santa”.

Desembarcaram e foram conduzidos a um comprido gal-pão onde ficavam os alojamentos à moda militar e salas onde eram ministradas aulas de árabe para os que ainda não sabiam,

aulas sobre o Alcorão e sobre assuntos militares, como manuseio e manutenção de armas, ataques, técnicas de guerrilha, sobrevi-vência, etc. Tudo isso ficaram sabendo mais tarde com o passar do tempo e o desenvolvimento do treinamento. De tempos em tempos, saíam a campo para treinamentos militares práticos de tiro e outros. Quase no final do curso, saiam para acompanhar missões de verdade. Lá encontravam os soldados de exércitos não oficiais que exerciam suas missões. Samir sentia verdadei-ra repulsa pelas coisas que ensinavam. Não conseguia entender muitos dos conceitos como o fato de uma religião santa como o Islã poderia ser usada como um artifício para a guerra. Afinal, Alá era o único Deus, infinitamente bom e misericordioso para todos os homens? Como podiam chamar de “santa” uma guerra cruel que dizimava a humanidade? Como ousavam evocar o san-to nome do senhor para matar o seu semelhante, ainda que fosse considerado inimigo? Na verdade, estava sendo preparado para fazer as mesmas coisas que fizeram quando mataram seus pais e toda a sua gente da forma mais desumana que se podia imagi-nar. Sentira na pele aquela desgraça e sabia muito bem o que era a dor da perda, a fome, o frio, o abandono, a venda como reles mercadoria, a perda da liberdade, enfim, toda aquela miséria de vida que o próprio homem impõe ao seu semelhante arranjando como desculpa uma crença.

Não. Não queria ser um deles. Preferiria mil vezes a mor-te. Tinha de se libertar dalí de algum modo. Não fazia a menor ideia de como, no entanto. Todos eram rigidamente vigiados vinte e quatro horas por dia, e as punições eram rigorosas para os que infringiam os regulamentos. Apesar disso, ele precisava fa-zer alguma coisa e faria realmente tão logo aparecesse a mínima oportunidade. O tempo passou e faltava pouco para a época da primeira incursão verdadeira, quando iriam a campo acompa-nhar os soldados e fazer alguma coisa como estagiários de guer-ra. Essa seria talvez a oportunidade tão esperada.

50

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

51

Finalmente conheceram a missão: deveriam viajar e en-contrar a tropa num local próximo às colinas de Golan, onde se daria o ataque no qual se apossariam de importantes posições que culminaria com o domínio de toda a região. Chegaram e imediatamente se juntaram ao grupo, sendo distribuídos pelas várias companhias. Tomaram posições, avançaram, e o ataque começou. Foram detectados pelos postos de observação do ini-migo que os enfrentou duramente e a refrega começou.

Era horrível. Por um momento, parecia voltar vivamente aquele ataque quando sua família fora destruída. Samir sentiu um misto de ódio, medo e repulsa. Transtornado, acabou desgar-rando-se do grupo e se perdendo. Machucou seriamente a perna naquele terreno acidentado, ficando impossibilitado de cami-nhar mais. Também fora ferido no braço e o ferimento sangrava muito. Desmaiou.

— Oh! Estão usando até meninos para a guerra.

— São aprendizes de grupos paramilitares. Eles os arran-cam de suas casas ou recolhem por aí, os treinam por muito tem-po, depois levam para as frentes de batalha para fazerem um trei-namento real ajudando os soldados, até tornarem-se um deles.

— Como estagiários de guerra?

— Sim, algo parecido com isso.

Era o que conversava uma enfermeira e um médico, num hospital de campanha.

Samir começou a despertar e ouvia vozes como se esti-vessem longe. Estava recobrando os sentidos, quando finalmen-te abriu os olhos viu que estava numa grande barraca de lona com várias macas e um cheiro muito forte de remédio. Estava nu e coberto com um lençol branco. Sua perna parecia estar li-geiramente levantada, apoiada sobre algo e enfaixada, Seu braço

esquerdo estava também enfaixado e no antebraço direito havia uma agulha enfiada, por onde chegava um longo canudinho que terminava num pequeno bulbo onde pingava um líquido antes de chegar a uma espécie de garrafa cheia deste. Não sentia dor, nem fome, nem sede nem frio. Ótimo, ainda estava vivo, pensou.

Do lado do seu leito viu uma enfermeira e um médico. Meio acanhado, perguntou:

— Onde estou?

— Num hospital de campanha da Cruz Vermelha — que bom que ela falava árabe, o seu segundo idioma.

— E o que é isso?

— É um lugar onde se tratam os feridos de guerra, civis ou militares.

— Como sabem se são inimigos ou não?

— A Cruz Vermelha é uma organização internacional neutra. Tratamos os feridos como seres humanos, independen-temente do seu país, sua religião ou de qualquer outra coisa.

— Que ótimo. É como eu sempre imaginei o mundo. Infe-lizmente, não foi dessa forma que me aconteceu até hoje.

— Qual é o seu nome? — Ela falava enquanto parecia ano-tar algo num papel preso a uma prancheta.

— O meu nome original é Samir Emih Hamur. De onde vim me chamavam Mohamed emih.

— Quantos anos você tem?

— Acho que onze no calendário de onde vim. Não sei exa-tamente. Nosso jeito de contar o tempo não era o mesmo usado por aqui.

52

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

53

Era interessante a nova situação. Pela primeira vez desde a morte dos pais, ele encontrara gente não hostil. Não sabia exata-mente o porquê, mas aquela mulher parecia afável e lhe inspira-va confiança. Pela primeira vez em muito tempo, ele era tratado com a dignidade que um ser humano merece.

— E seus pais?

— Mortos, como todos os meus parentes e toda a minha gente.

— De onde você é?

— Eu nasci e morava com os meus pais numa aldeia do interior. Minha gente dizia que era Curda.

— E o que aconteceu com seus pais e toda a sua gente?

— Sempre fomos maltratados por muitos que passavam por lá e várias vezes agredidos física e moralmente. Conside-ravam-nos gente de inferior categoria porque éramos de uma raça, costumes e crença diferente da deles e éramos poucos na região. Sempre pensavam em expulsar-nos de nossas terras. As lutas eram constantes para defender nossa aldeia e cada dia fi-cava mais difícil rechaçá-los. Um dia, vieram muitos homens fortemente armados, mataram meus pais e todos os habitantes da aldeia. Queimaram tudo. Dei sorte de conseguir me esconder e fugir para as montanhas que havia próximo. Quando foram embora, voltei lá no outro dia. Não havia nem a quem enterrar. Tudo não passava de um monte de cinzas que o vento forte dis-persava.

— E o que aconteceu com você depois?

— Fui para a estrada mais próxima tentar arranjar algo para comer e tentar sair dali. Parou por ali uma caravana de mer-cadores para tratar dos animais e também comer e beber. Conse-gui me alimentar com restos de comida deles e beber a água deles

escondido. Depois resolvi pular para dentro de uma carroça para sair daquele lugar desabitado a fim de não morrer. Na parada se-guinte, saltei para fazer as necessidades e arranjar água e comida. Depois pulei de novo para dentro da carroça e me escondi, mas fui descoberto. O chefe deles me deixou ficar, pagando a água e comida com o trabalho de ajudar a tratar dos animais. Mas eu descobri que ele pretendia me vender como escravo na próxi-ma oportunidade, então, quando chegou ao mercado, pulei da carroça e andei pelo meio daquele povaréu até alcançar as extre-midades daquele amontoado de gente. Fugi para uma colina pró-xima. Quando foram embora, voltei para a estrada e caminhava sem rumo certo quando fui capturado por um grupo armado que com um caminhão recolhia todos os meninos que podiam encontrar. Alguns foram tirados dos seus campos e outros até arrancados à força de suas casas. Levaram-nos para um lugar onde havia um alojamento com escolas e um campo de treina-mento militar. O trabalho, o estudo e os exercícios físicos eram extenuantes. A disciplina era rígida. Não toleravam atrasos nos horários de levantar, refeições, aula e exercícios. Os castigos para quem descumprisse os regulamentos eram severos. Preparavam-nos para a guerra e para missões especiais, onde fosse necessá-rio. Doaríamos a própria vida pela causa e seriamos mártires ou heróis, merecendo ir para um lugar muito melhor do que esse mundo e vivendo eternamente feliz.

A enfermeira, apesar de já acostumada a tantas histórias tristes, não conseguia esconder seus olhos úmidos de lágrimas, emocionada que estava. Os dias se passaram e Samir já conse-guia dar os primeiros passos. O braço também já estava bem melhor. Dentro em breve, não poderia ficar mais ali. Estavam do lado Israelense. Provavelmente, conseguiriam uma institui-ção para menores órfãos que perderam seus pais na guerra. A enfermeira que já se afeiçoara a ele, conhecia um casal de judeus sem filhos que aceitou ficar com ele por algum tempo até que

54

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

55

as coisas se normalizassem. Lá o receberam bem, apesar de não ser judeu e não falar a sua língua. Mas o senhor da casa falava o árabe e conseguiam conversar. Samir era esperto, prestativo e havia aprendido muitas coisas úteis durante o tempo que passara no alojamento militar. Ajudava em tudo que podia. Trabalhava muito no intuito de pagar seu sustento e não ser um incômodo para a família. Era muito inteligente. Em pouco tempo, aprendeu a falar hebraico e já estava até lendo e escrevendo alguma coisa. Conquistou, assim, as graças da família que resolveu perfilhá-lo legalmente, apesar da resistência inicial dos parentes que se preocupavam com a sua procedência. Assim, recebeu um nome judeu: “Kepha” (Pedro em aramaico), seguido do sobrenome da família: “Bilisch”.

Ele foi para uma escola onde conseguiu aprender bastan-te e concluir o ensino básico com brilhantismo. Àquela altura já falava praticamente sem sotaque e tinha muitos amigos. Mas sempre que descobriam sua origem o discriminavam, tratando-o como bastardo, embora disfarçadamente. Alguns até se afasta-vam. Os negócios da família melhoraram e finalmente acabaram se mudando para Tel Aviv. Ali ele cursou o ensino superior e um mestrado em história, Conseguiu formar-se com tão boa reputa-ção que o convidaram para lecionar na sua universidade.

Quando ainda era adolescente conhecera Deborah, ainda menina, que tornou-se depois uma linda moça dos cabelos rui-vos por quem se apaixonou. Ela era sua prima de criação e vizi-nha. Começaram a namorar. Se amavam muito e faziam planos de casar-se, porém aqueça ideia teria de ser submetida às famí-lias. Aliás, no oriente, como dizem, as pessoas não se casam, mas, as famílias. Isso foi o grande empecilho para suas vidas. Os pais dela e quase todos os parentes, ao pesquisarem sua vida pregres-sa, descobriram que não era judeu de nascimento, portanto, im-puro. Se ela se casasse com ele, também se tornaria impura, bem como seus futuros filhos. Desaprovaram o casamento e exigiram

o fim do romance. Os dois sofreram muito. Mais à frente, a fa-mília mudou-se para Portugal, onde tinha negócios. Ele também conseguiu uma bolsa para especializar-se em Coimbra e apro-veitou a oportunidade para estar perto da família e fugir daquela incômoda situação — queria também se livrar daquela angústia da rejeição. Para diminuir esse risco, resolveu mudar o nome, adotando um nome português comum. Assim transformou-se no professor Pedro Cintra.

Concluindo o curso, contrataram-no como professor ad-junto. Logo, conheceu o Professor Paschoal. Era uma fresca tarde de domingo e ele estava sozinho lendo um jornal e tomando um vinho num pequeno bar de um lugar calmo.

— Bom tarde, professor Paschoal

— Boa tarde, professor Pedro. Sente-se aí. Vamos tomar um vinho e conversar um pouco.

— Obrigado, professor. O senhor vem sempre aqui?

— Não muito frequentemente, mas sempre quando tenho um ataque de nostalgia.

— Ah! Eu sei muito bem o que é isso.

O professor Paschoal, com as barreiras de proteção psi-cológicas já dilatadas (talvez pelo efeito da bebida), acabou con-tando toda a sua história de vida até ali. Depois foi a vez de o professor Pedro abrir o seu baú de nostalgias. Também contou toda a sua história até ali. Curiosamente, perceberam que suas história eram bem parecidas; pelo menos tinham muita coisa em comum. Isso os aproximou muito. Ficaram amigos íntimos e re-solveram abolir as formalidades de tratamento e chamarem-se pelo nome.

— Pedro, vejo que tem um excelente currículo. Primo por ter à minha volta gente competente, dedicada e responsável.

56

João Roberto Vasco Gonçalves

Estou formando uma equipe de professores pesquisadores no departamento de história da universidade. Gostaria que fizesse parte dela como meu adjunto, Você aceita?

— Sim, Paschoal, também gosto de acercar-me de gente competente, e vejo que é o seu caso.

— Ótimo, Pedro, sinto que faremos uma grande equipe.

— Quando começamos?

— Amanhã mesmo. Comece organizando as coisas e me ajudando a encontrar gente capaz para a formação do nosso gru-po. Inclusive já temos um trabalho proposto pelo chefe do de-partamento, que iniciaremos tão logo a equipe esteja formada.

— E onde vamos trabalhar?

— Já consegui o espaço necessário. Uma sala para nós, uma sala para os outros membros e uma sala de reunião com mesas, cadeiras, armários, arquivos e uma pequena biblioteca. Amanhã conhecerá tudo.

— Que ótimo. Já estou entusiasmado.

Capítulo V

Amsterdã

A noite era fria quando saíram do hotel e se dirigiram à sinagoga. Esperaram os fieis saírem para conversarem com o Ra-bino Ariel e o senhor Moshê.

— Boa noite, rabino, eu sou o professor Paschoal, da Uni-versidade de Coimbra e este é meu assistente, o professor Pedro.

— Boa noite, eu sou o rabino Ariel e este é o senhor Moshê. Em que podemos ser úteis?

— Estamos pesquisando sobre o cristianismo e o desen-volvimento do mundo novo. Pelo que sabemos, muitos dos cris-tãos novos foram judeus convertidos forçadamente pelo rei de Portugal, por isso vieram para cá. O senhor teria mais alguma informação histórica sobre isso?

— Não, não temos nada, professor. Lamentamos não po-der ajudá-lo.

— E sobre a companhia das Índias Ocidentais?

— Lamento, professor. Nesse caso, os senhores, como his-toriadores, provavelmente sabem mais do que nós.

Não conseguiram nada de informações, parecia que sem-pre lhes respondiam com evasivas e sempre alegavam total igno-rância sobre muitas coisas que provavelmente deveriam saber. Pareciam ter medo de falar demais. Todas aquelas perguntas despertaram muita desconfiança a respeito de quem realmente eram e o que realmente queriam. Aliás, aquela história de pro-

58

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

59

fessores fazendo uma pesquisa não convencera nem um pouco. O rabino ordenou ao Sr. Moshê que os vigiasse de perto, todavia sem ser notado. Não queria que vazasse a notícia de que havia alguém curioso procurando algo, senão muita gente pela Europa afora que andava atento começaria a aparecer querendo saber também o que era — a situação poderia fugir ao controle. Ali-ás, sempre havia muitos curiosos e aventureiros querendo saber coisas demais.

No dia seguinte, foram à biblioteca pública e nem perce-beram que foram seguidos. Após 3 infrutíferos dias, o professor Paschoal comentou:

— Você não acha muito estranho não haver nada, nenhum livro, nenhum documento antigo que pelo menos se aproxime do assunto que queremos?

— Sim, é realmente estranho. É como se alguém tivesse a intenção de apagar propositadamente a história.

Decepcionados e quase sem esperança de encontrar mais nada, viram um livro que parecia ser de poesia. Era um velho li-vro sem muita importância, a não ser pelo fato de possuir algo na sua contra capa que mais parecia um desenho. O professor Pedro olhou melhor e percebeu que na verdade era uma inscrição no alfabeto hebraico. Fotografaram aquela curiosidade usando uma câmera oculta.

— Não achamos mais nada de interessante alem disso. Já está meio tarde, voltemos ao hotel.

— E amanhã o que faremos?

— Faremos a última investida.

— E depois iremos embora?

— Não, cumpriremos nosso papel de turistas e visitare-mos os recantos interessantes da cidade para não levantar mais suspeitas do que já levantamos.

— É bom mesmo. Aliás, o rabino e o Sr, Moshê parecem ter ficado muito desconfiados.

— Sim. E o pior é que nem ao menos sabemos por quê.

— É, parece que escondem algo que não desejam que al-guém saiba.

Encerraram sua pesquisa por aquele dia e rumaram para o hotel. Continuaram sendo seguidos sem perceber. Quando já estavam no hotel, o professor Pedro, que conhecia o hebraico (apesar de fazer muito tempo que não falava ou lia), conseguiu decifrar a inscrição. Era uma estrofe de quatro versos que dizia:

Na torre de antigo casteloUm tesouro e seu guardiãoOculto em novo mundoSob o manto de um novo cristão.

Quase instintivamente o professor Pedro transmitiu a foto para o servidor de sua universidade onde só ele e o professor Paschoal poderiam acessar mediante uma senha.

Ficaram por algum tempo remoendo aqueles versos e ten-tando concluir algo.

— O que lhe parece, Pedro?

— Novo cristão, combinado com torre de um antigo cas-telo, não seria mais do que a Torre do Tombo, onde estão guar-dados muitos processos de cristãos novos pela inquisição. É claro que somos suspeitos para pensar assim, pois possivelmente são coisas que gostaríamos de ouvir, então inconscientemente força-mos uma situação.

60

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

61

— Claro. E isso nos remeteria de volta a Portugal, mais precisamente à Torre do Tombo.

— Certamente. Só faltaria agora descobrir que tesouro é esse e quem é esse guardião.

— Provavelmente saberemos disso pesquisando lá.

— Então agora como faremos? Ainda vamos a biblioteca?

— Claro que não. Queimaremos essa etapa. Passemos às visitas.

Saíram para jantar, procurando só conversar sobre ame-nidades, pontos turísticos da cidade como os canais, passeios de barco, museus, etc.

— Pedro, você já visitou o museu Anne Frank?

— Não, mas já ouvi falar. É a casa onde morou Anne Frank, uma judia que foi perseguida pelos nazistas e acabou morrendo num campo de concentração.

— Sim. Ela escreveu um diário contando sobre as agru-ras da vida de seus parentes perseguidos pelos nazistas. Na casa moraram várias pessoas no sótão, acima do escritório de seu pai, Escondiam-se em condições precárias.

— Amanhã faremos as visitas.

Foram seguidos outra vez. No hotel, Pedro pegou a câ-mera como quem brinca com ela, recordando as funções que ela oferece. De repente, instintivamente tentou ver as fotos que ha-viam tirado. Para sua grande surpresa, não as encontrou mais. Assustado, comentou:

— Paschoal, as fotos não estão mais aqui. Você por acaso as apagou, mesmo que acidentalmente?

— Nem toquei nessa máquina.

— Então acho que alguém esteve aqui e fez isso.

— Será possível? Por que fariam?

— Ainda não sabemos. Mas há indícios de que nos segui-ram e viram que fotografamos algo.

— Sim, e provavelmente o que fotografamos os incomoda muito ou não desejam que se propague.

— Olha só! Remexeram todas as minhas coisas.

— A minha mala também foi toda revirada. Acho que procuram algo de comprometedor em nossa bagagem.

— Ufa, ainda bem que transmiti tudo para o nosso servi-dor na universidade onde só nós temos acesso.

— Ainda bem.

— Vamos dar queixa na gerência do hotel?

— Não, isso não é uma boa ideia.

— Por quê? — Porque, pelo visto, não fazem a menor questão de camuflar isto. Parece que querem que saibamos que estamos sob vigilância deles.

— É, temos de tomar mais cuidado com o que falamos ou fazemos na presença dos outros. Devem estar nos observando de alguma forma.

— Sim. Mas vamos descansar. Amanhã temos uma agen-da de visitas cheia. Boa noite Pedro.

— Boa noite, Paschoal.

No outro dia:

— Bom dia, Paschoal? Como passou a noite?

62

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

63

— Custei um pouco a dormir pensando em toda essa his-tória. E você?

— Também demorei um pouco, mas finalmente dormi bem.

— Vamos ao desjejum?

— Sim. É melhor não perdermos muito tempo.

— E também lembrar sempre o que podemos ou não falar ou fazer.

Começaram a conversar sobre os pontos turísticos da ci-dade, a respeito dos quais já haviam se informado e lido alguns folhetos de propaganda. Acabaram o café e foram para o quarto fazer a higiene bucal e pegar as coisas para sair.

— Você não vai acreditar, Paschoal...

— O que foi?

— Roubaram a nossa câmera fotográfica.

— Ora, mas que estranho.

— Por quê?

— Pois se já haviam apagado as fotos e não havia mais nada de interesse...

— Claro, se quisessem roubar, roubariam na primeira vez quando apagaram.

— Sim, e isso sugere que não tenha sido a mesma pessoa.

— Então estaríamos sendo perseguidos por mais de uma pessoa ou grupo de pessoas.

— É, essa história está ficando muito complicada e peri-gosa. Acabando a visita, fechamos a conta e vamos direto para o

aeroporto. Esperaremos lá o tempo que faltaria para a viagem, que será bem mais tarde.

— Sim. Então vamos à visita sem câmera mesmo.

— É até bom, assim provavelmente diminuem as suspei-tas.

— Ou não.

— Pode ser, mas vamos nos apressar.

Saíram do hotel e começaram a andar pela cidade. Passe-aram de barco pelos canais, viram várias coisas que em outras circunstâncias poderiam ser bem mais interessantes. Mas ali já não era bem assim. Estavam sempre com aquela sensação de es-tar sempre sendo seguidos ou observados — e isso aumentava a cada hora. Aquela paranoia era muito desconfortável, porém tinham de dissimular aparentando ser turistas comuns. A últi-ma visita seria ao museu Anne Frank — até porque já estavam cansados pelas caminhadas e pela extenuante sensação de perse-guição.

Chegaram ao museu. Leram alguns folhetos informativos, visitaram as partes mais baixas e tudo que nelas havia. Já ficava tarde e não havia mais visitantes além deles. Resolveram olhar rapidamente a parte superior, onde efetivamente foi o esconderi-jo de Anne Frank e os outros judeus. Poderiam encontrar algo de interessante lá. Estavam diante de um quadro, por um momento distraídos e observando-o. Repentinamente, de um canto mal iluminado, surgiram dois brutamontes. Um deles falou baixo, com sotaque carregado e com voz grave atrás deles, assustando-os como se fossem gente do além:

— Professor Paschoal e professor Pedro da Universidade de Coimbra...

64

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

65

Por um momento sentiram o sangue gelar em suas veias. Obviamente, não poderia ser o espírito dos judeus mortos nem dos nazistas. Lembraram-se das perseguições que já sofriam e perceberam que a situação era bem concreta e muito mais grave.

— Sim — apressou-se a dizer o professor Paschoal. — E como sabe que somos professores?

— Deixa para lá. Coisas da profissão.

— O que desejam, afinal?

— As fotos, senhores.

— As fotos foram apagadas, senhor — disse instintiva-mente o professor Pedro.

— Sim, nós sabemos.

— E por que apagaram as fotos?

— Não fomos nós. Existe mais alguém na sua cola.

— E como sabiam que havia uma câmera que fora apaga-da?

— Esse mundo é meio maluco, professor, mas bastante previsível. O mesmo cara que trabalha por dinheiro para um também trabalha para outro.

— Você fala de gente do hotel?

— Quem sabe? Mas o que importa isso agora? O fato é que vocês têm o que queremos.

— Mas a câmera desapareceu, acho que a perdemos em algum lugar.

— Não, não perderam. Nós a confiscamos.

— Vocês nos roubaram, então?

— Não, foi só um empréstimo. Aqui está a câmera.

— Porque a levaram se sabiam que as fotos já estavam apagadas?

— Para entregar quando nos encontrássemos, o que tinha certeza de que aconteceria.

— Não entendi nada — disse o professor Paschoal. — Pri-meiramente, nos tiram a máquina vazia. Agora nos devolvem. O que querem com isso?

— É muito simples professor. Queremos que tornem a enchê-la para nós.

— Isso não tem o menor cabimento.

— O senhor não entendeu, professor. Não é um pedido, é uma ordem.

— E se eu me recusar?

— É outra resposta simples. Damos um prazo até amanhã ao meio-dia para entregarem a máquina com as fotos a um con-tato nosso na sala de reuniões do hotel. Deixem sobre a mesa e em seguida saiam da sala sem comentar nada. Caso faltem a esse compromisso, nunca chegarão ao aeroporto. Peguem a máquina e não tentem nos enganar. Um passo em falso e vocês serão dois homens mortos.

Os professores ficaram pálidos e imóveis como estátuas. Seus corpos pareciam se recusar a qualquer comando. Já estavam suando frio, mortos de medo. Subitamente, ouviram dois baru-lhos seguidos, curtos e abafados como chiados: “tchoff, tchoff ”. Imediatamente, os dois sujeitos grandalhões diante deles fizeram uma careta ao mesmo tempo em que uma mancha arredondada de sangue aparecia em suas roupas na altura do peito, caindo ful-minados logo a seguir. Serviço de profissionais. Os professores fi-

66

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

67

caram atônitos e custaram um pouco a entender o que realmente acontecia. Suas preocupações aumentaram muito. A partir dali, poderiam arranjar complicações com a polícia. De qualquer for-ma, não poderiam ficar naquele lugar. Saíram o mais depressa possível para o hotel. Depois pensariam o que fazer: iriam até a polícia fazer uma ocorrência e explicar algo do que viram e se colocar à disposição dos investigadores, aproveitando para dar queixa sobre as coisas que já lhes haviam acontecido ou pensar qual a atitude mais sensata a tomar.

Chegaram ao hotel e foram logo para seus quartos decidir o que fazer. Viram que suas coisas pareciam ter sido reviradas, embora não tão ostensivamente como antes.

Estavam profundamente pensativos a respeito de todas aquelas ocorrências e tentando desesperadamente achar uma sa-ída razoável, e naquele momento o telefone tocou e os despertou daquela letargia. Era o pessoal do hotel passando a ligação de alguém.

— Professor Paschoal?

— Sim.

— Alguém ao telefone quer lhe falar.

— Sim, pode passar a ligação.

— Professor Paschoal, o senhor e o professor Pedro de-vem arrumar as malas imediatamente, fechar a conta e ir para o aeroporto a seguir. Já existe uma condução esperando. Já con-seguimos vaga num voo antecipado para Lisboa esta noite. Não perca tempo, pois suas vidas correm risco. Caso não sigam as instruções, os acontecimentos de hoje à tarde podem se repetir e talvez não tenham a mesma sorte que tiveram.

Imediatamente reconheceu a voz do Sr. Moshê.

— O Quê...? Como...? Quem...? — Gaguejou sem conse-guir articular direito as palavras.

— Por falar nos acontecimentos, e os caras que estavam lá?

— Eles sumiram. Não farão falta a ninguém. Ninguém os procurará, pelo menos por enquanto.

— Mas e o local, a ocorrência, os registros, investigações...?

— Deixe esse assunto conosco.

— Mas...

— Acho que fui claro. Tenho certeza de que o senhor já entendeu tudo.

— Sim senhor, nós iremos já.

— E nada de comentários sobre o assunto. Nem no carro, nem no aeroporto nem no avião. Esqueçam tudo o que viram e todo o assunto sobre o qual andaram bisbilhotando por aqui. Para todos os efeitos, os senhores estavam de licença em viagem turística, caso alguém por lá pergunte. Mais uma coisa: esconda a máquina em algum lugar no hotel e deixe-a lá, pois pode conter rastreadores. O dedo duro do hotel também já foi silenciado.

— Sim, Sr. Moshê — disse para mostrar que reconhecia sua voz.

Imediatamente, eles arrumaram as malas, rapidamente desceram e fecharam a conta. O carro já os esperava. Assim que saíram, notaram que o carro era escoltado por outro que os se-guiu até o aeroporto. Embarcaram. Mesmo depois que o avião já estava em pleno voo, não conseguiam relaxar, ainda nervosos e com aquela paranoia que os perseguia, chegando até a pensar que a segurança do voo poderia estar comprometida. Não disse-ram mais nenhuma palavra até chegar a Lisboa e ir para o hotel.

68

João Roberto Vasco Gonçalves

No outro dia iriam para Coimbra conversar sobre tudo, exami-nar todo o material que transmitiram para o servidor e definir novas ações sobre o seu trabalho. Certamente, iriam à Torre do Tombo só para examinar alguns documentos, processos sobre as condenações dos cristãos novos pela inquisição e fechar logo aquele assunto antes de redirecionar os estudos para os outros itens que previamente haviam definido.

Capítulo VI

Amsterdã – Conhecendo a cidade

História

A cidade foi fundada oficialmente em 27 De Outubro de 1275. Foi elevada à condição de cidade em 1300. A partir do sé-culo XV, tornou-se o centro comercial do país e exterior.

Localização e dados sobre a cidade

A cidade se localiza entre os rios Amstel e Schinkel, na chamada baia de IJ. A grande Amsterdã inclui a área urbana e as cidades satélites. O total desta área é de 1896,97 km², sendo 1 447,36 km² constituído de terra. A densidade demogáfica é 759 habitantes/ km², segundo senso de 2009.

A maior parte da cidade é constituída por pôlderes, que são terras baixas e alagadiças protegidas por Diques. A área ur-bana inclui os municípios de Aalsmeer, Amesterdã, Amstelveen, Diemen, Haarlemmermeer, Ouder-Amstel, Uithoorn e Water-land. O tamanho da área urbana inteira atinge 896,96 km², po-rém somente 718,03 km² é terra.

Clima

É sempre moderado, devido aos ventos oeste vindos do oceano Atlântico. Os invernos são frios e a neve ocorre durante

70

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

71

alguns dias no ano. No verão, a temperatura média é de 25 °C, podendo ser maior quando ocorre uma onda de calor. O clima é tipicamente úmido e a precipitação pluviométrica não excede os 760 mm.

População e dados socioeconômicos

A população da cidade cresceu ligeiramente de 10.000 em 1500 a 30.000 por volta de 1570. Em 1700 o número já havia al-cançado 200.000. Durante os séculos XVIII e XIX e até antes da Primeira e da Segunda Guerra Mundial, o número de habitantes aumentou a não menos de 300%, alcançando 800.000 habitantes. A partir de então até a atualidade o número tem sido relativa-mente constante.

A independência da Holanda foi conquistada no século XVI, depois da Guerra dos 80 Anos contra Filipe II da Espanha. Naquela época, migraram para Amsterdã, procedentes de Por-tugal e Espanha, muitos judeus. Além desses, comerciantes de Antuépia, na Bélgica, Huguenotes da França e vários outros, per-seguidos principalmente por motivos religiosos. O capitalismo em Amsterdã está relacionado à chegada dos refugiados proce-dentes de Antuérpia e Flandres. Eles trouxeram suas empresas e principalmente conhecimentos sobre o ramo de negócios. Cerca de 150 mil refugiados flamengos chegaram não somente a Ams-terdã, mas também a outras cidades da Holanda. A tolerância religiosa contribuiu sobremaneira e só aumentou depois isso. O comécio especializado em especiarias também mudou seu cen-tro de Antuérpia para Amsterdã. A cidade, então, se tornou uma das mais ricas do mundo. De seus portos saíram muitos navios com vários destinos que envolviam, dentre outros, mar Báltico, América do Norte, África, Indonésia, Brasil, etc. A companhia das Índias Orientais e Ocidentais pertencia em sua maior parte aos comerciantes holandeses.

Amsterdã foi o principal porto comercial e o maior centro financeiro da Europa. Sua bolsa de valores foi a primeira a fun-cionar todos os dias da semana. A bolsa de Amesterdã denomi-na-se Euronext Amsterdã e faz parte da Euronext e é a bolsa mais antiga do mundo, sendo também uma das mais importantes da Europa. O seu principal índice de bolsa denomina-se AEX. Nas últimas décadas do século XIX, aconteceu a revolução industrial, impulsionando ainda mais a economia. Nessa época, muitos ca-nais e vias marítimas foram construídos para ampliar a conexão de Amsterdã com o restante da Europa, a cidade ganhou novos museus, o teatro musical da cidade e uma estação de trem.

A partir do século XVII, houve vários canais de meio-cír-culo e concêntricos que se encontravam na baía do rio IJ. Foram feitos quatro canais: 3 residenciais (Herengracht ou Canal dos Lordes; Keizersgracht ou Canal dos Imperadores; e Prinsengracht ou Canal do Príncipe) e um canal de defesa (Nassau/Stadhou-derskade). O plano ainda ligou os canais paralelos a esses novos quatro canais, como, por exemplo, o canal do bairro de Jordaan (bairro onde viveu Anne Frank, uma judia que foi perseguida pelos nazistas).

Etnia

A formação étnica atual é de: 49,7% de holandeses e 50,3% de estrangeiros. Pessoas de origem não europeia são em torno de 34,9%. 25% da população da cidade professa o islamismo, mas a religião dominante ainda é o cristianismo.

Economia

A economia hoje é superdesenvolvida, sendo Amsterdã a quinta cidade mais importante da Europa, depois de Londres, Frankfurt, Paris e Bruxelas. Muitas empresas e bancos da Holan-da têm sua sede em Amsterdã — como ABN Amro, Heineken, ING Group, Ahold, Delta Lloyd, Royal Dutch Shell e Philips.

72

João Roberto Vasco Gonçalves

Cultura

Existem em Amsterdã muitos museus famosos, tais como o Museu de Arte Moderna, o Museu Casa de Rembrandt, o Mu-seu Van Gogh, a Casa de Anne Frank, o Jardim Botânico. Exis-tem vários sexshops e muitos cafés e outros estabelecimentos com shows eróticos, visto que lá a prostituição é legalizada, bem como o consumo de drogas consideradas leves.

Educação

Amesterdã possui quatro universidades: a Universidade de Amsterdã, a Universidade Livree, a Universidade para Ciên-cias aplicadas e a Universidade Artística. Possui ainda outras ins-tituições, tais como: Academia de Arte, Instituto Internacional de História Social e outras.

Transporte

O transporte público de Amesterdã consiste em: conexões de trem para qualquer parte da Holanda e outros destinos in-ternacionais, cinco linhas de metrô, dezesseis linhas de ônibus elétricos, cinquenta e cinco linhas de ônibus urbanos, várias li-nhas de ônibus regionais; duas centrais de táxi e um trem de alta velocidade.

O Aeroporto de Schiphol está a vinte minutos do centro da cidade, tomando-se como referência o trem rápido. É o maior do país e o quinto da Europa em número de passageiros, estando após o Aeroporto de Heathrow em Londres, o de Frankfurt da Alemanha, o de Charles de Gaulle de Paris e Barajas de Madrid. É o terceiro maior da Europa em volume de cargas depois do de Paris e do de Frankfurt.

Capítulo VII

Moshê

Uma família judia viajava junto a uma caravana de merca-dores em busca de um lugar promissor para se estabelecer. Ca-ravanas como essas eram o único meio de viajar com relativa segurança, devido a haver nelas homens armados e acostumados a lutar, pois as estradas eram perigosíssimas e povoadas por ban-dos de salteadores. Quando passaram pela região montanhosa do Afeganistão, numa estreita, poeirenta e pedregosa estrada si-tuada no fundo de um vale cercado pelos despenhadeiros, foram surpreendidos por um enorme bando de homens bem constitu-ídos e fortemente armados. Os mercadores resistiram e ali tra-varam uma encarniçada luta com muitas baixas — quase total no caso dos mercadores e sua caravana. Os salteadores, após sa-quearem o que tinha algum valor, incendiaram o que restou. Um homem e sua família estavam algo atrasado em relação ao grupo porque a sua mulher estava em adiantado estado de gravidez e já sentia as dores do parto. Ela veio a dar à luz numa caverna a aproximadamente 300 metros do ponto onde a batalha era tra-vada, distância que parecia ser tremendamente aumentada pelos efeitos daquela irregular topografia. A mulher estava fraca de-mais para resistir. Pressentindo a morte que se avizinhava, pediu ao marido que lhe trouxesse o bebê e a joia com que o presente-ariam. Colocou no pescoço do filho recém-nascido, beijou-o e deu seu último suspiro.

O homem ficou desolado com a perda da esposa e sem saber como fazer para tratar de um bebê. Precisava, entre outras

74

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

75

coisas, alimentá-lo. Naquele fim de mundo, totalmente isolado e sem nenhum recurso, a morte seria certa — a menos que os céus mandassem algum socorro. Esse apareceu. Quase ao entar-decer passou outra caravana um pouco menor que parou naque-las imediações para se alimentar e pernoitar. O homem saiu da caverna com o menino embrulhado em alguns panos e dentro de uma cesta, procurando um jeito de alimentá-lo, pois chorava muito de fome, além de precisar também dos demais cuidados. Entrou na primeira cabana que encontrou suplicando por tudo que lhes fosse mais sagrado que o socorresse:

— Pelo amor de Deus, me ajudem. Minha mulher faleceu logo após dar à luz e o menino corre o risco de morrer em pouco tempo se não for alimentado e cuidado. Aqui tem os únicos ob-jetos de valor que possuo — disse enquanto mostrava um minús-culo baú de bronze contendo algumas peças de ouro.

— Eu e minha mulher somos casados há algum tempo, mas nunca tivemos filhos. Ela não tem leite, mas conhecemos uma senhora que está amamentando um filho que nasceu há al-guns dias e pode servir de ama de leite para o seu filho — foi a resposta que recebeu.

— Graças a deus, finalmente os céus ouviram as minhas preces — disse

Enquanto a mulher levou o menino à tenda vizinha para a outra alimentá-lo, o pai da criança se despediu do dono da ca-bana prometendo voltar depois, pois precisava sepultar o corpo da esposa falecida.

O solo não era muito favorável às escavações, principal-mente sem ferramentas adequadas, assim, o pobre homem jun-tou quanto pôde encontrar de escolhos e cobriu com eles o corpo da falecida. Quando ajoelhou-se para fazer suas orações ao lado da humilde sepultura e curvou-se até colocar a testa sobre ela, foi

ferroado no pescoço, próximo à jugular, por um escorpião muito comum por ali. O veneno agiu rápido e foi suficiente para abater seu corpo já enfraquecido e levá-lo à morte em poucos minutos.

Até a manhã seguinte o homem não apareceu, e a carava-na já estava preparada para a partida. Pensaram que tinha aban-donado o filho ao encargo deles por não ter condições de cuidar dele. A mulher queria a todo o custo levar o bebê consigo, embo-ra o marido não aprovasse a ideia. Achava que por não saberem a origem daquela criança, qual sua raça e os demais fatos, pode-riam ter problema mais tarde. Além disso, ele era supersticioso e temia que lhe trouxesse má sorte.

— Ora ele é só um bebê, não vai fazer mal a ninguém.

— Mas pode vir a trazer-nos problemas, deixemo-lo aí.

— Isso é desumano. Abandoná-lo à própria sorte é o mes-mo que matá-lo.

— Então o levaremos, mas apenas provisoriamente, até arranjarmos uma solução melhor.

Acabaram vendendo todas as peças de ouro para custear as despesas, até o pequeno baú. Sobrava a joia do bebê. Essa eles nunca conseguiram vender, apesar de terem tentado várias ve-zes. Em algumas, o comprador se interessava, mas, quando via que era uma estrela de seis pontas perdia o interesse. Quando perguntavam a razão, simplesmente diziam que preferiam uma de cinco. Na única vez que conseguiram, não passou muito tem-po e o mesmo comprador fez nova proposta para adquirir outro bem e deu a joia como parte do pagamento. Assim, a joia acabou voltando às mãos deles, o que de certa forma potencializava a superstição.

O menino cresceu e foi educado na fé muçulmana, apren-deu a ler e escrever em árabe, língua e religião de sua atual famí-

76

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

77

lia — a única que conheceu. Aprendeu também o ofício de ouri-ves e já trabalhava bem no ramo, produzindo joias de alto valor artístico e material. Anos mais tarde, seu pai adotivo faleceu, e ele sofreu bastante, como também sua mãe adotiva, de quem cui-dou com carinho até seus últimos dias, quando morreu em seus braços. Nos seus últimos lampejos de vida, revelou toda a sua história e, repetindo o gesto da mãe biológica, mandou que se aproximasse, colocou-lhe a joia no pescoço e informando que ele viera com ela no pescoço quando ainda era um recém-nascido. A seguir, pronunciou o seu nome, Nassif, chamou-o de “Meu filho do coração”, beijo-o com ternura e faleceu. Ele ficou desolado, parecia ter faltado o chão sob os seus pés enquanto o firmamen-to desabava sobre sua cabeça. Depois de providenciar o sepulta-mento, vendeu tudo que tinha e saiu pelo mundo sem destino definido. Pouco tempo depois, alistou-se na legião estrangeira e tornou-se um bravo soldado, tendo participado de muitas mis-sões. Apesar dos afazeres e constantes movimentações, sentia um enorme vazio em sua alma. Parecia que lhe faltava algo. Isso era cada vez mais forte, parecendo-lhe que perdera a razão de viver. Amargurado, deu baixa da legião e saiu pelo mundo.

Um dia, casualmente, encontrou um ancião tido como sábio pelos que o conheciam — sendo também vidente e bom conselheiro. Possuía um longo cabelo e uma espessa e lisa bar-ba, ambos brancos como a neve. Era judeu, segundo soube, mas falava também a sua língua. Visitou-o várias vezes depois, afei-çoou-se a ele, que lhe transmitia uma sensação de paz de espírito e emanava sabedoria. Com o tempo, passou a viver com o seu povo apesar de não ser judeu — o povo o aceitou por influência do ancião, que os informou que ele poderia ajudar muito por possuir treinamento militar e, caso concordasse, poderia treinar todo o pessoal para melhorar suas condições de defesa e fazê-los cruzar a fronteira e disputar o seu tão sonhado pedaço de chão (a Terra Santa, como o chamavam).

Com alguma relutância ele aceitou a dificílima tarefa. Era um enorme desafio. A ansiedade continuava e ele sempre conver-sava com o ancião, que lhe confortava. Certo dia, estando em sua cabana a conversar com o ancião, este notou uma joia pendurada no seu pescoço por um cordão de ouro e viu que era uma estrela de ouro de seis pontas. Como Nassif tinha muita confiança no ancião (seu único confidente), contou sua história e como a joia o acompanhava desde o nascimento. Tirou-a do pescoço e en-tregou-a ao ancião, que a examinou bastante, olhou um detalhe no verso usando um monóculo e disse com total tranquilidade:

— Moshê, esse é o seu nome verdadeiro. É um nome ju-deu, assim como você.

Aquilo foi como um enorme choque elétrico. Nassif estava atônito e não conseguia pensar nem falar nada. Sua mente gira-va num turbilhão de ideias e sentimentos confusos como o caos pré-criação. Logo, o ancião reuniu o conselho e informou que o seu hóspede era judeu de nascimento, precisava ser instruído na sua religião e cultura de um modo geral e que certamente não aparecera ali por um mero acaso, mas para cumprir uma missão. Ordenou que começassem os preparativos para a inclusão do ra-paz tão logo consiguissem fazê-lo anuir a ideia da sua conversão e dedicação à causa. Voltou a falar com Nassif e disse que ele tinha uma grande missão a cumprir.

— Moshê, você tem uma grande missão a cumprir.

— Oh, meu mestre! Temo não poder alimentar suas es-peranças. A tarefa que esperam de mim é quase impossível. Dar treinamento militar a quem nunca pegou em armas e colocá-los para lutar com soldados experientes é o mesmo que enviá-los para a morte. Seria mais seguro contratarmos mercenários como os da legião estrangeira.

78

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

79

— Todos os nossos foram preparados desde a infância para doar a vida pela causa, se for sumamente necessário. Por outro lado, os mercenários certamente se voltarão contra nós ao descobrirem quem somos. Após nos expropriarem, trucidarão a todos.

— Sim, mestre. Se preferem assim...

— Nós preferimos, porém não é essa a missão a que me refiro.

— Então qual é a missão, mestre?

— Terás de descobrir sozinho — disse, entregando-lhe um pequeno livro.

Nassif pegou o livro e o folheou, todavia não conseguiu entender nada do que estava escrito por ser hebraico. Ateve-se apenas aos desenhos. Logo na contracapa viu o desenho de uma estrela igual à sua joia com uma inscrição. Instintivamente, exa-minou muito atentamente e viu que no verso havia também uma inscrição igual à que constava no livro. lembrou-se de que o an-cião, ao ler, pronunciara “Moshê” e dissera que era o seu nome. Finalmente, então, o adotou. Depois, voltou-se para o ancião e disse:

— Mestre, não consigo entender nada do que está escrito aqui.

— Não por muito tempo. Logo aprenderá, afinal é um dos nossos.

— Mas, mestre, o pessoal do clã não me aceitará em seu meio.

— Esteja certo de que sim, assim que identificarem quem você é e que tem uma missão.

— E o que tenho de fazer?

— Primeiramente, formalizar sua inclusão no grupo. Isso inclui fazer a aliança e todos os outros votos, os preceitos da lei judaica. Em seguida, você será instruído, aprendendo, além da língua, todas as leis e tradições. Mais à frente, vem a sagração. Até lá é um longo caminho.

A aliança se referia à circuncisão e aos rituais de purifi-cação, conforme ficou sabendo e acabou por aceitar. Após esse doloroso procedimento, na primeira semana depois do desapa-recimento completo das dores da cirurgia, foram feitas as oferen-das num altar e a imposição das mãos dos conselheiros, que efe-tivamente formalizava sua entrada na comunidade judaica. Logo no dia subsequente começou o seu longo período de anos e mais anos de instrução. Era uma via de mão dupla, pois, enquanto lhe ensinavam o judaísmo, ele os ensinava o oficio das armas e a arte da guerra.

Os anos se passaram, e Moshê estava no último estágio do seu desenvolvimento. Afinal, chegou o momento da sua sagração — e a cerimônia foi feita em grande estilo. Na manhã seguinte, Moshê foi chamado às pressas à tenda do ancião, seu mestre, que estava nas últimas e desejava falar-lhe pela última vez. Fez um sinal, pedindo que se aproximasse.

— Moshê, essa é a última tarefa da minha missão aqui nesse mundo. Nos últimos anos tenho lhe passado todos os co-nhecimentos que adquiri ao longo da vida e o enriquecido com os conselhos e toda a sabedoria que os livros não podem dar. Aproxime-se mais.

Moshê ajoelhou-se ao lado do leito. O sábio ancião reti-rou o medalhão que estava no seu pescoço — tratava-se de uma estrela de doze pontas com uma pedra amarela no centro — e o colocou no pescoço de Moshê, após o que disse na presença de todos os membros do conselho:

80

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

81

— Doravante serás meu sucessor. Aqui termina a minha missão e começa a sua.

Entregou-lhe um pequeno tubo fechado nas extremidades com uma tampa e outros segmentos de tubo de diâmetro ligeira-mente menor em seu interior. A seguir, colocou suas mãos pela última vez sobre a cabeça do seu seguidor, como fizera tantas vezes, dando sua última e especial bênção. Depois disso, deu seu último suspiro, fechou os olhos e descansou em paz. Ninguém conseguiu reter as lágrimas dos olhos. Retiraram-se para provi-denciar as cerimônias fúnebres e sepultamento. Enquanto isso, Moshê, ao lado do corpo, chorou copiosamente. Lembrou-se de cada momento desde o seu primeiro encontro com ele e princi-palmente dos momentos em que precediam as preciosas aulas, quando o sábio impunha suas mãos sobre a sua cabeça e que eram como fluidos de energia transmitidos a ele e que tinham um efeito especial como que a abrirem sua mente. Lembrou-se de que tinha uma missão que ainda não sabia exatamente qual era e que poderia aparecer no momento exato. O chamado dos seus então compatriotas para a cerimônia final e o sepultamento o retirou daqueles devaneios. Findo o sepultamento, todos pas-saram boa parte da noite em orações, depois se recolheram. No dia seguinte, o conselho se reuniu e finalmente decidiu que era a hora de começar a luta pelos objetivos que há anos vislumbra-vam e declararam-se preparados.

— Senhores, gostaria que refletissem melhor sobre esse empreendimento.

— Oh, irmão, compreendemos o seu medo disfarçado de razão, mas lembramos que você tem uma missão a cumprir.

— Não gostaria que a minha missão fosse conduzi-los à morte.

— Não tememos doar a vida pela causa; e você também, ao se tornar um dos nossos, colocou sua espada a serviço dela.

— O fio da espada esconde duas verdades desconcertan-tes: a vitória pela espada é efêmera enquanto que a derrota por ela é definitiva.

— Não se ganha uma guerra com palavras. Se prezas tanto tua vida e queres preservá-la em detrimento da causa, vai em-bora que iremos sozinhos, mas nos envergonharemos de ti para sempre por teres abjurado a fé e recusado a missão.

— Não, irmão. A missão é claramente suicida e eu sou contra, mas, se o conselho decidir pela luta, morreremos juntos.

Moshê, ao votar contra, explicou detalhadamente as cau-sas e mostrou por que a missão era claramente suicida, mas foi voto vencido e teve de obedecer à ordem e se colocar à frente do pelotão daquele relativamente pequeno e mau preparado gru-po de soldados. Exceto as mulheres anciãs e as crianças, todos marcharam contra os inimigos que guarneciam a fronteira. Esses eram muito mais numerosos, possuíam armamento vastamente superior e eram soldados mais hábeis, portanto impuseram-lhes uma desastrosa derrota com enormes baixas. Quando os rema-nescentes bateram em retirada, foram surpreendidos por outro pelotão que vinha pela sua retaguarda. Morreram quase todos, sobrando apenas Moshê e mais três que não foram encontrados pelos inimigos. Quando a refrega terminou e cessou todo aquele fragor, reinou um silêncio absoluto na trincheira onde estavam. Contudo, não era um silêncio calmo e acolhedor, muito pelo contrário, era sufocante e ameaçador e tinha o amargo sabor da derrota. Quando os soldados inimigos se foram, Começou o penoso caminho de volta. Feridos, famintos e exaustos, não resistiram e acabaram morrendo pelo caminho, exceto Moshê, que teve de voltar sozinho e cumprir a dolorosa missão de dar a

82

João Roberto Vasco Gonçalves

cruenta notícia da morte dos esposos e filhos das famílias que os esperavam.

Não foi bem recebido. Acusaram-no de tê-los conduzido para a morte, por mais que ele tentasse explicar que fora voto vencido e que eles haviam insistido em ir. Declararam-no mal-dito e o mandaram-no ir embora. Desgostoso, Moshê saiu dali pensando como poderia fazer para ajudá-los de longe e sem o seu conhecimento. Saiu andando pelas estradas. Na primeira parada para descansar, casualmente colocou a mão no bolso da jaqueta e encontrou o pequeno tubo que o sábio lhe passara no leito de morte. Olhando com mais cuidado, verificou que dentro havia um papel escrito: “Procure o rabino Ariel. Amsterdã, Holanda”. Lembrou-se das palavras do sábio e percebeu que ali começaria a sua missão. Assim, começou a sua peregrinação até chegar lá.

Capítulo VIII

Pedro encontra Deborah

Coimbra

Era uma tarde fresca e agradável e Pedro estava senta-do sozinho num café pensando nos acontecimentos dos últi-mos dias. Logo seus pensamentos evoluíram para sua própria história de vida como que num ataque de nostalgia. Ia fazer 62 anos, porém continuava solteiro e sozinho. Sua vida se resumia ao trabalho na universidade, no qual era notoriamente dedicado — talvez porque preenchesse o vazio do seu interior. Desde que passara pela decepção de não conseguir se casar com sua prima de criação devido à rejeição da família, remoera aquela mágoa e não conseguira mais se interessar por ninguém — talvez pelo medo de sofrer mais. Por um momento se lembrou de Debo-rah. Como era linda! Como gostava de acariciar aqueles cachos de cabelos ruivos e fitar aqueles olhinhos azulados quase infan-tis! Como a amava! Por que tudo não pudera ser diferente? Que mundo cruel.

Suas horas vagas eram as mais penosas, pois sentia terri-velmente o peso da solidão. Repentinamente,foi despertado da-queles devaneios por uma inconfundível voz que há muito não ouvia.

— Pedro

— Ahm!

84

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

85

Foi como se tivesse tomado um forte choque elétrico den-tro do peito. Era ela.

— Deborah! Que feliz coincidência. Pensava em você ain-da há pouco, na nossa história, em nossas vidas...

— Que ótimo. Vejo que não me esqueceu, apesar de tudo.

— Oh! Você é inesquecível. Por outro lado nem você nem eu temos culpa de nada. Talvez tenha sido o próprio destino que tenha nos afastado.

— Curiosamente, foi ele quem nos aproximou agora.

— Ótimo. Mas fale-me de você.

— Casei-me com alguém que as famílias escolheram. Pre-visivelmente, não fui feliz nem consegui fazer a felicidade dele. Não tínhamos nada a ver. Em menos de cinco anos nos separa-mos de comum acordo. Ele refez sua vida, eu continuo solteira.

— Oh! Sinto muito, desculpe-me por ter perguntado.

— Não tem problema. Mas fale-me agora de você.

— Não há muito que você não saiba. Pelo menos na vida afetiva, parece que o meu tempo estagnou. Desde a última vez que nos vimos tenho me afogado em trabalho para esquecer as agruras da vida, tenho me fechado dentro de mim mesmo e não consegui mais me interessar por ninguém, apesar das inúmeras oportunidades que apareceram.

— Também me desculpe por ter perguntado, Pedro. Vejo que também sofreu demais.

— Você não imagina o quanto.

— O mundo não foi justo conosco.

— Na verdade, nem foi o mundo, mas as tradições huma-nas. Mas, a propósito, e a família?

— Não sei. Perdi o contato, pois me tornei impura por quebrar as tradições. Não tive filhos e me separei, contrariamen-te ao que esperavam. Meus pais já faleceram.

— E agora, o que faz na vida?

— Sou pedagoga. Trabalho como orientadora educacional numa escola. Escrevo artigos para as colunas de dois jornais e uma revista. Faço também alguns trabalhos intelectuais quando aparecem.

— Ótimo. Mas vejo que também se afoga em trabalho.

— Talvez. É o meu jeito de burlar a solidão.

— Também mora sozinha?

— Sim. Nunca tive mais ninguém. Estou morando num pequeno apartamento não muito longe daqui. E você, onde mora?

— Também moro só num pequeno apartamento aqui por perto.

Tomaram um café juntos e conversaram bastante. Talvez não o bastante para o que ela pretendia saber.

— Pedro, gostaria que viesse conhecer o meu apartamen-to.

— Agora? Já está ficando um pouco tarde. Não seria pro-blemático pra você?

— Que nada, somos maiores de idade, livres e desimpedi-dos. E depois, ninguém tem nada com isso. Posso receber amigos quando quiser. Vamos?

— Se é assim, vamos.

Chegaram ao apartamento de Deborah. Era pequeno e modesto, mas ajeitadinho. Tinha a mobília suficiente para seu

86

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

87

estilo de vida e tinha um aspecto até acolhedor. Pedro era um tanto relapso para essas coisas e não percebeu que era uma mo-bília padrão e que o apartamento fora alugado mobiliado. Prin-cipalmente, não notou que ela morava ali a muito pouco tempo, o que seria perceptível se observasse o tratamento do pessoal dali com ela.

— Pedro o que faz exatamente na universidade?

— Trabalho no departamento de história. Sou professor adjunto da equipe do professor Paschoal.

— Fale-me sobre o desenvolvimento do seu trabalho. O que tem feito ultimamente?

— Agora, por exemplo, estamos trabalhando num tema proposto pelo departamento intitulado “O cristianismo e o de-senvolvimento socioeconômico do novo mundo”.

— Ótimo. Parece muito interessante. Como desenvolvem o seu trabalho?

— O trabalho é centrado em pesquisas, estudo de livros e documentos históricos e, às vezes, até viajamos para outras cida-des no intuito de pesquisar mais sobre algo.

— Ah, que interessante! Isso também deve ser ótimo para quebrar a rotina. Tem viajado muito ultimamente?

— Nem tanto. A última viagem que fizemos foi para Ams-terdã para ver se encontrávamos algo sobre os cristãos novos, que na verdade eram judeus que se recusaram a aceitar a conver-são ao cristianismo ou à sua prática e a abdicar de seus costumes de origem. Devido a isso, foram expulsos de Portugal ou fugiram da perseguição da Inquisição. Além de tolerante às religiões, a Holanda foi o berço das companhias das índias orientais e oci-dentais, que monopolizaram o comércio do novo mundo.

— Muito interessante. E encontraram algo significativo?

Nesse ponto Pedro se lembrou do sigilo exigido pelo se-nhor Moshê e notou que já havia falado demais. Tinha de dar um basta naquela conversa e conversar sobre amenidades.

— Não achamos nada mesmo. O pessoal lá que poderia ajudar é muito reservado e parece não gostar mesmo de falar sobre o assunto. Curiosamente, as bibliotecas públicas de lá tam-bém não acrescentam nada. Parece que tentaram apagar um pe-daço da história.

Deborah também percebeu certa relutância e medição de palavras por parte de Pedro. Era conveniente não forçá-lo mui-to para que não fugisse. Resolveu usar outras armas: a sedução pelos seus encantos femininos, buscando resgatar, talvez, aquela paixão interrompida pelo destino. Pedro era meio tímido, mas era questão de quebrar o gelo.

Jantaram juntos, tomaram um chá e conversaram bastan-te. Embora com certa dificuldade e até certa estranheza que o tempo acabou produzindo, depois de algumas taças de vinho acabaram se reaproximando e entraram em clima de romance. Amanheceram juntos na mesma cama em que tiveram uma tór-rida noite de amor. Pedro se levantou muito cedo como sempre, vestiu-se e despediu-se. Ela o fez prometer que não se perderiam de vista, pois queria reaproximar-se dele.

Pedro deu uma passada rápida no seu apartamento para pegar suas coisas e rumar para o trabalho. No caminho, ficou pensando como o tempo muda as coisas. Aquela antiga paixão já não existia, não sabia definir ao certo se fora o tempo que corroera a suavidade da juventude de ambos e a transformara numa áspera superfície ou se a paixão com o tempo realmente esmorece. Talvez a maturidade roubasse aquela espontaneidade da juventude. Ela ainda era muito atraente, mas não tinha mais

88

João Roberto Vasco Gonçalves

Capítulo IX

Deborah Bilischt

Jerusalém

— Deborah, você já fez a lição de casa?

— Sim, mamãe, já terminei.

— Agora vá escovar os dentes e ir para a cama. Amanhã você tem aula cedo.

— Sim, mamãe.

Era mais um fim de dia rotineiro em família. Deborah ti-nha 8 anos e era filha caçula da família. Seu nome hebraico rela-ciona-se à abelha, escolhido proposital e cuidadosamente como uma expectativa de seu caráter: laboriosa como as abelhas, doce como o mel, mas com um ferrão, pronto a protegê-la, se ultraja-da. Seus pais e parentes mais próximos moravam em Jerusalém, onde tinham uma vida simples, mas confortável. Viviam do co-mércio.

No início de junho seus familiares e vizinhos que haviam chegado de viagem depois de dois meses de ausência os convida-ram para um jantar em casa onde apresentariam o novo mem-bro da família legalmente adotado e já em vias de perfilhação. Até então, ninguém sabia nem questionava a sua procedência e pensavam que certamente vinha de família judia. Kepha, segui-do do sobrenome da família Bilischt, foi o nome que lhe deram. Depois do jantar, a família se reuniu para conversar. Os homens

aquela doçura quase pueril, aquela ingenuidade da infância que enrubescia com os seus gracejos nem aquela singeleza de menina moça ávida por seus beijos e esperançosa pela proposta de ca-samento que receberia. Não, não era a mesma coisa. Havia algo de estranho, de pretensioso. Suas respostas às perguntas ou ré-plicas aos comentários sempre vinham acompanhadas de novas perguntas que suscitavam respostas às vezes desconcertantes ou incômodas. Parecia que sutilmente sempre tentava arrancar mais informações sobre algo que não sabia exatamente o que era. Não, não era uma conversa informal ou espontânea, tinha ares de um incômodo interrogatório. Não se sentia à vontade para encontrá-la outra vez. Ela agora o assustava. Talvez fosse a paranoia adqui-rida nos últimos dias, potencializada pela exigência de sigilo do Senhor Moshê. Não conseguia confiar mais em ninguém. Pare-cia que estava sempre sendo vigiado.

90

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

91

conversavam sobre negócios, naturalmente, as mulheres sobre os assuntos de casa e os jovens começaram a brincar. Kepha já es-tava na adolescência e teve um acanhamento inicial, porém, va-garosamente, acabou quebrando o gelo e tudo transcorreu nor-malmente. Não disse muito a respeito de sua história, conforme seus pais adotivos haviam recomendado, criou algumas histórias e conversou sobre brincadeiras e outras amenidades.

Os dias se passaram, chegou a época do período letivo, mas ele só viria a matricular-se no semestre seguinte. Enquanto isso, estudava diariamente em casa, onde aprendia a ler e escre-ver em hebraico. Ajudava em casa e algumas vezes ao pai adotivo nos negócios. Deborah ia para a escola todos os dias. Ao entarde-cer, brincava um pouco e fazia a lição. Desde menina tinha certa curiosidade em saber mais sobre Kepha, seu primo adotivo, e sempre tentava aproximar-se para tentar conversar e brincar um pouco, apesar dos quatro anos de diferença de idade. Isso deter-minou uma afeição especial entre eles.

No ano letivo seguinte, Kepha entrou para a escola. Iam juntos ela, seus irmãos e primos, incluindo Kepha, o primo ado-tivo.

Kepha, naturalmente, despertava a atenção das moças, com o que Deborah se sentia desconfortável — talvez, incons-cientemente, sentisse ciúmes, pois era meio possessiva e queria a atenção do primo para ela. Piorando a situação, as outras me-ninas eram mais velhas que ela, o que ressaltava a sua condição de menina que muito a incomodava. Assim, Deborah fazia um enorme esforço para se controlar e não voar em cima delas dis-tribuindo-lhes tapas, esforçando-se também para que não notas-sem sua insatisfação. Essa autorrepressão a mortificava demais e aumentava a cada dia a vontade obsessiva de tê-lo só pra ela. Inventava motivos para estar junto dele sem se mostrar muito

ostensiva. Queria ajudá-lo com coisas da escola e que ele de al-guma forma a ajudasse.

Os anos se passaram, Deborah fizera treze anos. Era uma linda moça de cabelos ruivos e cacheados sempre bem cuidados, sedosos e sutilmente perfumados. Seu corpo tomou formas de moça e era bem constituído. Não demorou muito para aquela proximidade que tinham se transformar em algo mais e eles aca-barem por namorar escondidos da família. Foi uma paixão avas-saladora. A família começou a notar aquela atenção e proximi-dade excessiva fazendo de tudo para orientá-la e fazer com que se resguardasse o máximo possível. Dois anos depois, acabaram percebendo o namoro e ficaram meio apreensivos, pois, se aquilo fosse sério e evoluísse para casamento, poderiam ter de pesqui-sar sua real procedência, o que traria certo desconforto para as famílias — tudo se complicaria definitivamente se ele não fosse um judeu de nascimento. Enfim, resolveram esperar mais um pouco para ver como a situação progrediria, pois possivelmente o namoro acabaria espontaneamente e tudo ficaria bem.

Deborah estava apaixonada e feliz com o namoro agora não mais escondido e pela certeza de ser correspondida à altu-ra. Esperava ansiosamente pela proposta de casamento que tinha a certeza de que logo viria. O namoro continuava de vento em popa e finalmente o dia tão esperado chegou. Kepha lhe pediu em casamento, ela aceitou e planejaram a ocasião de comunicar às famílias a notícia para o início dos trâmites recomendados pelas tradições. Começou, porém, o seu inferno astral.

Numa noite de reunião entre as duas famílias, comunica-ram a intenção de casarem-se e pediram o consentimento para ficarem noivos. Os pais de Deborah pediram um mês para dar a resposta oficial antes de declará-los noivos. Após pesquisarem profundamente, descobriram que Kepha não era judeu de nasci-mento e que esse nem mesmo era o seu nome de origem. Possi-

92

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

93

velmente, seria originário até mesmo de uma nação inimiga ou possuía uma religião diferente — possivelmente, ele nem seria temente a um só Deus. Na verdade, fora perfilhado e recebera um nome judeu. Apesar de ter sido criado desde menino nas tradições judaicas, não era judeu por origem, portanto impuro e, se Deborah se casasse com ele, se tornaria impura, bem como os filhos oriundos desse casamento. Assim, nem se deram ao tra-balho de marcar nova reunião familiar, até mesmo para evitar constrangimentos desnecessários. Simplesmente comunicaram à família de Kepha, que lhe transmitiu o recado: sua proposta de noivado e casamento fora recusada pela família de Deborah, de-vido à sua condição de não judeu por origem. Pediram-lhe des-culpas e compreensão. Kepha ficou muito decepcionado e sofreu muito o peso da rejeição e dos preconceitos. Começou a planejar um jeito de mudar de cidade e até de país e tentar esquecer aque-le revés.

Como Deborah já estava na idade de conseguir um noi-vo e para evitar novos acontecimentos como aquele, seus pais se apressaram em arranjar um bom partido para a moça. Teria de ser um homem judeu de nascimento, educado, seguidor das tradições, de boa família e, se possível, rico. Depois de procu-rar bastante e pesquisar previamente, finalmente encontraram o marido que consideravam ideal. Só não perguntaram o que ela achava. Simplesmente, comunicaram a ela que lhe tinham en-contrado um noivo e que ele seria apresentado num jantar com as duas famílias, o que logo aconteceu. Deborah detestou a ideia e mais ainda o noivo escolhido, que, na verdade, lhe causava re-pulsa. De fato, ele era tudo que ela mais detestava e exatamente o contrário do que queria para si. Não pôde, todavia, contrariar a ideia, já que por ali as coisas eram daquela forma. As pessoas não se casavam. Casavam-se as famílias, como sempre faziam ques-tão de frisar. Ninguém tinha a oportunidade de escolher com quem passaria o resto da vida.

Finalmente, o dia do casamento chegou e foi uma grande festa que a família fez questão de dar para impressionar a paren-tela e a vizinhança. Todos estavam felizes, exceto Deborah. Para ela, o evento era mais triste que um funeral. Sentia-se sozinha, abandonada à própria sorte e violada em sua vontade. Ali come-çara o seu martírio. Seu marido logo percebeu que ela não era feliz e tampouco fazia a sua felicidade. Ele também havia sofrido um revés parecido com o dela e também não se sentia nem um pouco confortável. Viviam uma relação de obrigações conjugais. Não se recriminavam, pois conheciam a situação e a história pre-gressa um do outro e no fundo sabiam desde o princípio que aquilo não tinha a menor chance de dar certo. Para complicar mais a situação, não conseguiram os tão esperados filhos, con-forme lhes impunham intransigentemente as famílias. Eram tre-mendamente cobrados por isso e até repreendidos porque acha-vam que eles os estavam evitando — um pecado na sua tradição.

Eles até viveram bem, aproximados pela compreensão de seus sofrimentos. Mas nunca foi amor, apenas um grande senti-mento de piedade mútua que cada dia só os deixava mais infe-lizes. Assim, depois de cinco anos de convivência insípida, re-solveram de comum acordo separar-se à revelia da família, sem o menor constrangimento ou sentimento de culpa. Na verdade, seria até mesmo um ato inconsciente de vingança pelo desres-peito aos seus sentimentos, suas vontades e principalmente por terem roubado deles tanto tempo de suas vidas, trocando cinco anos de felicidades por cinco anos de tormentos. Concretizada a separação, as famílias os rejeitaram como impuros por terem quebrado a tradição e só os reabilitariam se pedissem perdão e aceitassem reatar — ou pelo menos se divorciarem legalmente e se casassem novamente dentro das tradições. Nenhum dos dois quis saber. Preferiram abdicar de sua tradição, família, herança e tudo, tal foi o trauma que sofreram e a mágoa que carregariam para o resto de suas vidas.

94

João Roberto Vasco Gonçalves

Capítulo X

Lisboa

Ao chegarem ao aeroporto de Lisboa, tiveram um desa-gradável contratempo. Suas malas haviam sumido. Deram quei-xa na companhia aérea. Enquanto isso, foram para o hotel so-mente com a roupa do corpo. No dia seguinte, avisaram que as malas haviam sido encontradas e as devolveram. Ficaram mais cautelosos devido ao sumiço das malas e das coisas remexidas, porém não perceberam os rastreadores camuflados em roupas. Precisavam ir a Coimbra conversar sobre tudo, examinar todo o material que haviam transmitido para o servidor e definir no-vas ações sobre o seu trabalho. E assim o fizeram, pois além de necessário era prudente. Caso ainda estivessem sendo seguidos — o que provavelmente aconteceria —, seria ótimo criar a ideia de que teriam ido direto para Coimbra, onde trabalhavam e mo-ravam. Isso aliviaria as suspeitas sobre eles e atestaria o cum-primento da promessa de que voltariam à vida de antes e não tocariam mais naquele assunto.

Acessaram as informações e analisaram profundamente o seu conteúdo. Aqueles últimos versos: “Um tesouro e seu guar-dião; Oculto em novo mundo; Sob o manto de um novo cristão” eram realmente intrigantes. Um novo cristão era fácil. Mas o que estaria fazendo num novo mundo? Quem seria? Que tesouro era esse que tanto protegiam? Por que não um seguro banco euro-peu? Será que esse tesouro era muito mais que valores materiais? Por que não estaria seguro na Europa? Será que esse pretenso tesouro estaria fragmentado e espalhado por lugares diferentes do mundo? Como algo tão importante e oculto que precisava ser

Deborah mudou muito. Saiu do país, conseguiu uma bol-sa de estudos no exterior e aproveitou para ficar por lá depois de formada. Arranjou um emprego suficiente para manter-se. Ul-timamente, movida apenas pelo bom dinheiro oferecido, traba-lhava como agente secreta de uma organização judia que sempre lhe oferecia muitos trabalhos, que ela executava sempre à altura, conforme esperado. As agruras da vida haviam deixado marcas fortes na personalidade e petrificado seus sentimentos, que sem-pre ficavam muito atrás dos seus objetivos.

96

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

97

resguardado de interesses escusos dos outros poderia ter saído da Europa para outras partes do mundo com a necessária segu-rança? Quem ou quais pessoas teriam condições para providen-ciar essa remoção em segurança sem levantar suspeitas? Sim, era realmente muito intrigante. Por mais medo que tivessem, não podiam simplesmente deixar o assunto como estava e fugirem da luta, principalmente quando pelo desenrolar dos fatos pare-cia cada vez mais importante para a história — e eles eram pes-quisadores profissionais dessa matéria. Sentiam-se responsáveis pelo descobrimento de fatos ainda desconhecidos e seu registro. Aquilo parecia ser importante demais. Não poderiam fugir. Cer-tamente deveriam ir à Torre do Tombo para examinar alguns documentos, tais como processos sobre as condenações dos cristãos novos pela Inquisição, relações com as colônias ultra-marinas e outros. Quem sabe assim poderiam desvendar aquele mistério e fechar logo aquele assunto antes de redirecionar os estudos para os outros itens que previamente haviam definido? Ledo engano. Aquele era o tipo de assunto em que, quanto mais se envolve, mais se aprofunda. Não sabiam que aquilo poderia demorar muito mais do que imaginavam e no fim nem terem algo que se pudesse publicar e no fim voltar a estaca zero no tra-balho. Fora os gastos excessivos que certamente a universidade não teria como cobrir e as complicações que poderiam ter além das que já haviam encontrado.

Dois dias depois, retornaram a Lisboa. No dia seguinte, saíram do hotel cedo, rumo à Torre do Tombo, lugar onde a in-dicação da inscrição já decifrada os levava a ir. Não perceberam que foram seguidos. Pelo primeiro contato que tiveram com o ambiente, perceberam que a tarefa seria árdua e bastante demo-rada. Decidiram, então alugar uma quitinete e se mudaram para lá. Isso, é claro, deve ter despertado muito mais a desconfiança dos seus seguidores e denunciado a sua clara intenção de conti-nuar as pesquisas. Como já previam isso, já haviam contratado

uma agente da confiança deles e uma ligação afetiva com um de-les — a agente Deborah. Essa percebera claramente que depois da primeira investida que fizera teria de trabalhar muito mais para recuperar a confiança dele e apagar as suspeitas que levan-tara. Talvez tivesse ido rápido demais.

Munidos de câmeras ocultas, pesquisaram durante 2 me-ses inteiros. Encontraram muitas coisas interessantes, contudo nada que ainda não fosse do seu domínio. Apenas detalhava um pouco mais o que já sabiam. Nada era relacionado especi-ficamente ao que procuravam. Já estavam praticamente a ponto de finalizar seu trabalho por ali e voltar a Coimbra quando o professor Pedro, ao se movimentar próximo a uma estante que aparentemente não tinha nenhuma relação com o assunto que focavam, tropeçou em algo e quase caiu. Era incrível e parecia uma brincadeira de mau gosto, pois sempre há alguém que tal-vez de propósito coloca um ressalto ou algo no chão para ver alguém tropeçar. Atendendo a um comando imperativo de seu cérebro em prol do equilíbrio do corpo que estava em perigo, tentou segurar-se em algo à sua volta e acidentalmente derrubou alguns livros. Instintivamente os folheou. Nada de interessante. No entanto, num dos livros que também a princípio não parecia muito importante, havia um desenho intrigante na capa. Foto-grafou-o com uma câmera oculta muito disfarçadamente. Em casa, depois de o estudarem detalhadamente, descobriram que na verdade não era um simples desenho, mas uma inscrição em alfabeto hebraico, que transliterada seria: mish•néh hat•toh•ráh e que traduzido para nós poderia ser representada por uma única palavra: “Deuteronômio”.

Continuaram suas pesquisas e fotografavam tudo o que podiam, enviando as imagens a cada dia para Coimbra pelos computadores com as devidas senhas pensando que estavam to-talmente seguros. Também nisso estavam enganados. As trans-missões foram captadas, suas conversas também. A ordem era

98

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

99

segui-los sem molestá-los para não levantar suspeitas, afinal, precisavam deles. Ademais, era prudente não fazer alarde para não despertar a curiosidade de muitos outros.

Os pesquisadores já estavam no caminho, mas só muito no começo e tinham consciência disso. Na verdade, tinham mui-to pouco. Era somente a pontinha do fio da meada. Precisavam puxá-lo. A sensação de que estavam sendo seguidos continuava cada vez mais forte. Poderia ser paranoia deles e não passar de puro cansaço. Entretanto, realmente um pouco mais tarde tive-ram a confirmação: descobriram quase por acaso um pequeno objeto que era supostamente um rastreador. Decidiram fazer uma procura criteriosa e descobriram vários nas malas, nos cal-çados, nos casacos, nas calças. Ficaram alarmados com tantos rastreadores e livraram-se de todos. Fizeram um pequeno pa-cote e despacharam pelo correio endereçado para os coordena-dores de sua equipe em Coimbra com a recomendação expressa de que os incinerassem assim que os recebessem. Apesar disso, não ficaram livres por muito tempo. Assim que o malote foi en-caminhado para Coimbra, pensaram por um breve tempo que voltariam, mas algumas coisas não fechavam a rota, por exem-plo. Mandaram, então, que alguém verificasse onde estiveram morando todo aquele tempo e descobriram que realmente eles ainda estavam por lá — e é claro já sabiam dos rastreadores e que estiveram sendo monitorados todo o tempo. Continuaram a segui-los. O Sr. Moshê possuía informantes em toda parte que lhes faziam relatórios de todos os seus passos.

A ideia da vigilância os incomodava muito. Isso era ruim por um lado, porém por outro era a certeza de que estavam no caminho certo. Os pesquisadores gostariam de saber por que o que estudavam incomodava tanto aos outros a ponto de vigiá-los, afinal, era só um trabalho acadêmico. As respostas deveriam estar naquele único livro que encontraram e fotografaram intei-ramente, página por página, enviando-o em seguida para o servi-

dor de sua universidade que somente eles acessariam. Deveriam estudá-lo melhor. Passaram mais uns 15 dias fotografando-o por inteiro e fazendo anotações, estudos, pesquisas, etc. Agiriam as-sim no intuito de desvendar cada frase, verso e estrofe e compre-ender seus sentidos.

Capítulo XI

Lisboa – Conhecendo a cidade

Falar de Lisboa não é tão simples. Não existiu um con-quistador em determinada época da história que lutou, venceu e disse: “Estamos fundando uma nova cidade a que chamaremos ‘Lisboa’”. Não. É uma cidade antiga, passou por várias etapas de formação, vários povos, várias culturas e vários nomes. No en-tanto, uma coisa é comum em todas as situações: sua estratégica posição geográfica, interligando todo o mediterrâneo, países e cidades da Europa e da África. Sua ligação pelo atlântico com o mar do Norte, as ilhas oceânicas e as Américas, além do seu porto seguro nas águas calmas do Tejo. Essas características fize-ram dela uma cidade disputadíssima, passando por vários povos: fenícios, visigodos, cartagineses, celtas, romanos e gregos.

O povo Celta invadiu a região no primeiro milênio a.C.. O povoado pré-romano de Olisipo existiu entre os séculos VIII a VII a.C., e os fenícios comercializavam por ali em 1200 a.C. Os romanos conquistaram Olisipo entre 139 e 138 a.C. Sofreu as invasões bárbaras dos alanos, vândalos, visigodos e suevos, de cujo reino fez parte, recebendo o nome de Ulishbona — muito próximo da pronúncia atual do nome Lisboa. Em 714 foi tomada pelos mouros vindos do norte da África. Acabou pertencendo à primeira Taifa de Badajoz entre 1013 e 1022. Dom Afonso Hen-riques, primeiro rei de Portugal, fez três tentativas de conquistar Al-Ushbuna, tendo fracassado em 1137 e 1140; mas conseguiu fazê-lo em 1147 com auxílio do exército cruzado. Esse parece

102

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

103

ter sido efetivamente o nascimento da cidade como Lisboa. Em 1255, torna-se capital do reino.

Em 1290 o rei Dom Diniz ordenou o estabelecimento da primeira universidade de Portugal em Lisboa, mas essa foi trans-ferida para Coimbra após um incêndio em 1308. Entre 1383 a 1385 houve uma revolução porque, morrendo Dom Frenando de Portugal, o rei passaria a ser o rei de Castela, Dom João I de Castela. Depois de excessivo combate foi aclamado o Mestre de Avis como Dom João I de Portugal em 1384.

A era das grandes navegações

A partir do século XV até o século XVII, época dos gran-des descobrimentos, Portugal assume a vanguarda em relação às grandes navegações porque transforma a pesquisa tecnológica e científica em “política de estado” e atrai especialistas náuticos de várias nacionalidades — tais como italianos, catalães, alemães e aragoneses. Com isso, consegue aumentar os conhecimentos dos oficiais e marinheiros e depois enriquecer com a prática dos “pi-lotos orientais”. Foram realizadas muitas expedições com tripu-lação mista, portuguesa e de outras nacionalidades. Nelas foram descobertos Açores, Madeira e Canárias e Brasil. Nessa mesma época, entre 1497 e 1498, o navegador Vasco da Gama consegue estabelecer o caminho marítimo para chegar às Índias. Assim, Lisboa tornou-se um grande porto e centro mercantil na Europa. Naquela época, Lisboa possuia edificações de três a cinco anda-res, sendo caracteristicamente o piso térreo uma loja e os outros as instalações dos comerciantes.

A Escola de Sagres — um mito

Curiosamente, a famosa referência à Escola de Sagres (na qual teriam se formado os grandes navegadores como Vasco da Gama e Cristóvão Colombo) é na verdade um dos grandes mitos da história portuguesa. Ela nunca foi propriamentre uma

escola, conforme a palavra conceitua uma entidade oficial de en-sino. Na verdade, foi um local, onde se reuniam especialistas em navegação, cientistas oceanográficos da época, pilotos hábeis e marinheiros práticos a convite do infante Dom Henrique, filho do rei de portugal em 1417, em Sagres, região do Algarve. Ali, desenvolveram métodos de navegação, instrumentos náuticos, cartas e projetos de embarcações. Fisicamente, era um armazém de galés.

Um dado curioso a respeito da origem da Escola de Sa-gres é que suas intenções iam muito além de ensinar navegação. Consta que Dom Henriques fez parte dos “Cavaleiros da Ordem de Cristo”, remanescentes da “Ordem dos Templários” que foram perseguidos e massacrados. O grande objetivo era dar proteção aos judeus, árabes e outros grandes intelectuais de várias nacio-nalidades perseguidos pela Inquisição. Era um projeto ambicio-so: concentrar ali a a maior parte das pessoas importantes para o desenvolvimento da nação, tais como os grandes cartógrafos e navegadores, investidores, sábios, intelectuais, enfim, toda a massa pensante.

Situação política e econômica da época:

Quando terminaram as guerras entre liberais e conserva-dores, a situação econômica não era boa. Lisboa perdera o mo-nopólio dos produtos do Brasil para a Inglaterra e o ouro que efetivamente chegava aos cofres da coroa era pouco devido à pi-rataria e o contrabando. Os países do norte da Europa industria-lizaram-se e enriquecerm comerciando com as Américas. Em 1640 ocorre em Lisboa a revolta pela Reestauração da indepen-dência.

O terremoto

Em 01 de novembro de 1755 Lisboa foi sacudida por um grande terremoto que detruiu quase tudo. Logo após reiniciou-

104

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

105

se a reconstrução segundo o planejamento de Sebastião José de Carvalho e Melo, mais conhecido pelo título “Marquês de Pom-bal”, ministro da guerra e negócios estrangeiros.

Situação política

Em 1909 ocorre uma greve geral e em 1910 a revolta pela implantação da república em Portugal. Em 1912 os Monárquicos tentam dar um golpe de Estado, mas falham. Em 1916 Portugal entra na Primeira Guerra Mundial ao lado dos aliados, enviando muitos homens e recursos. Sobreveio escacez e até fome.

Em 1925 a antiga nobreza do norte, aliada à Igreja Ca-tólica, tentou tomar o poder, o que de fato aconteceu em 1926, determinando o fim da primeira república. O novo governo ado-tou a ideologia facista liderado por Oliveira Salazar. Esse regime chamou-se Estado Novo e governou por quatro décadas. Esse regime, já sob o comando de Marcelo Caetano, foi derrubado pela Revolução dos Cravos em 25 de Abril de 1974.

Geografia

Lisboa está localizada à margem direita do rio Tejo, junto à foz, a 38°40´ de latitude e 9°00´ de longitude oeste. A altitude maxima é de 226m na Serra Monsanto. Fica a oeste de Portugal, na costa do Oceano Atlântico.

Clima

A temperatura na primavera fica entre 8 e 26 °C, No verão entre 16 e 35º, sendo quente e seco, o Outono é ameno e estável e a temperatura fica entre 12 e 23 °C. O Inverno é chuvoso e fresco, mas com algum sol, ficando a sua temperatura entre 3 e 17 °C. A temperatura mais baixa já registrada foi de -1,2 °C, e a mais alta 42 °C. Dificilmente cai neve em Lisboa, sendo os registros mais recentes entre 2006 e 2007. O vento predominante no verão é

noroeste de moderado a forte. A água do mar na região tem uma temperatura média anual de 17 °C, podendo variar de 15 a 16 °C em fevereiro e 20 a 21 °C entre agosto e setembro.

Economia

Lisboa apresnta um PIB per capita na média da União Eu-ropeia, sendo responsável por 45% do PIB português. A econo-mia da cidade se desenvolve principalmete no setor terciário. As grandes empresas multinacionais estão concentradas na área da grande Lisboa, principalmente no município de Oeiras. Possui uma área metropolitana altamente industrializada, localizada principalmente na margem sul do Tejo. A região metropolitana de Lisboa apresentou um PIB de 92,5 milhões de dólares e 31.454 dólares per cápita, segundo dados de 2011.

Educação

Lisboa conta com três universidades públicas, a Universi-dade de Lisboa, a Universidade Técnica de Lisboa e a Universi-dade Nova de Lisboa.

Possui tambem várias universidades privadas que ofere-cem cursos em todas as áreas acadêmicas. Conta ainda com o Instituto Universitário de Lisboa, o Instituto Politécnico de Lis-boa e a Escola Superior de Enfermagem de Lisboa. Existe, é claro toda a rede de ensino secundário e básico, tanto público quanto privado.

Saúde

Existem vários hospitais públicos e privados, clínicas e centros de saúde. Na rede pública do Serviço Nacional de Saú-de estão o Centro Hospitalar Lisboa Norte, o Centro Hospitalar Lisboa Central, o Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, centros especializados e hospitais militares.

106

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

107

Transportes

O aeroporto da Portela fica a 7 km do centro de Lisboa e um tráfego de 12 milhões de passageiros por ano. Possui três pistas, sendo uma para voos internacionais e duas para voos do-mésticos, incluindo as regiões de Açores e Madeira.

Porto de Lisboa

O Porto de Lisboa, além do transporte cargueiro, é tam-bem um dos mais turísticos da Europa, recebendo vários cruzei-ros. Possui também várias marinas para barcos de recreio. Existe tambem o transporte fluvial. A rede Transtejo ligas as duas mar-gens do Tejo, contando com várias estações, tais como o Cais do Sodré, Belém, Terreiro do Paço e parque das nações na margem norte e Cacilhas, Barreiro, Montijo, Trafaria, Porto Brandão e Seixal na margem sul.

Rede ferroviária

Lisboa possui uma rede ferroviária urbana e suburbana com nove linhas, sendo quatro metropolitanas e cinco de com-boio urbano. São 117 estações — 46 metroplolitanas e 71 de comboio suburbano.

Cultura

Sendo uma cidade cosmopolita, Lisboa abriga várias cul-turas orientais, a das Índias, africanas e americanas. Ouvem-se falar várias linguas, como o italiano, ucraniano, gujarati, portu-guês brasileiro, português moçambicano, etc. ao utilizar-se o sis-tema viário da cidade.

A cidade abrigou vários eventos internacionais, como a Expo 98, Tenis World Master 2001, Euro 2004, Regata Interna-cional dos grandes veleiros, Rali Dakar, etc. A música tradicio-nal de Lisboa é o Fado, algo nostálgica, sempre acompanhada

de Guitarra Portuguesa. Segundo consta, é bem antiga, da época dos Mouros. Tem influência tambem da modinha dos séculos XVIII e XIX. Possui inumeros espaços públicos que envolvem te-atros, museus, bibliotecas, arquivos públicos e afins. Entre mui-tos outros, estão a Biblioteca Nacional, o Arquivo Histórico Mili-tar, o Arquivo Histórica Ultramarino e talvez o mais importante, a Torre do Tombo.

São bairros históricos Baixa Pombalina e Chiado, edifica-dos sobre as ruínas da Lisboa antiga que foi destruída pelo terre-moto de 1755. A baixa é a maior zona comercial, em cujas redon-dezas estão a praça dos restaurantes, o elevador de Santa Justa, a Praça do Comércio (Terreiro do Passo). Alfama é um bairro típico com arquitetura àrabe medieval, de ruas estreitas e um dos poucos que sobreviveu ao terremoto de 1755. Ali se pode ouvir o Fado em várias casas de espetáculo ao vivo. Nas redondezas estão o Castelo de São Jorge, a Sé de Lisboa, o Panteão Nacional, a Feira de Ladra e o Miradouro de Santa Luzia.

O Bairro Alto é uma zona de comércio, entretenimento e habitação situada no centro, acima da Baixa Pombalina.

A Freguesia de Belém é típica da época dos descobrimen-tos. Ali está o Mosteiro dos Jerónimos, construído a mando de Dom Manuel I em 1501, aos estilos Manuelino, Gótico e com alguma influência renascentista. Esse mosteiro abriga os restos mortais de Luis Vaz de Camões (que compôs os Lusíadas) e do grande navegador Vasco da Gama. Próximo dali está a Torre de Belém, construção militar de vigia da Barra do Tejo.

Em Belém se encontram também o padrão dos descobri-mentos, o Palácio de Belém, que é a residência oficial do presi-dente da república, o Museu Nacional dos Coches, o Museu da Eletricidade, a Igreja da Memória e o Centro Cultural de Belém.

108

João Roberto Vasco Gonçalves

Capítulo XII

A Torre do Tombo

Na lingua portuguesa, “tombar” significa também regis-trar. Esse uso do termo aparece na linguagem mais antiga no Brasil, sendo os livros de registro dos cartórios chamados “livro do tombo”. Essa é a razão porque o arquivo real instalado ori-ginalmente numa das torres do castelo de São Jorge em Lisboa ficou conhecido como a Torre do Tombo.

Conforme registra a história, a torre existe desde o ano de 1378, quando reinava Dom Fernando — informação baseada na data da primeira certidão que se conhece até hoje.

Serviu como arquivo do rei até 1755, onde tambem guar-dava documentos de seus vassalos, documentos da administra-ção pública, das posseções ultramarinas e das relações com os reinos de outros países. Em 1 de novembro de 1755 a torre ruiu completamente devido a um terremoto que causou grande des-truição em Lisboa. Toda a documentação foi recolhida em meio aos escombros e guardada em caráter de emergência e proviso-riamente num barracão de madeira construído para essa finali-dade na praça das armas em 6 de novembro sob autorização do Marquês de Pombal, administrador responsavel pelas coisas do governo da época.

Em 27 de agosto de 1757 os itens foram transferidos para o mosteiro de São Bento da Saúde. Novamente, tudo teve de ser

Em Alcântara se encontra o aqueduto das águas livres. Na Fre-guesia da Estrela está o Jardim Estrela, criado há mais de um século e inspirado no Hyde Park de Londres. A Basílica da Estre-la, de estilo Barroco-Néoclássico, a Assembléia da República e o Cemitério dos Prazeres.

110

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

111

organizado. Em 1861, o Arquivo da Torre do Tombo se mudou para a ala direita do mosteiro, do lado da Rua de São Bento, ocu-pando, sucessivamente, os espaços da igreja, do refeitório, e da Direcção Geral dos Trabalhos Geodésicos, instalações onde se manteve até 1990.

A partir de março de 1911, o Arquivo da Torre do Tombo desisgnado por Arquivo Nacional, acentuou a função de con-servação e valorização dos manuscritos destinados ao estudo da história, bem como a função de promover a entrada de cópias de manuscritos portugueses, existentes no estrangeiro, e estabele-ceu, pela primeira vez, um horário de abertura ao público”.

Depois de 1990 foi transferido para o edifício construído propositadamente na cidade universitária de Lisboa para abrigar o Arquivo Nacional, dispondo de mais amplas instalações.

A sua identidade própria foi recuperada em 2007 pela vi-gente lei orgânica, e novamente designado por Arquivo Nacional da Torre do Tombo, constituindo-se como arquivo de âmbito na-cional na dependência da Direcção Geral de Arquivos. Localiza-se no Jardim Campo Grande, que é atravessado pela alameda da universidade, número 1650. Data do século XVII o surgimento dos primeiros livros de registros organizados a partir do arqui-vo e seus índices. Alguns dos índices mais importantes segundo registra sua história são: índices das chancelarias régias (1715–1749), das Leis e Ordenações (1731), das Bulas (1732), dos mo-radores da Casa Real (entre 1713 e 1742), o inventário das Bulas, Breves e transuntos pontifícios (1751–1753). Este trabalho foi iniciado ainda no antigo edifício da torre do castelo.

Na torre do tombo existe farta e rica documentação refe-rente à jurisdição exercida pela Mesa do Santo Ofício da Inqui-

sição de Lisboa sobre territórios do império colonial português: Açores e Madeira, Brasil, Angola e Estado da Índia. Sobre os pro-cessos sobre os cristãos novos constam, entre outros, documen-tos de triagem de cristãos novos (os judeus secretos, marranos), presos no Brasil acusados de serem judeus e enviados a Portugal para responder a processos pela Inquisição. Estes exibem uma enorme lista os nomes dos acusados e as datas.

Capítulo XIII

O estudo do livro

Após todo aquele trabalho de fotografar, analisar, fazer observações e compilar tudo no computador da universidade, acabaram imprimindo um livro bem organizado e detalhado com os devidos comentários necessários aos estudos futuros que teriam de ser feitos criteriosamente para extrair algo prático e que fizesse sentido. Enfim, os professores perceberam que fize-ram um novo livro, uma cópia ou uma nova versão do original, contendo muitas explicações e detalhes transparentes à primeira vista. O professor Paschoal não resistiu e fez o seguinte comen-tário:

— Pedro, se eu tivesse de intitular este livro, eu o chamaria de Deuteronômio.

— Bem sugestivo, Paschoal. Uma ideia exata do que re-almente é. Aliás esse era o nome que estava escrito em hebraico naquele livrinho que encontramos por acaso quando tropecei, lembra? Espero que nos leve de encontro aos objetivos de nosso trabalho.

— Eu também.

— Então vamos começar logo a estudá-lo.

— Isso, vamos iniciar o quanto antes, pois sinto que temos muito trabalho pela frente. Sinteticamente, qual o conteúdo do livro, Pedro?

114

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

115

— Contém curiosos versos, cantos litúrgicos de igreja e citações bíblicas. Além dos escritos e respectivas ilustrações, apa-recem também alguns desenhos: uns parecem projetos arquite-tônicos, plantas baixas ou coisa parecida, mapas, todos com indi-cações, como números e letras em alfabeto hebraico, grego, latim e até algumas línguas atuais, como italiano. Algumas inscrições, a julgar pelo aspecto da tinta, parecem ter sido feita em tempos muito mais recentes, segundo o que anotamos. Curiosamente, parece não haver, pelo menos em princípio, uma sequência cro-nológica ou algum tipo de indexador que se possa utilizar para organizar a pesquisa.

— Vamos iniciar discutindo sobre o que diz cada uma das inscrições e seus possíveis significados.

— Sim. Parece-me a melhor ideia.

— Ótimo, mas primeiramente leia cada uma delas na or-dem que aparece para que possamos conhecer o universo de in-formações. Depois reiniciaremos com as discussões detalhadas, análises e primeiras conclusões. Numa segunda etapa, podere-mos refinar tudo isso e, ao longo do desenvolvimento do traba-lho, poderemos realinhar segundo as novas informações e con-clusões.

— Então vamos lá. Algumas das inscrições na ordem que aparecem mais as nossas notas de referência, assinaladas por NP, ou notas do pesquisador, são:

Tantum ergo Sacramentum; Veneremur cernui; Et anti-quum documentum; Novo cedat ritui; Praestet fides supplemen-tum; Sensuum defectui.

Escoltados por soldados de Cristo/ está o novo cristão/em um mundo jamais visto/na casa de eterno guardião.

Sob a cruz que no céu se deita/herança de um mundo an-tigo/em um mundo novo se ajeita/na busca de seguro abrigo.

No chão da casa de deus/uma serpente nasceu mutilada/início e fim dos segredos seus/na cabeça e na cauda cortada./ Cinco vértebras também feridas/a cinco cabeças espaçadas/o se-gredo das espadas inseridas/a sete chaves guardadas.

Sob os raios do sol dourado/e dos doze pontos de luz/os-tentam o torat moshê/refletindo a verdade que conduz.

No cálice dourado de Hatikvah/sob a luz dos sete casti-çais/em nova aróhn hab·beríth/a terça parte das joias reais.

A santíssima trindade/repousa em três pontos distantes/ aqui no Nebo, na nova casa, na eterna metrópole.

A serpente devora o defunto e a mulher lhe esmaga a ca-beça.

Subindo 14.000 côvados, depois do encontro das águas, o passo do salitre está.

dobrando-se a tramontana, o novo Horeb estará.

Mt 6.19; Mt 6.21 (NP: “Não enterrar os tesouros na terra/Onde está o tesouro está o coração”).

Mt 5.41 (NP: “Se alguém te forçar a dar mil passos, vai com ele dois mil”).

Ex 17.6 (NP: “Eis que estarei ali diante de ti, sobre o roche-do do monte Horeb ferirás o rochedo e a água jorrará dele: assim o povo poderá beber. Isso fez Moisés em presença dos anciãos de Israel”).

Dt 10.11 (NP: Tomar a terra), Dt 11.18–25 (NP: Posse da terra), Dt 11–24 (NP: Limites da terra prometida).

Dt 10.2 (NP: Escreveu as novas tábuas da lei).

Ex 26.33 (NP: Véu que separa o santíssimo); Ex 26.34 (NP: Propiciatório sobre a arca); Ex 25.10–16 (NP: Arca); Ex 25.17

116

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

117

(NP: Propiciatório); Ex 25.31(NP: Propiciatório sobre a arca e documentos dentro).

Ex 25.22 (NP: Ali me encontrarei contigo); Ex 28.4 (NP: Vestes sacerdotais); Ex 28.40 (NP: Vestes para os filhos de Arão), Ex 30.17–21 (NP: A bacia de bronze); Ex 29.4–9 (NP: Cerimônia de sagração dos sacerdotes); Nm 6.22–26 (NP: Bênção sacerdo-tal); 2Mac 2.5 (NP: encontrou um espaço em forma de gruta...) Mac 2.7 (NP: Este lugar permanecerá desconhecido... tenda e arca... montanha onde Moisés subiu.); Dt 34.1 (NP: Monte Nebo, entre outras).

Sob os pés de Salomão repousa a fé no Senhor.

Deva•rím repousa no ventre da filha de Aróhn hab·berí-th.

Um vil pombal de infiéis//covil de ex iniciados//sucum-bindo ao poder e cobiça//forçam irmãos a renegar o voto.

Jazem muitos guardiões//mas ainda vivos também//abri-gados na casa de Deus//protegendo o devarim//Nem sempre são religiosos de bons hábitos.

— Puxa, é muita coisa mesmo! Há também as difíceis in-terpretações. Parece mesmo uma intricada rede de informações em linguagem cifrada.

— Sim, é uma miscelânea de coisas incompreensíveis que, pelo menos por enquanto, não faz o menor sentido. Possivelmen-te, elas farão sentido nos lugares certos e diante das coisas certas.

— A coisa é muito mais complexa do que eu pensava. A primeira dúvida é por onde começar.

— Do começo, logicamente. Digo do começo do que te-mos, ou, mais precisamente, do começo do nosso Deuteronô-mio, conforme você mesmo propôs anteriormente.

— Então vamos a ele. O que diz primeiramente?

— A primeira inscrição contém uma conhecida oração católica em latim, que normalmente é cantada em gregoriano:

Tantum ergo Sacramentum;Veneremur cernui; Et anti-quum documentum; Novo cedat ritui; Praestet fides supplemen-tum; Sensuum defectui.

— E consta que seja de 1264, cuja autoria é atribuída a Tomás de Aquino.

— Alguma sugestão a respeito disso?

— Sim, provavelmente a que você também está pensando: que possivelmente haja um antigo documento e um novo que o sobrepuje e possivelmente o complemente. E que poderiam não ser necessariamente o mesmo antigo e novo testamento a que a oração se refere.

— E o que poderiam ser exatamente esses documentos, seus conteúdos e significados?

— Penso que seja prematuro afirmar qualquer coisa por enquanto. Até porque isso pode ser a chave de tudo e que pro-vavelmente só conseguiríamos saber no final do trabalho. Em última análise, talvez seja o próprio final dele.

— Então, passemos à próxima.

— A próxima diz: “Escoltado por soldados de Cristo/está o novo cristão/em um mundo jamais visto/na casa de eterno guardião”.

— Curiosa afirmação. Parece insinuar a existência de um cristão novo como guardião, escoltado pelos soldados de Cristo. Ora, conforme sabemos, os cristão novos eram, entre outros, ju-

118

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

119

deus convertidos forçadamente ao cristianismo. Mas e essa pre-tensa escolta... Quem seriam os soldados de Cristo?

— Com toda a certeza, esses seriam os membros da or-dem companhia de Jesus que também eram cognominados de soldados de Cristo porque a ordem foi fundada por Ignácio de Loiola, um militar que depois de ferido na guerra estudou sobre religião, se empolgou e resolveu criar uma ordem com a mesma disciplina dos militares.

— Boa explicação, Pedro. Isso parece apontar para judeus convertidos ao catolicismo infiltrados na Companhia de Jesus ou os jesuítas.

— Essa especulação é suficiente para nos arremeter a no-vos estudos e chegar a nomes importantes que ao longo da histó-ria estiveram enfronhados na organização.

— Certamente. A propósito, quais desses você listaria?

— Existem vários que tiveram suas histórias de certa for-ma ligada aos cristãos novos e à Companhia de Jesus: Ignácio de Loyola, Antônio Vieira, José de Anchieta, etc.

— Mas esses se declaravam cristãos novos?

— Não. E provavelmente nem sabiam. Descobriram isso a seu respeito pesquisando muito suas origens.

— Mas se nem sabiam que eram descendentes de cristãos novos, como seriam guardiões de segredos supostamente judai-cos? A menos que os segredos não sejam exatamente judaicos, ou sua pretensa relação com o judaísmo seja um belo disfarce. O que você acha?

— Penso que se o judaísmo e o cristianismo possuem as mesmas raízes não seria muito difícil convencer as pessoas de boa índole a defender causas pretensamente religiosas.

— Porque pretensamente religiosas?

— Porque embora seu conteúdo tivesse muito de fatos bíblicos, poderia haver razões subjetivas. Algumas referências mais à frente parecem indicar essa possibilidade. Seria muito oportuno ocultá-las dessa forma.

— Você poderia ser mais específico?

— Sim. A décima quarta inscrição faz referência a três versículos do livro do Deuteronômio que aludem às seguintes ideias: tomar a terra (Dt 10.11), posse da terra (Dt 11.18–25) e limites da terra prometida (Dt 11.24).

— Me parecem ideais dos cruzados e templários. Você considera válida essa ideia?

— Se a ideia de segredo judaico for correta, seria algo pa-recido, com a diferença de que após a libertação da terra santa esta ficaria depois sob o comando judeu e não cristão.

— Então, em última instância, seria o ideal de criação ofi-cial de um estado judeu. Isso teria algo a ver com a criação do estado de Israel? Então esse livrinho não seria assim tão antigo. Como você analisa isso?

— O livro pode não ser tão antigo. A julgar pelo aspecto da tinta nas diversas inscrições, parece ter sido atualizado ao lon-go dos tempos. Quanto à ideia de criação de um Estado judeu, a ideia é bem antiga. Essa aspiração valeu na época antiga con-forme essas indicações do Deuteronômio e para todas as outras épocas. A criação do Estado de Israel, embora tenha sido realiza-da por outra via que não a dos cruzados, acaba atendendo a essas mesmas inscrições dos versículos.

— É uma boa hipótese. Mas e a ideia dos guardiões e da Companhia de Jesus no novo mundo?

120

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

121

— Se esses guardiões fossem mesmo jesuítas, esse novo mundo poderia ser em novos lugares que não a Europa, enfim, todos os lugares onde eles serviam.

— Contudo, se havia mesmo algo de secreto a ser escon-dido e a Igreja o conhecia e tinha poderes suficientes, não seria melhor ocultá-los em algum lugar seguro na Europa ou simples-mente destruí-lo como fazia a Inquisição?

— Aí entram questões muito mais complexas do que se percebe à primeira vista. Primeiramente, a Inquisição não quei-mou tudo. As coisas mais interessantes foram mandadas para Roma e arquivadas lá até mesmo sob o pretexto de provas nos processos, muitas das quais estariam hoje na biblioteca do Vati-cano. Na Europa havia muitos de antenas ligadas, muitos jogos de interesse, muita ambição por poder, muitas intrigas entre a nobreza e seguramente não havia lugar seguro para nada, princi-palmente no âmbito da Igreja, onde o alto clero era parte da no-breza. Por outro lado, a Inquisição nunca foi religiosa. A religião serviu como pretexto para os governantes poderosos pressiona-rem a Igreja e induzi-la à perseguição. Curiosamente, essas per-seguições aconteceram em todas as épocas, em todas as religiões e em todos os lugares, sempre usando a religião como pretexto e sempre pelos mesmos motivos: luta pela hegemonia, sede de po-der, avareza, manutenção do status quo. Alguns exemplos foram as cruzadas, a Inquisição católica na Europa, a Inquisição protes-tante dos puritanos nos Estados Unidos, as lutas entre diversas facções muçulmanas, entre outras. Sempre acontecem em meio a um banho de sangue, muita violência, muita carnificina e mui-ta opressão do homem pelo homem, algo capaz de envergonhar a Cristo, Maomé, Buda ou qualquer outro emissário de Deus e desmerecer suas obras. É exatamente o contrário do que toda religião ensina: o amor ao próximo. Por outro lado, tudo o que todas as religiões na verdade parecem intentar é fazer o homem

caminhar um pouco mais devagar para ter tempo de refletir me-lhor ou talvez esperar o melhor momento para que os possíveis segredos sejam revelados com segurança ou sem consequências devastadoras. Tantos séculos se passaram, tantos mestres tenta-ram ensinar, mas o homem continua ignorante. Ele ainda não percebeu que a raíz de todas as suas desgraças é a falta de amor ao próximo. Que o ódio, a inveja, a cobiça, a avareza e a opressão ocasionam todos os males. Ele ainda não conseguiu entender a mensagem de que o inimigo também é o próximo.

— No entanto, uma coisa ainda não estaria muito clara. Se os poderosos possuíam a força para perseguir e massacrar, porque precisavam da ajuda de alguma religião? Não seria mais fácil simplesmente subjugar?

— A resposta é muito simples: legitimação da ordem e, com ela, a do poder. A religião, se desonestamente desvirtuada e ensinada ao povo, se presta muito bem a esse papel. Na verdade mesmo, de religião não havia nada.

— Seria algo como uma religião de cabresto?

— Algo parecido que produz a legitimação da ordem: poucos acreditam que têm o direito de mandar e muitos o dever de obedecer. Isso leva imediatamente à legitimação do poder. O povo outorga o poder e quem o exerce o faz em nome do povo sob o pretexto de que este o quer. A força popular é sempre in-suflada contra alguém ou algum grupo, caso seja de interesse do poder. O povo vira massa de manobra na mão dos oportunistas e nem o percebe. Frequentemente, ele é induzido a barbárie.

— Você tem algo contra o ensino da religião ao povo?

— Muito pelo contrário. A religião pura e sadia é necessá-ria. Mas é muito mais que recitar versículos, cumprir liturgias e angariar fundos para obras sociais.

122

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

123

— Então, como você acha que os versículos deveriam ser ensinados?

— A religião não deve ser somente falada, ouvida ou es-crita. Deve ser vivenciada, se não cai no vazio e perde a sua uti-lidade.

— Sim, mas voltando à ideia de ocultar fora da Europa, o que poderíamos pensar?

— Creio que seria uma ótima política levar para um lo-cal bem distante e deixá-lo bem oculto até que se perdessem no tempo. Um lugar de difícil acesso, de difíceis condições de vida, onde muito poucos se aventurariam a ir. Seria bem melhor do que perseguir, tentar destruir, fazer muito alarde e acabar trans-formando um possível vilão num herói.

— É uma interessante teoria. Mas, se os jesuítas estavam espalhados ao redor do mundo, como determinar em que parte do mundo esse segredo estaria?

— Segundo as indicações do nosso livrinho, uma parte estaria no local indicado pela terceira frase a seguir: “Sob a cruz que no céu se deita/herança de um mundo antigo/em um mun-do novo se ajeita/na busca de seguro abrigo”. Porém, pela sétima frase: “A santíssima trindade/repousa em três pontos distantes/no Nebo, na nova casa, na eterna metrópole”, esse segredo pos-sivelmente estaria fracionado em três partes. O verso final da es-trofe “No cálice dourado de Hatikvah/sob a luz dos sete castiçais/em nova aróhn hab·beríth /a terça parte das joias reais”, citada na sexta inscrição também corrobora com essa ideia.

— Assim ficou muito mais difícil. Agora, além de ter três partes de segredo, temos também três lugares indefinidos. Por onde iniciaríamos?

— Sempre pelo começo, é claro. Refiro-me ao que temos escrito primeiro. Assim, pelo menos possivelmente, acharíamos uma parte e quem sabe haveria indicações mais precisas a respei-to das outras.

— Tudo bem. Mas, primeiramente, analisemos cada uma dessas indicações. Por exemplo, essa: “Sob a cruz que no céu se deita em um mundo novo”, Ela indicaria precisamente algum lu-gar específico, Pedro?

— No meu entender, sim.

— Seja mais específico, por favor.

— O mundo novo seria as Américas, como era chamado na época.

— Sim. Mas na verdade essas são três.

— Mas aí a ideia da cruz que se deita no céu esclarece mui-to bem essa posição, pois essa pode muito bem ser a constelação do cruzeiro do sul. Então seria a América do Sul.

— É, diminuímos o circulo, mas ainda nos falta estreitar mais. Alguma ideia, Pedro?

— Ocorre-me uma, sim. Cruzando as ideias de mundo novo, jesuítas e América do Sul lembremo-nos de que uma das primeiras incursões jesuítas a esta parte do mundo foi ainda na época dos governos gerais. Logo a seguir, a história registra a fundação da atual cidade de São Paulo pelo padre Manoel da Nóbrega e o então noviço José de Anchieta em São Paulo de Pi-ratininga, subindo a serra e longe do litoral. Creio que São Paulo seria uma ótima opção para começarmos. Mas as outras opções restantes devem ser pesquisadas, pois, conforme a história, fize-ram incursões também por toda a costa do país, fundando mui-

124

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

125

tas vilas. Creio que temos assinalada a primeira coordena geo-gráfica.

— E sobre a afirmação de que o segredo estaria fracionado em três partes? Pelo que entendi, não seria somente a América do Sul. O que você pensa sobre isso?

— Essa parte é um pouco mais difícil. A primeira no Nebo, que poderia não ser um monte como o que fala a bíblia, mas qualquer lugar perdido no meio do nada segundo a defini-ção de um rabino que conheci. Isso poderia ser perfeitamente a primeira opção, ou seja, a América do Sul e, possivelmente, o Brasil. A segunda seria uma nova casa. Com um pouco de abuso dedutivo poderíamos supor que fosse a América do Norte, mais precisamente em Nova York, pois, segundo a história dos judeus nas Américas, eles tiveram uma forte colônia em Recife, no Bra-sil, vindo através da companhia das Índias Ocidentais. Ali, eles dominaram a fabricação e o comércio de muitos produtos, prin-cipalmente o açúcar, na época em que ali governou o conde ho-landês Maurício de Nassau. Com a expulsão dos holandeses e a derrocada dessa rica fase de comércio, a comunidade dos judeus migrou para a atual Nova York, que era apenas um entreposto comercial. Depois de muitos reveses e perseguições pelos cris-tãos protestantes, acabaram fundando a Nova Amsterdã. Assim, eu penso que, se houvesse outra parte de um segredo de origem judaica no mundo novo, possivelmente seria lá.

— É como você disse: um abuso de dedução, mas na falta de outro mais razoável poderia ser considerado válido. Mas ain-da falta a terceira: a eterna metrópole.

— Sim, mas acho essa ideia ambígua. Tanto poderia ser Roma, como é chamada pelos ocidentais, quanto Jerusalém, como a consideram os judeus. Eu fico com essa segunda opção.

— O que o leva a essa?

— As possíveis indicações sugeridas pela décima oitava frase: “sob os pés de Salomão repousa a fé no Senhor”. Talvez a guarda dos documentos sagrados fosse para colocá-los no devi-do tempo em sua legítima morada, o novo templo do Senhor na cidade santa, que provavelmente seria Jerusalém, a cidade eterna para eles.

— Por que você acha isso?

— Porque presumo que a frase “sob os pés de Salomão” provavelmente esteja se referindo ao subsolo do local onde exis-tiu o palácio de Salomão, um local não muito bem determinado e assinalado no livro apenas por alguns sinais gráficos que prova-velmente seriam números indicando sua localização em relação a pontos de referência fixos.

— Estamos mal. Pesquisamos tanto, estudamos, analisa-mos e deduzimos, porém tudo que temos não passa de um pu-nhado de conjeturas.

— Concordo. Isso não é nada animador. Mas é o ponto de partida que temos.

— Sim, mas e quanto ao restante das inscrições? Por en-quanto nem fazem sentido, não passam de frases soltas. A quinta frase, por exemplo, além de coisas de difícil identificação, ainda fala de torat moshê...

— Sim, todavia torat moshê é fácil, pois traduzido para o português é a lei de Moisés.

— E o que você me diz da décima nona: “Deva•rím re-pousa no ventre da filha de aróhn hab·beríth”?

— Deva•rím é o nome hebreu do Deuteronômio, a cópia da lei ou a segunda lei, conforme ficou incorretamente traduzido para o grego. Aróhn hab·beríth é a arca da aliança, e repousar no ventre da filha de aróhn hab·beríth pode significar estar dentro.

126

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

127

Ou seja, a cópia da lei estaria dentro da arca da aliança, ideia coerente com a citação bíblica. Claro que aqui pode ter outro sentido que ainda desconhecemos, ou talvez haja mesmo algum documento dentro de alguma arca em algum lugar desconheci-do, talvez não necessariamente aquele ao qual se referem as Es-crituras.

— E quanto à oitava citação: “A serpente devora o defunto e a mulher lhe esmaga a cabeça”. Não acha muito estranho? O que poderia ser?

— É difícil dizer, pois pode significar muitas coisas. Quan-to à segunda oração, há uma citação bíblica algo parecida em Gn 3.15. A primeira leva a uma ideia de que há algo na boca de uma serpente. Quem sabe isso tudo não seja alguma escultura ou pin-tura? Muitos escultores e pintores renascentistas representaram fatos bíblicos em seus trabalhos. Segundo consta, alguns teriam escondido segredos em escritas ou figuras ocultas e diluídas na pintura.

— Essa da décima primeira também parece interessante: Mt 6.19; Mt 6.21; “Não enterrar os tesouros na terra, “Onde está o tesouro está o coração”. O que você acha, Pedro?

— Provavelmente, a mesma coisa que você imagina, ou seja: o tesouro não deve estar enterrado. A segunda afirmativa parece ser alguma dica da localização.

— Veja só, Pedro, a décima sétima parece um monte de citações que aparentemente não se correspondem entre si. Não acha isso muito estranho também?

— Com certeza, mas as citações de Mac 2.7: “Este lugar permanecerá desconhecido”... “tenda e arca”... “montanha onde Moises subiu”, além de Dt 34.1, “Monte Nebo”, entre outras, pa-recem dar uma dica de que exista algum monte em local desco-

nhecido que seja relacionado a tudo isso.

— E quanto às outras citações?

— Essas, a priori, parecem não dizer nada. Contudo, como disse anteriormente, possivelmente farão sentido nos locais e si-tuações certos. Só saberemos se estivermos diante deles.

— Acho que isso quer dizer mais ou menos o seguinte: estamos diante de um intricado labirinto e seguir qualquer pis-ta falsa é ficar cada vez mais longe da saída. Em suma: estamos perdidos.

— E então, Paschoal? Desistimos ou continuamos?

— Olha, eu nunca fui de fugir e, pelo que sei, você tam-bém não. Além disso, nossa condição de pesquisadores da histó-ria sempre nos impele a continuar.

— Concordo. Mas e quanto às nossas limitações?

— Entendi perfeitamente. Você se refere principalmente aos custos. Possivelmente, gastaremos de nosso bolso e não con-seguiremos o devido ressarcimento. Você estaria disposto a isso?

— Por mim, tudo bem. Eu faço esse sacrifício pelo conhe-cimento da história.

— Então façamos uma síntese de toda a história que já conseguimos levantar. Existe algum tipo de segredo de origem supostamente judaica fracionado em três partes, estas estão ocul-tas em três locais diferentes (e, possivelmente, em continentes diferentes). Uma parte delas teria ido parar na América do Sul, provavelmente no Brasil, possivelmente teria viajado no meio da bagagem dos jesuítas, ordem na qual estariam os guardiões. Tudo isso não está enterrado, mas em algum monte em local des-conhecido. O que sabemos sobre a localização é que existe algo

128

João Roberto Vasco Gonçalves

em forma de coração ou coisa parecida que marca ou identifica onde está. Sabemos que existe no meio da história algo como uma serpente, um defunto e uma mulher e que estão relaciona-dos ao processo de identificação do segredo (que é tratado como um tesouro) e com o significado real que ainda desconhecemos por completo.

— Correto, Paschoal. Ademais, sabemos que estabelece-mos São Paulo, no Brasil, como ponto de partida.

— Assim, agora eu proponho que repassemos algumas considerações sobre a história dos jesuítas em relação ao Brasil.

— Sim, creio que seja proveitoso.

— Em seguida, planejaremos a viagem.

Capítulo XIV

A companhia de Jesus

Foi fundada em 1534 por um grupo de estudantes da Universidade de Paris liderados por Íñigo López de Loiola, pro-cedente do país Basco — mais tarde ele viria a ser conhecido como Ignácio de Loyola. Ele nasceu em 31 de maio de 1491 em Azpeitiae e morreu em Roma a 31 de julho de 1556. Enquanto estudava em Salamanca, em 1527, foi submetido a uma comissão eclesiástica por uma carga de simpatia com os alumbrados, mas escapou com uma advertência. A razão dessa foi que os alumbra-dos acreditavam entrar em contato direto com Deus através do Espírito Santo, o que envolvia visões e experiências místicas. Tal doutrina era considerada uma heresia. A maioria daqueles per-seguidos como alumbrados eram convertidos (judeus converti-dos ao cristianismo) ou mouriscos (mouros convertidos).

A Companhia de Jesus é uma ordem religiosa católica ro-mana. Seus membros são comumente chamados jesuítas. O nome dessa sociedade em latim é Societas Iesu — ou, abrviadamente, S.J.). No ano de 1549 foi fundada a primeira província brasilei-ra da Companhia de Jesus, com a chegada de alguns membros, chefiados pelo padre Manuel da Nóbrega, seu primeiro provin-cial à Bahia, junto com Tomé de Souza, o primeiro governador geral do Brasil e sua comitiva. Vieram com Nóbrega outros seis membros: Leonardo Nunes, João de Azpilcueta Navarro, Vicente Rodrigues, Antonio Pires e o irmão Diogo Jácome. No ano de

130

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

131

1553 chegou o irmão José de Anchieta, o então noviço com 19 anos, na esquadra de Duarte Gois. O padre João de Azpilcueta Navarro fora logo mandado para Porto Seguro; Leonardo Nunes e Diogo Jácome foram para as aldeias das capitanias de Ilhéus e de Porto Seguro. Mais adiante, o Padre Leonardo foi para o sul, na capitania de São Vicente. Quem o substituiu foi o irmão Vi-cente Rodrigues. Consta que que em 1555, em toda a província, havia 26 deles, sendo quatro na Bahia, dois em Porto Seguro, dois no Espírito Santo, cinco em São Vicente e 13 em Piratininga.

O trabalho dos jesuítas era tão intenso e valoroso que meio século mais tarde já possuíam colégios em toda a costa da América portuguesa, que compreendia desde os atuais estados do Ceará até Santa Catarina. Viviam em colégios, missões e con-ventos. Seus membros eram 670 em 1760 (quando foram expul-sos do Brasil). Sua vida por aqui sempre foi muito penosa por razões diversas. Nunca foram bem vindos, principalmente pelos colonos portugueses, por estarem sempre em conflito com seus interesses e seu mau comportamento, como se pode perceber pe-los trechos da carta de José de Anchieta.

Aqui temos casa em que vivem de ordinário seis dos nos-sos, três padres e três irmãos; vivem de esmolas, ajudados dos da Bahia...

Não estão os padres muito bem recebidos nesta terra por causa dos Capitães e outros homens que não nos são muito bené-volos...

...Maxime em atender aos índios, porque com os portugue-ses não se tira muito fruto.

...e todos, assim homens como mulheres, como aqui vêm, se fazem senhores e reis por terem muitos escravos e fazendas de açúcar, por onde reina o ódio e lascívia e o vício da murmuração geralmente…

Ou ainda em trechos da carta de Nóbrega:

...entre estes se veem muitos cristãos que estão aqui no Bra-sil, os quais têm não só uma concubina, mas muitas em casa, fa-zendo batizar muitas escravas sob o pretexto do bom zelo e para se amancebar com elas, cuidando que por isso não seja pecado. E de par com estes estão muitos religiosos, que caem no mesmo erro...

...Nesta terra, todos, ou a maior parte dos homens, têm a consciência pesada por causa dos escravos que possuem contra a razão... E nesta opinião tenho contra mim o povo e também os confessores daqui.

Realmente, os conflitos dos jesuítas com o povo sempre foram constantes e cada vez mais graves. Em junho de 1612 ocorreu uma reclamação formal do povo ao conselho em São Paulo contra os jesuítas e foi assinada por muitos bandeirantes. Já havia ocorrido outro anteriormente, mas esse foi ainda mais grave. Reclamavam do fato de os jesuítas se acharem no direi-to de se intrometer no governo das aldeias dos índios. Segundo seu entendimento, a concessão dada pelo rei se referia somente à parte espiritual. Os padres tiveram de recuar, pressionados pela influência dos “homens bons” da terra, que efetivamente man-davam no governo local. Em 1621 houve novo conflito. Por volta de 1640, no atual Rio de Janeiro, tentaram executar a bula papal do papa Paulo III, que ameaçava de excomunhão quem captu-rasse e vendesse índios. O povo revoltou-se ante a possibilidade

132

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

133

de perder os escravos, queixando-se ainda de que os padres uti-lizavam o trabalho dos índios — a quem ensinavam e adminis-travam. Assim, em 4 de maio do mesmo ano os jesuítas foram apedrejados e tiveram suas propriedades atacadas e seriamente danificadas.

Ainda em 1640, os jesuitas foram expulsos de São Paulo e só conseguiram retornar em 1653. Em julho de 1687 ocorreu nova tentativa de expulsão. Em 1759 houve uma tentativa de ma-tar o rei Dom José I. A família Távora e o Duque de Aveiro foram responsabilizados pelo atentado e condenados à morte. O padre Jesuita Gabriel Malagrida foi duramente perseguido por um dia ter contrariado o Marques de Pombal na época do terremoto que assolou Lisboa. Aproveitando-se do fato de ter sido acolhido pela família Távora quando foi expulso de Lisboa, o marquês acusou-o tambem de ter colaborado com o atentado e, mais tarde, de he-resias. Tais acusações culminaram com a sua pena de morte pela Inquisição, sendo enforcado e queimado em uma praça pública em Lisboa. Em 3 de setembro de 1759 o Marquês de Pombal ex-pulsou os jesuítas de Portugal e todas as suas colônias, confis-cando também todos os seus bens. Alegava que a Companhia de Jesus funcionava como um poder autônomo dentro de Portugal e das colônias.

O Superior Geral da Companhia, Lorenzo Ricci, e assim como todo o seu conselho geral, foram presos no Castelo de Sant’Angelo, em Roma, sem que houvesse julgamento. Em 1773 o papa Clemente XIV, pressionado por Pombal, Luis XV da França e Carlos III da Espanha, emitiu a bula chamada Dominus ac Re-demptor, que extinguia a Companhia de Jesus — o que aconteceu até 1843, data em que foi reabilitada pelo papa Pio VII. Só então

começaram os jesuítas a voltar ao Brasil. Vieram então jesuítas alemães para o sul, italianos para o sudeste e portugueses para o nordeste.

A companhia de Jesus possuía muitos personagens no-táveis, ligados intimamente à história dos locais que fundaram e onde viveram e cumpriram a sua missão. Além do fundador mencionado anteriormente, temos:

Padre Manoel da Nóbrega: Nasceu em Portugal, em San-fins do Douro a 18 de Outubro de 1517 e morreu no Rio de Ja-neiro a 18 de Outubro de 1570. Obteve o título de bacharel em Direito Canônico e Filosofia pela Universidade de Coimbra. In-gressou na Companhia de Jesus. Aos 27 anos, foi ordenado padre em 1544 com a função de pregador. Viajou por Portugal, Galiza e o restante da Espanha na pregação do evangelho. Foi convidado pelo rei Dom João III a integrar a comitiva de Tomé de Souza de partida para o Brasil em 1549. Chegou à Bahia em 29 de março de 1549. Seus propósitos eram catequizar os índios e também protegê-los contra os que os queriam escravizar, além de fundar igrejas e escolas. Foi nomeado pela companhia de Jesus como o primeiro provincial do Brasil.

Participou da fundação de Salvador (1549); São Paulo (1554) e Rio de janeiro (1563).

Em 1559 foi demitido do cargo de provincial no Brasil por motivo de saúde, sendo substituído pelo padre Luís de Gram. Es-creveu algumas obras importantes para a história do Brasil, tais como: O Diálogo sobre a Conversão do gentio, de 1557; O Caso de consciência sobre a liberdade dos índios, de 1567; A informação da terra do Brasil, de 1549; o Informação das coisas da terra e neces-

134

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

135

sidade que há para bem proceder nela, de 1558; o Tratado contra a antropofagia, de 1559.

Descreve o estado de penúria enfrentado, como se pode ver no trecho de uma das cartas: A nossa igreja, que fizemos, cai-nos, porque é de taipa de mão e de palha; agora ajuntarei estes senhores mais honrados que nos ajudem a repará-la, até que Deus queira dar outra igreja mais dura.

Igualmente, descreve as dificuldades no cumprimento de sua missão por causa do antagonismos dos nobres que aqui vi-viam e seu comportamento anticristão, conforme mencionado em trechos das cartas mostradas acima. Em 1570 foi nomeado novamente para o cargo de provincial, porém faleceu antes de assumi-lo.

Padre Antônio Vieira: Nasceu em Lisboa, Portugal, em 6 de fevereiro de 1608 e morreu na Bahia, no Brasil, em 18 de julho de 1697. António Vieira chegou à Bahia com seis anos de idade e estudou no Colégio dos Jesuítas, em Salvador. Em 1641 regres-sou a Lisboa, onde abraçou a carreira diplomática. Foi nomeado pregador régio e enviado em 1646 aos Países Baixos, onde nego-ciou a devolução do nordeste do Brasil.

Acabou por entrar em conflito com o Santo Ofício por ten-tar obter ajuda financeira dos cristãos novos para a Corôa Portu-guesa. Um dos seus grandes méritos como diplomata e negocia-dor do Estado foi a criação da Companhia Geral do Comércio do Brasil. Serviu tambem na marinha portuguesa. Foi escrivão da Inquisição e tambem depois no Brasil, para onde retornou em 1614. Ingressou na Companhia de Jesus como noviço em maio de 1623. Em 1634, foi ordenado sacerdote. Estudou ainda teolo-

gia, lógica, metafísica e matemática. Obteve o grau de mestrado em artes. Foi professor de retórica.

Escreveu seus conhecidos sermões, foi grande pregador e orador. Sua última obra, inconclusa, foi Clavis Prophetarum, um livro de profecias escrito entre 1679 e 1681. Defendeu os judeus, a abolição da escravidão dos índios, a distinção entre cistãos-no-vos e cristãos-velhos e criticou duramente os sacerdotes da sua época e a própria Inquisição — na qual servira anteriormente como escrivão.

Padre Afonso Brás:Nasceu em São Paio de Arcos, Portu-gal, no ano de 1524 e morreu no Rio de Janeiro em 20 de maio de 1610, ingressou na Companhia de Jesus em 1546. Veio para o Brasil em 1550 com a missão de construir edificações mais se-guras e um pouco mais confortáveis em substituição às casas de pau a pique cobertas de palha. Passou inicialmente na capitania do Espírito Santo, onde sob as suas ordens foi construída a capela de São Tiago (e onde hoje está localizado o palácio do governo estadual, em cujo interior se preservam vestígios das edificações daquela época).

Em 1553, também sob suas ordens, foi construído na capi-tania de São Vicente, Vila de São Paulo de Piratininga, o colégio dos jesuítas com sua igreja, no local onde hoje se conhece como Pátio do Colégio e existe um museu, no centro da cidade de São Paulo, sendo a primeira edificação da cidade. Depois foi para o Rio de Janeiro onde se incumbiu de outras construções onde ter-minou seus dias.

Padre José de Anchieta: Sem desmerecer o trabalho de to-dos os outros jesuítas que estiveram por aqui, o padre Anchieta

136

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

137

foi o mais expressivo deles, estando de tal modo sua vida atrelada à história do Brasil que, apesar de não ser Brasileiro nato, é co-nhecido como “Apóstolo do Brasil”. Nasceu em San Cristóbal de La Laguna, ilha de Tenerife, arquipélago das Canárias, Espanha, em 19 de março de 1534, vindo a morrer em Iriritiba, atual cida-de de Anchieta, no estado do Espírito Santo, no Brasil. Sua mãe era Mência Dias de Clavijo e Larena, natural das Ilhas Canárias, filha de Sebastião de Larena, um judeu convertido do Reino de Castela.

Aos 14 anos foi para Coimbra, em Portugal, onde estudou filosofia no Colégio das Artes, um anexo da célebre Universidade Coimbra. Sua ida para Portugal teve uma explicação: corria o risco de descobrirem a sua ascendência judaica e ser perseguido pela Inquisição, que na Espanha era rigorosíssima naquela épo-ca, enquanto em Portugal ainda não estava instalada. Ingressou na Companhia de Jesus em 1551 como noviço, situação em que veio para o Brasil em 13 de junho de 1553, ainda com dezenove anos.

Participou da fundação, no planalto de Piratininga, do Co-légio de São Paulo, em 25 de janeiro de 1554. Dirigiu esse mesmo colégio. Nos dias que antecederam a elaboração do acordo de paz com os tupinambás de Ubatuba, durante a quaresma, estava juntamente com Nóbrega em Peruíbe, litoral de São Paulo. Se-gundo consta, ali na praia perto da aldeia de Iperoig teria escrito na areia o célebre poema à virgem Maria, que memorizou e mais tarde escreveu. Nessa mesma época funcionou como mediador da crise entre os índios e os portugueses, cujo episódio é conhe-cido na história como a Confederação dos Tamoios.

Foi ordenado sacerdote aos 32 anos de idade em 1566, na ocasião em que foi à capitania da Bahia, levando notícias ao Go-vernador Geral Mem de Sá a respeito da luta contra os franceses no Rio de Janeiro. Em 1567, por ocasião da luta e expulsão dos franceses, participou da fundação da cidade do Rio de Janeiro. Em 1569 fundou um povoado chamado Iritiba (ou Reritiba), atual cidade de Anchieta, no estado do Espírito Santo. Entre 1570 e 1573 dirigiu o Colégio dos Jesuítas do Rio de Janeiro. Em 1577 foi nomeado provincial da Companhia de Jesus no Brasil. Foi substituído na função que exerceu por dez anos em 1587 por sua própria solicitação. Depois disso ainda dirigiu o colégio dos jesuítas em Vitória, no Espirito Santo.

Em 1595 conseguiu a dispensa dessa direção e foi em defi-nitivo para a aldeia de Reritiba, que havia fundado. Lá faleceu em nove de junho de 1597. Foi levado pelos índios para Vitória, no Espirito Santo, onde foi sepultado ao lado do altar mor da igreja de São Tiago, onde hoje está localizado o Palácio Anchieta, sede do governo estadual. Seu processo de beatificação foi iniciado em 1617 na capitania da Bahia, mas só foi efetivamente finali-zado em Vitória, no Espírito Santo, em 9 de junho de 1980, pelo papa João Paulo II.

Sua vasta Obra foi escrita em verso e em prosa em quatro linguas: português, latim, castelhano e tupi. As suas obras literá-rias são: De Gestis Mendi de Saa ou Os feitos de Mem de Sá, Arte de gramática da lingua mais usada na costa do Brasil, essa duas foram publicadas em Coimbra em 1563 e 1595, quando ele ainda era vivo. Depois, Dei Matre Maria, o célebre poema à virgem. Existe tambem uma carta que Anchieta escreveu ao padre Dio-go Mirão em 9 de junho de 1565, esta é de muita importância

138

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

139

histórica por contar a história ocorrida na época em que nasceu a cidade do Rio de Janeiro. Era realmente um homem notável e possuidor de muitas qualidades, pois, além de sacerdote e mis-sionário, foi também gramático, historiador, poeta e teatrólogo.

Padre Luis de Gram: O padre Luís de Gram nasceu em Lisboa, Portugal, em 1523 e morreu em 16 de novembro de 1609 em Pernambuco, Brasil, aos 86 anos. Era filho de Antônio Ta-veira. Estudou direito em Coimbra, tendo entrado para a Com-panhia de Jesus em 1543 — chegando a ser reitor do colégio, além de cursar artes. Veio ao Brasil na mesma nau em que viajou o segundo Governador Geral da colônia, Duarte da Costa, em 1553. Nessa embarcação também vieram outros clérigos, dentre os quais citamos: José de Anchieta, Brás Lourenço e Ambrósio Pires e os irmãos João Gonçalves, Antônio Blasques, Gregório Serrão.

Gram foi colateral de Nóbrega, uma espécie de vice-pro-vincial, compartilhando de algumas decisões referentes à Com-panhia de Jesus, sobretudo nas capitanias do sul, em que atuavam inicialmente de forma mais incisiva. Apesar disso, divergiam em algumas opiniões, como a questão de a Companhia possuir bens, ao que Gram era contra, seguindo os preceitos do voto de pobreza. Nóbrega, por outro lado, favorável, para o sustento e manutenção no clero em terras coloniais. Também a questão da escravidão utilizada pela Companhia era um ponto de divergên-cia. Neste debate, preponderou a opinião realista de Nóbrega. Foi nomeado por duas vezes reitor do Colégio da Companhia de Jesus na capitania da Bahia. A primeira vez foi entre os anos de 1554 e 1556, e novamente assumiu o cargo de 1574 e 1575. Além destes cargos, assumiu outra posição de destaque: a supervisão das capitanias do sul.

Luís de Gram sofreu uma grave doença em meados de 1560 à qual quase não sobreviveu. Também quase foi vitimado por um naufrágio ocorrido na capitania do Espírito Santo, em 1573, no dia 28 de abril, na foz do Rio doce. Foi nomeado pro-vincial na colônia em 1560. As cartas que o indicaram para o cargo foram enviadas pelo padre Laines, um dos fundadores da Companhia de Jesus. O primeiro momento em que encontra-mos o padre Luís de Gram envolvido em assuntos relacionados à Inquisição portuguesa foi em 1560, pouco antes da instauração do segundo processo inquisitorial até então conhecido no Bra-sil — movido contra o francês João Cointas, monsenhor de Bo-lés, em 1563. A última participação do padre Luís de Gram em episódios inquisitoriais foi na ocasião da Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil, realizada pelo visitador Heitor Furtado de Mendonça entre 1591 e 1595. Dentre os denunciados pelo clérigo estavam o francês Pero de Vila Nova, o físico Jorge Fernandes, os cristãos novos Antônio Serrão, Álvaro Sanchez, Ana Roiz, Branca Dias, o pai de Simão Soeiro, Fernão Roiz e Gaspar de Bairros. Luís de Gram, enquanto membro da Compa-nhia de Jesus, sentia-se na obrigação de delatá-los à Inquisição, representada por Furtado de Mendonça.

Fonte: http://revistahistorien.com/12-%20acaojesuitica.pdf

Capítulo XV

Considerações pré-viagem

— Paschoal, quais serão nossos objetivos imediatos em relação à viagem?

— Por enquanto, tentar seguir os passos dos jesuítas e ver o que a gente consegue. Depois iremos definindo o caminho conforme as informações apareçam.

— Paschoal, eu tenho muitas dúvidas, o sentimento é de que faltam muitas coisas ou que as coisas não se encaixam direi-to.

— Sim, Pedro, eu tambem partilho dessas ideias. Aliás, ainda não analisamos uns intrigantes versos da vigésima e vigé-sima primeira citação:

Um vil pombal de infiéis//covil de ex-iniciados//sucumbin-do ao poder e cobiça//forçam irmãos a renegar o voto.

Jazem muitos guardiões//mas ainda vivos também//abri-gados na casa de Deus//protegendo o devarim//Nem sempre são religiosos de bons hábitos.

— Mais uma vez abusando das deduções, eu diria que o primeiro verso se refere ao Marquês de Pombal e sua gente. O segundo sugere que estes seriam iniciados em alguma seita ou irmandade. O terceiro seria algo como a traição de um voto im-posto nessa iniciação (talvez a isso esteja relacionada a expulsão

142

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

143

dos jesuítas). A próxima citação seria uma indicação de que es-tariam perseguindo para forçá-los a revelar o segredo. Na última citação, penso que os guardiões mortos seriam os judeus e cris-tãos novos, como ocorreu em 1506 em Lisboa, no episódio que ficou conhecido como o “massacre de Lisboa”. No antepenúltimo verso não seria demais supor que essa irmandade ou organiza-ção ainda exista nos dias de hoje e esteja ativa. No penúltimo, o pretenso segredo que estariam protegendo. O último talvez quei-ra dizer que existem não somente religiosos que vestem hábitos, mas também leigos, como irmandades ligadas a igrejas, grupos de oração ou coisas assim.

— Boa dedução, Pedro, Mas pode ser também que Pom-bal os quisesse expulsar do Brasil para que trouxessem de volta a Portugal algo que haviam levado anteriormente em sua bagagem e com isso ficasse mais fácil apoderar-se do que pretensamente pretendia. São muitas opções, mas continuam sendo meras con-jeturas.

Paschoal falou assim, mas não deixou de sentir certo mal-estar ao ouvir Pedro falar em organização presente ainda hoje disposta a proteger o que quer que fosse a qualquer custo. Por um momento, vieram-lhe à mente todos aqueles acontecimentos dos últimos dias.

— Paschoal, algumas coisas são especialmente intrigantes; as atitudes de Pombal, por exemplo. Não sei se essa afirmação do verso de que antigos iniciados hoje são perseguidores tem al-guma relação, mas o fato é que primeiro Pombal trabalha para instalar a Inquisição com a qual persegue e trucida muita gente, principalmente os judeus e cristãos novos. Mais à frente, como aconteceu em 25 de maio de 1773, ele chegou a promulgar uma

lei abolindo as diferenças entre cristãos novos e cristão velhos, inclusive proibindo que isso fosse falado ou escrito e impondo duras sanções, como chicoteamento em praça pública, confisco de bens, perda de pensão e até deportação. Sem falar que ele ex-pulsa os jesuítas de Portugal e todas as colônias.

— Pedro, penso que a esse respeito as coisas não sejam tão simples como normalmente dizem. Analisando-se impar-cialmente a história como um todo, percebe-se que, na verdade, ninguém gosta de fazer o mea culpa e admitir que errou em algo ou pelo menos analisar com honestidade os seus acertos e erros. O ser humano é muito pretensioso e julga que ele sempre está com a razão e o outro é quem está errado. É suficientemente ego-ísta para defender com unhas e dentes os seus interesses, mesmo que seja em detrimento do próximo. Se você perguntasse a cada um deles, provavelmente diriam que continuavam em paz com suas consciências, isto é: o alto clero achava que tinha o direito de governar por ser representante da lei de Deus, que se sobrepu-ja a humana. Os nobres, que haviam nascido assim porque Deus quisera, sempre viveram a vida contemplativa, e era normal que existissem seus privilégios. Pombal, por sua vez, enquanto ad-ministrador, diria que preferia um estado laico, econômica e so-cialmente equânime e não se importava que, para isso, tivesse de esbarrar no direito de o clero mandar nem na possibilidade de os nobres perderem privilégios; mesmo que fosse odiado e demonizado por esses. Quanto a governar com mão de ferro, talvez dissesse que a liberdade só poderia vir no futuro quando a igualdade fosse alcançada, e se tivesse de ser temido em vez de amado, como discutia Maquiavel, não faria para ele a menor diferença. Quanto às maquinações, agiu exatamente como todos os políticos da história. A verdade é que, apesar de tudo, foi um grande administrador.

144

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

145

— Interessante a sua tese, Paschoal. Mas ainda tenho al-guns questionamentos. Talvez seja mesmo um monte de supo-sições sem fundamento. Apesar disso, se essa coisa de segredo fosse mesmo verdade e se os guardiões estivessem mesmo por lá no meio dos jesuítas ou agregados a eles, seriam essas andan-ças pelo litoral e interior uma “técnica de tartaruga”, que precisa andar por muitos lugares e despistar muitos antes de finalmente depositar seus ovos?

— Sim, Pedro, tudo é possível. No entanto, esse era o tra-balho que “El Rei” os confiara: fazerem-se presentes no maior número possível de locais e imprimir as marcas de sua coloniza-ção, enfim, realmente tomar posse da terra. O ensino é um dos fatores de integração mais poderosos, e os jesuítas eram especia-listas nisso.

— Há, ainda, outras questões: teria Anchieta se afastado de suas funções administrativas e se isolado na aldeia de Reri-tiba com o propósito de escrever algo importante? Haveria al-gum livro possivelmente inconcluso devido à sua morte? Estaria ainda por lá, oculto em alguma parte? Seus aposentos seriam os mesmos de hoje num quarto contíguo à igreja? Haveria alguma biblioteca particular oculta em algum lugar por lá?

— São questões muito difíceis de ser respondidas. Não existem nem mesmo indícios que indiquem a veracidade dessas questões. Quem quisesse descobrir tudo isso e tivesse realmente um motivo para achar que valeria a pena remexer as cinzas do passado não teria alternativa senão ir lá. Mas, antes, possivel-mente teria de passar por São Paulo, Rio e Vitória, conforme pa-rece ter sido a sua rota.

— Sim, e possivelmente estaríamos incluídos nisso.

— Certo, porém, por enquanto, já temos tarefas demais e não podemos desfocar os objetivos sob o risco de não chegar-mos a lugar nenhum. Deixemos essas questões de lado por ora, a menos que tropecemos nelas pelo caminho, se é que você me entende.

— Entendo perfeitamente.

Capítulo XVI

Brasil

Àquela altura, eles já haviam fugido ligeiramente ao traba-lho inicialmente proposto pelo departamento, embora pudessem ter descoberto algo muito mais interessante. O estado atual dos acontecimentos os arremetia ao Brasil. Por outro lado, não dava mais para voltar atrás. O difícil era convencer a universidade a bancar o novo projeto e criar uma boa explicação para os pa-trocinadores sobre algo que nem ao menos sabiam exatamen-te o que era nem se resultaria em algo palpável. Para além dos recursos financeiros, havia o problema das autorizações oficiais que não somente eram difíceis e envolviam responder a muitas perguntas, mas esbarrariam também na lentidão da burocracia. Decidiram pedir alguns dias de licença, custear as próprias des-pesas e trabalhar como turistas e invasores, torcendo para não sofrerem complicações com a polícia. O professor titular conhe-cia algumas pessoas por aqui, e o assistente já havia estado por aqui em sua juventude e conhecera algumas pessoas.

São Paulo

Dessa vez, fizeram um planejamento de segurança bem mais apurado e tomaram alguns cuidados especiais. Levaram além da mala uma bagagem de mão, maletas como as que os executivos usam para carregar papéis contendo apenas uma peça

148

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

149

de roupa e pequenos objetos de uso pessoal. Ao desembarcarem, deixaram suas malas no maleiro do aeroporto e tomaram um táxi que deveria levá-los até a estação de metrô mais próxima. Dentro do táxi, examinaram minuciosamente as maletas e descobriram rastreadores que não conseguiam arrancar. Saltaram, pegaram o metrô e foram até a estação Tietê, onde saltaram e entraram no shopping mais próximo. Compraram roupas comuns e tênis. Vestiram-se no banheiro e lá deixaram as maletas e as roupas que tiraram. Saíram do shopping e tomaram um táxi até o hotel mais próximo. Depois de se acomodarem no hotel, começaram a procurar os pontos turísticos mais antigos da cidade. Sabiam da existência do pátio do colégio jesuíta em torno do qual a cidade teria sido fundada e de vestígios da antiga construção. Chega-ram até lá, visitaram o museu Anchieta e o pátio propriamente dito. Ficaram pasmos com a destruição histórica. Os fragmentos das edificações mais antigas que conseguiram ver não passam de vestígios da terceira edificação. Nada de ruínas do mundo anti-go, conforme se vê em muitas partes da Europa. As partes mais antigas da cidade são o centro antigo de São Paulo, muito mais recente. Até mesmo os rios da região foram retificados e canali-zados, muitos já não passam de valas de esgotos sanitários a céu aberto.

O minúsculo cemitério — provavelmente da época da se-gunda edificação — ficou por muitos anos soterrado e só muito recentemente houve uma tentativa de resgate. O que se conse-guiu organizar no subsolo do museu são paredes que parecem ter sido feitas com as pedras dos escombros que conseguiram obter nas escavações. Decidiram fazer um exame minucioso de tudo que havia por ali, no pátio, andar superior e subsolo. Quan-do estavam neste, acabaram se desgarrando do grupo de visitan-

tes, conforme sempre ocorria, dado o seu hábito de perderem mais tempo examinando o que há à sua volta. De repente, dois volumes cobertos por uma manta preta que estava no solo, como num passe de mágica, ergueram-se na frente deles e os aborda-ram firmemente. Eram dois sujeitos altos e corpulentos, como da vez anterior. Um deles se dirigiu ao professor Paschoal falando uma mistura de português e espanhol com um sotaque germani-zado e vários erros de concordância:

— Vocês estão ficando bons na arte da camuflagem. Qua-se conseguiram nos enganar, mas saibam que estão tratando com profissionais experientes em espionagem que sabem muito bem o que fazer quando os rastreadores não funcionam. Aliás, esse transtorno já é previsto desde o início das operações para garan-tir seu sucesso.

— Sim, mas só podemos trabalhar com o que temos a nos-so alcance — respondeu o professor Paschoal, exasperado.

— Vamos ao que realmente importa.

— E o que importa? O que querem de nós desta vez?

— Sua bíblia, professor Paschoal.

O professor Paschoal se apressou em estendê-la em sua direção, mas foi detido pela negativa do outro.

— Não ofenda nossa dignidade profissional, professor. Não pense que vai nos enganar com um truque tão infantil. Não é essa bíblia a que me refiro e eu tenho a certeza de que o senhor entendeu muito bem do que precisamos.

— O senhor solicitou a bíblia.

150

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

151

— Não faça piadas, professor, não tente ganhar tempo. Nós queremos o livro que está na mão do professor Pedro.

— E se eu me recusar?

— Já nos conhece, professor, sabe que não nos importa-mos em varrer as pedras do caminho para concluir nossos obje-tivos. Matar é só mais um detalhe operacional. Passe-me o livro já — disse, fazendo menção de pegar algo dentro da sua capa.

— Aqui está — disse o professor Pedro.

No momento em que vieram em sua direção pegá-la, aquela velha cena se repetiu: foram fulminados por tiros de pis-tola com silenciadores e caíram. Paschoal e Pedro trataram de sair o mais rápido que puderam e pegaram o metrô mais próxi-mo para sair dali e saltar no local mais próximo ao hotel. Che-gando lá, depois de se acalmarem um pouco, conversaram.

— Pedro, você não ficou preocupado em entregar o livro?

— Qual nada, era falso. Era apenas uma agenda nova com informações manuscritas bem distorcidas, versículos trocados por outros, etc.

— E o original?

— Está aqui — mostrou, levantando a camisa na altura do cinto.

— A minha bíblia também era falsa. A original com as anotações e marcação de páginas e versículos também está aqui, do mesmo modo que você fez — ele disse, ao que eles riram.

— Agora eu fiquei em dúvida. Será que eles haviam perce-bido o nosso jogo? Será que o truque infantil a que ele se referia era isso?

— Tudo é possível, afinal, como disseram, são profissio-nais experientes. Por outro lado, se nos matassem ali, não dei-xariam de nos revistar. De qualquer forma, nós nos arriscamos muito.

— Mas que importa? De todo modo, nos matariam mes-mo.

— Com certeza, mas tenho ainda uma preocupação adi-cional.

— Temos muitas, mas a qual exatamente se refere?

— Os nossos pretensos defensores. Como ninguém dá nada de graça, devem estar interessados nas mesmas coisas que os nossos agressores. Eles deixem a impressão de que preferem nos manter vivos enquanto formos úteis para abrir-lhes o ca-minho. Quando isso não for mais necessário, não hesitarão em liquidar-nos também. Afinal, ninguém se daria ao trabalho de estar sempre por perto só para livrar nossa pele a troco de nada.

— Com certeza, essa possibilidade é bem real, mas, pelo que vimos até agora, isso está totalmente fora do nosso controle.

— E o pior é que não dá mais para recuarmos.

— Então vamos em frente. Continuemos dentro do nosso planejamento de segurança.

— Ótimo. Descansemos um pouco e saiamos dentro de vinte minutos, uma vez que não temos muito que arrumar.

A agitação dos últimos acontecimentos e a preocupação com os próximos não os deixavam relaxar. Por outro lado, aquele dilúvio de interrogações dava voltas em suas cabeças como uma

152

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

153

tempestade. A única válvula de escape era falar muito, conver-sando sobre o tema.

— Pedro, a ideia de segurança que muitos alegam para a subida da serra em direção ao interior não é muito consisten-te, principalmente em se tratando de segurança pessoal, pois os indígenas do interior poderiam atacar também, e a possibilida-de de obter defesa era menor longe do litoral mais povoado. A menos que os que temiam não eram exatamente os índios ou que procurassem manter alguma coisa afastada do litoral. Como você analisa isso?

— Ora, essa pretensa segurança realmente não existia, como o tempo se encarregou de mostrar, segundo nos revela a história. Até mesmo o local que escolheram para assentar seu acampamento, sobre uma colina plana de onde se poderia mo-nitorar o vale dos dois rios mais próximos e escolher a melhor rota de fuga em caso de necessidade, não se mostrou tão segura. Aliás, seus problemas foram bem maiores, pois, além dos índios, também se viram ameaçados pelos brancos e mamelucos, che-gando inclusive a serem expulsos em 1640 por causa de desaven-ças com os colonos. Só conseguiram retornar cerca de treze anos mais tarde. Penso que ali definitivamente não seria seguro para a questão pessoal nem de qualquer outro tipo. Por outro lado, o que viria a ser São Paulo logo se tornou o ninho de um bando de aventureiros que visava o lucro fácil e imediato e culminou em organizações como as bandeiras. Posteriormente, embrenhou-se pelo interior à procura de ouro e pedras preciosas, imprimindo as primeiras devastações ambientais e de nações indígenas que conhecemos.

— Façamos uma retrospectiva histórica dos fatos que cul-minaram na fundação da cidade, analisando-os como for possí-vel. Faça-me uma explanação a partir do ponto inicial.

— Paschoal, pelo que sabemos, era intenção do governo português efetuar o quanto antes a colonização das terras como um meio de domínio delas. Forçosamente, teriam de sair do li-toral em direção ao interior, o que significava subir a serra. A primeira vila fundada pelos colonizadores foi Santo André da Borda do Campo, em 1553, onde, segundo consta, morava o por-tuguês João Ramalho que muitos anos antes fizera contato com os índios da região e caíra nas graças da índia Potira, a quem os portugueses chamavam Bartira, filha do cacique Tibiriçá. To-mou-a por mulher e por ali mesmo ficou vivendo. Consta que, após o dia 6 de janeiro, dia de reis, um grupo de jesuítas subiu a serra de Paranapiacaba em direção àquela vila, percurso que conseguiram fazer em dezoito dias. Paranapiacaba é um nome específico daquela região da serra do mar e, na língua tupi, signi-fica “Lugar de onde se pode ver o mar”. Nos dias que se seguiram, continuaram a subir a serra do mar até um planalto chamado Piratininga. Lá, encontraram uma colina chamada Inhapuam-buçu, de onde se tinha uma vista dos vales dos rios Tamanduateí e Anhangabaú. Ali, naquele ano de 1554, segundo relata a carta do padre Anchieta, construíram um barracão de taipa coberto de palhas de palmeira de 10x14 passos. Ainda segundo o mesmo relato, era o dia 25 de janeiro, data da conversão do apóstolo São Paulo, segundo a tradição da igreja católica, daí o nome escolhi-do para o local. No local, nasceu o colégio dos jesuítas e o padre Manoel de Paiva foi o seu primeiro diretor. No ano de 1556 o padre Afonso Brás, versado em arquitetura e experiente em edi-ficações, ampliou as instalações, construindo oito cômodos em que os jesuítas morariam. Em 1640 os jesuítas foram expulsos de lá devido a desavenças com os colonos. Voltaram em 1653.

Ele prosseguiu:

— Casas foram se aglomerando em torno do local dando origem a uma povoação que, em 1560, tornou-se vila, mas não

154

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

155

conseguiu prosperar por causa da distancia do litoral que lhes dificultava o comércio e porque as terras da região não se presta-vam à produção dos produtos de exportação da época. Em 1681 a vila era considerada cabeça da capitania e em 1711 tornou-se cidade. Apesar das dificuldades mencionadas, ali era o quartel general dos bandeirantes que se dispunham a desbravar o sertão em busca de riquezas, o que atendia aos objetivos portugueses. Uma terceira edificação de “taipa de pilão” surgiu no local após a demolição da anterior, sobrando poucos vestígios dessa. Em 1759 os jesuítas foram expulsos do Brasil por ordem do Marquês de Pombal, seus bens e tudo mais que administravam foram con-fiscados pelo estado. Assim, o local tornou-se sede do governo, funcionando desde 1765 até 1908. No fim do século XIX, novas modificações foram impressas às edificações existentes e a arqui-tetura dos antigos casarões coloniais da época não foi devida-mente preservada. Segundo registros, a igreja foi demolida em 1896, e o antigo casarão dos governadores, em 1954. O conjunto arquitetônico atual data de 1979. Hoje em dia, só o que se pode ver são fragmentos de uma parede do antigo colégio. Até mesmo o antigo cemitério, da época da segunda edificação, foi soterrado e só muito recentemente houve uma tentativa de resgate. O que se conseguiu organizar no subsolo do museu Anchieta construí-do no local são paredes que parecem ter sido feitas com as pedras dos escombros que conseguiram obter nas escavações, aquele lo-cal onde fomos abordados.

— Impressionante, Pedro, como não se preserva a história.

— Realmente, mas isso não aconteceu só ali.

— Só mais uma coisa a título de curiosidade: o que você acha da lenda que afirma que Anchieta teria levitado na presen-

ça dos índios a ponto de assustá-los e acharem que ele era um feiticeiro?

— Pelo que consta, o padre Anchieta era um entusiasta do teatro, tendo inclusive escrito peças. É possível que conhecesse também artes cênicas e, entre elas, recursos de palco. Poderia muito bem, ao se sentir ameaçado, usar um desses recursos para impressionar os índios e angariar-lhes o respeito.

— É possível. Agora, contudo, passemos à nossa nova eta-pa, vamos fechar a conta e seguir, conforme planejamos, pois já está na hora — disse, consultando o relógio.

Saíram discretamente e recusaram a oferta do funcionário de chamar um táxi. Saíram a pé por ali e tomaram o metrô até a estação mais próxima do aeroporto. Ali, tomaram um táxi até lá. Entraram na fila do check-in e, quando chegou sua vez, per-guntaram algumas coisas como se precisassem de informações, pegaram um papel e colocaram-no no bolso, simulando a guarda do talão de entrada. Em seguida, saíram em direção à sala de embarque. No meio do caminho, deram meia volta, retornaram ao saguão, foram ao banheiro e depois passaram pelo maleiro, momento em que pegaram suas malas e rumaram até a próxima estação do metrô de táxi. Foram de metrô até próximo a estação rodoviária, onde pegaram um ônibus para o Rio de Janeiro.

Rio, algumas horas mais tarde.

Desembarcaram, tomaram um táxi e foram para um hotel modesto onde poderiam descansar um pouco e examinar sua bagagem para ver se não havia rastreadores ou algum objeto es-tranho. Não conseguiram encontrar nada; pelo menos aparen-

156

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

157

temente tudo estava calmo, mas a sensação persecutória não os abandonava. Precisavam ir em frente, todavia.

— Acha que os despistamos, Paschoal?

— Duvido muito. É mais fácil acreditar que mudaram sua tática. A questão é saber como e onde será o próximo ataque e o que farão.

— O que faremos agora? Uma nova visita por aqui?

— Não sei se valeria a pena. Temo que não encontraremos nada por aqui.

— Por quê?

— Porque o rio sempre foi um lugar muito visado. Tor-nou-se a sede do governo geral da colônia a partir de 1763, quan-do, por ordem do Marquês de Pombal, este foi transferido da Bahia para cá. O Rio foi sede do reino em 1808 com a vinda de Dom João VI para o Brasil, sede do governo imperial e depois da república. Se alguém tencionasse ocultar algo, este lugar seria impróprio. Haveria muita gente da Europa, muitos aventureiros, muitos especuladores, muitos bisbilhoteiros...

— Sim, mas os jesuítas estiveram por aqui e ajudaram a Estácio de Sá a fundar a cidade e aqui também estabeleceram um colégio.

— Com certeza, mas não creio que tenham deixado algo por aqui. Por outro lado, sobre isso só existem vestígios. A pro-pósito, faça-me uma síntese sobre esse assunto.

— No ano de 1567, logo após a expulsão dos franceses, o núcleo do povoado foi transferido para o morro do Castelo, de

onde se tinha uma melhor visão e se poderia vigiar melhor, um quesito de segurança. Nessa mesma localidade, o padre Manoel da Nóbrega fundou o colégio dos jesuítas, sendo seu primeiro diretor. Depois de 1759 os jesuítas foram expulsos e a edificação serviu como hospital militar. Mesmo após 1814, quando a Com-panhia de Jesus foi reabilitada, os jesuítas não voltaram para lá. Em 1922 a cidade sofreu uma reurbanização e todo o morro do Castelo foi desbastado, sendo demolido tudo que havia por lá, inclusive a igreja, com as reformas ainda inconclusas e o antigo colégio. Os vestígios são um conjunto barroco que se pode ver no saguão do colégio Santo Inácio, uma imagem de Inácio de Loiola num altar que teria sido encomendada para colocar na antiga igreja e que não chegou a ser usada lá; bem como o sino que possivelmente tenha estado na torre da antiga igreja.

— Quanta falta de preservação! Realmente, se existisse algo que tenha sido colocado aqui, possivelmente já foi extinto.

— Então, qual nosso próximo passo?

— Vitória, no estado do Espírito Santo. Viajaremos para lá o quanto antes.

Tomaram um táxi e saíram em direção ao aeroporto o mais breve que puderam. Por sorte, conseguiram as passagens e logo embarcaram.

Capítulo XVII

Vitória

Fizeram um breve programa turístico e depois seguiram para o foco da sua pesquisa. Passaram, então, a discutir sobre a história local e as edificações mais antigas.

— Pedro, faça-me uma retrospectiva do início da coloni-zação do Espírito Santo.

— Pelo que a história registra, esta região foi reconheci-da pelos navegantes em 1501, mas foi na época das capitanias hereditárias que Vasco Fernandes Coutinho recebeu do rei uma capitania situada entre a divisa do rio Mucuri e a do rio Itabapo-ama. Desembarcou em 23 de maio de 1535 numa praia conhe-cida hoje como a prainha de Vila Velha, onde se estabeleceu o primeiro povoamento.

— Por que foi chamada de Espírito Santo?

— Em homenagem à terceira pessoa da Santíssima Trin-dade, uma vez que essa era época da oitava de pentecostes, se-gundo a tradição religiosa.

— Qual foi a primeira edificação?

— Foi uma pequena fortificação que chamaram de Fortim do Espírito Santo. Em torno dele surgiu a vila do Espírito Santo, mais tarde chamada de Vila Velha, situada onde hoje é a cidade de Vila Velha.

160

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

161

— Por que o nome “Vila Velha”?

— Porque Vasco Fernandes Coutinho teve de fundar ou-tra vila situada numa ilha próxima, que chamaram de Santo An-tônio, por ser dia 13 de junho quando nela aportaram e que foi chamada então Vila Nova. Como os índios eram extremamente hostis, atacavam constantemente e a topografia era plana, a de-fesa era dificultada. Na ilha, a possibilidade de defesa era maior, pois havia montanhas e 33 ilhas menores. Além disso, a entrada da baía onde a ilha maior se encontra era mais estreita, então pensavam ser mais seguro mudar para lá. Essa é a atual ilha de Vitória, que é a Capital do estado.

— Por que “pensaram”? Não era realmente mais segura?

— Um pouco mais segura, mas não ficaram totalmente imunes aos ataques. Segundo os registros, em oito de setembro de 1551 os índios atacaram esse novo povoado. Os colonos re-sistiram bravamente e os venceram, então o povoado começou a ser chamado Vila da Vitória, e daí derivou o nome atual.

— E quanto às missões dos jesuítas? Quando chegaram?

— As primeiras começaram a chegar nessa época. Vieram exatamente com o propósito de catequizar os índios de modo a evitar novos problemas.

— E depois disso? A situação ficou definitivamente calma na região?

— Não. No final do século XVI começaram a acontecer muitos ataques de invasores franceses, ingleses, holandeses e corsários, de um modo geral. Foi necessário melhorar a defesa, então foram construídas quatro fortificações em várias posições da vila. Na verdade, foram oito, contando com os de Vila Velha.

— Onde se instalaram os jesuítas na vila?

— Na parte leste da ilha principal, às margens da baía, em um terreno um pouco elevado. O padre Afonso Brás e o irmão Simão Gonçalves inauguram em 25 de julho de 1551 a constru-ção primitiva da igreja de São Thiago, feita de madeira, barro e palha. Um incêndio destruiu a primeira sede da igreja. O padre Ignacio de Tolosa comandou a reconstrução (dessa vez de pedra e cal de conchas), além de perfurarem um poço a cerca de dez passos atrás da igreja. É o local onde se localiza hoje o palacio Anchieta, sede do governo do estado, após várias modificações.

— Onde o padre José de Anchieta entra na história dessa igreja?

— O padre José de Anchieta já havia passado antes pelo Espírito Santo, tendo inclusive fundado em 1569 a povoação de Iriritiba, a cerca de 80 km ao sul da Vila de Vitória. Em 1587, quando ainda era o provincial da companhia de Jesus, depois de 10 anos nesse exercício, solicitou a dispensa dessas funções, o que foi concedido. Contudo, ele teve de dirigir o colégio dos jesuítas de Vitória. Chegando aqui, concluiu a ala onde seria o colégio. Em 1595 conseguiu ser dispensado também dessas fun-ções e retirou-se para Reritiba onde faleceu em 1597. Seu corpo foi transportado pelos índios para Vitória onde o sepultaram nas dependências da igreja de São Thiago, atual palácio do governo, onde seu túmulo pode ser visitado.

— Fale um pouco sobre a arquitetura dessa contrução.

— Dessa construção restam apenas vestígios no interior do palácio, mas relatos e pinturas antigas atestam que seria um quadrilátero com duas torres e um relógio, típico da arquitetura

162

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

163

moura do século XVI. O padre Anchieta concluiu a construção da igreja e acomodações. Em 1587 foi construída a segunda Ala, e, em 1734, a terceira, que fechou o pátio. Em 1759, com a expul-são dos jesuítas, o colégio destes foi extinto e tudo foi confiscado pelo governo da época. Em 1798, dois anos depois de um novo incêndio, houve uma recuperação do que ja funcionava como palácio do governo. Sobrava a igreja de São Tiago, que servia à comunidade. Em 1911 ela foi comprada do bispado para aumen-tar a area construída do palácio. Assim, em 1912, houve uma reconstrução e o início da descaracterização do conjunto. Na-quela época, a torre menor foi demolida. Finalmente, em 1922, a segunda torre tambem foi derrubada, acabando completamente com o que havia do prédio antigo.

— Quanta falta de preservação. Para nós, historiadores, isso é um sacrilégio. Mas será que sobrou alguma coisa daquela época?

— Além do túmulo do padre Anchieta, ainda se tem vestí-gios do altar da Igreja de São Thiago nas dependências do palácio do governo; e uma imagem de Santo Inácio de Loiola e outra de São Francisco Xavier. Estas estão atualmente na Igreja de São Gonçalo, construída em 1776 pela Irmandade “Nossa Senhora do Amparo e da Boa Morte” existente desde 1707, para onde foram levadas na época da demolição da Igreja de São Thiago.

— Existiram outras irmandades na vila?

— Pelos registros que já examinamos existiram tambem a “Venerável Ordem Terceira da Penitência” e a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.

— Existem outras igrejas antigas além destas?

— Sim. Em Vitória há a capela de Santa Luzia, a mais anti-ga, construída no século XVI por Duarte Lemos, dono da sesma-ria onde se situava a vila. Fora concedida pelo donatário da ca-pitania, com arquitetura em estilo colonial e altar barroco, atual sede regional do instituto do patrimônio histórico-nacional. Há o Convento Nossa Senhora do Monte do Carmo, construído em 1682, possuindo uma igreja e o convento propriamente dito. Há também a Igreja do Rosário, construída em 1765, e esta possui várias peças antigas de arte sacra. Existe, além dessas, a Igreja de São Gonaçalo, construída em 1766, sobre a qual já falamos. Ela se tornou a igreja matriz após a demolição da Igreja de São Tia-go, onde é a sede da irmandade de Nossa Senhora do Amparo e da Boa Morte, hoje, uma arquiconfraria.

Há também o Convento de São Francisco, contruído pe-los padres franciscanos a pedido do donatário Vasco Fernandes Coutinho. A arquitetura é em estilo colonial. Lá existe a capela de Nossa Senhora das Neves e vestígios de antigo cemitério. Hoje é sede da arquidiocese de Vitória.

Ele prosseguiu:

— Em Vila Velha existe a Igreja do Rosário, construída em 1535, logo após a chegada do donatário Vasco Fernandes Couti-nho, sendo a mais antiga do estado. Outra igreja é a capela do frei franciscano Pedro Palácios, contruída em 1560. Por último, há o Convento da Penha, construído em 1561 no cume do morro, a 154 m de altura, a pedido do filho do donatário.

— E as outras das redondezas?

— Existem várias, sempre cercadas de muitas lendas sobre tesouros ocultos, túneis e outras coisas do imaginário popular.

164

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

165

Alguns exemplos são a Igreja de Nossa Senhora da conceição da Serra, construída em 1556, onde hoje é a Sede do município de Serra; a Igreja dos Reis Magos, construída entre 1569 e 1580 na localidade de Nova Almeida, também no município de Serra; a Igreja de Sant’Ana e Santa Maria, construída em 1585 em Gua-rapari ES; a Igreja de Santana, construída em 1619 em Meaípe, município de Guarapari. Além delas, há a Igreja de São Mateus, construída em 1764 em São Mateus e a Igreja de Nossa Senhora da Assunção, construída entre 1569 e 1604. Foi nessa que o padre José de Anchieta passou os últimos anos de sua vida e morreu.

— Existe algo de característico nessas edificações?

— Salvo algumas variações em seu estilo arquitetônico, alguns itens parecem ter sido sempre priorizados em função de suprimentos, segurança, exercício do ofício religioso, exercício da missão a que se propunham. Assim temos construções em lo-cais elevados com vista privilegiada sobre toda a região, presen-ça de torres que poderiam facilitar a observação, poços de água ou outros mananciais a distância relativamente curta, moradia contígua ao templo, rotas de fuga fáceis, abrigos em localidades próxima em forma de oratórios (grutas), etc.

— E essas históriahistórias sobre túneis têm mesmo al-gum fundamento?

— É possível que tenha existido uma rota de fuga na cons-trução para que fosse possível sair rapidamente sem ser nota-do para uma área externa de fácil evasão. O resto fica por conta da imaginação popular. Existem relatos de algumas pessoas que afirmam ter encontrado algo que parecia a boca de algum tú-nel, o que foi devidamente aumentado pelos contadores de his-

tórias. São exemplos disso o do morro do convento, que ligaria a igreja de Guarapari ao morro do Atalaia e o; que ligaria a igreja de Anchieta ao Monte Urubu. Tecnicamente, seria impossível a construção de túneis tão extensos como os citados nas lendas em terrenos de rochas sólidas e outros acidentes, especialmente em épocas onde as técnicas e ferramentas eram rudimentares e a mão de obra especializada nessa atividade, escassa.

— Excelentes relatos, Pedro, vejo que estudou bastante o assunto, asim como eu.

— Sim. Estamos afiados, como dizem. Mas e agora, qual será o nosso próximo passo?

— Com certeza, a cidade de Anchieta, a 80 kilometros da-qui de Vitória, a antiga aldeia de Iriritiba onde o padre Anchieta passou seus últimos anos. Antes, façamos uma visita a alguns pontos turísticos mais próximo dos nossos interesses.

Capítulo XVIII

Os fantasmas do palácio

Para cumprir o papel de turistas e tentar captar mais al-guma coisa, decidiram visitar o palácio Anchieta, sede do go-verno do estado. Fizeram-no acompanhando um pequeno gru-po de visitantes para usufruir da presença de um apresentador que narrava todos os fatos históricos e contava tudo sobre aquele monumento. Contou inclusive sobre lendas e histórias de fantas-mas de pessoas que residiram ali no passado e insistiam em não deixar o prédio, por essa razão, assombravam as pessoas que os incomodavam para que elas saíssem rapidamente dali. Visitaram vários cômodos onde ainda funcionam departamentos do po-der público. Visitaram os diversos salões. Ao chegar ao recinto onde está o túmulo do padre Anchieta, Paschoal e Pedro ficaram bastante entretidos com os detalhes do ambiente e examinaram tudo mais detalhadamente, então, acabaram se perdendo do gru-po. Não demorou muito e apareceram coisas estranhas, e, por fim, dois fantasmas de pessoas vestidas com as roupas daquela época, no exato momento em que examinavam um fragmento de parede antiga.

— Quem são vocês? — Falou o professor Paschoal em tom desafiador.

— Não importa, o importante é que sabemos que são vo-ces: professor Paschoal e professor Pedro, pesquisadores da uni-versidade de Coimbra.

— E o que vocês têm a ver com isso?

168

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

169

— Vocês nos devem a vida de quatro dos nossos compa-nheiros. Lembram-se de Amsterdã e São Paulo?

— Lembro-me, mas não morreram por isso, mas prova-velmente pelo que procuravam.

Àquela altura, eles já sabiam que a história dos fantasmas era um engodo. Estavam mais vivos do que nunca. Aliás, eram de um tipo físico bem parecido com os primeiros agressores. De fato, parecia que a organização ou seja lá o que fosse escolhia bem seus agentes.

— Pode ser, mas agora nós viemos buscar.

— Mas que diabos! Isso não vai acabar nunca?

— Vai acabar hoje, professor, pelo menos para os senho-res.

— Não temos o que procuram. Nem livros, nem câmera fotográfica, nada portamos.

— É claro que sim, professor.

— Não, realmente não sei em que podemos ser úteis.

— Oh, professor, não subestime a nossa inteligência. Passe o livro, agora, é a última coisa útil que vai fazer. Acredite, é para uma boa causa. Pena que não viverá para receber a recompensa.

— Não há livro nenhum — tentou blefar o professor.

— Não tem importância, professor, nós o conseguiremos de qualquer jeito.

— Por que acha que temos o que procura? No livro não há nada que indique algo conclusivo, nem sei ao menos o que poderia ser.

— É claro, professor, tambem não sabemos exatamente. Se soubéssemos, iríamos direto ao ponto e não nos daríamos ao trabalho de persegui-los.

— Então por que nos perseguem?

— Por que possivelmente as informações que possuem complementem as nossas. Seus pretensos protetores também o sabem, por isso mantêm vivos. Agora mudamos a estratégia: com suas informações seguiremos sozinhos.

— Quer dizer que pretendem matar-nos por uma símples possibilidade?

— Oh! Professor, nós somos colegas de profissão. Morrer pela causa faz parte de nossas vidas.

— Não somos colegas. Nossos motivos são nobres. Vocês só pretendem tirar algum proveito disso.

— Não seja pretencioso, professor. Não há ninguem mais nobre que o outro por aqui, todos somos mercenários. Uns tra-balham para alguma organização, outros vendem seus achados para o museu que pagar melhor, os senhores transformam tudo em livros. No fim, tudo se transforma no vil metal.

— A coisa não é bem assim. Saberíamos nos abster se jul-gássemos conveniente para a história da humanidade.

— Muito comovente, professor, mas sua nobreza também não livrará sua pele.

— Por que não pegam o que querem e nos deixam ir em paz?

— Não somos tolos, professor. O pouco que sabem já é demais. Se saírem daqui e publicarem algo, brevemente a Euro-

170

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

171

pa inteira entrará num processo de caça ao tesouro, e isso não é bom para nimguem. Vocês representam um risco desnecessário para as operações e devem ser eliminados.

— Mas voces ainda precisam...

— Basta, professor. Tarde demais para tentar negociar. Agora serão sacrificados num ritual de expiação pelo sangue que nossos membros derramaram em missão pela causa. Será uma morte honrosa e purificadora das suas almas.

— Não entregaremos nada e lutaremos se for preciso, isso atrairá a atenção da segurança. Se nos matarem, estarão encren-cados também.

— Professor, não nos ofenda. Somos profissionais, sabe-mos como realizar o nosso ofício.

Imediatamente, os falsos fantasmas tiraram de dentro das longas capas um tipo de cutelo parecido com uma foice manual usada para ceifar plantações na época da colheita e se precipita-ram sobre eles, prontos para executá-los num macabro ritual de sangue. Naquele momento, ouviram-se alguns breves chiados e os agressores caíram fulminados por tiros de pistolas com silen-ciadores. Só se ouviram mesmo aqueles silvos surdos e bem bai-xo, exatamente como acontecera em Amsterdã e São Paulo. Toda aquela sensação horrível voltou naquele momento. Procuraram fugir daquele lugar o mais depressa possível, dar por encerrada a visita e sumir dali rapidamente, antes que descobrissem os cor-pos e relacionassem o fato à presença deles.

Chegaram ao hotel psicologicamente arrasados. Como anteriormente, não sabiam mais o que fazer. Ademais, esta-

vam desanimados, não sabiam se conseguiriam levar a cabo a sua missão e seus pretensos protetores também eram perigosos e certamente não estariam fazendo aquilo de graça — além de sempre estarem nos locais onde estavam. A vigilância ostensiva era muito desagradável. E eram especialistas em operações secre-tas e arriscadas. Era incrível como a organização conseguia agir, fazendo desaparecer rapidamente todos os vestígios de uma cena de assasinato. Afinal, aquele era um lugar de muita circulação de visitantes e servidores públicos. Após algumas horas de perple-xidade e tentativas de dscanso, conversaram muito e concluíram que já haviam ido longe demais para desistir. Assim, decidiram continuar. Precisavam ainda fazer uma visita à Igreja dos Reis Magos, na localidade de Nova Almeida, município da cidade de Serra — na verdade, região metropolitana de Vitória. Veriam o que conseguiam por lá, afinal, o princípio da construção em pe-dras datava de 1569 pelo padre Brás Loureço com auxílio dos índios tupiniquins, sendo a de 1557 de palhas. Qualquer infor-mação poderia ser relevante. O nome de “Reis Magos” se deve à data de sua efetiva inauguração em seis de janeiro, dia dos Reis Magos pela tradição católica. O ano, segundo consta, foi de 1580.

Capítulo XIX

A Igreja dos Reis Magos

É uma edificação tipicamente jesuíta. Construída sobre um monte de onde se domina a entrada da barra, toda a chegada por mar, praias, enfim, toda a região. Um solo firme, propício para as fundações da edificação, uma cobertura de terra sobre a rocha nas regiões adjacentes. Era fácil construir túneis, se neces-sário, e estabelecer rotas de fuga seguras ou sair sem ser notado por olhos curiosos para pegar água e outros víveres não muito longe dali. Havia possibilidade de camuflar ou ocultar pertences valiosos, se fosse o caso. Havia um rio nas proximidades, terras férteis para uma agricultura de subsistência, as praias da redon-deza ofereciam pedras de corais de tamanhos apropriados ao transporte e à própria edificação das paredes. Todas as condições necessárias para fundar uma vila estavam ali. Tudo indicava que haveria algo de interessante, até porque, como em todas as anti-gas construções jesuítas, ali também havia uma lenda a respeito de um túnel e ouro enterrado. Valia a pena conferir.

Examinaram palmo a palmo todos os recônditos com tino profissional, mas tanto discernimento só serviu para produ-zir numerosas dúvidas a suscitar respostas convincentes. Como retirá-las de histórias tão infactíveis? Possivelmente, muitas das conjeturas estavam certas. Atrás de cada altar haveria uma pas-sagem secreta; atrás de cada parede, a boca de um túnel; sob cada banco de pedra, uma entrada oculta; em cada laje do piso, um dissimulado mapa; e sob cada tampo de mesa, um diário,

174

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

175

registrando a história num linguajar apropriado — poemas me-tafóricos, códigos e cifras. Era realmente uma infinidade de coi-sas a serem examinadas; árdua tarefa que poderia levar anos. O melhor que poderiam fazer era registrar tudo em seus mínimos detalhes para numa segunda oportunidade retornar com indica-ções mais precisas.

A construção em quadra seguia o estilo de várias edifi-cações medievais da Europa e, ao que tudo indica, o arquiteto da ordem, o padre Brás Lourenço, conforme indica a história, fundamentou seu projeto nos aspectos utilitários da vida dos ocupantes. Alguns itens relativos à segurança, como passagens internas no subsolo comunicando cômodos, túneis e rotas de fuga, entre outros, não ficaram explícitos por razões óbvias. A torre onde os sinos ficariam cumpriria, também, a finalidade de segurança como de postos de observação e alguns detalhes espe-cíficos sobre elas poderiam servir de orientação aos navegantes se, de alguma forma codificada, exprimisse coordenadas geográ-ficas, como era o caso dos faróis para a navegação. O altar-mor é entalhado em madeira e, segundo consta, seria de 1700, possivel-mente tenha sido sobreposto a um antigo esculpido na parede de pedras. Igualmente antiga é uma pintura em óleo sobre madeira atribuída ao frei Belchior Paulo, de 1587, conhecida como Ado-ração dos Reis Magos.As telhas originais de formato meia cana não seguiam um rigoroso padrão de medidas, pelo que se supõe que tenham sido produzidas utilizando as coxas humanas como molde. Alguns poucos tijolos de barro cozido possuem o dobro do tamanho do padrão atual. A argamassa que une as pedras su-gere uma composição de cal de conchas, areia, barro e alguma substância aglutinante e neutralizadora dos efeitos da salinidade que se supõe serem gordura de animais marinhos, como boto, golfinhos ou outros. Alguns autores admitem também baleias — hipótese carente de evidências.

As peças de mármore também são antigas e provavel-mente vieram prontas da Europa, conforme denuncia seu estilo. O calabouço parece ter sido um espaço da construção adapta-do para essa finalidade após a expulsão dos jesuítas em 1759, como as grades grossas e rudes. Num pequeno aposento, uma laje de pedra servia de assento ao que parecia ser um banco de pedras. Havia alguns riscos, como se fosse uma inscrição que, com algum abuso de interpretação, seriam letras minúsculas do alfabeto grego (Αυδαχεσ φορτυνα ϕυϖατ). Associadas, forma-riam uma célebre frase de Terêncio, da antiga literatura romana: “Audaces fortuna juvat”, ou seja: “A sorte favorece os audaciosos”. Soava como um desafio a quem desejasse remover a laje e entrar por ali para uma aventura — caso se admitisse que fosse a entra-da de uma passagem secreta ou um túnel.

Numa laje maior como o tampo de mesa havia algo como um tabuleiro de um jogo antigo com divisões onde peças se des-locam, como xadrez ou dama, mas de aspecto algo diferente. Continha diversos desenhos, indicações e inscrições. Com algu-ma imaginação e abuso de interpretação, não seria tão absurdo admitir tratar-se de um mapa daquela edificação e adjacências. Curiosamente, aquela mesma inscrição em letras gregas e várias outras apareciam disfarçadamente em vários pontos espalhados por toda a área, próximo a algumas figuras. Para formar-se uma ideia, estão descritas algumas a seguir. Aquela primeira frase citada acima aparecia no início de um desenho em formato de corredor, com poucas mudanças de direção e terminando num determinado lugar com outros desenhos e indicações. Todas as outras inscrições seguiam o mesmo estilo, ou seja, caracteres minúsculos do alfabeto grego, representando sempre frases cé-lebres da literatura romana antiga, de diversos autores, em latim e numa sequência que parecia mesmo um jogo. Alem da primei-

176

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

177

ra comentada acima, vinha: Νοχτε λατεντ µενδαε: “Nocte latent mendae”; “A noite esconde os defeitos”, de Ovídio. Esta poderia indicar que no escuro seria muito mais fácil sair sem ser nota-do. Quase no fim deste havia: θυισ χυστοδεσ ιπσοσ χυστοδεσ: “Quis custodes ipsos custodes”, uma célebre frase de Juvenal, ou-tro grande autor Romano antigo, que quer dizer: “Quem vigiará os guardas?”. Ela parecia sugerir que a guarda do lugarejo àquela hora ainda dormia. Logo no final havia: αλεα ϕαχτα εστ = Alea jacta est, uma frase do general e imperador Romano Júlio Cesar que se traduz por: “A sorte está lançada”. É, também, um possível desafio, como se indicasse: “Vá em frente, já não é possível vol-tar”. A essa frase, seguia-se a última dessa sequência χαρπε διεν: “Carpe diem”, uma frase de Horácio que significa: “Aproveite o dia”. Ela aparentava ser um cumprimento de despedida: “Boa viagem, aproveite a luz do dia para caminhar porque a viagem é longa”.

O desenho do tabuleiro tem características peculiares: to-das as figuras e indicações existentes estão circunscritas a um conjunto de círculos concêntricos em que o diâmetro de cada círculo contido pelo anterior diminui progressivamente, como se fosse uma escala logarítmica. Também circunscritas estão várias linhas que se cruzam da mesma forma que as existentes numa rosa dos ventos com os pontos cardiais, colaterais e subcolaterais e com uma pequena estrela desenhada na periferia do último cír-culo na extrema direita. Se essa hipótese for aceita, ela definiria a posição geográfica das figuras ou do que representam. A figura maior, constituída de vários quadrados circunscritos a outros e subdivididas em quadrados menores, com alguma abstração, do mesmo modo, sugere a planta baixa da edificação. O desenho do tabuleiro tem a aparência como a que segue:

Sabiam, no entanto, que tudo aquilo era um excesso de imaginação e um abuso de interpretações oriundas de uma von-tade exacerbada de encontrar alguma indicação — o que fazia com que fossem tentados a enxergar algo nas entrelinhas. Pode-ria perfeitamente não ser nada daquilo. Claro, os historiadores possuem aquele mesmo racionalismo dos cientistas, que, como René Descartes, não aceitariam nada como verdadeiro a menos que houvesse alguma evidência.

Num buraco na parede, muito disfarçadamente, encon-traram algo singularmente interessante: um recipiente de bron-ze no qual havia uma luneta antiga, do tipo telescópio, que se subdivide em vários gomos. Muito mais interessante, no entanto, era o que a envolvia, um tipo antigo e rudimentar de papel feito com finas fibras vegetais no qual havia algo escrito numa lingua-gem bastante poética com figuras de linguagem impressionantes. Quando lida atentamente, parecia ser uma carta que deveria ter sido enviada a alguém e depois complementada. Algo como uma

178

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

179

carta de despedida desta vida. Ademais, parece indicar uma rota de fuga e um caminho a ser trilhado.

Um texto poético, mas, ao mesmo tempo, realista e tene-broso como a própria história. O seu teor. Vejamos o seu teor a seguir:

Assim fala o último ovo gestado no ninho dos reis:

Os lobos odeiam os corvos porque estes conseguem enxer-gar seu desenfreado repasto, sua ferocidade diante das presas e disputas ferrenhas dentro do próprio covil. Os corvos devem estar atentos, pois os lobos os têm como pérfidos. Acusam-nos de usur-par suas presas e para retê-las utilizar os mesmos instrumentos de coação. Dizem que utilizam o látego de couro que escraviza o cor-po, enquanto aqueles o látego da persuasão que escraviza a alma; e que o que os lobos conseguem à custa de ódio os corvos obtêm de bom grado. Que a privação de suas presas priva também seus senhores, e esse argumento tem sido forte e decisivo para o funesto desfecho que se avizinha. Cuidem os corvos para que essa ignomí-nia de modo algum se assemelhe à verdade.

Até o presente, a sorte que determina que os corvos vivam não muito longe do covil é que os lobos estão tão famintos que não conseguem formar uma alcateia. Ávidos como estão, não admitem a partilha da carniça do seu território e procuram reservá-la só para si enquanto úteis aos seus propósitos malignos. O risco imi-nente dos corvos é que são guardiões dos tesouros do céu que os lo-bos pensam ser os da terra. Talvez por isso ainda não os devoraram e até aparentemente alguns os protegem, mas essa mesma causa de ventura pode tornar-se ruína. Urge que os corvos saibam para que lado sopram os ventos e tentem se proteger dos fatídicos vendavais. Os ventos marinhos anunciam que os abutres planejam expulsar os corvos, usurpar seus ninhos e afanar sua mísera carniça. Voam ligeiramente nas asas do vento sobre as vagas. Não tardarão a che-gar e concretizar seu intento. Se alguém tem de penetrar o mundo

das trevas, urge que o faça sem delongas, pois este só se ilumina com fogo, enquanto no das luzes os ventos as apagam quando bri-lham, deixando o errante sem rumo. Só conseguirá chegar ao reino das luzes quem antes mergulhar no poço estéril, for digerido pelas entranhas do inferno e, finalmente, for expelido pela sua cloaca. Mas ai de quem pensar que ali se acabam todos os tormentos. Em verdade vos digo que é só o princípio das provações de uma longa jornada. Que não se arrefeçam os ânimos antes de suportar com determinação os primeiros sessenta mil côvados. Ali o corvo depo-sitará seu ovo que, fecundo, se disseminará.

Ultrajada pela ousadia de um audacioso que pretendia vê-la desnuda, a guardiã do Tártaro rugiu ferozmente e abriu sua hor-renda garganta, mostrando as entranhas pavorosas de onde exala um hálito cálido, malcheiroso e sufocante. Após tragá-lo, cerrou para sempre seu olho mortiço e adormeceu no sono dos séculos. A princesa negra ansiava pelo rei que ainda dormia quando o penúl-timo corvo alçou seu voo sinistro na escuridão, fingindo se esque-cer do ovo gestado em árdua postura. Contudo, não nos iludamos com as aparências, pois esse sempre estará consigo. Não censuro o penúltimo corvo por não levar um ovo em casca para outro ninho, na verdade, eu o louvo, pois os abutres sempre estão à espreita para aniquilar qualquer projeto de vida em seu nascedouro.

Exaurido em suas forças, não pleiteou o último corvo aban-donar seu ninho onde pressente perecer para não malograr o voo seguro do penúltimo corvo — cujo ovo pode salvar a espécie. Nada teme, pois não sobreviverá ao desfecho.

Agora é tarde. Ouço nitidamente o som das sete trombetas anunciando o início do fim. Logo, virão os abutres despojar os cor-vos que ainda encontrarem e expulsá-los de seus pobres ninhos. Mas não tardarão a chegar os quatro cavalheiros que vêm a galope exterminá-los.

180

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

181

— É realmente intrigante e ao mesmo tempo assustador, voce não acha Paschoal?

— Sim, como a história da humanidade.

— Soa como um vaticínio de um feiticeiro que se cumpriu inteiramente.

— Sim, o que está escrito aconteceu mesmo na história do Brasil. A propósito, Pedro, como voce analisa esse escrito?

— Acho que esse último ovo gerado no ninho dos reis tra-ta-se deste escrito, que teria sido o último documento gerado aqui na igreja dos Reis magos. A primeira parte do documento seriam os quatro primeiros parágafos, que parece ter sido uma carta que deveria ser enviada a algum lugar distante dali. A se-gunda parte, representada pelos dois parágrafos seguintes, pare-ce indicar o momento certo de partir, o caminho a ser seguido e mais algumas recomendações. A terceira e última parte certa-mente teria sido escrito a posteriori no mesmo papel e parece descrever a saída do emissário que preferiu não portar o docu-mento em espécie. Parece justificar também o porquê de o últi-mo ocupante que escreveu pelo menos o restante do documento ter resolvido não partir, além de descrever o desfecho da história.

— É uma conjetura, mas perfeitamente cabível. Continue sua análise, por favor.

— Então, vejamos passo a passo. Os corvos seriam os pa-dres, em referência à sua batina preta. Por alguma razão que não está bem explícita, sobraram somente dois nesse lugar que deno-minaram “Ninho dos Reis”, cuja contrução é bem anterior a eles, pois o documento dá a entender que eles conheciam as rotas de fuga, embora nunca as tivessem utilizado; daí a necessidade de descrevê-las.

— Parece que esse documento teria sido escrito nos mo-mentos precedentes à expulsão, você concorda, Pedro?

—Sim. Por razões provavelmente escusas, mantiveram esses últimos cativos, pois provavelmente os outros teriam sido banidos um pouco antes da expulsão oficial e compulsória dos membros do clero. Prevendo a acirrada persegição final, pro-cessos judiciais, expropriação e expulsão, precisavam advertir e orientar algumas comunidades distantes dali através de uma carta. O ovo, como já disse, era a carta que possivelmente de-veria ser multiplicada ou levada a outras comunidades. Como você mesmo observou anteriormente, o que descreve a primeira parte é exatamente o que registra a história do Brasil. Os lobos seriam os colonos que odiavam os padres, os corvos da carta, porque eles reprovavam muitos dos seus atos pagãos, tais como a poligamia, a avareza, a soberba, a luxúria e a ira. Contudo, o desprezo deles pelos membros do baixo clero era tão grande que eles nem se importavam de fato com suas reprovações. A maior de todas as razões desse ódio era a interferência no andamento das questões puramente administrativas, como a escravidão dos indígenas, principalmente porque consideravam a existência de dois pesos e duas medidas. Eles mesmos que condenavam a uti-lização de mão de obra indígena sem remuneração a utilizavam largamente para a construção de templos e escolas, com a úni-ca diferença, segundo eles, sendo que, enquanto outros usavam o chicote, eles usavam a boa lábia. A carência de mão de obra impedia um melhor rendimento e aproveitamento dos recursos, então, além de desfavorecer o enriquecimento da colônia, tam-bém fazia o mesmo com a metrópole. Esse argumento tambem foi decisivo para concretizar o processo de expulsão.

O trecho seguinte parece afirmar que existia um grande risco à segurança controlado por uma espécie de trunfo que su-postamento possuíam, embora fosse uma corda bamba.

182

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

183

— Será que existe algo mais nas entrelinhas de profundi-dade maior do que aparenta aqui?

— De fato. Subtraindo-se o conhecido formalmente pelo que a história documenta, esse parágrafo talvez seja a novidade e a parte mais importante de toda a escrita, principalmente no trecho: “Tesouros do céu que os lobos pensam ser os da terra”. É uma frase de múltiplos sentidos que tanto pode ser aquele bí-blico dito em Mateus 6.19—20 como algum valioso segredo que, por alguma razão, deveria ficar muito bem guardado e protegido de todas as formas. É claro que, se fossem os da terra ou, pelo menos, só ele, estariam protegidos até que se apossassem dele. Se fossem só os do céu, estariam seguros até que se descobrisse que era somente aquilo. No entanto, se fosse algum tipo diferente e muito importante, estariam perdidos se pelo menos descon-fiassem, podendo inclusive serem acusados de conspiração. De qualquer modo, realmente havia algum tipo de tesouro, e eles se beneficiavam até então dessa corda bamba da dúvida.

— O próximo paragrafo parece falar dos prenúncios do acontecimento final, você concorda?

— Inteiramente. Para mim, está muito claro. Os ventos marinhos são as notícias da metrópole dando conta que os ma-quinadores do poder, aqui chamados de abutres, estavam mes-mo decididos a respeito da expropriação e expulsão e que certa-mente já estavam a caminho.

— E as afirmações a seguir numa liguagem metafórica, como você as interpreta?

— O trecho a suguir orienta a forma de evasão, o momen-to da partida, o trajeto e a forma de agir, ou seja se alguém quer seguir viagem, que seja cedo. O mundo das trevas, que seria o início do trajeto, só pode ser subterrâneo, onde é necessário usar tochas acesas para iluminar o caminho. Inclusive, ele descreve

veladamente o princípio do trajeto, no qual esse poço estéril po-deria ser um antigo fosso por onde teriam subido as pedras da contrução da edificação e mais tarde teria sido aproveitado como rota de fuga; depois de devidamente encoberta e camuflada. Ou seria um poço desativado por falta d’água ou ativo com uma saí-da lateral pouco antes do nível da agua continuando um trecho na horizontal até sair numa caverna ou gruta bem camuflada, aqui chamado de cloaca, numa alusão ao canal pelo qual saem as fezes das aves e outros animais. O mundo das luzes seria a continuação do caminho que precisava ser seguido rapidamente antes que anoitecesse, pois lá fora o vento apagaria as tochas e o viajante ficaria perdido. Ademais, haveria o perigo dos ataques de animais com hábitos de caça noturnos, como os grandes feli-nos. A seguir, o texto parece advertir que tudo não passa apenas do início de uma longa jornada, dando, inclusive, uma noção da distância do lugar onde a mensagem deve chegar primeiro a cerca de trinta kilômetros dali. Provavelmente, é a igreja matriz da Serra.

— E as metáforas a seguir?

— Essa foi a parte escrita, ao que tudo indica, posterior-mente no mesmo papel da carta que deveria ter sido levada. Começa descrevendo o exato momento da partida. O Tártaro é seguramente uma alusão à ideia mais próxima do inferno da mitologia grega situado no mundo subterrâneo, sendo seu guar-dião o recinto onde está essa garganta. Possivelmente, este seria algum alçapão disfarçado sob um inocente tampo de um banco. Esse “tragá-lo” evidencia a penetração do fugitivo por essa en-trada, que, conforme o texto indica, se fechou e nunca mais seria utilizada. Por isso, talvez, tenha sido camuflado. A seguir, está escrito o momento da partida: de madrugada, ou “a princesa ne-gra”, presente bem antes do nascer do sol, o rei. Depois, ele infor-ma que o emissário não levou o objeto principal de sua missão e parece que o fez conscientemente por julgar desnecessário, devi-

184

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

185

do a conhecer inteiramente o seu teor e por precaução, pois seria uma prova material de conspiração, caso fosse interceptado.

— E a respeito do último que escreveu pelo menos essa parte final do documento?

— No penúltimo parágrafo ele explica que não partiu por-que já estava velho e doente; assim, se tentasse partir, ele seria um estorvo ao outro que teria condições de levar a missão a cabo. Pa-rece prever que já estava nas últimas e que morreria a qualquer momento, porém não deixa de descrever os momentos finais quando os algozes chegariam. Numa última reflexão, ele prevê a chegada dos quatro cavalheiros, numa alusão ao texto de Apo-calipse 6.2–7, ou seja o final dos tempos (que aconteceria mais à frente). Isto é, a dominação do anticristo, as disputas internas, desavenças desentendimentos e guerras, a escassez, dificuldades e fome. Finalmente, a morte em várias conotações.

— Pedro, a meu ver, ficou uma questão um tanto contro-versa. O emissário não levou a carta porque não achou neces-sário fazê-lo devido a supostamente conhecer o seu teor e ser capaz até mesmo de multiplicá-la depois. Contudo, segundo sua análise nessa carta, havia também uma orientação a respeito do trajeto e as possíveis dificuldades a serem encontradas. Se for vá-lida a hipótese de que nunca haviam trilhado aquele caminho antes, haveria então alguma explicação ainda não considerada para que conhecessem de alguma forma inequívoca o caminho a ponto de o trilharem com segurança?

— A meu ver, sim: o jogo. Na verdade, aquilo que aparenta ser um misto de mapa da edificação e áreas externas adjacentes e até mesmo as longínquas e um tabuleiro de jogo comum é muito mais do que isso. Primeiramente, o mapa é bastante sofisticado, do tipo circular com círculos concêntricos e com os diâmetros cada vez menores, sugerindo um gráfico de escala logarítmica; de modo que os objetos mais próximos são muito maiores do

que os mais distantes. Isso permite representar tanto a edifica-ção, que é o ponto central do mapa com maiores detalhes, como os pontos distantes a vários quilômetros apenas como pontos de referência. Os dois pontos a sudoeste e a sul-sudeste certamente seriam a Igreja da Serra e a de Vitória, respectivamente. Além disso, esse mapa é muito bem elaborado e corretamente orienta-do geograficamente.

— Você acha que a noção de distância sugerida no mapa é real?

— As imprecisões possivelmente se devem à falta de ins-trumentos precisos. Além disso, é uma ideia subjetiva e pode não ter a mesma conotação que normalmente se atribuem aos mapas. Mesmo quando se indicam distancias numéricas, em côvados, provavelmente se refira a passos médios de alguém andando sem forçar demais a marcha. Somado a isso, as distâncias estariam possivelmente em quantidade de passos que produziriam me-didas consideravelmente diferentes dos mapas como os de hoje, feitos por satélite e que consideram distâncias em linha reta, dife-rindo de quem anda e precisa acompanhar cursos de rio, desviar de áreas alagadas, contornar montes, etc. Muitas vezes, mediam-se em tempo de viagem, isto é, alguém que ande sem forçar mui-to a marcha teria uma velocidade de 4 km/h. Se fizesse uma viagem de 12h e descontasse duas para descansar, alimentar-se, contornar obstáculos ou subir elevações, tendo assim, efetiva-mente 10h, conseguiria cobrir nessas condições 40 km. Forçan-do muito a marcha, o limite seria de 60 km ou 120.000 côvados, utilizando a linguagem adotada aqui. Considerando algo escul-pido à mão sobre uma lápide de mármore amarelo, chega a ser uma obra de arte. Pela riqueza de detalhes, indicações e orienta-ções, não é simplesmente um mapa ou somente um jogo, na ver-dade, constitui-se num poderoso instrumento pedagógico que, além de um passatempo para controlar o tédio e confortar com o caráter lúdico do jogo, também exercita o raciocínio em todos

186

João Roberto Vasco Gonçalves

os sentidos: criativo, lógico, estratégico, espacial e tático. Assim, eles proveem um condicionamento psicológico necessário para enfrentar aquela vida de provações. Quem jogasse esse jogo vá-rias vezes, seguramente teria memorizado cada um dos pontos, cada etapa, cada entrave e seguramente teria uma boa alternativa em mente para rapidamente contornar algum obstáculo, alguma situação adversa ou evitar algum percalço.

Como sempre, Paschoal estimulava Pedro a falar porque era prazeroso ouvi-lo, embora (possivelmente) sempre soubesse das respostas. Tal era a sua sintonia, que parecia ouvir o que este lia de sua própria mente. Contudo, havia uma finalidade precí-pua nisso. Enquanto Pedro falava, ele anotava rapidamente em caracteres gráficos especiais que pareciam ser taquigrafia. Era como um filme devidamente editado, com enorme riqueza de detalhes e explicações de um especialista sobre tudo o que viam.

— Sem dúvida, são informações interessantes e muito ma-terial para pesquisarmos — disse Paschoal — embora não esteja diretamente relacionado com o que temos no “livrinho”. Precisa-mos realinhar nossas investigações, e, se necessário, voltaremos depois. Por hora, voltemos ao hotel e sigamos nosso planejamen-to e viagens.

No dia seguinte, tomaram o café da manhã no quarto ao mesmo tempo em que assistiram o noticiário. Nenhum comen-tário a respeito dos tais assassinatos do palácio.

Logo depois, pagaram a conta do hotel e saíram decididos a viajar para Anchieta.

Capítulo XX

Anchieta

Paschoal e Pedro tinham de trabalhar com muita discri-ção, pois 9 de junho é o dia da morte do padre José de Anchie-ta e é o dia da cidade. Durante uma semana acontecem eventos festivos que foram preparados previamente. Visitaram a casa da cultura, fizeram os passeios turísticos, visitaram praias, estuda-ram a topografia, o Rio Benevente, o Rio Salinas, as ruínas, etc. Visitaram os prédios mais antigos, a capelinha, e finalmente a igreja matriz, que seria o ponto culminante. Ali perceberam al-gumas diferenças construtivas que, pelo menos à primeira vista, não correspondiam exatamente às informações e desenhos do livro. Parecia faltar algo. Na história da cidade também parecia haver um período de silêncio, uma lacuna histórica de mais de um século. restava a impressão de que ela havia sido apagada propositadamente. Faltavam informações dos tempos mais an-tigos — entre a morte do padre Anchieta em 1597 e a expulsão dos jesuítas em 1759, ano em que foi elevada à categoria de Vila pelo alvará de 01/01/1759, o que passou a vigorar efetivamente em 14/01/1761. Precisavam, então, examinar também as lendas. Antes de qualquer coisa, entretanto, como sempre faziam, come-çaram uma análise histórica em forma de diálogo.

— Pedro, faça uma retrospectiva desde a fundação do po-voado.

— Conforme os registros, o padre José de Anchieta, no ano de 1569, fazendo uma visita de inspeção, fundou o povoa-do de Iriritiba numa localidade a 80 km de distancia de Vitória

188

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

189

na direção sul, para onde voltaria algumas vezes. Consta que a primeira parte da igreja em pedra de recifes, cal de conchas e óleo animal, provavelmente de boto, tenha se iniciado efetiva-mente em 1579, atendendo ao funcionamento de uma igreja e à dependências básicas de moradia e ofícios. Em 1587, após con-seguir a dispensa de suas funções como provincial e diretor do colégio jesuíta de Vitória, devido a motivos de saúde, mudou-se definitivamente para a aldeia que fundara alguns anos antes. Provavelmente, deve ter imprimido uma reforma, que teria pa-ralisado com sua morte em 1597 e recomeçado um pouco de-pois, tendo sido concluída em 1604. Desse período até 1759, ano da expulsão dos Jesuítas, não encontramos registros. Em 01 de janeiro desse mesmo ano ocorreu um decreto que elevou o po-voado à categoria de vila, recebendo este o nome “Benevente”. Em 12/08/1887 tornou-se cidade através da lei provincial núme-ro 06. Em 30/12/1921 o nome da cidade mudou para Anchieta através da lei estadual 1307.

— E nos registros mais recentes, há algo importante para a região?

— Sim. O primeiro núcleo habitacional de portugueses ficava no alto do morro, de onde se tem domínio visual desde a entrada da barra até o início da subida do Rio Benevente. Na pri-meira metade do século XIX, iniciou-se a imigração estrangeira, e, com ela, apareceram os problemas de saúde, tais como a epi-demia de varíola e outras. Nem o poder público nem ninguém estava preparado para enfrentar aquela nova realidade. A situa-ção era desesperadora, e o povo só podia contar mesmo com a fé. Assim, em 1873, foi construída uma capela no alto do morro de-dicada a Nossa Senhora da Penha; como um pedido de socorro e proteção contra a terrível doença. A imigração só aumentava, a ponto de, em 1874, o porto de Benevente ser uma importan-te porta de entrada para os imigrantes italianos que deveriam subir o rio e se distribuir pelas terras da região para trabalhar

na agricultura. As terras em que se fixaram foram preferencial-mente a região serrana, onde hoje são as localidades hoje conhe-cidas como: Arerá, Emboacica, Simpatia, Serra das Graças, Se-gundo Território, Dois Irmãos, Córrego da Prata, Itaperoroma, Alto Joeba e Alto Pongal. Na tentativa de controlar a propagação da doença, foi construída uma casa de quarentena em 1875. Em 1887 a vila passa a ter a categoria de cidade. Nesse mesmo ano é construída a sede da prefeitura, atual Casa da Cultura. Em 1921 o nome da cidade muda para Anchieta em homenagem ao padre José de Anchieta, seu fundador.

— Vejo que os rios tiveram um papel importante para a história da região. Faça uma breve descrição da hidrografia.

— O principal rio da região é o Benevente, quase todo navegável. Ele nasce na serra do tamanco entre os municípios de Alfredo chaves e Vargem Alta, percorrendo aproximadamente 34 km da nascente até o oceano atlântico. Os afluentes de sua margem direita são os rios Pongal, Joeba, São Joaquim, Maravila e Crubixá. Os da margem esquerda são os rios Salinas, Grande Corindiba, Caco de Pote e Batatal. Segundo estudos técnicos, sua bacia drena uma área total de 1190 km².

— Desde quando se navega por esse rio? Algum registro?

— O registro mais antigo é de 1637, um mapa de João Teixeira de Albernaz que menciona o rio Iriritiba e a presença de caravelas navegando através dele.

— Falando-se do Rio Salinas, pelo que vimos, existe uma edificação antiga em ruínas; seria essa edificação atribuída aos jesuítas?

— Não há evidências que sustentem essa tese. É possível que tenham passado por lá e talvez tenham tido um depósito ou fábrica de salitre, matéria prima da pólvora. Talvez, por questão de segurança, fosse conveniente mantê-lo afastado do litoral. A

190

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

191

construção na forma atual, pelo que aparenta foi construída so-bre as fundações de outra ou aproveitando o material de outra. Comparando seu aspecto construtivo com outros no interior de São Paulo e outras partes do Brasil, chega-se à suposição de que tenha sido uma casa de engenho de uma fazenda. No entanto, a última coisa que teria funcionado ali, segundo registros (carta do suplente de vereador Alexandrino Jose Rodrigues Brandão à câmara de vereadores) de 12 de janeiro de 1890, teria sido uma escola primária rural, isso se ficar entendido que a localidade de Porto Salina se refira a esta localidade. Existem, ainda, as lagoas de Maebá e Ubú. Apesar de sua pouca importância histórica, elas fazem parte da história recente da região, tendo sido tremenda-mente impactadas ambientalmente. A lagoa de Membá está to-talmente sob influência das grandes plantas industriais da região, e a de Ubú foi completamente descaracterizada pela construção da rodovia que passa às suas margens e a dividiu em três partes, conforme consta nos Relatórios de impacto ambiental, de cunho oficial.

— E com respeito às lendas em torno dessas ruínas?

— Realmente, elas existem, como acontece com todo o antigo patrimônio jesuítico. Por causa desse mito, ocorreram muitas depredações por parte de caçadores de tesouros que pre-judicaram grandemente as pesquisas dos historiadores.

— E o relevo da região?

— Basicamente, temos uma região de baixada na faixa li-torânea com algumas ondulações e morros e a região serrana, que já mencionamos, que também pode ser considerada de baixa altitude. Ele é possivelmente inferior a 500 m.

— Também vi alguns estudos recentes que mencionam o Monte Urubu. O que temos sobre ele?

— O Monte Urubu é uma elevação que possui um pico de 332 m de altura que fica na parte oeste do município de Anchie-ta–ES, próximo a uma localidade conhecida como Belo Hori-zonte. Fica à margem direita de quem sobe o Rio Salinas. É uma importante área de preservação ambiental por conter vegetação de mata atlântica. A documentação mais recente que o menciona é um estudo técnico que compõe um relatório de impacto am-biental de âmbito oficial. É realizado como quesito básico para a obtenção da licença ambiental para a construção de uma linha de transmissão de energia elétrica que passa na região.

— E quanto àquela lenda de que haveria um túnel ligando a igreja matriz ao Monte Urubu, o que você pensa disso?

— Penso que realmente não passa de uma lenda, como tantas outras iguais a essa. Não há evidências que comprovem isso. Por outro lado, seria tecnicamente impossível para a época à qual atribuem sua origem.

— Ótimo. Bela explanação.

— Sim, mas, e agora? O que você sugere como o próximo passo?

— Pesquisar algo sobre o que dizem as lendas. Você co-nhece alguém que saiba algo ou já mencionou algo a esse respei-to?

— Sim. Conheci um sujeito há muitos anos quando estive de passagem por aqui. Por acaso, antes de vir para cá, procurei saber e encontrei o número de telefone dele. Não mora mais por aqui.

— Então comecemos pelo telefonema.

— Tudo bem. Vou fazer isso.

Capítulo XXI

Os telefonemas

Pedro, informando-se aqui e ali, conseguiu obter informa-ções sobre um certo “seu João”, que seria o garoto que conhecera muitos anos antes contando suas histórias loucas. Telefona e se identifica porém o homem demora a se lembrar dele. Começa falando coisas, fazendo perguntas capciosas, sempre aludindo a citações contidas no livro, que, até então, não menciona, mas so-mente no final da conversa. Faz insinuações a ponto de começar a aborrecê-lo seriamente. Ele responde primeiro com gozação e ironias, depois com evasivas e, finalmente, com certa inquie-tação e demonstração de desagrado. Ele nega peremptoriamen-te que saiba alguma coisa importante e declina sem titubear o convite de acompanhá-los. A conversa serve para despertar mais curiosidade e quase lhe dá a certeza de que realmente há alguma coisa, que as lendas têm um fundo de verdade e que o João sabe muito mais do que aparenta. Na verdade, ele parece fazer ques-tão absoluta de esconder.

— Sr. João?

— Sim.

— Eu preciso falar-lhe alguns minutos.

— OK. Porém, a propósito, quem é o Sr. e em que posso servi-lo?

— Sou o professor Pedro Cintra. Trabalho no departa-mento de história da Universidade de Coimbra e sou assistente

194

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

195

do professor Paschoal D’Ávila num projeto acadêmico. Estou em Anchieta, no Espírito Santo, e procuro pessoas que saibam algo antigo sobre a cidade.

— Não sei se poderia ajudá-lo, professor. Não sei tanto assim e há muitos anos estou fora. Sugiro que procure pessoas mais bem informadas, como historiadores, bibliotecas, a Casa da Cultura, registros municipais oficiais...

— Já fizemos isso. Não foi suficiente para o que precisa-mos. A história parece ter sido apagada em mais de um século.

— Então por que acha que logo eu saberia algo importan-te?

— Eu o conheci quando ainda éramos meninos há mui-tos anos quando passei por aqui. Lembro-me bastante das suas histórias.

— Delírios pueris. As crianças têm muita imaginação. Contam muitas histórias.

— Com certeza. Mas devem ter ouvido coisas aqui e ali. Lendas e afins.

— Não vejo em que essas maluquices podem ajudar um professor europeu com tanta bagagem. Na verdade, não sei mes-mo em que posso ajudá-lo.

— O senhor sabe muito mais do que parece — provoca. A propósito, o senhor sabe onde fica o monte Horeb nestas redon-dezas?

— Pelo que sei, ele fica ao sul da península do Sinai no Egito, conforme referências bíblicas. Aqui nas redondezas o nome mais parecido é o monte urubu, que qualquer anchietense sabe onde fica — ele responde entre risos.

— E isso não tem nada a ver com o túnel que vai da igreja matriz até esse monte, conforme a lenda que o senhor mesmo contava quando criança, não é? — Pedro provocou.

— Isso é uma quimera.

— Uma quimera com um fundo de verdade, suponho.

— O senhor não sabe o que está dizendo. Esse monte fica a quase 20 km de distância. A igreja e todo o conjunto foram edificados sobre um maciço de granito. Depois de atravessar uma cadeia de montanhas até encontrar um solo mais favorável a uns doze quilômetros, ainda teria de fazer uma brusca mudan-ça de rumo para norte e avançar mais alguns quilômetros. As condições técnicas da época nunca permitiriam uma obra de tal envergadura. Mesmo usando a antiga técnica de exploração de minas, com o precário ferramental da época, seria necessário um batalhão de operários experientes no ofício, e um túnel constru-ído nessas condições avançaria poucos metros por ano. Levaria séculos para ser construído, na mais remota hipótese de que re-almente conseguissem.

— Sim, claro. Deve haver uma explicação razoável para fazer enquadrar a lenda à realidade, o senhor não acha?

— Fora de cogitação. Não é razoável acreditar numa len-da sem pé nem cabeça como essa.

— Sim. No entanto, esse sem pé nem cabeça não deve ter nada a ver com a serpente que nasceu mutilada no chão da igre-ja, suponho — ele provocou.

— Mas que absurdo é esse agora. Isso não faz o menor sentido. O senhor deve assistir a muitos filmes na televisão.

— Não tenho tanto tempo assim. Quanto a livros demais, todavia, o senhor pode ter certeza.

196

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

197

— Ah, sim. Certamente, o senhor deve ter lido sobre mui-tos segredos e tesouros ocultos guardados a sete chaves em épo-cas remotas e em lugares que ninguém imagina.

— Certamente. Mas, a propósito, suponho que esses se-gredos e as sete chaves também não tenham relação nenhuma com a serpente mutilada. Da mesma forma, nesse tesouro não deve haver nenhuma peça parecida com um ostensório de ouro maciço, uma estrela de ouro de 24 quilates com pedras preciosas de cores diferentes nas pontas, um cálice de ouro trabalhado e cravejado de pedras preciosas. E também uns sete castiçais alem de muitos outros objetos de valor.

— Agora o senhor exagerou na sua fértil imaginação. Eu sabia, o senhor acabaria mesmo confessando que é mais um da-queles malucos que nunca perderam aquela ideia juvenil da caça ao tesouro. Com toda certeza, haverá também um baú abarrota-do de moedas de ouro.

— Por falar nisso, o senhor também não deve saber nada sobre uma certa arca de madeira forrada de ouro por dentro e por fora, suponho.

— Essa eu sei. O senhor está falando da arca da aliança, na qual as tábuas da lei impressas a fogo foram colocadas. Mas está procurando no lugar errado. Ninguém nunca soube exatamente do seu paradeiro, e, de qualquer modo, o último registro está no capítulo dois do livro Macabeus II, que informa que Jeremias a escondeu no monte Nebo, próximo às margens do mar morto. Ele tentava evitar que o rei babilônico Nabucodonosor II des-truísse aquela peça de inestimável valor religioso para os judeus. Lamento decepcioná-lo, porém o senhor terá de procurar na Pa-lestina.

— Que pena. Permita-me, porém, fazer-lhe uma pergunta mais fácil. O senhor conhece o Rio Salinas?

— Essa todo anchietense sabe. Já que o senhor está por aí, pode visitá-lo num passeio de barco subindo o Rio Benevente.

— Isso nós já sabemos. Aliás, e aquelas ruínas às margens do Salinas? Elas têm mesmo algo a ver com os jesuítas? Seria mesmo o tal passo do salitre?

— Não há evidências que comprovem isso. O último re-gistro histórico é que ali tenha funcionado uma escola rural no final do século XIX, possivelmente, a partir de 1880. Especula-se, no entanto, que tenha sido várias coisas, como casa de fazenda com engenho e outras coisas. Pode ter funcionado algum tipo de instalação para o refinamento do salitre, matéria prima da fa-bricação da pólvora, como também qualquer outra coisa. O fato é que se pode notar na base dos pilares atuais vestígios de cons-truções mais antigas. No entanto, não existem referências docu-mentais. Essa informação o senhor pode encontrar em qualquer folder turístico ou verificar in loco.

— Isso também já sabemos.

— Mais alguma pergunta, Sr. Pedro? — Falou o Sr. João, já disposto a encerrar o diálogo.

— Sim. O senhor sabe de alguém por aqui que se diga descendente distante do marques de Pombal?

— Só se for de Pongal — brincou. Há um monte de gen-te de Pongal nas redondezas, eu só não sabia que lhes haviam conferido título de nobreza. E depois, até onde sei, o marquês de pombal era português. A comunidade de Pongal surgiu a partir de alguns colonos da época da imigração italiana.

— Estou impressionado com a quantidade de conheci-mentos que o senhor adquiriu. Além de ler a bíblia, deve ter exa-minado muitos documentos, não?

198

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

199

— E eu, impressionado com esse monte de bobagens. Deve ter lido algum livrinho muito interessante.

— Certamente — Pedro respondeu entre risos. A propósi-to, o senhor ainda continua contando aquelas histórias de tesou-ros enterrados por aí?

— Sinceramente, há muito tempo não. Porém, pela quan-tidade de malucos que vivem procurando, se eu fosse desones-to, dava até para abrir um negócio. Bastaria arranjar um monte daquelas peças que mais procuram, espalhá-las por aí, imprimir uns mapas em papéis envelhecidos, contar as histórias falando tudo o querem ouvir e ganhar o dinheiro dos trouxas. Mas nem isso vale a pena.

— Por quê?

— Porque não se semeia o mal, pois esse é reflexivo. Sem-pre volta sobre quem o lançou. Além disso, muitos que procu-ram enriquecer da noite para o dia não sabem que as riquezas trazem consigo a semente da desgraça. Não percebem que a cobiça é uma grave moléstia que assola a humanidade desde as mais remotas épocas, geram as guerras e suas devastadoras con-sequências, e um dia ainda poderão determinar a extinção da raça humana. Espero que o senhor e seu parceiro de estudos não estejam incluídos nesse rol dos avarentos.

— Sr. João, sem falsa modéstia, eu sou um intelectual, gente do tipo que não é rica por opção. Também partilho des-sa sua filosofia. Assim também pensa o meu colega, o professor Paschoal, de quem fui discípulo. Como historiadores, achamos que existem muitos tesouros que nem todo o dinheiro do mundo pode comprar. Alguns desses foram encontrados por oportunis-tas travestidos de estudiosos que, na verdade, só pensavam em dilapidar tudo que fosse encontrado e transformar no vil metal. Se encontrasse algum dia coisa semelhante e sentisse que pode-

ria cair nessa situação, não hesitaria em deixá-lo oculto, pelo me-nos enquanto não houvesse condições de segurança suficientes para garantir que realmente se tornasse um patrimônio histórico da humanidade.

— Fico feliz que pense assim. Lamento não poder ajudá-lo muito.

— O senhor poderia, sim, se concordasse em vir conosco. Seria de grande valia.

— Desculpe-me, professor. Terminantemente, não. Por favor, não insista.

— Muito obrigado, Sr. João, e desculpe-me o incômodo. Alguma recomendação a mais?

— Sim. Se o senhor encontrar uma garrafa daquele vinho que Jesus tomou na última ceia, traga-a para bebermos dela jun-tos. E não se esqueça de trazer para o tira-gosto alguns pedaços de pão e peixe que sobraram do milagre da multiplicação.

Risos de ambas as partes e despedida cordial. O telefone toca outra vez, e João pensa ser aquele professor incômodo outra vez, portanto, reluta em atender. Porém, depois recebe a ligação decidido a descartá-lo de imediato. Era o Sr. Moshê, que já esti-vera ali outras vezes e era identificado pelo povo da região como “Seu Moisés”. Ele tinha um sotaque carregado e chamava-o “Jo-han”, pronunciando o “j” como “i” e o “h” como “rr”, acentuando a primeira sílaba, já que o mais próximo de João que conseguia falar era “Choao”. Moshê fez perguntas sobre a conversa inter-ceptada e ele lhe explicou que não dissera nada nem aceitou o convite. Moshê lhe disse que ele mesmo cuidaria do caso pesso-almente e, se precisasse de apoio, o chamaria, conforme se obser-va no estranhíssimo diálogo a seguir:

200

João Roberto Vasco Gonçalves

— Johan, aqui é Moshê. Eu consegui captar o que vocês fa-lavam ainda há pouco — disse com um sotaque pesado e alguns deslizes na concordância.

— Bem que os antigos diziam que mato tem olho e parede tem ouvido.

— Sim, os antigos tinham muita sabedoria. Você falou muito.

— Sim, Sr. Moshê. É o eterno duelo entre a caça e o ca-çador. Estudávamos mutuamente. Ele precisava testar os meus conhecimentos sobre o assunto, e eu, os dele. Na verdade, eu pre-cisava saber o quanto ele sabia. Ele sabe bastante. Talvez mais do que o conveniente, apesar de ser de boa índole e valorizar a integridade.

— Sim, mas não se pode confiar. Pode ser um daqueles falsos profetas, lobo em pele de ovelha. Precisaria ser testado e, caso passasse, submetido ao juramento ao receber os votos.

— Alguma recomendação?

— Por enquanto, não. Começarei a cuidar do caso sozi-nho. Todavia, fique alerta. Posso precisar de sua ajuda.

Despedidas cordiais.

Capítulo XXII

João

— Bom dia, seu Giacomo.

— Bom dia, padre Bento. Ficamos muito felizes com a sua visita.

— Também fico feliz de ver meus paroquianos.

Conversaram animadamente, falaram de terra, plantio, colheitas etc. Seu Giacomo convidou o padre para almoçar. Aco-modaram-se à mesa que já estava posta. Terminando o almoço, passaram para a sala de estar, onde seu Giacomo, que, havia mui-to, vinha tentando entrar no assunto, finalmente teve a oportuni-dade de falar com o padre e fazer o seu pedido especial.

— Padre Bento, há muito que venho pensando em falar com o senhor.

— Sim, fique à vontade para falar, seu Giacomo.

— Faço muito gosto que o meu filho primogênito seja de-dicado aos serviços de Deus. Preciso arranjar um jeito de enca-minhá-lo para isso, creio que o senhor pode me ajudar nisso.

O padre entendeu direitinho o recado. Seu Giacomo plei-teava uma vaga para o seu filho estudar no seminário. Era como se vislumbrasse a possibilidade de ter futuramente um santinho na família, mas tinha seu lado econômico e social: prover-lhe o estudo numa boa escola. Apesar de ele ter prometido que não queria totalmente de graça. Fazia questão de dar substanciais contribuições quando as colheitas finalmente dessem o resulta-

202

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

203

do esperado. João estudava a duras penas num grupo escolar e tinha de caminhar quatro ou cinco horas por dia para frequentar a escola. Estava no meio do ano letivo, e isso era um empecilho para qualquer providência imediata.

— Seu Giacomo, no momento é praticamente impossível porque estamos no meio do ano escolar, mas não vou esquecer-me do seu pedido. Quando puder darei a resposta. Mas o meni-no tem de querer também.

— Sim, padre, eu converso com ele. Aliás, pelo que já ouvi dele, ele gosta dessa ideia.

Conversaram mais um pouco e depois se despediram. O tempo passou, e o padre, com tantos afazeres, acabou por se es-quecer. No princípio do ano letivo seguinte, conversando com o padre Antônio, diretor do seminário, este comentou:

— Padre Bento, já estamos com uma nova turma quase fechada para esse ano letivo, só falta um para completar. Se o senhor souber de alguém que esteja interessado...

— Eu sei, sim, padre Antônio. Acabo de me lembrar de que, no meio do ano passado, o senhor Giacomo me fez um pe-dido de uma vaga para seu filho mais velho, João.

— Ótimo, padre Bento, pode avisá-lo que a vaga é dele.

Na próxima viagem, que ocorreu poucos dias após esse diálogo o padre Bento levou a preciosa notícia.

— Bom dia, seu Giacomo.

— Bom dia, padre Bento, como está o senhor?

— Bem, seu Giacomo. Ah, trago boas notícias. Surgiu uma vaga na nova turma do seminário, e a vaga é do João, conforme já acertei com o padre Antônio, o diretor do seminário.

— Graças a Deus e ao senhor, padre. Minhas orações fo-ram ouvidas — respondeu o homem, não cabendo em si de feli-cidade.

— Deus sempre ouve nossas orações, seu Giacomo.

Mandou chamar o João, que chegou meio acanhado, to-mou-lhe a bênção e ao padre e ouviu a boa notícia, mas falou muito pouco. João havia passado de ano na escola, apesar das dificuldades. Essa notícia o ajudou grandemente, além de se en-caixar perfeitamente porque não precisaria perder o ano, pois começaria o próximo ano letivo no grau escolar subsequente. Gostava da ideia por um lado, pelo menos não precisaria andar tanto para ir à escola. Quanto ao trabalho, sabia que no seminá-rio tinha a hora de trabalho também. Em compensação, também haveria a hora do estudo pós-aula, o esporte e o lazer que na roça ele não tinha. Apesar disso, ficava a saudade de casa, dos pais, irmãos e companheiros de caminhada para a escola. Aquela era uma oportunidade rara, no entanto, e que não poderia ser des-perdiçada, como o próprio pai lhe orientara. O saldo do balanço que fez mentalmente era, a seu ver, positivo, e ele estava feliz com as novas perspectivas. Entraria no seminário no primeiro ano ginasial, como se dizia naquela época.

As férias escolares acabaram, e finalmente a hora chegou. Com lágrimas nos olhos, apesar de feliz pela questão prática, sua mãe já arrumara a sua modesta malinha com as poucas roupas que possuía e separado seu sapatinho surrado. Por último, as emoções da despedida e, em seguida, a curta viagem até o se-minário. Durante o percurso, o pai conversou outra vez sobre tudo aquilo que já havia falado antes. Na hora de despedir-se, fez muitas recomendações sobre obediência, respeito e educação, de modo a não desonrar a família e para ser um grande homem mais tarde. Finalmente, ele o abraçou e saiu dali tentando disfar-çar as duas lágrimas que insistiam em brotar nos seus olhos. No

204

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

205

dia seguinte, as aulas começaram, e com elas toda aquela rotina. O seminário era semelhante a uma caserna em termos de hierar-quia, organização, execução de tarefas, etc. Tudo transpirava a ordem: os estudos, os trabalhos, os esportes, o lazer e até mesmo as orações. De certa forma, o regime explicava o alto rendimento escolar da turma. A ajuda mútua para superar as dificuldades no desenvolvimento das tarefas contribuía muito à integração e o desenvolvimento do espírito de equipe, fazendo estabelecer vínculos de amizade que ajudavam também nas suas carências afetivas e preenchiam o vazio deixado pela falta da família e dos ex-companheiros. Era um alívio para suas saudades.

Um dia, aconteceu um incidente que mexeu muito com a sua sensibilidade, e ninguém conseguiu entender exatamente porque o incomodou tanto. No recreio, depois de terem saído de uma aula de história na qual se falara sobre os judeus e a sua cultura, um colega, por brincadeira, pegou um tampo de côco cortado em forma de cuia e colocou sobre a sua cabeça como se fosse um kipá e disse: “O judeu”. Todos os seus colegas riram. Mas João não. Ao contrário, sentiu como se tivessem lhe dado um grande soco ou uma ripada. Ficou pálido, sem voz e teve de sentar-se num murinho de pedra para não cair, uma vez que suas forças quase o abandonavam. O colega percebeu, pediu descul-pas e tentou ajudá-lo de alguma forma. Ele lhe ofereceu água e não sabia mais o que fazer para reanimá-lo. João disse que fora uma pequena indisposição e que já ia passar, só precisava ficar quieto um pouco para descansar e que agradecia que o deixasse só por alguns instantes. Tudo poderia não ter passado de uma brincadeira sem maiores implicações, se não fosse algo que ele trazia marcado em seu subconsciente, que veio à tona naquele exato momento como se rasgassem as cortinas de sua mente e a deixassem desnuda. Num lapso que parecia um potente raio, ele se lembrou um antigo incidente na escola primária, na época da semana santa:

— ... vamos “cacetar” o judeu...

— Isso não se diz, é uma discriminação. Digam “malhar o Judas”.

Era uma professora que, por ser judia por descendência, muito se incomodava com certas expressões que denotavam perseguição ou discriminação racial. Mas não quis explicar mui-to mais, talvez para não esticar muito o assunto, não despertar aquele tipo de curiosidade ou talvez porque os alunos eram crianças e não estavam preparados para aprender sobre aquilo. Tudo aparentemente acabou por ali, pelo menos para a maioria dos alunos. Para João, aquilo se estenderia um pouco mais. Che-gou em casa com aquela coisa que não saía da cabeça e acabou perguntado ao pai:

— Pai o que é “judeu”?

— Que bobagem é essa agora, menino?

— Não, é porque a gente estava brincando na hora do re-creio e ...

— Basta, não diga mais nada. Nunca mais diga isso aqui nem para ninguém.

— Mas pai, eu preciso...

— Não precisa nada, e se voltar a falar sobre isso, vai levar uma surra.

João, temeroso com as ameaças do pai, calou-se e nunca mais mencionou aquilo a quem quer que fosse, mas ficou curioso com a reação do pai. Era como se aquela palavra fosse um grande pecado, ou mencionasse alguma doença contagiosa, ou atraísse algo de muito ruim que pudesse acontecer ao mencionar esse nome. Deveria haver alguma razão que justificasse aquele tipo de comportamento, aquele medo, aquela reserva toda e, final-

206

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

207

mente, a imposição do silêncio sobre o assunto. Todavia, na falta de respostas convincentes e do mal que aquilo causava, a medida mais sensata era realmente esquecer tudo aquilo — até porque, na roça, o assunto geral e constante era trabalho, e o restante não tinha nenhuma utilidade. Assim, João deixou o assunto de lado completamente, até o dia daquela nova brincadeira.

Recuperou-se do choque, fez de tudo para esquecer-se da-quilo, mas aquilo o perseguia de forma atroz. Não havia saída, senão pesquisar e descobrir a razão fundamental de tudo aquilo. Talvez, assim, tudo se dissiparia e acabaria sem deixar marcas. Dessa vez, ele estava em um lugar propício. Poderia ir à bibliote-ca ou conversar com pessoas muito esclarecidas e até contar com o apoio do orientador para assuntos espirituais e psicológicos. Procedeu exatamente assim, mas não sabia que era só o começo do seu calvário, que duraria durante grande parte de sua vida. Logo no princípio de suas pesquisas, ele acabou descobrindo a razão de tanta inquietação e silêncio sobre o assunto por parte da sua família e toda a comunidade vizinha naquela parte do interior onde eram todos imigrantes e descendentes desses, ita-lianos e outros povos de várias regiões da Europa. Verificou que, no século passado e nos anteriores, muitos de seus ancestrais ha-viam sido perseguidos por motivos étnicos e religiosos. Muitos simplesmente os detestavam e evitavam a proximidade, como se fossem leprosos, outros os demonizavam e propagavam a ideia de que eram gente ruim em quem não se podia confiar. Outros ainda exageravam na sua exacerbada xenofobia e partiam para agressões físicas e até promoviam ataques com o objetivo de ex-pulsá-los de seu país e usurpar as suas terras.

Alguns se convertiam ou simulavam essa conversão, che-gando a trocar seus sobrenomes na tentativa de conviver paci-ficamente, mas ficava aquele estigma que os acompanhava por gerações a fio. E as perseguições continuavam. Então, mesmo

quando conseguiam viver sem serem molestados fisicamente, eram moralmente afetados, como se fossem cidadãos de classe social muito inferior. Tudo isso, potencializado pelos horrores das guerras que a tudo devastavam e impunham a fome e a misé-ria, além de impelir milhares de imigrantes de cruzar o atlântico em penosas viagens atrás de vãs promessas de abundância e as-sistência social. Não demoraram muito a perceber que estavam abandonados à própria sorte. Somente com muita fé consegui-ram sobreviver, tudo à custa de muito trabalho, passando todo tipo de privações, isolamento e falta de assistência. Morreram aos milhares. Muitos nem chegavam a completar a viagem e tive-ram o mar como sepultura. Outros morreram aqui de doenças, mordeduras de cobras e insetos, mas eram tantos os que chega-vam que rapidamente aumentou o seu contingente, de modo que poucos se deram conta do extermínio. Enfim, os que sobraram constituíram famílias e fundaram comunidades espalhadas por todo o interior, que hoje vivem em paz. Essa paz não poderia ser perturbada e valia a pena fazer tudo para preservá-la, daí toda aquela reserva sobre assuntos que quase instintivamente consi-deravam proibidos.

João aprendeu muito. Quanto à sua pesquisa familiar, fi-cou inconclusa ou, pelo menos, não o levou nem mesmo a in-dícios que determinassem a sua real ascendência. Tanto pode-ria ser judia, cigana ou qualquer outro povo que se acautelou de modo a não ser descoberto e perseguido. Ele poderia ter até mesmo ancestrais de várias etnias. Aquele fantasma, entretanto, continuava a persegui-lo.

O tempo passou, João evoluiu nos estudos, formou-se em filosofia e história e, entre outras coisas, estudou bastante latim, grego e hebraico. Estava cada vez mais confuso e acabrunhado. Sua crise chegou ao ápice na época em que deveria fazer os votos e se ordenar padre. Não conseguindo mais suportar tudo aquilo,

208

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

209

comunicou aos responsáveis pela ordem e solicitou a dispensa. Tentaram acalmá-lo e dissuadi-lo da ideia, mas não funcionou. Ele acabou saindo mesmo.

Não voltou para casa, principalmente para evitar dar ex-plicações. Seu pai já havia falecido, mas ainda havia a mãe e os irmãos e amigos. Arranjou um emprego como professor e foi morar sozinho num pequeno apartamento na cidade próxima. Era um celibatário e vivia bem com sua solidão. Seus afazeres no magistério aliviavam um pouco suas inquietações, porém os fantasmas de seu passado insistiam em persegui-lo. Resolveu en-cará-los de frente. Aprofundou-se nos estudos da cultura judaica e, inclusive, fez amizade com um rapaz que tinha aproximada-mente a sua idade e era recém formado no rabinato que passou a ser seu confidente para aquelas dúvidas que o consumiam. Ter alguém versado no assunto para conversar e confidenciar de cer-ta forma o aliviava.

Ele pensava em frequentar uma sinagoga e tentar viver no meio dos judeus porque, àquela altura, já se sentia um de-les. Isso, no entanto, tinha outra face que poderia ser igualmente dolorosa. Como nunca conseguiria provar sua real ascendência judia, poderia ser rejeitado também por eles. O seu amigo ra-bino o apresentou a algumas pessoas que trabalhavam em fun-ção de uma causa pretensamente judia, que procurava talentos para admitir em seu meio e que de alguma forma simpatizasse pelos objetivos da organização. Após a entrevista, foi admitido, começou a frequentar o local e trabalhar ativamente. Aquilo foi uma excelente saída, era como se realmente houvesse se tornado um deles. Ele estava praticamente curado. Para compreender em toda a extensão o drama de João e de toda aquela gente cujos des-cendentes talvez não lembrassem mais das agruras que sofreram seus ancestrais, seria proveitoso rever um pouco de sua história. Na verdade, ela é também de outros nos aspectos da formação étnica e demográfica — que só pode ser entendida estudando a

imigração pelos flancos históricos de quem geria todo o processo e de quem efetivamente vivia aquela situação.

Na época da imigração em massa, gente de várias partes da Europa, de várias etnias, costumes, credos e outros veio para o Brasil. No Espírito Santo, por sua vez, aportaram principalmente italianos, pomeranos, alemães, tiroleses, árabes, dentre outros. Segundo a estatística e os relatos oficiais, a imigração italiana predominou. Abramos então um parêntesis e contemos uma his-tória que parece ter sido a de muitos:

A imigração

Massacrados pelos horrores das constantes guerras no ve-lho mundo — e algumas vezes iludidos por vãs promessas de inescrupulosos que se faziam passar por agentes do governo que lhes pintavam um doce paraíso com abundância de víveres, fran-ca prosperidade, plena assistência e mais inúmeras benesses —, os pobres sofredores em seus países vislumbraram alcançar esse eldorado.

No entanto, de fato, havia o programa oficial de imigra-ção do governo brasileiro para povoar as regiões desabitadas e até então improdutivas a fim de transformá-las em verdadeiros celeiros para o abastecimento do país e geração de divisas com as exportações. Além disso, as lavouras de café já existentes es-tavam carentes de mão de obra devido à recente libertação dos escravos que se ocupavam dos trabalhos de plantio e colheita. Realmente, ali foram feitas inúmeras promessas aos que viessem a habitar sua nova Canaã.

Lamentavelmente, omitiram a parte que falava das acres provações, a começar pela penosa travessia do deserto líquido do atlântico, no qual farrapos humanos amontoados e em péssimas condições eram carcomidos pelas moléstias e tiveram o oceano como sepultura. Mal sabiam que seus sofrimentos apenas come-

210

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

211

çavam. Às infecções que as grandes movimentações humanas ao longo do globo transformaram em pandemias somavam-se outras ainda desconhecidas, como a febre amarela e a palustre. Estas os dizimavam aos milhares, fato praticamente encoberto pelo intenso fluxo que sempre aumentava o contingente. Não bastasse o longo tempo de confinamento nos navios, ainda pre-cisavam passar mais tempo nas casas de quarentena para que não se disseminassem as doenças — uma condenação à morte face às condições da época.

Vencidos os primeiros obstáculos, estavam preparados para serem atirados às garras do monstro do abandono, da fome, da insegurança, dos ataques dos peçonhentos e de todas as pri-vações. Aquela prometida panaceia que lhes curaria os males fí-sicos e morais e transformaria os famintos e andrajosos plebeus em nobres abastados, com seus mantos azulados, bordados com fios de ouro, cujas cabeças ostentariam uma láurea coroa de Pa-las, não passavam de ilusórias miragens. Em pouco, descobriram que continuavam famintos, desabrigados, cobertos com seus malcheirosos molambos e que a coroa que receberam não era senão uma dolorosa coroa de espinhos. Possuíam a verdadeira panaceia, entretanto: a inabalável fé que faz suportar com dig-nidade todas as provações, que produz a esperança de alcançar as graças, que induz ao amor, que faz com que todos se deem as mãos, que produz a certeza de que o grande pai os proverá como “às aves do céu, que não semeiam nem ceifam” e os vestirá como os “lírios dos campos, que não trabalham nem fiam”. Que lhes fará chover o maná em forma dos frutos que a solícita terra ferti-lizada com o suor do árduo trabalho faz brotar. A mesma fé que dá a certeza de que as rudes provações são apenas os desígnios de Deus, que nossa pobre percepção jamais consegue compreender e que as linhas tortas por onde a mão dele escreve, na verdade, são perfeitamente retilíneas, apesar de a nossa mísera visão não percebê-las assim por mera ilusão e preconceitos.

O personagem descrito a seguir teve uma história tão co-mum que ninguém duvida que tenha sido a de muitos de seus patrícios. Giuseppe era um pobre rapaz como todos aqueles que embarcaram na Itália no navio Planeta em 1896, cujo destino final seria o porto de Benevente–ES, Brasil. Originário da pro-víncia de Vicenza, em Vêneto, uma conhecida região da Itália, embarcou em companhia de seus pais, que então só o tinham, pois os outros filhos haviam morrido. Como estavam à míngua e sem esperanças de um futuro melhor, ficaram encantados com a propaganda de um mundo novo de plena fartura de tudo e pen-saram na possibilidade de serem felizes naquele paraíso. Seria uma nova terra prometida, a sua nova Canaã. Não teriam mui-to do que se desfazer, nada a perder nem outra opção melhor, afinal, do jeito que estavam, nada poderia ser pior. Certamente, desconheciam aquela assertiva pessimista que diz que nada é tão ruim que não possa piorar. Inscreveram-se, cuidaram da docu-mentação exigida e embarcaram com coragem num navio — meio de transporte totalmente estranho para eles num caminho totalmente estranho, mas tendo um rumo parcialmente conheci-do. Deveriam desembarcar em Benevente e seguir rio acima em embarcações menores. Então, caminhariam muito até chegar ao efetivo local do assentamento.

Definitivamente, não fora a maravilha prevista por Giu-seppe. A primeira ceifada da sorte levou seu pai e sua mãe no meio da viagem devido a um surto de terrível doença. Como vários outros desafortunados, teve de assistir ao doloroso lança-mento dos corpos ao mar que lhes serviu de sepultura. O oceano, até então desconhecido e alheio à sua vida, passou efetivamente a fazer parte dela, de sua história, de suas lembranças. Ele foi, enfim, o túmulo de seus pais e de boa parte de sua gente. Essa tragédia foi só o começo de suas desventuras. Naquela confusão, nem se lembrou de que precisava de documentos para apresen-tar à imigração ao desembarcar, o que só ficou sabendo quando

212

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

213

os agentes vociferavam imperativamente: “Todos com os seus documentos em mãos ou não poderão desembarcar”. Que com-plicação! Ele não tinha os seus e não fazia a menor ideia de como encontrá-los. Tentou revirar os pertences que seriam os seus em meio àquele amontoado de coisas, porém nada encontrou. Ten-tou esconder-se no meio da multidão e saltou. Inexperiente, as-sustado, faminto, desconhecedor da língua local, não demorou muito a ser capturado, o que lhe serviu pelo menos para mendi-gar comida e abrigo, mas lhe privou da liberdade e o ameaçou de deportação. Não lhe sobrou alternativa: na primeira oportuni-dade, ele fugiu e ficou à espreita em relação à chegada de algum patrício com quem pudesse contar.

Na próxima leva de imigrantes, teve a sorte de encontrar uma família que embarcaria junto com a sua, mas acabou trans-ferida para outro navio que partiu pouco mais de uma semana depois de ele ter embarcado com seus pais. Eles o reconheceram. Contou sua triste história e pediu ajuda. Ficaram comovidos, porém, devido à sua também precária condição em termos de posses, conhecimento e dificuldades com a língua, ficaram te-merosos de serem prejudicados e ainda não conseguir ajudá-lo. Mas informaram para onde rumavam e que se ele, de alguma forma, conseguisse chegar até lá sem ser notado, o acolheriam. Não era uma solução, mas era um alento. Logo, após as barcaças subirem, saiu do esconderijo onde estava e, por sorte, encontrou alguém numa pequena embarcação que precisava de ajuda para descarregar as mercadorias trazidas do interior e carregar com víveres para o seu abastecimento e o dos vizinhos. Propôs que trabalharia por comida e pela viagem rio acima até o local em que o senhor Giocondo disse que iria assentar-se. O disfarce de trabalhador lhe caiu muito bem. Ali, ele dissipou as suspeitas,

proveu-se de alimento e finalmente valeu-lhe a viagem. Foi sua tábua de salvação.

Estavam tão preocupados com sua sorte que quando o vi-ram chegar alegraram-se e acolheram-no. Bem mais tarde, com a situação já definida, com conhecimento e com ajuda de alguém que falasse bem a língua, poderiam ir até os agentes da imigra-ção acompanhados de algum advogado da cidade mais próxima, testemunhar sua procedência, sua filiação, a região de origem, informar o navio em que chegara, a perda dos documentos e tentar obter junto ao consulado uma segunda via. A ajuda se-ria mútua. Um rapaz disposto ao trabalho em sua casa seria de grande valia para tocar os serviços na terra. Ademais, seria um bom começo, pois o senhor Giocondo possuía apenas a mulher e uma filha. Giuseppe trabalhou arduamente por anos a fio, mas agradecido pela acolhida e confortado pela perda dos pais em condições tão trágicas. Os laços familiares se estreitaram muito mais e tornaram-se de direito e de fato pelo casamento de Giu-seppe com Annette, a filha do senhor Giocondo — que muito se agradava da união, bem como sua esposa. Dias antes desse casamento, contudo, ainda aconteceu um fato novo que também estava atrelado à sua história.

Giuseppe, sem eira nem beira, sem dote, morando (até en-tão) de favor, embora feliz, nunca poderia imaginar que o mes-mo acaso que o separara de seu passado o faria de novo trombar com ele. O mesmo que lhe restituiria em parte o que lhe dizi-mara. Numa gleba não muito longe dali, outro Giuseppe vivia muito tempo solitário por muito tempo. Já acamado e pressen-tido a morte, precisava reconciliar-se com sua consciência irre-mediavelmente atormentada durante muitos anos por um delito

214

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

215

cometido nos dias de sua juventude, nos quais a ganância e o desejo juvenil de “fazer a América” para retornar rico ao seu país, o haviam levado ao insano desatino de prejudicar um desvalido abandonado pela sorte. Essa mancha na honradez o perseguiu por toda a vida, por isso, nunca abandonou a ideia de que todas as desventuras sofridas, incluído aí a morte prematura da esposa e dos filhos pelas implacáveis doenças e o seu atual estado de abandono, era o preço do seu pecado. Desejava ardentemente fazer o seu ato de contrição, implorar o perdão e devolver ainda que tardiamente o que não lhe pertencia. Não seria difícil, pois pouco tempo antes ouvira de alguém a história do verdadeiro Giuseppe — e já sabia onde encontrá-lo. Conseguiu que um vi-zinho que o atendia em suas últimas necessidades lhe servisse de um emissário para comunicar e intimar o seu credor a com-parecer urgente à sua casa. O que lhe foi concedido, pois nin-guém negaria um último pedido ao moribundo. Assim, com sua voz fraca, cansada e várias vezes embargada pelas lágrimas, fez sua confissão no leito de morte. Obteve, então, o perdão, mas atribuindo-se a penitência de devolver o nome, o passado e os pertences a quem de direito. Assim falou:

— Percebo que o céu foi complacente e lhe compensou com a felicidade, a despeito de suas misérias do passado da qual fui o único responsável. Naquela ânsia juvenil de conquistar o mundo, não hesitei em obter os favores da sorte à custa de sua desgraça. Vinha clandestino naquele navio e não era nada difícil ficar diluído no meio daquela multidão de desafortunados. Vi seus pais serem atirados ao mar como outros infelizes. Minha sede de conquista não permitiu que a túnica da compaixão en-volvesse a minha alma impura e não se dissuadisse da ideia de varrer as pedras do caminho a qualquer custo. Aproveitei-me

sem pudor de suas misérias e não tive o menor constrangimento em roubar-lhe os documentos e todos os míseros pertences nos momentos mais atrozes de sua vida. Passei-me por Giuseppe, me apossei da gleba de terra que era sua por direito e roubei a vida que seria a sua. Mas, acredite, fui severamente punido por esses pecados. Lentamente, o destino me tirou o que somente muitos anos depois fui compreender que era realmente o que havia de mais precioso para a vida de uma pessoa. As moléstias dizimaram meu gado, as pragas destruíram minhas plantações, minha família foi muito cedo exterminada pelas doenças e fui abandonado pela sorte, por tudo e por todos, menos pela culpa, que insiste em me acompanhar até o fim dos meus dias. Pegue a sacola que está sob a cama e tome de volta o que é seu. Aí estão seus documentos e de seus falecidos pais, mais o título de posse da terra que por direito lhe pertence. Eu imploro que limpe a minha alma imunda do pecado com o seu perdão.

— Sim, eu lhe perdoo como nosso Cristo nos ensinou.

— Obrigado pela sua generosidade que apaga os pecados de um moribundo em seu leito de morte.

Deu o último suspiro e partiu em paz. Dali a alguns dias aconteceu o esperado casamento de Giuseppe com Annette. Eles viveram bem e tiveram muitos filhos e netos. Giuseppe foi pai de Giacomo, e avo do João da nossa história.

Capítulo XXIII

A serpente mutilada

Ao chegarem à matriz, procuraram as antigas indicações das histórias do seu João quando criança e começaram a procu-rar os indícios de alguma entrada secreta para um possível túnel. Consultaram o livro que dizia: “A serpente devora o defunto, e a mulher lhe esmaga a cabeça”. E também:

No chão da casa de Deus

uma serpente nasceu mutilada

início e fim dos segredos seus

na cabeça e na cauda cortada

Cinco vértebras também feridas

a cinco cabeças espaçadas

o segredo das espadas inseridas

a sete chaves guardadas.

— Deveria haver algum sepulcro relacionado, de alguma forma, a uma mulher. E isso deveria estar de relacionado à ser-pente mutilada que, em ultima análise, poderia ser o túnel a res-peito do qual a lenda tanto falava.

— Num dos lados da sacristia, na parte mais ao fundo, desceram por uma pequena escada perto da qual, quase desper-

218

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

219

cebida, havia uma porta de aspecto bem antigo e que parecia não ser aberta por muito tempo. Com certo esforço, conseguiram abrir e entraram num cômodo sem iluminação e com a pintura de cal tão desgastada pelo tempo que até as luzes das lanternas não surtiam grande efeito; de modo que levaram alguns instan-tes para que seus olhos se habituassem à tênue luz. Ali havia vá-rios móveis em estilo rústico e bem antigos. Num dos armários de 4 portas que abriram, encontraram uma sequência de livros bem volumosos colocados em ordem e com datas de abertura e fechamento contendo muitos registros de nascimentos, batis-mos, matrimônios e óbitos. Em outro armário igual encontra-ram muitos livros, a maioria deles em latim. Num outro móvel que parecia uma enorme cômoda, com muitas gavetas, econtra-ram uma enorme quantidade de peças de diversos tipos, a maior parte em bronze, mas existia também em prata e uma peque-na parte de objetos sacros em ouro. Eram antigos instrumentos de navegação, tais como astrolábio, bússola, luneta, um sextante primitivo, esquadros, transferidores, mapas, tinteiros, penas, etc.

Havia ferramentas antigas, como uma pequena enxada, picareta, ancinho e vários outros parecidos com ferramentas de jardinagem entre outras. Muitos utensílios domésticos de mesa e cozinha. Muitos objetos utilizados na liturgia (como cálices de ouro, galhetas de ouro, patenas de ouro e de prata, âmbulas de ouro, ostensórios de ouro e de prata, castiçais de prata e de bronze, turíbulos de bronze, etc.) também estavam lá. Em outras gavetas também havia roupas antigas, toalhas de altar e para-mentos usados nas cerimônias litúrgicas. Numa outra, encon-traram muitos tubos em finas folhas de flandres ou bronze com tampas do mesmo material, em cujo interior havia algo enrolado que aberto era uma folha de um papel primitivo ou tecido fino

com desenhos e inscrições; a maioria em latim. Em um deles era possível perceber claramente que era um mapa da região em que se via desde a entrada da barra até a subida do rio. Outro parecia ser a planta baixa de todo o conjunto, incluindo igre-ja, aposentos, cemitério, mausoléu e outros que precisavam ser examinados com calma em melhores condições para avaliar-se o que eram. Fotografaram tudo o que puderam. Precisavam algum dia voltar ali com calma e tempo suficiente para estudar todo aquele conjunto que, na verdade, formava um precioso museu, bem como verificar minuciosamente todo o seu conteúdo. Mas, por enquanto, tinham de procurar mais coisas.

Vasculharam todo o ambiente e descobriram um contorno atrás do armário que lembrava uma porta. Na verdade, a porta parecia ter sido coberta com uma fina camada de reboco que se estendia por toda a parede e que tivera sua existência descoberta com o tempo devido às rachaduras localizadas. O armário prova-velmente havia sido colocado ali propositadamente na tentativa de camuflar a porta. Afastaram o armário com cuidado e muito esforço devido ao seu peso. Com muita dificuldade e paciência, conseguiram remover o reboco na região das trincas até a porta ficar definida e, com muito jeito e paciência, conseguiram abri-la. Havia uma pequena escadaria de madeira que rangia quando passaram sobre ela. Descia cerca de três metros.

Entraram, então, num ambiente escuro. Parecia um mau-soléu e, na verdade, o era. Conseguiram verificar que havia lá-pides retangulares nas paredes com o lado maior na horizontal, do tamanho de um ataúde de pessoa adulta, sugerindo que esses eram colocados nessa posição dentro da parede. Havia inscrições em cada uma, epitáfios comumente encontrados em sepulturas.

220

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

221

Sobre cada uma, numa cavidade contendo esculturas de anjos ou santos. Numa delas ao canto estava escrito: “O sepulcro é a por-ta de entrada para o infinito, um caminho sem volta”. Acharam curioso. Verificaram, portanto, qual a escultura sobre ela e viram que era uma pequena imagem de Nossa Senhora da Assunção, a padroeira da Igreja Matriz. Lembraram-se da frase que haviam lido instantes antes: “A serpente devora o defunto, e a mulher lhe esmaga a cabeça” e não tiveram dúvidas, ali havia alguma coisa. Provavelmente, sob a base da imagem ou no interior dela, caso fosse oca, haveria alguma coisa escrita indicando o que deveriam fazer. Ao tentarem remover a imagem para examinarem-na, fal-tou-lhes o chão. Uma espécie de alçapão se abriu sob seus pés e eles levaram um enorme susto; escorregaram por uma rampa que parecia curvar-se e caíram dentro de um fosso alguns metros abaixo.

Acenderam as lanternas e verificaram que era um estreito cubículo que se assemelhava a uma pequena antessala. Ficaram com muito medo de terem caído em algum tipo de armadilha, principalmente quando se lembravam do epitáfio que dizia ser uma ida sem volta. Observaram, então, os arredores e verifica-ram que havia uma espécie de sombra por baixo da camada de reboco que cobria a parede que lembrava o contorno de uma porta. A técnica de camuflagem parecia ser a mesma utilizada anteriormente, exceto algumas especificidades. Com um cani-vete, rasparam a camada na região adjacente àquela sombra e descobriram que havia uma diferença construtiva na região que parecia ser de barro e tijolos mal cozidos. Aprofundaram o con-torno de um dos tijolos e cuidadosamente conseguiram removê-lo. Notaram, então, que, na verdade, aquela era uma passagem que teria sido fechada propositalmente com um material mais

frágil e rebocada com uma fina camada de barro e caiado. Desse modo, abriram mais até verificar que realmente existia um túnel à sua frente, semelhante aos existentes em minas subterrâneas. Acabaram de abri-lo e foram em frente. Somado à apreensão que já possuíam antes, aquele silêncio que fazia sobressair o som da respiração ofegante, a escuridão de que as lanternas pareciam não dar conta, a poeira da parede desfeita, o calor e a umidade produziam um estado de quase pânico que potencializava a sua falta de ar. O caso, no entanto, era ir em frente e procurar alguma saída.

Lembraram-se dos versos que haviam lido pouco antes e analisaram o lugar. No “chão da casa de Deus” já estavam, a “serpente mutilada” seria o túnel, “devorar o defunto” deveria ser porque o sepulcro estava praticamente na boca do túnel. Faltava descobrir os segredos. Um deles, segundo as inscrições do livro, estava na cabeça, isto é, na entrada do túnel. As sete chaves po-deriam ser objetos ou uma metáfora equivalente a uma chave do segredo, algo escrito — ou ainda as duas coisas. De fato, eram, como veriam mais tarde. No lado direito do que seria o marco da porta, a cerca de 1.70 m de altura, havia uma pequena cavidade e, ao fundo, havia algo metálico e dourado. Com certo receio das possíveis surpresas desagradáveis, decidiram puxar aquilo para fora e ver do se tratava. Poderia ser a chave do novo problema: sair dali. O professor Pedro puxou e ambos examinaram: era um objeto que media aproximadamente 8 cm de comprimento e ti-nha a forma que lembrava uma pequena espada. Nela, havia uma inscrição: “Mt 13.15”. Consultaram a Bíblia que levavam como parte de seus apetrechos e confirmaram se tratar da parábola do semeador, que, em última instância, concluía que deve-se ouvir com os ouvidos e entender com o coração. Claro estava para eles

222

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

223

que tudo era dito por metáforas e tinham de entendê-las da me-lhor forma possível. Precisavam sair dali.

Como o epitáfio dizia que era uma ida sem volta, não ha-via outro recurso senão avançar e achar a saída do túnel. Deram mais uma olhada na cópia do livro que levavam e ficaram a ima-ginar o que seriam as vértebras da serpente dentro daquele túnel. Apontaram as lanternas para frente seguindo as laterais e des-cobriram que as vértebras realmente existiam: eram as escoras. Assim sendo, a situação começava a fazer sentido. Faltava, então, encontrar a próxima chave que estaria numa das vértebras. Mas em qual delas? Havia muitas. Consultaram o livro mais uma vez e viram que as vértebras onde os segredos estavam eram espaça-das de cinco cabeças.

— Que curioso, Pedro. Como poderia haver espaçamento de cinco cabeças se entendemos ainda há pouco a cabeça como a entrada do túnel. Onde estariam as quatro restantes? Será que existe algo que ainda não sabemos, como objetos, desenho na parede ou estatuetas? Será que existe mais alguma indicação que permita encontrá-las?

— Não, Paschoal. Pelo menos aparentemente, não há mais nada que se refira a isso. Temos de pensar muito mais e tentar de-duzir o que possivelmente há nas entrelinhas dessa informação.

Depois de muita análise, a única hipótese possível seria cinco vezes o diâmetro da boca do túnel, que media cerca de três metros na boca e depois afinava para 1,80 m. Contaram, então, quinze metros a partir da boca e verificaram a escora mais pró-xima. Isso foi fácil, pois, pelo que perceberam, o túnel tinha uma simetria impressionante e entre duas escoras havia uma distan-

cia de três metros. Logo ao lado dessa escora, à primeira vérte-bra, escavada na parede estava a pequena cavidade. Foi difícil para eles a encontrarem, pois, desta vez, estava à esquerda — à direita, era encostada na rocha e não poderia ser escavada facil-mente. Aliás, essa era uma característica construtiva do túnel, engenhosamente planejada, aproveitando-se da topografia exis-tente naquela região: uma camada de barro na encosta da rocha até o ponto em que esta ficava à mostra, alguns metros distante de sua parte mais baixa. A cavidade era semelhante à da entrada do túnel, fincado no fundo um objeto também semelhante ao primeiro. Nele, também havia uma inscrição: “Mt 13.44”, que, conforme consultaram, era: “O reino de Deus é semelhante a um tesouro escondido no campo...”.

— Veja só, Pedro. Isso é sugestivo, não acha? Penso que é uma indicação muito importante para nós.

— Certamente. Penso que seja um sinal que, seja lá o que for que procuramos, não está aqui.

Em última instância, indicava que o tesouro, ou o que quer que procurassem, estava no campo, portanto, fora do tú-nel. Andaram mais 15 metros e encontraram mais uma escora, a segunda daquela sequência, com uma cavidade ao lado e com o objeto fincado no fundo como os primeiros. Retiraram e viram a inscrição: “Jo 12.35”. Consultando a Bíblia, viram que dizia: “Por pouco tempo a luz está em vosso meio”.

— Intrigante, Pedro. O que quer dizer isso, considerando as nossas condições? Afinal, estamos num túnel sem iluminação.

— Sim, mas talvez seja um lembrete para pouparmos as baterias da nossa lanterna ou que o nosso final está próximo. Isso

224

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

225

faria muito sentido se considerássemos que antigamente se usa-vam tochas acesas para iluminar e que elas consomem o oxigê-nio necessário à respiração. Por um instinto de preservação, pre-firo acreditar na primeira hipótese. Tomaram aquilo como um aviso para realmente usar as lanternas o mínimo possível. Então, mantinham somente uma delas acesa, a menos que fosse muito importante acender as duas.

Faltava ainda a terceira vértebra da indicação. Andaram mais 15 metros, localizaram a próxima escora, a cavidade e o objeto fincado. Retiraram e leram “Mt 7.14”, que corresponde a: “Estreita é a porta que conduz à vida”.

— Veja só, Pedro. Aqui fala numa porta. Curioso, não há porta alguma, pelo menos visível por aqui. Aliás, pelas condi-ções, é improvável que exista.

— Sim. Deve haver alguma explicação para isso.

Na próxima escora, a quarta da sequência, depois do mes-mo espaçamento, a indicação encontrada era: “Mt19.24”, que diz: “É mais fácil um camelo passar no fundo de uma agulha do que o rico entrar no céu”.

— Agora complicou, Pedro. Em nosso contexto, essa me-táfora é quase impossível de servir para deduzir alguma coisa.

— Com certeza. Essa é a mais difícil de todas. Parece que, a cada vez que a gente avança, as indicações ficam mais compli-cadas... ou fazem menos sentido.

A princípio, não souberam exatamente o que queria dizer aquilo, mas precisavam seguir em frente. Andaram mais quinze

metros e tiveram uma grande surpresa ao constatar que o túnel havia acabado. Àquela altura, o pânico quase já tomava conta deles. Reunindo seus últimos esforços de concentração, tenta-ram desesperadamente manter-se calmos, e então começaram a conversar sobre as suas reais possibilidades.

— Pedro, você não acha muito estranho alguém construir um túnel desse tamanho que não leva a lugar algum?

— Sim, pois, pelo que consta, os túneis serviam como ro-tas de fuga. Seguramente, deve haver uma saída.

— Concordo, mas a questão é como encontrá-la.

— Por sorte, falta ainda mais um segredo. Procuremos nessa última vértebra.

Naquele ponto do final do túnel havia uma última es-cora, ou “vértebra” como a chamavam. Próximo a esta escora conseguiram encontrar uma cavidade semelhante às primeiras e viram a inscrição em latim: “Pace est cum vos”, ou seja, a paz esteja convosco. Tremeram de medo. Aquilo soava como “des-cansem em paz, vocês já acabaram de viver esta vida”. Todavia, para seu consolo, sobrava também o linguajar popular: “relaxem ou acalmem-se”, conforme fizeram questão de entender — devi-do às suas imperiosas necessidades no momento. Faltava, então, encontrar a saída e a última chave. Examinaram detalhadamente cada centímetro quadrado do final túnel, incluindo o teto e o solo.

— E agora, Pedro? Se ainda nos falta a última mensagem e esta deveria estar na cauda da serpente, ou, como deduzimos, na saída do túnel, e o túnel acabou...

226

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

227

— Verifiquemos novamente as mensagens. Ah, achei uma interessante que talvez ajude em algo. A penúltima mensagem falava num fundo de agulha. Deve haver algo semelhante pelo chão.

— Sim, essa é, talvez, a única possibilidade. Vamos testá-la.

Com um canivete, sondaram o solo em diversos pontos e encontraram num canto o que procuravam. Sob uma fina cama-da de terra havia uma fina placa de bronze, na verdade, um alça-pão. Ao levantarem-no, viram um buraco circular que permitiria no máximo um de cada vez. Iluminaram o seu interior e viram que dois metros abaixo o ambiente parecia ser um pouco maior.

— Pedro, temo por surpresas desagradáveis.

— Claro, Paschoal, eu também morro de medo, mas creio que não haja nenhuma outra opção. Alguma ideia?

— Não. Lamentavelmente, nada mais me ocorre.

— Então, vamos em frente.

Resoluto, Pedro foi o primeiro a pular dentro do poço, disposto a tudo. Imediatamente, o professor Paschoal o seguiu. Viram que era um apertado cubículo em que ambos poderiam estar com muita dificuldade.

— Que situação! Veja só, Paschoal, pelo menos aparente-mente, não há nada.

— Sim, como das outras vezes. Deve estar muito bem ca-muflado.

— Então, possivelmente, haverá algo parecido com a téc-nica usada nos casos anteriores. Aliás, na mensagem que vimos há pouco havia uma menção a uma porta estreita. Verifiquemos.

Com muito custo, sondando as paredes com o canivete, acharam uma estreitíssima porta no canto/ camuflada com uma fina camada de barro. Com bastante esforço e usando as poucas ferramentas que levavam, conseguiram encontrar a porta — na verdade, uma fina parede que obstruía a passagem como a pri-meira que haviam encontrado.

— Pedro, procuremos a sétima mensagem. Ela tem de es-tar por aqui.

Procuraram por ela e a encontraram como na da entrada? a cavidade ao lado com o objeto cravado no fundo.

— O que diz essa, Pedro?

— A referência é: “Mt 5.41”. Ela corresponde à citação do versículo 41 do evangelho de São Mateus: “Se alguém te forçar a andar uma milha, vai com ele duas”.

— Se bem entendi, essa dica, em outras palavras, nos in-forma que este não é o final do caminho. Ainda temos muito que andar. Será que esse túnel é tão comprido assim?

— Não creio. Deve haver outra explicação para isso.

— Ótimo, então vamos por partes. Primeiramente, a por-ta.

Ao abrirem a porta, tiveram a agradável surpresa: ar fres-co e luz natural. Que alívio! Passaram com muita dificuldade e saíram numa pequena gruta no meio de um matagal. A última

228

João Roberto Vasco Gonçalves

Capítulo XXIV

A subida do Rio Benevente

Chegaram às margens do Rio Benevente. Precisavam, as-sim, decidir o que fazer. Depois de conversarem alguns minutos sobre suas possibilidades, sem chegar a uma boa ideia, resolve-ram dar uma olhada no livro a fim de ver se havia algo que os orientasse. Depararam-se, então, com estranhos versos:

Subindo 14000 côvados ,

depois do encontro das águas,

o passo do salitre está,

dobrando-se a tramontana,

o novo Horeb estará.

— Que verso curioso, hein, Pedro? Como você analisa isso?

— Para mim, está bem claro: “subir” com certeza é navegar em sentido contrário ao seu curso, ou “rio acima”, como dizem. Côvado é uma medida antiga que equivale a aproximadamen-te meio metro, então 14000 côvados seriam aproximadamente 7 km. O “encontro das águas” é autoexplicativo, deve haver um afluente que deságua nesse rio. O “passo do salitre” ou “praça do salitre” seria uma localidade. Pelo que vimos na propaganda do passeio de barco, pelo rio existe uma edificação em ruínas às margens do Rio Salinas. Tramontana é uma palavra italiana que tem alguns significados, podendo ser “longe” ou “norte”, caso se refira a uma posição geográfica. Logo, “dobrar a tramontana”

mensagem indicava que deveriam caminhar duas milhas. Abri-ram uma trilha cortando o mato com um facão o suficiente para passarem. O terreno era ligeiramente acidentado e tinha um de-clive acentuado. Desceram muito, até que chegaram à beira do rio. O enigma do túnel estava bem explicado. Na verdade, não era tão grande, conforme realmente supunham. Alias, analisan-do bem, a lenda não afirmava explicitamente que o túnel seria longo, logo, o resto do percurso obviamente seria fora dele.

230

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

231

certamente será mudar de direção seguindo para norte, o que corresponde a um afluente da margem direita de quem sobe o rio que, pela lógica, é o Salinas.

— E o que o Horeb tem a ver com isso?

— Segundo a Bíblia, esse é o monte onde Moisés recebeu as tábuas da lei.

— Tudo bem, mas o que se pode concluir disso?

— Ora, Horeb é um morro, se o verso diz que dobrando a tramontana o Horeb estará, certamente haverá um morro em alguma parte do caminho.

— Portanto, vamos à viagem pelo rio.

Havia um problema, o de conseguir um barco motoriza-do. No entanto, em primeiro lugar, teriam de sair dali e chegar ao local conhecido como “porto de cima”, onde sabiam que alu-gavam barcos. Descer o rio pela margem era impraticável, pois logo a encosta se tornava um enorme escarpado de granito sem a menor possibilidade de transposição. Foram, portanto, em sentido contrário, contornando as margens numa região onde o morro era mais acessível e encontraram um manguezal. Tiveram muito trabalho para achar um caminho. Contornaram e subiram o morro naquela região, saindo no outro lado, próximo à entrada oeste da cidade, na estrada que vem de Jabaquara, e entraram de volta em Anchieta. Caminharam um pouco e saíram na rua da praia. Precisavam, então, saber onde ficava o local conhecido como “porto de cima”, conforme ouviram alguém mencionar an-tes.

— Bom dia. O Sr. poderia me informar onde fica o porto de cima?

Apontando com o dedo, braço estendido, o homem indi-cou a direção, dizendo:

— Siga em frente margeando a praia até encontrar a pon-te. Depois dela, siga a rua em frente por uns 50 metros e vire à direita, seguindo por essa rua por mais uns 100 metros. Então, dobre à esquerda e siga pela rua até encontrar o rio. Ali é o porto de cima.

Ligeiramente confuso com a informação e a imprecisão das medidas (e anotando alguns pontos de referência), Pedro to-mou um bloco de notas e um lápis e fez um croquis como pôde. Agradeceram pela informação e seguiram em frente. Pergunta-ram um pouco adiante e, em poucos minutos, já estavam lá. Fi-zeram uma pequena pausa para um lanche e para reporem as baterias das lanternas e depois começaram a procurar onde pu-dessem alugar um barco.

— Você sabe onde podemos alugar um barco? — Pergun-tou Pedro a um menino que passava pela rua.

— Ali — apontou para uma casa.

— Obrigado.

Chegaram à casa, chamaram; logo, alguém atendeu.

— Vocês têm barco motorizado para alugar?

— Saíram quase todos para a pesca, só resta um pequeno com motor de popa, mas agora não temos ninguém para guiar.

— Não é necessário. Queremos só o barco mesmo. Paga-mos adiantado.

— Ótimo. O galão de combustível está ali naquele canto. Porém, antes de saírem, precisam ouvir algumas recomendações.

— Sim, ouviremos. Pode começar, por favor.

— Vocês devem tomar alguns cuidados, tais como não se aproximar muito das margens, evitar as moitas de vegetais de-

232

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

233

baixo d’água, ter cuidado com galhos de mato e restos de roçado boiando, ter cuidado com os bancos de areia e usar sempre os coletes salva-vidas.

— Sim, tomaremos todas as precauções.

— Há mais algumas recomendações importantes que os senhores precisam ouvir.

— Pode falar.

— É proibido pescar camarões, incomodar as aves, mexer nos seus ninhos, pegar ovos, capturar qualquer tipo de animal silvestre, cortar árvores ou pegar mudas de plantas.

Era uma porção de “nãos”, de modo que o que sobrava de fato era olhar e fotografar. Se, por um lado, era incômodo todo aquele falatório, por outro, era muito bom saber que o pessoal do lugar estava empenhado em cuidar do meio ambiente. Ficaram mesmo impressionados com o nível de consciência ambiental na região. As indicações do livrinho eram realmente sugestivas. Su-biriam o rio por cerca de 7 km até encontrar um afluente que se-guisse para o norte. Isso excluía os afluentes à esquerda de quem sobe o rio. O primeiro afluente significativo que se desloca para norte é o Rio Salinas. Conforme já mencionado, iriam até lá.

O barco que conseguiram era pequeno e bem modesto. O motor, de pequena potência, o que fazia com que rio acima se deslocasse vagarosamente. De certa forma, isso era desagradável, contudo, por outro lado, era uma boa oportunidade de observar a paisagem, as garças, os canais, os manguezais e pensar na real importância daquele ecossistema. Tudo isso suavizava a impaci-ência e de algum modo relaxava a tensão produzida pelos últi-mos acontecimentos. Era tudo de que precisavam para suportar o peso das aventuras e continuar suas pesquisas, que àquela al-tura dos acontecimentos, nem mesmo sabiam ao certo se chega-riam a algum lugar ou produziriam algo de útil que pudessem

apresentar a quem lhes encomendara. Eles não eram bons em navegação e tiveram algumas dificuldades para pilotar prestando atenção às recomendações que haviam recebido. Desse modo, gastaram cerca de 40 minutos até chegar até ao Rio Salinas.

— Olhe, Pedro, além de alguns canais há um afluente que segue para norte. Observe este estranho mapa que copiamos do livro original. Parece muito antigo e escrito em latim. Segundo suas informações, só pode ser o Rio Salinas.

— Com certeza. Vamos entrar por ele.

— Segundo a propaganda turística que vimos, logo adian-te encontraremos as ruínas.

— Certo, então vamos em frente.

As ruínas realmente eram interessantes, como já haviam lido e escutado os comentários. Fizeram uma pequena parada, foram até lá, fotografaram, examinaram bastante o local, fizeram anotações e voltaram para o barco dispostos a continuar a via-gem.

— Paschoal, será que a perseguição acabou?

— Duvido muito. Eles são muitos e parecem estar deter-minados. Devem ter outros planos em andamento.

234

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

235

— Provavelmente, mas ainda temos os defensores...

— Pedro, já conseguimos chegar até aqui seguindo as in-dicações do livro. Creio que estamos no rumo certo.

— Concordo, no entanto, pela proporção que sugere o mapa, nós ainda estamos a uma boa distância e temos de ter pa-ciência para chegarmos lá.

— Só falta agora achar o tal monte Horeb que o livro men-ciona. O que você acha?

— Acho que seria o Monte Urubu. Pelo menos consultan-do o mapa e comparando com a posição e distancia relativa, seria realmente ele.

— Claro, Pedro, é isso mesmo. Pelo estudo que fizemos da região, só pode ser o Monte Urubu, que fica à margem direita do salinas, não muito distante deste.

— Se soubéssemos que esse seria o alvo, não precisáramos ter vindo de barco. Há uma estrada de Anchieta até lá. Seria mui-to mais rápido e nos pouparia de tanto sufoco.

— Sim, mas não teríamos descoberto muitas coisas nem obtido esses objetos — disse, mostrando uma das pequenas es-padas — que, possivelmente, mais adiante pode servir para algo, conforme sugere o livrinho. Mas ainda podemos fazer isso, abor-tar a subida do rio e ir de carro.

— Creio que agora não seja apropriado, já que estamos aqui.

— Certo, mas podemos ir até a estrada que vai de Jaba-quara até Anchieta, e conseguir carona para lá e alugar um carro.

— Mas ainda temos o problema do barco, que não pode-mos deixar ali, a menos que arranjássemos um caminhão peque-no para carregá-lo de volta.

— Nesse caso, contudo, aparecem outros complicadores, pois chamaria muita atenção e teríamos de responder a muitas perguntas.

— Tem razão. Além disso, dependendo do material que encontrássemos, seria muito mais discreto descer de barco longe de olhos curiosos e dar um jeito de esconder o item em algum lugar para o transferir depois para um carro que alugássemos.

— E então, como faremos?

— Iremos de barco até onde for possível. Depois, desem-barcamos e caminhamos pelo melhor caminho que encontrar-mos.

Foram em frente de barco até onde foi possível. Depois, desembarcaram e caminharam bastante. Suas mochilas pare-ciam já pesar toneladas, e o cansaço já começava a incomodá-los. Entretanto, haviam chegado até ali e não poderiam desanimar. Restava-lhes seguir em frente.

Capítulo XXV

A gruta

— Pedro, a nossa cópia do livro diz algo interessante para a nossa posição atual?

— A sétima frase começa dizendo: “A santíssima trindade/repousa em três pontos distantes/1 aqui no Nebo...”. Isso poderia ser o nada, o vazio, algo desaparecido ou perdido, algo de senti-do vago ou mesmo um monte citado pela Bíblia no capítulo 34, versículo 1 de Deuteronômio. Ali, é narrado que Moisés subiu no monte Nebo, de onde Deus lhe mostrou toda a terra prometida, conforme relata o versículo 4 desse mesmo capítulo.

— E o Horeb, onde entra nessa história?

— O mapinha antigo menciona o Horeb. Pela décima ter-ceira frase do livrinho, é uma citação do livro do Êxodo, capítulo 17, versículo 6: “Eis que estarei ali diante de ti, sobre o rochedo do monte Horeb, ferirás o rochedo e a água jorrará dele: assim o povo poderá beber. Isso fez Moisés em presença dos anciãos de Israel”.

Assim sendo, subiram o Rio Salinas, que se desloca para norte, por cerca meia hora. Depois, caminharam muito, confor-me previsto. O Monte Urubu que haviam avistado ao longe, esta-va então praticamente ao seu lado. Não se cansaram de apreciar aquela maravilha que se descortinava diante se seus olhos. Não perderiam a oportunidade de caminhar pelas trilhas da região, o que, aliás, não deslocaria em nada o seu foco, muito pelo contra-rio. Olharam as anotações sobre o Monte Urubu, em que se po-

238

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

239

dia ler: “Possui um remanescente de Mata Atlântica situado no interior do município de Anchieta–ES a aproximadamente 20,7 lat e 40,7 long. Seu pico culminante é de 332 m. Fica na parte leste do município, à margem direita do Rio Salinas”. Não havia dúvida de que era aquele o ponto que procuravam. Segundo as propagandas turísticas que obtiveram, existem trilhas para fazer passeios eco-turístico, uma clareira num lugar elevado onde se pode observar toda a região. Era tudo de que precisavam no mo-mento.

Antes de começarem a caminhada em direção ao monte, folhearam mais uma vez o livro que haviam confeccionado e se surpreenderam com uma indicação num desenho, provavelmen-te um mapa em que parecia ser a posição do rio onde estavam. No ponto, estava indicado: “Ex: XVII, XLVI”. Poderia ser um anagrama ou (talvez) referir-se ao capítulo 17 do livro bíblico do Êxodo. Imediatamente, consultaram a Bíblia que tinham consigo e fazia parte de seus instrumentos de pesquisa do caso. A frase era a mesma que haviam lido anteriormente e ela soou como um despertador nos seus ouvidos tentando acordá-los: “Eis que es-tarei ali diante de ti, sobre o rochedo do monte Horeb[...]”. Sem querer exagerar muito, poderia Horeb ter sido transformado em Urubu? Ou seria simples coincidência? Acreditar nessa hipótese parecia aliviá-los um pouco.

— Pedro, agora ficou uma pequena dúvida: o que lemos anteriormente era Ex 17.16, no entanto, a indicação desse mapa é “Ex:XVII, LXVI”. O que seria isso?

— Podem ser várias coisas. Poderia ser a data de quando alguém esteve aqui, possivelmente, 1766, afinal, antigamente era comum escrever datas em algarismos romanos.

— Isso é bastante curioso, pois, se fosse mesmo verdade, teria acontecido depois da expulsão dos jesuítas, que ocorreu em 1759, ou seja, sete anos depois.

— Concordo. Isso significa que, embora os jesuítas te-nham ido embora, alguém ficou por aqui cuidando das coisas. Alguma pessoa ou talvez uma irmandade.

— Podem ter sido guardiões de alguma coisa importante para a sua fé? Nesse caso, não seriam necessariamente jesuítas, mas alguém infiltrado em seu meio ou ao mesmo tempo partici-pante da ordem.

— Acho que sim. Pensando dessa forma, é possível que nunca tenham sido extintos; ou, mais precisamente, podem exis-tir até hoje. Pelo que vimos no livro original, existem inscrições que aparentam ser consideravelmente mais recentes o que da uma ideia de atualização e dinamismo no processo de documen-tação do livro.

— Nem me fale.

Aquela última consideração era de gelar a espinha. Por um momento, passaram por suas cabeças todas aquelas peripé-cias vividas na Europa antes de chegarem ao Brasil.

— Pedro, recapitulando o que lemos anteriormente sobre o Monte Nebo, o que ele tem de importante mesmo para a nossa pesquisa?

— Segundo a Bíblia, segundo livro de Macabeus, capítulo 2, versículo 5, seria o local onde Jeremias teria escondido a arca da aliança para que essa não fosse destruída por Nabucodonosor II, rei da Babilônia, quando este invadiu e subjugou a terra santa.

Poderia ser um grande exagero, uma grande vontade de encontrar algo, o que os levava a inferências forçadas que pode-riam ser totalmente falsas, no entanto, com tantas supostas coin-cidências, não poderiam sair dali sem ao menos verificar tudo de perto e fazer um teste de consistência nas hipóteses levantadas. Claramente, a imparcialidade seria um problema para quem de

240

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

241

antemão já estava inclinado a acreditar num encadeamento de hipóteses e que estas os levariam ao ponto culminante da história cujo desfecho já imaginavam. Já haviam avançado demais para retornar com um caso inconcluso. Foram em frente. Ao chega-rem ao sopé do morro, fizeram um breve reconhecimento do ter-reno, e, depois, nos caminhos que subiam, procuraram avaliar o tipo de terreno, o tipo de rochas, etc. Fizeram várias conjeturas.

— Pedro, como você avalia a nossa chance de encontrar algo por aqui?

— Acho que se alguém tentasse esconder algo com a in-tenção de que alguém, algum dia, talvez por gerações adiante, encontrasse, certamente não deixaria muito à vista. Tentariam proteger esse algo das intempéries e possivelmente fariam algum tipo de balizamento que permitisse a quem fosse fazer o resga-te encontra-lo. Possivelmente, mediante um mapa simples com indicações, conhecido apenas por alguém que fosse comprova-damente íntegro, sagaz, preparado e escolhido para a tarefa, con-forme também alude o livro.

— Penso que aí há uma questão não entendida claramen-te, pois as melhores opções recaem sobre enterrar ou colocar em alguma gruta ou caverna. O que você pensa a respeito?

— Enterrar provavelmente seria difícil para a conservação ou talvez exigisse vasos de cerâmica de tamanhos descomunais, caso as peças fossem grandes. Outrossim, há uma referência no livro a Mt 6.19: “Não enterrar os tesouros na terra”. Seguindo essa indicação, o tesouro ou o quer que fosse não estaria enterrado.

— E se esse “enterrado” for uma forma de se referir a uma gruta?

— Uma gruta escavada por alguém seria outro caso pro-blemático. Escavar na rocha seria impraticável, a menos que essa

fosse de um tipo conhecido popularmente como “molêdo” ou outra rocha menos dura do que o granito, fácil de ser escavada, o que não parece ser o caso desse monte.

— Então, não haveria nenhuma outra opção. Como se ex-plica isso?

— Sobra a hipótese de uma falha geológica natural, algo como uma gruta natural ou caverna, como o caso citado em 2 Macabeus 2.5.

Vasculharam toda a região, porém nada fora encontrado. Estavam quase a ponto de desistir quando resolveram dar mais uma olhada no livro. Encontraram, num desenho, uma indica-ção que os levou a um ponto onde encontraram um montículo de terra que, após removida, mostrou algo semelhante a uma laje de pedra. Os contornos os levaram a crer na hipótese de aquilo ser uma entrada de uma caverna que tivesse sido vedada, num local parecido com uma vala que descia no meio da rocha.

— Veja só isso, Pedro: algo como um desenho que lembra um coração. Não há uma referência sobre isto no livro?

— Sim, é a referência Mt 6.21, que diz: “Onde estiver o tesouro estará o vosso coração”. Dizendo de outra forma, aqui temos o coração, e o tesouro estaria aqui.

— Portanto, estamos no caminho certo, vamos tentar re-mover isso.

Com certa dificuldade removeram e viram que não ha-viam se enganado.

— Olha, realmente há uma caverna!

— Só que é muito pequena e estreita e acaba logo ali na-quela água.

242

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

243

— Vamos seguir em frente e examinar mais de perto.

Seguiram alguns passos adiante até onde foi possível e parecia ser o final da linha. Já sentiam a respiração mais difícil, talvez pelo ar viciado. Por sorte, possuíam bombas de oxigênio como aquelas que os asmáticos costumam usar.

— Veja, Pedro, parece haver uma fenda na pedra no fim deste pequeno túnel natural. Vamos examiná-la mais de perto.

— É isso mesmo, Paschoal, e é maior do que imagináva-mos. Com algum esforço, podemos passar, um de cada vez.

— Então, vamos lá.

— Venha também, Paschoal. Aqui existe outro túnel na-tural na rocha, duas vezes mais comprido do que o primeiro, até onde posso ver, pois ele parece curvar-se logo adiante.

— É surpreendente, Pedro. Vamos em frente.

Caminharam alguns passos até chegar à curva. Verifica-ram que, a partir dali, o ambiente se alargava, formando uma gruta. Resolveram entrar.

— Pedro, nunca vi nada igual. A rocha das paredes lembra o mármore e tem uma tonalidade entre cinza e azul claro.

A gruta era mesmo muito especial e tinha algumas pro-priedades curiosas e tecnicamente bem elaboradas, se analizadas com olhos de especialistas. No teto, de uma extremidade a outra, um veio translúcido de cristal de rocha em forma de arco com uma largura de aproximadamente 200 mm permitia que a luz do sol do lado externo transmitisse luminosidade ao interior da gruta ao longo de todo o dia (o que era totalmente aproveitado pelo tipo de revestimento da gruta, que difundia bastante, am-plificando a claridade). Além disso, quando a claridade era in-tensa, a luz branca do dia se decompunha num espectro de cores

que lembravam as do arco-íris, pelo efeito do prisma constituído pelo cristal de rocha. Quando passava uma nuvem muito escu-ra e a luminosidade caía, a fosforescência das paredes devolvia a luz armazenada. Nas extremidades próximas ao solo, onde o revestimento terminava, parecia haver uma subcamada de tom cinza escuro de aproximadamente 150 mm de espessura. Depois dessa, outra camada negra e fosca de mesma espessura de um material que lembrava um grafite; e só depois a rocha natural. Nos conceitos de hoje, lembrava um abrigo contra explosões nu-cleares e seus efeitos radioativos. Colheram algumas amostras para exames posteriores.

— Olhe, Paschoal, na parte central parece haver um altar de pedra contendo algumas coisas. Vamos verificá-lo.

— Sim, é realmente uma formação rochosa em forma de altar em dois planos, como se fosse um degrau.

— Exatamente. E pelo, que vemos sobre o primeiro de-grau, há um baú metálico que parece bronze.

— E na parte superior não podemos ver muito bem por-que há um anteparo em forma de cortina.

— Vamos por partes. Verifiquemos primeiro o baú. Va-mos tentar abri-lo para verificar o seu conteúdo.

— Veja, há uma espécie de emblema com sete selos feitos em uma espécie de cera vermelha.

— Deve ser isso. Rompamos os selos.

— Veja, o emblema é, na verdade, uma estrela de seis pon-tas. Em cada ponta há uma fenda. E, no centro, há mais uma.

— Deve ser algum tipo de fechadura. Onde estariam as chaves.

244

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

245

— Conosco — respondeu Pedro após refletir um pouco. Ele pegou as sete pequenas espadas que haviam recolhido no tú-nel “serpente mutilada” e mostrou.

— Ótimo, se for isso, estamos bem adiantados. Introduza as espadinhas.

— Não entrou na primeira fenda. Vou tentar nas outras. Observe, só entra em uma.

— Faça a mesma tentativa com as outras.

— Veja só, cada uma só entrou no lugar certo. É um tipo de segredo de chave. Porém, temos um problema: as chaves já foram inseridas, mas o baú não abriu.

— Deve ser preciso girá-las, puxá-las, empurrá-las ou coi-sa assim. Possivelmente, numa sequência definida. Vamos fazer algumas tentativas.

Após exaustivas tentativas, descobriram que tinham de gi-rar cada uma no sentido horário, exceto a do centro, que era no sentido anti-horário. Finalmente, as travas foram liberadas. Eles poderiam, então, levantar a tampa do baú. Após alguns instantes de encantamento, imóveis e quase sem respirar, falaram quase ao mesmo tempo: “Finalmente, encontramos algo importante”. Depois de respirarem mais uma vez, decidiram abrir a tampa do baú e verificar o seu conteúdo. Ficaram estupefatos. Lá estavam todos os objetos sacros descritos.

— Veja, Paschoal, são vários objetos usados na liturgia ca-tólica. Um ostensório de ouro com doze raios, um cálice de ouro contendo uma gravura trabalhada em pedras preciosas verme-lhas, azuis, verdes e amarelas, conforme o desenho que formava. Provavelmente, um símbolo sagrado. Sete castiçais de prata com detalhes em ouro, contendo uma base com três apoios curvos em “S” no sentido da coluna em cima e curvos no sentido contrário

em baixo, na base. Duas galhetas em ouro bem claro, como se fosse liga de ouro com prata, uma patena também dessa liga e algo que parece ser umas toalhas ou talvez os paramentos.

— Pedro, encontramos algumas peças usadas na liturgia da missa católica, mas faltam ainda várias coisas, conforme in-forma o livro. Este insinua que existem documentos.

— Sim, precisamos examinar tudo detalhadamente.

— Existe algo curioso aqui na parte interna da tampa. Pa-rece algo como um pequeno lenço. Vamos ver se há alguma coisa escrita. Vou remover com cuidado.

— Oh! O lenço cobre uma espécie de emblema, é uma es-trela de ouro de 12 pontas, e em cada ponta há uma pedra. Cada pedra é de uma cor diferente. Em cima das duas que estão na parte mais alta há um símbolo gráfico.

— Pedro, você consegue definir alguma coisa?

— O símbolo da esquerda é a primeira letra do alfabeto hebraico, “Alef ”, o da direita é “Lamed”, décima segunda letra do alfabeto hebraico. Como em hebraico se escreve da direita para a esquerda, ou, neste caso, no sentido anti-horário, está coerente: a primeira letra está a esquerda; avançando sempre nesse sentido, a última estará à direita da primeira.

— Boa explicação. Contudo, por que doze?

— A antiguidade é cheia dessa coisa de números, como os doze deuses do Olimpo, os doze trabalhos de Hércules, etc. No caso judaico, temos vários casos, como, por exemplo, os doze filhos de Jacó, que geraram as doze tribos e, ainda, o caso dos profetas menores: Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias.

— Faz sentido. E quanto às cores das pedras?

246

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

247

— Podem ser muitas coisas, pois as cores sempre foram carregadas de muito simbolismo em várias culturas ao longo da história. Sempre estiveram associadas a coisas como os signos zodíacos, divindades, comportamentos, cura de doenças e muito mais. Teríamos de pesquisar exaustivamente para formar uma ideia mais sólida. Faço, todavia, um prognóstico: observando as cores na sequência, vejo que começa com cores mais fechadas a partir do preto e elas clareiam à medida que avançam até chegar ao branco. Podem estar associados a graus de iluminação, apren-dizado, hierarquia ou algo assim.

— É muito curioso mesmo tudo isso. Já verificamos a tam-pa, passemos agora ao restante do baú. Verifique se há algo mais abaixo desse pano sob os objetos que já vimos. Afinal, ainda não encontramos nada de documentos.

— Não há nada de documentos, mas ainda há algumas peças — disse Pedro.

— Mas, então, como se explica isso? O livro afirma que existem. Onde estariam?

— A única opção que nos sobra é examinar as peças que já encontramos.

— Vamos a isso, então. Comecemos pelo ostensório.

— Achei. A base é oca e contém uma peça que parece um pedaço de pano encerado com inscrições em hebraico.

— Veja agora sob o cálice.

— Também contém uma peça igual à do ostensório e tam-bém com inscrições.

— E sob os sete castiçais, o que há? — Perguntou Paschoal.

— A mesma coisa.

— Examine também as velas.

— Veja, parecem ser ocas, formadas pelo mesmo material de pano cobertos de cera.

— Vamos tentar abrir com cuidado e desenrolar para ver-mos se também contêm inscrições.

— Sim, todas as peças das sete velas também possuem ins-crições parecidas.

— Há mais alguma coisa.

— De documentos escritos, nada. Só existem as peças de que falei a pouco, ou seja, um candelabro de sete braços, tam-bém chamado de Menorah em hebraico, uma peça descrita em Ex 25.31–40, que consta no desenho do livro. Há um pequeno baú cheio de tabletes de ouro e um instrumento que lembra ligei-ramente um cutelo que era utilizado para imolar as vítimas, mas com alguns detalhes característicos. Ele possui um cabo de um

248

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

249

material na cor âmbar, possivelmente feito de alguma resina na-tural ou pedra. Ela tem uma guarnição quase elíptica com o raio maior na vertical, entre o cabo e a lâmina, feito do mesmo mate-rial e uma lâmina de um metal amarelo bem claro como se fosse uma liga de ouro e prata, sendo de um terço do comprimento total do instrumento, que deve medir uns quinze centímetros.

— E o que mais?

— Examinando bem esses panos, na verdade, são um con-junto de vestes sacerdotais como as descritas em Ex 28.4.

— Algo mais?

— Não há mais nada a ser verificado — Pedro respondeu.

— Nesse caso, passemos às interpretações das inscrições encontradas: comecemos por essas do Deuteronômio.

— A primeira referência é Dt 11.8–25, que fala da posse da terra; a segunda é Dt 10.11, que fala em tomar a terra; a ter-ceira é Dt 11.24, que fala em limites da terra santa. Exatamente como está escrito no livro.

— Isso é extremamente revelador. Para mim, estão muito claros os objetivos dos guardiões da organização, confraria ou o que for: libertar a Terra Santa.

— Como os cruzados e templários?

— Exatamente, porém em termos mais nobres e sob o ponto de vista judaico, ou seja, libertá-la, mas deixando-a sob o próprio domínio judeu.

— Veja só, e nós pensando que havia algo de religioso nes-sa história toda. Na verdade, esses versículos da bíblia não pas-sam de uma linguagem cifrada, assim como as frases de efeito escritas em hebraico, latim, etc. Fora as peças litúrgicas. Não me sinto nem um pouco confortável com isso, é como se tivéssemos

sido enganados. Já não sei nem mais o que pensar de tudo isto. Podemos estar sem saber no meio de uma conspiração.

— Compreendo seu desencanto e o seu desabafo — dis-se Paschoal —, no entanto, como historiadores, sabemos que a figura do estado como instituição ainda não estava muito bem definida ou talvez nem existisse, de modo que suas sagradas es-crituras eram como a nossa constituição civil de hoje. Possivel-mente, muito mais ainda: os livros do Pentateuco eram verda-deiros manuais de instrução sobre saúde, comportamento social, aplicação da justiça, entre outros. Isso coloca a questão política e religiosa no mesmo plano ou até as funde. Em outras palavras, por esse aspecto, a religião e a política seriam a mesma coisa. Por outro lado, ninguém afirmou que seria algo religioso ou não. Nós é que estivemos inclinados a pensar assim devido à presença de versículos da Bíblia e instrumentos litúrgicos.

— Concordo, mas vamos em frente. O que mais temos?

— Lembro-me de mais uma coisa: o livro fala também de mais dois lugares além daqui onde a organização teria suas bases, sendo mais uma na América e uma na cidade eterna, que pode-ria ser Roma ou Jerusalém, como já discutimos.

— Isso mesmo. Já conseguimos muitas informações, mas falta ainda examinar o restante.

— Claro, eu quase me esquecia disso, porém há ainda a parte superior do altar. Vejamos o que há por trás desse pano que parece uma cortina de linho branco, apesar de estar encardida pelo tempo. Parece bipartida e corrediça, vamos afastá-la puxan-do um de cada lado.

Oh! É a arca da aliança! — disseram em uníssono, estupe-fatos.

— O que pode haver nela?

250

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

251

— Se for exatamente como está na Bíblia, ela deve conter as tábuas da lei.

— Como conseguiremos abrir? Parece haver um tipo de fechadura ali e a fenda é diferente daquela em que usamos as pe-quenas espadas — disse Paschoal, apontando para a arca.

— Já sei, com isso — respondeu Pedro ao mostrar o es-tranhíssimo cutelo que haviam encontrado dentro do baú. Na verdade. era um tipo de chave.

— Não sei o porquê de alguém após esconder tão bem ainda colocaria uma fechadura.

— Talvez seja para forçar a inserir esta chave, um procedi-mento específico para que se consiga tocar na arca e abri-la sem correr o risco de morrer, como só os sacerdotes dedicados a isso poderiam fazer.

— É possível, mas vamos lá, coloque a chave.

Pedro colocou a chave na fenda e, depois de uma torção de aproximadamente noventa graus no sentido anti-horário, eles ouviram um forte estalo dentro da arca. Assemelhava-se ao som de uma chicotada e foi seguido pelo ruído das travas sendo libe-radas. Bastava levantar a tampa e verificar o interior.

— Veja, Paschoal, duas tábuas de um material que pare-ce pedra, com inscrições em hebraico. Foram escavadas de uma forma que parece ter sido por fogo, como alude a Bíblia.

— Essa seria original, a cópia do original ou outra mais recente?

— Não se pode afirmar com certeza. É possível que o ori-ginal tenha sido escrito em uma língua anterior ao hebraico atual e que a cópia tenha sido exatamente como a primeira ou já es-crita em aramaico e até mesmo o hebraico. Teríamos de estudar muito mais — concluiu Pedro.

Depois de passada aquela agitação com a surpresa, o en-cantamento e a apreensão, eles se viram diante de outro proble-ma: o que fazer com a descoberta e qual destino dar a tudo aqui-lo de tanto valor material (e muito mais ainda histórico que não haveria dinheiro no mundo capaz de comprar)?

— Paschoal, diante desta situação, se bem o conheço, você deve estar pensando o mesmo que eu a respeito deste material e mesmo deste lugar.

— Sim, muito provavelmente. Diga exatamente o que pensa.

— Esse lugar permanecerá desconhecido — disse, resu-mindo a ideia, utilizando a frase contida no versículo sete do capítulo dois do livro Macabeus, presente na Bíblia.

— Precisamente. Como historiadores, sabemos, entre ou-tras coisas, que valores históricos não têm preço. Por outro lado, a cobiça das pessoas é tão grande que não hesitariam em destruir tudo isto para transformá-lo em dinheiro ou fazê-las render mi-lhões em leilões.

— Sim, mas ainda há mais: caso publicássemos ou tão somente relatássemos nos estudos tudo isso, rapidamente o as-sunto se espalharia e não demoraria muito para aparecer muitos aventureiros do mundo inteiro vasculhando a área para tentar

252

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

253

encontrar coisas de muito valor. Alguns viriam até mesmo tra-vestidos de honestos historiadores — afirmou Pedro.

Assim, decidiram colocar tudo em seus devidos lugares, sair dali, selar outra vez a entrada da caverna e camuflá-la nova-mente. Quando já haviam guardado tudo e se preparavam para sair, foram surpreendidos pela presença de alguém que esteve por ali desde que haviam entrado, porém ficara oculto. Era o Sr. Moshê que os havia seguido juntamente com dois brutamontes. Ficaram muito assustados quando este os saudou.

— Vocês são realmente íntegros e dignos porque, por li-vre iniciativa, decidiram guardar o segredo. Certamente, são os escolhidos.

— É dessa forma que escolhem as pessoas? — Disse Pas-choal um tanto exasperado.

— Não escolhemos ninguém, professor Paschoal. Nós ape-nas os identificamos e os acompanhamos, depois, formalizamos sua entrada na irmandade. As pessoas já nascem predestinadas às missões que lhes cabem. Como acha que o senhor e o profes-sor Pedro vieram parar aqui? Preciso que façam o juramento de fidelidade à causa.

Fez um sinal para os seus acompanhantes e esses pegaram em suas maletas algumas coisas. Pedro e Paschoal, a princípio, temeram grandemente por pensar que seriam sacrificados em algum tipo de ritual de expiação. Na verdade, o que pegaram fo-ram paramentos, mantos sacerdotais e todos vestiram, inclusive eles.

— Estendam suas mãos com as palmas para cima, por fa-vor.

Então, com um alfinete de ouro com um cabo de rubi, que parecia um broche, feriu os dedos do professor Paschoal, do pro-

fessor Pedro, dos dois acompanhantes e dele próprio, misturan-do o sangue de todos numa lâmina de vidro. Sobre ela, sobrepôs outra, colocou-as num pequeno estojo e guardou-o em uma es-pécie de bolso interno do manto. Pegou uma pitada de terra e colocou sobre a cabeça de Paschoal e de Pedro, dizendo: “Eras pó e em pó reverterás”, conforme está escrito em Gênesis, capítulo 3, versículo19. Em seguida, lavou suas mãos com um pouco d’água do local próximo. Finalmente, disse:

— Vocês agora morreram para o mundo infiel e nasceram para a fé. Doravante, seremos irmãos para sempre. Pertencem agora à confraria dos guardiões do Torah Moshê.

Sem ainda ter tempo para assimilar a ideia, girava pela ca-beça dos novos irmãos muitas interrogações, e perguntas. Nem sabiam por qual começar. Tinham vontade de falar qualquer coi-sa. O professor Paschoal não se conteve e perguntou:

— Vejo que o senhor possui dependurado num cordão uma estrela de doze pontas como aquela do baú, com a diferença de que existe somente uma pedra amarela. Posso saber o signi-ficado?

— A estrela simboliza o crescimento espiritual e a sabedo-ria que coincidem com a hierarquia.

— Como nos enquadramos nisso?

— Por enquanto, vocês são diáconos. Em breve, receberão suas estrelas com uma pedra preta, primeiro grau na hierarquia da confraria.

Atônito, não perguntou mais nada, nem o professor Pe-dro, pois suas mentes não tinham coordenação para isso. Após aquilo, selaram a entrada, camuflaram-na e saíram todos dali.

Capítulo XXVI

A sagração

Já havia um carro esperando por eles. O senhor Moshê e os dois brutamontes (agora também seus irmão de fé) deram uma carona para eles até o local mais próximo de onde estava o barco, e eles embarcaram para fazer o caminho de volta. Rio abaixo, a viagem era muito mais rápida, de modo que gastaram pouco mais da metade do tempo de subida. Não conseguiram dizer muitas palavras. Passaram a maior parte do tempo mer-gulhados dentro de si, remoendo seus próprios pensamentos. Sentiam-se preocupados com o rumo que as coisas haviam to-mado, temerosos e até mesmo acuados. Não estavam preparados para fazer parte de nenhuma confraria ou coisa parecida. Aliás, Pedro já tentara ser judeu uma vez e não dera certo, pois o mes-mo destino que o impelira, no final, acabara por desviá-lo defi-nitivamente. Paschoal também havia experimentado mudanças culturais e não lhe agradava nada repetir a história. Era como se houvessem caído numa bela armadilha. De certa forma, aquilo era mesmo verdade. Pior ainda, poderiam estar metidos no meio de uma conspiração política internacional. Afinal, aquela moti-vação religiosa fazia cada vez menos sentido. Aquilo era extre-mamente incômodo para pessoas como eles, que sempre haviam sido avessos às questões políticas.

Chegando ao porto de cima, devolveram o barco e foram para o hotel. Seria uma longa noite mal dormida. No outro dia cedo estavam se preparando para o café da manhã, para, em se-guida, cuidar da viagem de volta, o mais rápido que pudessem.

256

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

257

O telefone do quarto tocou. Era um quarto de solteiros para dois ocupantes e os professores estavam juntos. Paschoal atendeu.

— Alô, aqui é da recepção. Temos um recado urgente para os senhores. Queiram comparecer à sala da administração e as-sinar o aviso.

— Perfeitamente, estaremos lá em alguns minutos.

Ficaram imaginando o que poderia ser. Da Europa não era, pois ninguém fora avisado para onde iriam.

— Bom dia, sou o professor Paschoal, fui informado de que há uma correspondência registrada para eu pegar e assinar o recibo.

— Sim, professor, aqui está. Assine aqui, por favor.

— Obrigado, senhor.

Paschoal ficou bastante perturbado quando leu. Pigarreou, coçou a cabeça, e o balançar do papel em suas mãos denunciava que ele estava trêmulo.

— Problemas?

— Sim, Pedro, é uma intimação do patrimônio históri-co para que compareçamos daqui a pouco numa sala contígua à Igreja Matriz para prestar esclarecimentos, sem os quais seremos impedidos de viajar de volta. Com certeza, eles nos viram bisbi-lhotando por lá.

— Será que pensam que somos ladrões de artes sacras ou coisas assim, como vários que andam por aí? Temos de criar uma boa desculpa, pois essa coisa de pesquisa não vai convencer nem um pouco.

Tomaram o café às pressas, engolindo como podiam e ten-tando desesperadamente inventar algo convincente — e muito

rapidamente. As ideias não vinham. O jeito era começar pela verdade, até o ponto que pudesse ser dito e omitir o que não se podia nem mencionar. Finalmente, saíram apressados. Quando chegaram lá, já os estavam esperando. Foram conduzidos a uma antessala que dava num corredor e depois à outra sala. Logo na entrada, foram “convidados” a tirar seus calçados, lavar os pés e as mãos numa espécie de bacia de bronze e calçar algo semelhan-te a pantufas de pele de carneiro antes de atravessar a porta.

Perceberam, naquele momento, que não havia patrimônio histórico nenhum; foram atraídos para ali com alguma finalida-de específica — e não era muito difícil imaginar o que era, embo-ra não soubessem de tudo que aconteceria.

— Que situação! O que significa isto, Pedro? Você tem al-guma ideia?

— Isso é um ritual que está escrito no livro do Êxodo, ca-pítulo 30, do versículo 17 ao 21.

Bacia de Bronze

258

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

259

— Mas com que intenção?

— Provavelmente vai haver uma cerimônia de sagração conosco, conforme Ex 29.4–9.

— Mais essa!

Apareceu então o senhor Moshê, os outros dois bruta-montes, agora seus irmãos e o senhor João, com quem falaram anteriormente ao telefone. Ao sinal do senhor Moshê, trouxeram os paramentos.

— Vistam as túnicas dos filhos de Arão. Eu também vesti-rei os paramentos completos.

Paschoal estava tenso, e aquela situação o incomodava muito. Não tinha mais paciência para aquele tipo de coisa, mas sua curiosidade era maior. Naquela matéria, Pedro era versado, pois convivera desde a infância com judeus e tivera uma educa-ção voltada para o judaísmo, embora fizesse tudo para esquecer.

— Pedro, o que são exatamente essas túnicas dos filhos de Arão e esses tais paramentos completos?

— São vestimentas sacerdotais apropriadas para esse tipo de cerimônia, conforme está escrito em Ex 28.40 e Ex 28.4, res-pectivamente.

— E essa tal cerimônia?

— Conforme já mencionei, é a cerimônia de sagração dos sacerdotes descrita no capítulo 29 do livro do Êxodo, o segun-do livro do antigo testamento da Bíblia. Veremos daqui a pouco como é, caso seja tudo conforme dizem as escrituras.

— Não é possível. Eles devem ter algum problema com a Bíblia, como fixação ou fanatismo. Tudo que falam ou fazem está

escrito em alguma parte dela. Pelas poucas coisas que já li, isso não é um bom sinal para a nossa segurança. Seremos ordenados como os padres ou coisa parecida. Ou vão nos circuncidar ou arrancar alguma parte do corpo?

— De certa, forma seremos ordenados sacerdotes, sim. Essa cerimônia foi feita pela primeira vez quando Arão e seus filhos foram escolhidos para o sacerdócio.

— E aquela cesta que contém algo parecido com bolachas de massa branca, mais os dois recipientes que parecem ânforas de metal branco amarelado?

— É a cesta que contém pães e bolos feitos com farinha de trigo e um pouco de azeite. Os recipientes provavelmente pos-suem o óleo da sagração e o vinho para as libações.

— Que tipo de óleo é esse?

— Conforme as tradições antigas especificadas na Bíblia, é feito com óleo de oliva, adicionados de algumas plantas aromá-ticas utilizadas para a unção de quem é recebido na comunidade religiosa, se torna um iniciado na fé ou é consagrado ao serviço religioso.

— E aquele fogareiro a carvão?

Fogareiro a carvão

260

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

261

— Deve ser uma forma simbólica do fogo do altar para queimar parte desse material das oferendas. Agora, façamos si-lêncio absoluto. Vai começar a cerimônia propriamente dita.

Paschoal já estava inquieto, sentia-se angustiado com tudo aquilo e lutava para não deixar transparecer seu aborreci-mento. Ele não tinha paciência para aquela coisa de rituais. Nos livros parecia interessante, mas ali, inserido na própria cena, era muito ruim. Não via a hora de tudo terminar e ele ir embora ra-pidamente. Tudo era desagradável, a começar por aqueles para-mentos bastante desconfortáveis. Além das túnicas, uma espécie de capa de cobertura sobre a túnica e até uma cobertura para a cabeça que lembrava a mitra, com duas faixas franjadas pendu-radas. Para completar, havia também calções de cintura alta que iam até os joelhos. O calor já começava a incomodar.

Uma vez paramentados, passaram a um cômodo adian-te, separado por uma espécie de cortina branca. A cerimônia foi simbólica, não havendo o sacrifício de sangue dos animais, como descrito no livro sagrado, talvez pela impropriedade do local. A um sinal do senhor Moshê, devidamente paramentado, seus acompanhantes, Noach e Eliaú, seus nomes em aramaico na confraria, se aproximaram também paramentados. Um trouxe um tipo de turíbulo com brasas fumegantes e o outro, um pe-queno pote contendo incenso. O portador do turíbulo puxou as correntes que sustentavam a tampa, suspendendo-a levemente. O senhor Moshê pegou uma pequena porção de incenso do pote com uma espécie de concha bem pequena e colocou-o dentro do turíbulo que, logo a seguir, foi fechado. Pegou o turíbulo da mão do auxiliar e balançou-o na direção do altar, fazendo a fumaça do incenso ir para essa direção. Na verdade, ela se disseminou abundantemente por todo o ambiente.

O senhor Moshê, oficiando a cerimônia, pegou o reci-piente do óleo da santa unção, um pequeno utensílio que parecia

uma ânfora de ouro, derramou um pouco sobre as cabeças de Paschoal e Pedro e recitou algumas palavras numa língua dife-rente — provavelmente hebraico — de uma forma que parecia um canto religioso. A seguir, pegou duas bolachas brancas que estavam na cesta, mandou que estendessem as mãos e colocou nelas as bolachas. Pegou, então, um pote contendo um líquido que parecia sangue, molhou o seu dedo polegar direito e, logo a seguir, o passou nos lóbulos das orelhas direitas de Paschoal e Pedro, pronunciando os nomes Yussef e Kepha para Paschoal e Pedro, respectivamente, doravante seus nomes na confraria. Pe-gando um instrumento parecido com um bastão com a ponta um tanto esférica e de diâmetro um pouco maior que o resto do bastão (na verdade, um aspersor), molhou esta parte dentro do pote e depois aspergiu sobre eles aquele líquido avermelhado, respingando inclusive em suas vestimentas. Ele ordenou que co-messem as bolachas que tinham nas mãos.

Depois, ele e os dois sujeitos corpulentos que o acompa-nhavam também paramentados — de forma um pouco diferente da dele —, com túnicas de linho branco e que eram ditos anjos se aproximaram de Paschoal e Pedro. O senhor Moshê os apre-sentou como seus padrinhos e mencionou em forma de oração suas funções na orientação de suas caminhadas. Ordenou que Paschoal e Pedro se ajoelhassem. Então, os padrinhos colocaram as mãos sobre suas cabeças e o senhor Moshê sobre as cabeças destes, recitando orações em hebraico em forma de canto. Logo após, o Sr. Moshê pegou outra ânfora de ouro, um pouco maior que a primeira, contendo vinho, e colocou o conteúdo em seis cálices. Os padrinhos pegaram dois e ofereceram-nos aos recém--iniciados, depois pegaram seus próprios cálices. O Sr. Moshê pegou outro cálice, ordenou que Yokhaman (João), também pa-ramentado, entrasse no recinto para servir de testemunha e lhe ofereceu um cálice, depois pegou o seu próprio. Os padrinhos

262

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

263

tomaram dois emblemas, estrelas de ouro de doze pontas com uma pedra preta no centro, pendurados num cordão de ouro, colocaram-nos nos pescoços de Paschoal e Pedro e disseram al-gumas palavras. Entoaram então um hino à meia voz e, a seguir, beberam todos.

Após aquele ato, mandou que os novos membros já consa-grados pegassem primeiramente as bolachas da cesta e os colo-cassem para queimar no fogareiro. Em seguida, o óleo que logo fez aumentar a chama. Depois de tudo consumido, o vinho res-tante serviu para apagar o fogo, cujo braseiro já apagado foi re-colhido numa sacola de um tecido grosso que parecia lona. Esta foi enterrada pelos novos membros no átrio logo após a porta de saída para o interior da edificação, numa parte de terra que lembrava um jardim. Quando retornaram ao recinto, puderam retirar os paramentos, para alívio deles que já estavam bastante suados.

Finalização do encontro, recomendações, despedidas

Passaram para o primeiro cômodo onde estiveram antes, sem luxo, mas um ótimo ambiente para trabalho. Bem iluminado com luz natural, arejado e amplo. Não havia muita mobília nem excesso de decorações. Na parede apenas um quadro, desses que as pessoas menos aficionadas a pintura sentem dificuldades para analisar e até descobrir exatamente o que o artista imaginou, mas bem trabalhado; com uma combinação de cores impressionan-tes. A cor de fundo lembrava uma larga parede de pedra na parte central. Sobreposto a ela, em cores bem vivas, amarelo-averme-lhadas, como se fosse o interior de uma fornalha, havia desenhos como se fossem sinais gráficos de alguma escrita antiga, cujo me-tal incandescente se sobressaía. Certamente, ela estava colocada ali propositalmente.

A escrita era, de cima para baixo, essas três:

פסאר

צנתאר

דשׁדר

Em hebraico, poderia, ser respectivamente: “pesar”, “con-tar” e “dividir”. Poderia haver inúmeros significados, tanto pelo sentido das palavras que poderiam ser outros, ou talvez ainda outro baseado na numerologia, uma vez que as letras hebraicas possuem tambem valores numéricos — ou talvez alguma má-xima filosófica. Poderia ser simplesmente uma sugestão a um procedimento lógico de raciocínio exprimindo inclusive uma sequência: pesar, contar, dividir ou qualquer outro tipo de reco-mendação pertinente aos “ensinamentos” que acabaram de vi-venciar.

Mas a visão do quadro era aterradora como se quisesse lembrar o fogo do inferno ou o castigo supremo e exprimia mui-to mais aquela passagem bíblica Dn 5.25–28. Sim, havia um sig-nificado real para alguém que fora educado na cultura judaica, o que fez Pedro empalidecer por um momento e tentar dissimular da melhor forma possível. Aquilo, porém, era o suficiente para que Paschoal, que o conhecia muito bem, percebesse seu mal. E não deixasse de comentar:

— Percebi a forte impressão que esse quadro causou em você. Claro que há um significado muito maior do que arte. Pro-vavelmente sejam aqueles caracteres. O que são exatamente e porque o assustam tanto?

— Paschoal, você me conhece mesmo profundamente e entendeu que as minhas inquietações não são vãs. Ali está escrito no alfabeto hebraico três palavras, que transliteradas são: Mene,

264

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

265

Techel, Farsin, que, traduzidas significam: “Contado, pesado, di-vidido”. Você sabe o que é isso, não?

— Como historiador, imagino muitas versões diferentes e sentidos diversos, o que poderemos conversar depois a esse respeito. Conheço também a passagem bíblica, que é o que pro-vavelmente o deixa tão perturbado. O rei Baltasar da Babilônia, talvez para humilhar os judeus, utilizou os vasos sagrados uti-lizados no templo de Jerusalém, que os judeus usam com toda reverência em sua liturgia, para sua profana e escandalosa co-memoração de vitória. Ele colocou neles alimentos e bebeu ne-les vinho, dizendo toda a sorte de blasfêmias contra o Deus de Israel e menosprezando tudo o que era mais sagrado para o seu povo. Em tal momento, viu aparecer na parede em letras de fogo essas palavras de maldição contra si e o seu reino, que, confor-me explicou o profeta Daniel, falava a respeito da sua morte e do esfacelamento do seu reino. Isso consta no livro do profeta Daniel, capítulo 5, do versículo 25 ao 28. Inclusive, existe até um quadro: O banquete de Baltasar, do pintor Rembrandt, um dos grandes do movimento Barroco, com esse tema, talvez um pou-co diferente na representação principalmente das letras, grafadas de outra forma. Aliás, ao longo da história tem sido grafado de várias formas diferentes por vários autores.

— Exatamente.

— Mas, em sua opinião, o que significaria isso aqui?

— Esse quadro não foi colocado aqui despretensiosamen-te. Tem tudo a ver conosco e com o juramento que acabamos de prestar. São palavras judaicas de maldição contra quem desonra o compromisso com a causa. Esteja certo de eles farão cumprir a sentença, se esse for o caso.

— Sim, eu compreendo o seu desespero — disse Paschoal sentindo o sangue gelar em suas veias, relembrando num relance todas as peripécias que já haviam passado até então.

— Agora, prestemos atenção — disse Pedro. — O Sr. Moshê parece ter algo importante a nos comunicar.

Além daquilo, não havia mais nem vestígios de nenhuma cena, apenas um escritório comum. Eles receberam uma pasta com muitas folhas, ao mesmo tempo em que foram passadas muitas instruções e feitas muitas recomendações.

— Tomem essa pasta que será de grande utilidade para vocês — disse o Sr. Moshê, entregando-a nas mãos de Paschoal.

— O que é isso, senhor?

— Um dossiê completo com as informações que procura-vam para executar seu trabalho.

— Contém mesmo tudo? — Arriscou Pedro.

— O suficiente para fazerem o trabalho. É tudo que pode ser dito, de certa forma, o óbvio, o que todos já conhecem, po-rém dito de uma forma interessante. Sem mencionar detalhes que não ajudariam em nada no trabalho e só trariam problemas, se publicados. Agora que são irmãos da confraria dos guardiões do Torah Moshê, estou certo de que compreendem tudo o que digo.

— Certamente, senhor — disseram em uníssono.

No fundo sabiam que ser um iniciado era um modo de eles os manterem em permanente contato e sob controle. Ade-mais, sabiam que a função dos padrinhos compreendia a sua doutrinação e a punição, caso desonrassem o compromisso ou até o sacrifício da vida, se colocassem em perigo a organização.O que haviam ouvido na cerimônia de sagração não deixava a me-nor dúvida a esse respeito.

Capítulo XXVII

O regresso

Paschoal e Pedro voltaram para o hotel com uma enorme sensação de cansaço e desânimo. Além disso, o atordoante chei-ro do incenso, aqueles bolachas azedas arrematados com vinho não haviam feito muito bem a eles. Aquilo começara a fermentar, e seus estômagos davam voltas, produzindo uma sensação bas-tante desagradável. Pelo visto, as cerimônias ainda não haviam terminado, faltava a de expiação, então não tiveram alternativa senão tomar um remédio para má digestão e expelir tudo aquilo. Após a dor de cabeça e a sensação de tontura e alguns minutos de descanso sentiram-se aliviados. Mais tarde pensavam em sair, mas não tiveram ânimo. Devido aos acontecimentos, aquela pa-ranoia de serem constantemente vigiados voltara. Não tiveram ânimo sequer para folhear a pasta que haviam recebido. Não sobrou mais nada a fazer senão se recolher e tentar dormir. Na manhã seguinte, um pouco mais dispostos, trataram de arrumar as coisas, pagar a conta e voltar para Vitória, onde tomariam o avião para o Rio e depois para Lisboa.

— Pedro, que nomes foram aqueles que o Sr. Moshê pro-nunciou quando tocou com o dedo úmido em nossas orelhas? — Indagou Paschoal.

— Ele disse para você “Yussef ”, agora seu nome na confra-ria, que em aramaico é “José”. Para mim, disse “Kepha”, o meu, que quer dizer “Pedro”. Inclusive, coincidentemente, era o meu antigo nome, quando convivi com a família judia.

268

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

269

— E os outros?

— Eram Eliaú (Elias) e Noach (Noé), os dois sujeitos cor-pulentos, agora nossos padrinhos. Yokhaman (João), o sujeito a quem telefonamos; e Moshê (Moises), que presidiu a cerimônia.

— Algo foge à minha compreensão. Também acho desne-cessárias essas coisas de atribuir nomes diferentes.

— Paciência, é coisa deles. Digo, agora, são nossas — res-pondeu Pedro, levando ambos às risadas.

A viagem foi tranquila — apesar daquela horrível sen-sação de perseguição, voltar para casa era muito reconfortante. Quando finalmente estavam voltando para Coimbra, ficaram a pensar que para ficar tranquilos não poderiam, por exemplo, ir a um analista, nem mesmo conversar com alguém para desabafar e relaxar. Devido a isso, eles mesmos, assim que chegassem, te-riam de tomar algumas providências para aliviar aquele estado. A primeira coisa que fizeram foi recolher todos os pertences que haviam feito parte da viagem, incluindo roupas, sapatos e tudo mais, e providenciar a devida incineração. O mesmo destino teve a câmera fotográfica e o próprio dossiê, depois de devidamente digitalizados, pois, assim, imaginavam que estariam livres — pelo menos dos rastreadores. Ainda mais, fizeram uma cópia de todos os documentos importantes e recomendaram a um especialista que formatasse a máquina e colocasse depois programas capazes de filtrar programas estranhos vindos da internet. Acreditavam que, pelo menos por enquanto, estavam livres das perseguições, até que aquela sensação desaparecesse com o tempo.

Restava o trabalho que lhes fora recomendado pelo chefe do departamento. Selecionaram uma enorme quantidade do ma-

terial angariado nas pesquisas. Teriam, então, de ter muita cora-gem para superar o trauma e muita paciência para selecionar o material necessário copiado daquele maldito dossiê. Referências aos cristãos novos apenas dentro do que sempre era conhecido nos meios acadêmicos, suas riquezas materiais e culturais, seu material humano e a conversão forçada decretada por Dom Ma-nuel I para não haver um esvaziamento de material humano de qualidade para o desenvolvimento do país. Ainda que os bens fossem expropriados, aqueles que dominavam os conhecimen-tos comerciais com o exterior e os conhecimentos de economia e outros poderiam evadir-se do país. Conteúdo assim, além de outras amenidades. Depois disso, restaria a eles compilar tudo e, finalmente, produzir o documento final.

Foi realmente um grande exercício de paciência, de boa vontade e de autocontrole, mas aquilo, de certa forma, contri-buiu para o tratamento psicológico que eles mesmos tiveram de realizar. Estavam praticamente curados, pelo menos até a próxi-ma vez. A propósito, como das vezes anteriores, juraram solene-mente que nunca mais entrariam em uma situação como aquela e que pensariam duas vezes antes de aceitar algum trabalho po-tencialmente perigoso — embora soubessem que as peripécias eram inerentes à vida dos pesquisadores como eles.

Uma vez relativamente relaxados, começaram a conversar tecnicamente como historiadores a respeito de alguns lances da aventura. Um deles era aquele episódio do quadro, em que na época Paschoal falara a respeito de muitos significados e inter-pretações. A outra eram inconsistências históricas que até então guardavam para si e ainda não haviam tido tempo de conversar sobre elas.

— Então, Paschoal, como você analisa a questão do qua-dro?

270

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

271

— De muitas formas, conforme havia dito naquela oportu-nidade, a começar pelos múltiplos sentidos das palavras. “Pesar”, por exemplo, pode ser um ato de avaliar o peso de alguma coisa, um sentimento de tristeza ou uma consideração sobre uma situ-ação. “Contar” poderia ser avaliar uma quantidade de algo, falar sobre algo que se viu, esperar a participação de alguém. “Dividir” pode ser uma operação de dividir, partilhar ou compartilhar algo ou separar algo em partes. Além dessas dificuldades semânticas, sobram as traduções entre vários idiomas em épocas diferentes e contextos diferentes.

— Sim, mas, no nosso caso, parecia uma advertência ou até ameaça, como na passagem bíblica. A propósito, o que você pensa sobre essa passagem?

— Como historiador, eu sou imparcial e até mesmo céti-co. O que está escrito no livro de Daniel pode ser perfeitamente oriundo de um sentimento libertário judeu que teria se aprovei-tado das alucinações de Baltazar pelo abuso do vinho e usado a situação como um estratagema para angariar-lhe o respeito e pleitear a libertação — respondeu Paschoal.

— Você fala de um embuste?

— Olhe, uma guerra santa não é boa para ninguém. So-mado a isso, em sinal de respeito às crenças daquele povo, eu não gostaria de colocar nesses termos, mas muitos historiadores céticos, em seus estudos, colocam dessa forma muitos aconteci-mentos ao longo da história, como aquela suposta frase “In Hoc Signo Vinces” (Com este sinal vencerás), que o imperador Cons-tantino jurou ter visto no céu acompanhado de uma voz. Com isso, angariava a simpatia dos cristãos, que eram cada vez mais

numerosos e fortes e os colocaria lutando a seu favor sob a pro-messa de que tornaria lícita a religião deles.

— E quanto à idolatria dos gentios? — Indagou Pedro.

— Bem, aí eu vejo questões distintas. A idolatria, inclusive judia, e o orgulho e intransigência judaicos sobre os que classifi-cavam como gentios.

— Você acha, então, que os judeus também praticavam a idolatria que tanto combatiam?

— De certa forma, sim, eram veladamente idólatras: pos-suíam um cuidado, atenção e até veneração exagerada por seus escritos, vasos litúrgicos, símbolos, etc. Eles quase se equipara-vam ao próprio Deus em importância. Os termos das inscrições mais antigas e a própria definição de Deus é complexa naqueles documentos, principalmente na visão de vários cabalísticos. Ali-ás, uma das características da Cabala é ela que sempre enxerga muitas verdades a mais, ocultas na entrelinhas. Claro que por serem uma sociedade teocrática a civilidade se confundia com a religião. De modo análogo, as sociedades laicas possuem seus símbolos, tais como: bandeira, idioma, moeda, hinos e constitui-ção escrita, que a definem como uma nação soberana e a carac-terizam. O povo morre por ela, se preciso.

— Sim, mas e quanto à questão dos gentios?

— Não existe, propriamente. É um equívoco desumano que Cristo depois tentou mostrar, quando em várias passagens do evangelho diz que o inimigo também é o próximo e que a sal-vação não é só para um povo ou comunidade religiosa, mas para toda a humanidade. O apóstolo Paulo entendeu perfeitamente

272

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

273

esse ensinamento e o repassou firmemente, tanto que foi taxado de “o apóstolo dos gentios”. Na verdade, o Cristo conceitua o significado de religião, estabelecendo como os pilares de susten-tação desta apenas três personagens: Deus, cada um de nós e o próximo. E que tudo o mais que exista decorre disso.

— No decorrer do trabalho, colhi algumas impressões curiosas que percebo que também as teve, e sobre as quais ainda não tivemos a oportunidade de discutir: as inconsistências histó-ricas. Como você analisa isso? — Pedro perguntou.

— Muitas coisas que passariam por novidades, curiosi-dades e afins aos olhos de historiadores experientes podem não passar de fraudes grosseiras, engenhosamente engendradas por inescrupulosos com interesses escusos. Nem as maquinações di-tas mais perfeitas conseguem ocultar certas imiscibilidades.

— Entendo. Mas o que você encontrou nesses termos?

— Não afirmo que toda a história seja imiscível, muito pelo contrário. Muitas culturas se fundiram para formar uma terceira com características das que lhes deram origem. Esse tipo de sobreposição étnica, religiosa, linguística e cultural, de um modo geral, o historiador aceita muito bem e utiliza em suas pesquisas. Todavia, sobrepor coisas de épocas diferentes como se pertencessem a uma mesma época é um grave engano, se não for dolo; e só engana os leigos.

— Foi exatamente o que eu percebi. Se nos acrescentar algo, poderemos trabalhar melhor essa questão futuramente.

— Certamente, mas, por ora, nossas cabeças merecem um pouco de descanso.

— Concordo inteiramente. — disse Pedro.

— Pedro, posso lhe fazer uma pergunta pessoal?

— Claro, fique à vontade. Desde que eu saiba responder, serei absolutamente honesto na resposta.

— Você tem alguma restrição ao judaísmo, ao cristianis-mo ou a alguma religião?

— De modo algum. Tenho o maior respeito pelo judaísmo e seus seguidores, bem como o pelo cristianismo, pelo islamis-mo e outras. Admiro muito a sua fé. O que realmente não gosto é quando alguém usa a religião para outras finalidades que não sejam um instrumento de fé, como: políticas, econômicas e ou-tras causas avessas à religião pura, capaz de transformarem-se em instrumentos de dominação e opressão do homem pelo ho-mem. É no mínimo curioso que haja divergência e até ódio entre religiões que possuem as mesmas raízes. Como podemos admi-tir que um cristão tivesse ódio de um judeu a ponto de desejar exterminá-lo? Afinal, Cristo também era judeu. Isso só se explica pelos usos escusos da religião.

Capítulo XXVIII

Um trabalho realizado

Finalmente, todo o trabalho foi concluído, tudo foi com-pilado, digitado e formatado, só faltava mesmo entregar o re-sultado ao chefe do departamento e amargar o prejuízo com os custos de viagem, deslocamentos, hospedarias, etc. Agendaram uma reunião com o chefe do departamento, que os receberia no dia seguinte ao agendamento, conforme a vaga que a secretária conseguira em sua apertada disponibilidade. Talvez por ironia do acaso, era na mesma sala onde haviam se reunido quando o estudo fora encomendado.

— Professor Paschoal? Bom dia. Aqui é da secretaria do departamento de história.

— Bom dia, em que posso ser útil?

— O chefe do departamento aguarda o senhor e o profes-sor Pedro dentro de quinze minutos na sala que reservamos.

— Obrigado. Estaremos lá.

Chegaram à sala, como combinado. Já estava acesa, e a porta, entreaberta. Como sempre, o chefe chegara um pouco an-tes e já os aguardava.

— Bom dia, professor José.

— Bom dia, senhores. Como foi o trabalho?

— Árduo, mas compensador como sempre — respondeu o professor Paschoal, algo embaraçado, estendendo o volume devidamente encadernado.

276

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

277

— Ótimo, professor. Tinha certeza de que dariam conta do recado.

— Obrigado, professor.

Estavam aliviados. Era como se tivessem tirado um peso enorme de suas costas. Finalmente estariam livres para fazer as atividades corriqueiras e esquecer de vez tudo aquilo. Seria pos-sível? Quando se levantaram e se preparavam para sair, o profes-sor José os deteve.

— Esperem, por favor.

— Sim, professor. Algo mais?

— Sim, tenho algo para os senhores.

— O que é professor?

— Aqui está. Confiram, por favor — disse, estendendo um envelope a cada um.

— Paschoal e Pedro abriram seus envelopes e viram que se tratava de um depósito bancário em suas contas. Não enten-deram direito do que se tratava. Paschoal arriscou uma pergunta que ficou inconclusa e respondida imediatamente pelo professor José.

— Professor José, o que é...? Como...?

— É o ressarcimento das despesas que tiveram. Os patro-cinadores fizeram questão de realizar.

Ficaram tremendamente confusos. Atônitos, não tiveram condição de esboçar a menor reação. Olharam para o professor José e viram que possuía um cordão de ouro com algo dourado pendurado que não era totalmente visível, mas sobressaía a me-tade do que parecia ser uma estrela com uma pedra verde e relu-zente no centro. Não precisavam ver mais nada. Era muito fácil

imaginar o que era, e, nesse caso, quem era o chefe. Não tiveram coragem de perguntar mais nada. Disfarçaram o melhor que pu-deram, agradeceram e saíram. De volta à sala, começaram aquela tradicional conversa, avaliando tudo por que haviam passado.

— Pedro, tenho um sentimento agora que me perturba profundamente.

— O que é exatamente?

— Sinto como se tivesse sido enganado ou talvez posto à prova deliberadamente.

— Sim, muito provavelmente. Também sinto esse descon-forto.

— Parece que sabiam de tudo o tempo todo. É inacredi-tável, até o professor José, nosso chefe! O que você pensa disso?

— Acho que é exatamente isso. Acontece em muitas ir-mandades. Primeiramente, fazem uma garimpagem na vida pre-gressa de um possível escolhido, desde criança até hoje, então, idealizam seu perfil.

— Entendo, é mais ou menos como o divã do psicanalista sem a presença do paciente.

— Sim, e, no momento oportuno, submetem os possíveis candidatos às provas.

— Que provas?

— Após perceberem a competência e o sucesso profissio-nal como indicador de inteligência, fazem-nos passar pela prova da perspicácia.

— Explique melhor.

— É simples, a capacidade de ler nas entrelinhas, como dizem. É como achar que existe mais do que está escrito de uma

278

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

279

forma que chega às raias da loucura, como se tivesse imaginando coisas.

— Concordo, acho que vivenciamos isso. E depois?

— Vem ainda a prova da perseverança.

— E como seria isso?

— É a capacidade de focar seus objetivos e persegui-los até o fim, mesmo tendo de enfrentar dificuldades para isso.

— E depois?

— A prova da coragem. Ser capaz de enfrentar e vencer o medo para continuar.

— É, isso sabemos bem o que é.

— Vem também a prova da fé.

— Até isso?

— Sim, entendendo-se que isso seja acreditar que a pessoa terá uma missão acima de tudo e fará o que for necessário para levá-la a cabo.

— Claro isso diz respeito à conclusão do nosso trabalho. Tem mais?

— Sim, as provas da integridade e da paciência. Capaci-dade de renunciar as riquezas e bens materiais em prol de uma causa maior.

— E a paciência?

— Suportar todas as coisas que não nos agradam em sinal de respeito ao próximo. Lembra-se da cerimônia de sagração?

— Com certeza, tive de ser mesmo bastante paciente. Só aquele cheiro forte de incenso e aquele lanchinho pesado foram um verdadeiro desafio.

— Pedro, tive uma ideia inquietante.

— O que é?

— Diante de toda essa coisa de provas, essa história de perseguidores, fantasmas e afins pode ser um embuste, um teatro armado para conferir um pouco mais de realidade aos episódios. Afinal, não ouvimos nada a respeito nos noticiários.

— É possível. Mas existe ainda outra coisa.

— Qual é?

— Se essa ideia de prova for real, na verdade, a confraria estaria pretendendo também ser testada.

— Explique isso melhor. Que teste seria esse?

— Um teste de inviolabilidade, capacidade de manter-se oculta e mais ainda de manter seus segredos protegidos ao longo do tempo e prover os cuidados necessários para melhorar seus métodos e procedimentos de segurança.

— Pode ser, mas tudo parecia tão bem guardado que seria praticamente impossível alguém chegar até lá.

— A coisa não é bem assim e eles sabem muito bem dis-so, tanto que nós conseguimos. Possivelmente, eles imaginaram que, sob condições especiais, pessoas com as qualidades indica-das pelas provas pelas quais passamos poderiam desvendar to-dos os mistérios. Conhecendo essa possibilidade, só precisavam testar, e, assim, nos escolheram e nos puseram para trabalhar.

— Você acha que eles arriscariam, caso tudo fosse desco-berto?

— Claro que não, deve haver uma boa explicação para isso.

280

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

281

— Eu a tenho límpida e cristalina: tudo o que passamos, que descobrimos, os locais onde estivemos e tudo o que encon-tramos não passou de uma farsa, um teatro com cenários muito bem planejados especialmente para a nossa prova.

— Mas e o Sr. Moshê, a organização judia, os brutamontes perseguidores e seus exterminadores, como ficariam inseridos nessa história?

— O Sr. Moshê e seus auxiliares poderiam até ser judeus praticantes, o que eu duvido muito, mas ali possivelmente se-riam contratados para produzir todo aquele serviço. Quanto aos agressores e seus exterminadores, a julgar pelos tipos físicos e outras características que percebi, tratavam-se sempre das mes-mas pessoas.

— E a tal arca da aliança e tudo que havia por ali, o que acha?

— Uma deslavada fraude. Se considerados alguns deta-lhes básicos, como medidas e outros aspectos, não passa de uma imitação grosseira. Além das diferenças nas dimensões da arca, faltaram dentro dela a vara de Arão que florescera e o frasco de ouro contendo o maná. Aquela fechadura sofisticada para a épo-ca também foi uma criação sem nenhum sentido histórico.

— E toda aquela parafernália encontrada lá?

— Nenhum valor histórico, só figuração, porém nada de útil. A única coisa que poderia ter algum significado, o que eu duvido muito, seriam as inscrições em hebraico nas tábuas de pedra, ou imitação delas. As frases poderiam ser subjetivas, con-ter anagramas de palavras ou codificação numéricas ou alfanu-méricas, uma vez que as letras em hebraico também têm valores numéricos. Seria preciso estudar em maior profundidade para afirmar ou negar algo a respeito, não sendo por isso possível emi-

tir um juízo de valor acertado. Contudo, pelas circunstâncias e a julgar por tudo que já analisamos, muito provavelmente não teria valor algum.

— E todo aquele ritual, na cripta e depois lá naquela sala?

— Cheio de inconsistências, completamente falso. Tudo para impressionar e tentar dar um tom mais real. Naquele mo-mento poderia até parecer. Mas, depois, analisando-o friamente, à luz de todos os conhecimentos, é completamente fora da rea-lidade.

— É bem possível, mas há mais umas provas que ainda não falamos.

— Mais ainda? Quais são?

— São a capacidade de nos organizarmos, de racionalizar e de delegar as nossas tarefas para os nossos auxiliares.

—— Mas aí a coisa muda de figura: a organização seria a própria universidade.

— E por que não as duas coisas?

— Não entendi. Como isso seria possível?

— Da seguinte forma: a universidade seria o braço intelec-tual da confraria, que a patrocina. Além de guardiã dos conheci-mentos específicos, ela seria responsável por identificar talentos para serem os futuros membros, idealizar e promover as provas.

— Nesse caso temos um padrinho comum, o professor José, responsável por nossa escolha.

— Pelo menos não temos mais com que nos preocupar nem ter mais aquela síndrome do pânico.

— Por quê?

282

João Roberto Vasco Gonçalves

— Porque continuamos tão ignorantes quanto antes, não temos nada que interesse a ninguém. Tudo o que sabemos é que existe uma organização da qual já fazíamos parte mesmo antes dessa escolha formal. De nada mais temos conhecimento: nem dos seus objetivos, nem de seu funcionamento. Nem mesmo sa-bemos onde termina a realidade e começa a ficção.

— Como nas lendas?

— Exatamente, só que fazemos parte delas.

— Mas pode ser também que essa tal confraria nem exista de fato e seja só a universidade.

— Então não temos mesmo nada a temer e podemos ficar completamente à vontade, pois, como historiadores e pesquisa-dores, tudo isso faz parte de nosso ramo de atividades e até são nossas ferramentas de trabalho.

— Concordo. Mas que história, hein!

Aquela compulsiva sensação de perseguição que tinham quando saiam às ruas diminuía, mas, ao mesmo tempo, tinham o próprio chefe na sua cola, embora não ostensivamente. Só havia uma saída, acostumar-se com a ideia de que eram irmãos de fé da mesma confraria, tentar cumprir a risca os votos e até usu-fruir de sua proteção, isso se ela existisse mesmo.

Capítulo XXIX

Comentários finais da parte I

Durante alguns dias, talvez quinze, Paschoal e Pedro fi-zeram uma espécie de quarentena dentro do campus por duas razões: precisaram finalizar o trabalho e essa total dedicação ser-via para acalmá-los. Era uma tentativa de se esquecer um pouco daquelas coisas desgastantes dos últimos dias, de forma que não foi nada penoso, muito pelo contrário, os agradou bastante. No primeiro sábado depois de entregarem o trabalho, resolveram dar uma saída à tardinha para beber algo, conversar sobre ame-nidades, enfim, espairecer. Por uma artimanha do destino ou tal-vez não por pura coincidência encontraram duas moças conver-sando. Uma delas Pedro conheceu imediatamente. Sem sombra de dúvida, aquela era Deborah sua namoradinha de adolescência que o destino insistia em jogar de volta no seu caminho. Naquela noite ela estava jovial e linda. Ele já estava um tanto desconfia-do por se lembrar do seu último encontro e por pensar que ela podia ser uma agente da inteligência judia ou de outra qualquer, uma vez que aquela referência ao judaísmo soava cada vez mais como uma farsa. Independentemente do que fosse aquilo, ele já desconfiava de para quem trabalhava. Mas pensou bem e con-cluiu que não importava mais, afinal, já se tornara até membro da suposta confraria.

Paschoal, por seu lado, parecia hipnotizado olhando para a outra moça. Era incrivelmente parecida com sua antiga na-morada. Claro que não era, afinal, ela era muito jovem, e aquela

284

João Roberto Vasco Gonçalves

morrera muitos anos antes. Começaram a conversar animada-mente. Em pouco tempo, já estavam bastante à vontade, auxi-liados, talvez, pelas generosas doses do delicioso vinho. Saíram dali para dançar numa boate, onde ficaram até muito tarde. De-pois, cada um com a sua namorada, foram passar a noite em seus apartamentos, não muito longe dali.

Na segunda-feira seguinte, Paschoal e Pedro tiveram uma reunião com sua equipe para avaliar o trabalho que recomen-daram e acertar a situação. Quando voltaram para o seu gabi-nete, encontraram sobre suas mesas um envelope. Ao abrirem, verificaram que se tratava de um convite com ares de intimação para comparecerem a uma reunião fora do campus no endereço informado, conforme se poderia deduzir pela inscrição: “A cons-telação brilhará no céu na próxima sexta-feira às 19h30min”. O carimbinho abaixo era uma estrela de 12 pontas e não deixava nenhuma dúvida: era da confraria. Ou não! Parte II

Capítulo I

A retomada

Passados cerca de três meses, depois do merecido descan-so e um relaxamento bastante reconfortante, Pedro e Paschoal começaram a sentir certa angústia. Aquela enorme quantidade de trabalho inútil soava como um insulto. Nenhum resultado, só caminhavam em círculos e voltavam à estaca zero. Não era aceitável. Precisavam acreditar que havia algo de proveitoso em tudo aquilo. Nem tudo deveria ter sido um simples teatro. Ha-veria um fundo de verdade em tudo aquilo? Essa era a questão que os incomodava tanto, mas, ao mesmo tempo, era a força má-gica que crescia a cada momento e que os impelia a uma nova aventura. Mas havia algo a decidir, enfrentar ou até burlar, o que dependia do desenrolar dos fatos junto a pretensa confraria, da qual já faziam parte — mais por obrigação ou imposição, pois não tiveram a possibilidade de opção. Essa posição de vencidos de guerra não era nada confortável. Poderia ser uma condição adversa, caso sentissem que havia algum esforço em impedi-los no avanço dos estudos ou ameaça de retaliações por saber de mais. O raciocínio inverso poderia tambem acontecer, todavia, e seu progresso nos estudos talvez fossem bem vistos e apoiados.

A confraria era supostamente a guardiã de um grande se-gredo, fracionado em três partes, ocultas em locais diferentes. Esta, agora, os intimava a reuniões de iniciados e sempre exi-gia estudos de textos ocultos, sem, por enquanto, mostrar com exatidão os outros lugares ou indicar o conteúdo de possíveis arcas a serem encontradas. Essa restrição velada que funciona-va como um freio era a submissão à hierarquia, que preferiam

288

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

289

chamar de “graus de iluminação”. Isso era outro incômodo que sempre os irritava e provocava questionamentos do tipo: “Por que nos meteram nisso?”, “Por que nós?”. As respostas a essas perguntas apareceram rapidamente. Galgaram rapidamente no-vos graus, e a razão não era outra senão o profundo conhecimen-to que demonstravam sobre cada assunto apresentado para que estudassem. Demonstravam que sabiam sempre mais e até com-plementavam informações. Eles não haviam sido simplesmen-te escolhidos, estavam predestinados, segundo acreditavam os membros da confraria. Ademais, os dois professores eram consi-derados alma gêmea de conhecimentos, como se fossem um só, uma espécie de divindade dual em perfeita sintonia. Segundo já haviam escutado na cripta, no primeiro encontro com a confra-ria, a organização não escolhia ninguém, ela só identificava os predestinados.

A primeira reunião, que compareceram em atendimento ao convite recebido (com ares de intimação), funcionou como uma recepção aos novos membros com cerimônias de iniciação. Era uma ideia mais próxima ao batismo nas religiões convencio-nais. Logo após, aconteceu a cerimônia de substituição da pedra preta de suas estrelas pela cinza, seu segundo grau de iluminação.

Paschoal não tinha muita paciência para aquelas cerimô-nias e ficava especialmente ansioso, aflito e exasperado com tudo aquilo, porém já até se acostumava àquilo. À medida que con-vivia, compreendia mais os significados e se sentia mais seguro. Pedro era um pouco mais paciente e tranquilo, embora, como qualquer outro, sempre sentisse o medo do desconhecido. Mas, como Paschoal, já se sentia mais seguro. Essa tranquilidade ser-viu para que eles voltassem ao assunto em que havia muito não tocavam e falassem abertamente de seus sentimentos, suas ex-pectativas e seus planos.

— Paschoal, você me parece intranquilo. O que o incomo-da tanto?

— Você me conhece muito mesmo, Pedro. Ultimamente, voltei a pensar muito naquele assunto que jurara esquecer desde aqueles dias, depois que nos libertamos das aflições e entregamos o trabalho. Isso se potencializou depois dos primeiros estudos indicados como tarefas nossas naquelas reuniões da confraria.

— Compreendo, Paschoal. Também sinto esse desconfor-to. Percebo que, possivelmente, a origem dessa ansiedade seja esse “freio” que nos impede de avançar com a velocidade com que gostaríamos.

— Exatamente, Pedro. Mas, além disso, algumas coisas mal explicadas sobre as quais debatemos na nossa última con-versa.

— Claro, eu me lembro disso perfeitamente, Paschoal. Sem contar vários fatos anteriores a esses. Coisas que não tive-mos a oportunidade de discutir lá na gruta e logo após a saída dela, por motivos óbvios.

— Sim, Pedro. O aparecimento surpreendente daque-le pessoal, agora nossos irmãos, nos deixou naquele momento totalmente apáticos e não tivemos coordenação nem ao menos para organizar as ideias e fazer perguntas ou registrá-las men-talmente. Agora, elas me afloram à mente tardiamente, e fico a remoer tudo como um animal ruminante.

— Compreendo perfeitamente, Paschoal, porque tenho essa mesma sensação. Aqueles pergaminhos disfarçados de velas contêm informações surpreendentes, e eu consegui memorizar muita coisa devido aos recursos de semiótica utilizados, acresci-dos de algumas palavras escritas em hebraico e grego e a forma como se relacionavam.

290

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

291

— Você poderia explicar melhor, Pedro. Nessa parte, você é um especialista.

— Sim, Paschoal. Comecemos pela semiótica, isto é, a lin-guagem dos símbolos. Sempre que me vejo envolvido com eles, lembro-me de que o melhor exemplo são os sinais internacio-nais de trânsito. Qualquer um que tenha estudado de antemão as convenções pode interpretar uma informação importante com uma rapidez e clareza que uma escrita de uma frase longa possi-bilitaria, somadas a isso há as dificuldades visuais das pessoas e sua velocidade de leitura e do carro em movimento.

Ele prosseguiu:

O primeiro pergaminho continha basicamente um qua-dro com muitos daqueles símbolos que eu conhecia de estudos anteriores, além de algumas inscrições com comentários sobre eles, seus usos, suas interpretações, etc.

O segundo e o terceiro possuíam alguns dos símbolos e vários textos em hebraico, alternados com suas traduções em grego.

Os quatro restantes eu não tive tempo de verificar, tama-nha a ansiedade que sentia, como se pressentisse algo, o que re-almente aconteceu com o aparecimento deles. Então, sutilmente, eu guardei para depois, com mais tempo e calma, analisar me-lhor. É uma pena eu não ter guardado os três primeiros, que já havia analisado.

— Mas esses eu guardei instintivamente, Pedro.

— Ótimo, Paschoal. Desse modo, nós temos os sete perga-minhos para estudar quando quisermos.

Parece que o exercício da profissão, o hábito das pesquisas e afins potecializaram essa guarda instintiva e sutil dos materiais

importantes — e aquele sexto sentido para antever os perigos. O estudo das fotos e anotações, mais aqueles pergaminhos, mos-trou algo espantoso. Aquela arca nada tinha da arca da aliança além do seu formato, constituição e cobertura. Faltavam o pro-piciatório e os dois querubins na tampa, e, igualmente, faltavam em seu interior o pote de ouro contendo o maná e a vara de Arão, que florescera. As inscrições tampouco eram o decálogo. Na ver-dade, formavam uma lista que aparentava ser um índice de do-cumentos e livros importantes para a história, muitos deles já cobertos pelas cinzas dos séculos e há muito perdidos. Contudo, quais seriam exatamente e onde estariam — se é que ainda exis-tiam?

No último pergaminho havia um texto escrito em grego contendo o seguinte relato que parecia ser uma ATA:

No ano 325, o imperador Constantino promoveu em Ni-céia um concílio em que foram analisados os conteúdos de vários livros de todas as escrituras conhecidas até então e escolhidos os livros que melhor representavam o cristianismo sob a ótica do império. Esses foram adotados como o cânone oficial. Os livros que foram expurgados ficaram conhecidos como “Deuteroca-nônicos” ou “segunda referência”. Foram recolhidos e tornados ocultos para que não fossem do conhecimento geral. São eles:

Apocalipse de Baruc;Apocalipse de Moisés;Apocalipse de Sidrac;Samuel Apócrifo;Ascensão de Isaías;Assunção de Moisés;Caverna dos Tesouros;Epístola de Aristéas;Livro dos Jubileus;

292

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

293

Martírio de Isaías;Oráculos Sibilinos;Prece de Manasses;Primeiro Livro de Adão e Eva;Primeiro Livro de Enoque;Primeiro Livro de Esdras;Quarto Livro dos Macabeus; Revelação de Esdras; Salmo 151; Salmos de Salomão; Segundo Livro de Adão e Eva;Segundo Livro de Enoque ou Livro dos Segredos de Enoque; Segundo Livro de Esdras ou Quarto Livro de Esdras; Segundo Tratado do Grande Seth; Terceiro Livro dos Macabeus; Testamento de Abraão; Testamento dos Doze Patriarcas;Vida de Adão e Eva; A Nova Jerusalém; A Sedutora; Antologia Messiânica;Bênção de Jacó; Bênçãos; Cânticos do Sábio; Cânticos para o Holocausto do Sábado; Comentários sobre a Lei; Comentários sobre Habacuc; Comentários sobre Isaías; Comentários sobre Miquéias;

Comentários sobre Naum; Comentários sobre Oséias; Comentários sobre Salmos; Consolações; Eras da Criação; Escritos do Pseudo-Daniel; Exortação para Busca da Sabedoria; Génesis Apócrifo; Hinos de Ação de Graças; Horóscopos; Lamentações; Maldições de Satanás e seus Partidários; Melquisedec; O Príncipe Celeste; O Triunfo da Retidão; Oração Litúrgica; Orações Diárias; Orações para as Festividades; Os Iníquos e os Santos; Os Últimos Dias; Palavras das Luzes Celestes; Palavras de Moisés; Pergaminho de Cobre; Pergaminho do Templo; Prece de Nabonidus; Preceito da Guerra; Preceito de Damasco; Preceito do Messianismo; Regra da Comunidade;

294

João Roberto Vasco Gonçalves

Rito de Purificação; Salmos Apócrifos; Samuel Apócrifo; Testamento de Amran.Outros escritos: História do Sábio Ahicar; Livro do Pseudo-Filon; Evangelho de Judas.Se houver alguma dúvida na interpretação do cânone atu-

al, os guardiões dos documentos deverão consultar o segundo cânone e efetuar sua interpretação correta.

Capítulo II

O Grão-mestre Constantino e a Confraria do Torah

Moshê

Constantino, ou Flavius Valerius Constantinus, foi filho de Constâncio Cloro e de Helena, nascido em 27/02/272, em Naísso, atual Nis, Sérvia; morto em 22/05/337, aos 65 anos, em Nicomédia, atual Izmit–Turquia. Foi imperador do império Ro-mano oriental situado em Bizâncio, posteriormente, Constanti-nopla, em sua homenagem.

Alguns historiadores questionam a veracidade e até clas-sificam como um sórdido estratagema para enganar os cristãos e pagãos de sua época aquela passagem histórica onde ele suposta-mente vira no céu uma imagem de uma cruz e a inscrição em la-tim In Hoc Signo Vinces — traduzido: “Com este sinal vencerás”.

Provavelmente, vira mesmo o sinal de comunicação tão esperado da parte de seus aliados. Uma projeção holográfica de grande intensidade acompanhada de sons, uma fala que dizia: “Pace est cun vos”, que quer dizer: “A paz está contigo”, provavel-mente de grande volume onde foi emitida, mas apenas audível no local onde ele estava.

Era o sinal que orientava sobre a decisão a tomar, aliar-se aos cristãos para derrotar seus oponentes numa luta mais ou menos equilibrada sem garantia de qual seria o vencedor. A força dos cristãos seria, no caso, o fiel da balança. Assim procedeu, e venceu. Em sinal de reconhecimento, teria concedido a liberda-

296

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

297

de de crença religiosa aos cristãos, paralelamente ao paganismo. Mais tarde, no reinado de Teodósio, o cristianismo tornou-se a religião oficial do Estado Romano.

Depois, tratou de encomendar aos sábios de então, seus conhecidos, estudos que culminariam com o expurgo dos livros que na época faziam parte do conjunto das escrituras que tradi-cionalmente chamamos Bíblia. Esses 74 livros, assim como ou-tros que foram perdidos, queimados ou escondidos, eram con-siderados repetições confusas, antirreligiosos ou contrários ao interesse do estado. Diante dessas considerações, esse conjunto de livros seria supostamente bombástico, caso o conhecimento deles viesse a ser conhecido pelo povo inculto, debatido e inter-pretado de vários modos, segundo o interesse particular de cada grupo de políticos, religiosos, pessoas influentes na sociedade, etc. Poderiam gerar violentas comoções sociais. Assim, no ano de 325, na cidade de Nicéia, convocou em concílio todos os sá-bios envolvidos no estudo dos livros, e, sob juramento solene, declaram-se adeptos a uma confraria que doravante continua-ria os estudos e se reuniria periodicamente para aferir seus co-nhecimentos e expor os resultados alcançados. Acima de tudo, seriam guardiões perpétuos de todos aqueles segredos até que, algum dia, num futuro distante, a humanidade tivesse condi-ções de absorver todos aqueles conhecimentos com segurança. Essa confraria adotou o nome de Torah Moshê, em referência ao Pentateuco, que continuou como canônico, cujas informações teriam sido compiladas por Moisés ou pela sua ordem. Deveria perdurar através das gerações, e seus membros natos, segundo acreditavam, deveriam ser identificados pela confraria e median-te o cumprimento de provas, admitidos e submetidos aos votos perpétuos. O primeiro grande Oriente foi Alexandria e o seu pri-meiro Grão-mestre, o próprio Constantino.

Uma questão intrigante (ou talvez mal explicada) era: se o segundo local fosse mesmo Nova York, como fora para ali?. A

conjetura que possuía a maior probabilidade de estar certa seria a de que estivesse antes no Recife, onde viviam cristãos novos portugueses que haviam migrado para a Holanda e terminado ali por influência da Companhia das Índias Ocidentais. No entanto, isso desfocava ligeiramente a questão dos guardiões estarem aqui infiltrados na Companhia de Jesus. De qualquer modo, precisa-vam estudar um pouco sobre o pessoal da Companhia das Índias Ocidentais no Recife, sua fuga pela América Central e chegada e estabelecimento na América do Norte — especificamente em Nova York.

Certamente, o segundo lugar precisava ser visitado o mais urgentemente possível.

As coisas agora pareciam fazer sentido, como uma pri-meira parte. Ainda assim, faltavam as outras. Parecia haver a preocupação de não colocar todas as moedas num mesmo pote, mas colocá-las em locais diferentes, provavelmente com uma có-pia do básico em todos e mais algo específico em cada uma. Esse lugar, segundo as indicações, era a cidade de Nova York. Assim, passaram a estudá-la para depois traçar uma estratégia e fazer um planejamento.

Capítulo III

Nova York

História

Até a chegada dos europeus, toda a área de onde hoje é a cidade de Nova York e adjacências era habitada pelos índios Al-gonquinos. No ano de 1524, aconteceu o primeiro contato euro-peu. Um explorador florentino chamado Giovanni de Verrazano descobriu uma baía que viria a ser a atual Nova York. Muitos anos depois, no ano de 1609, um explorador inglês chamado Henry Hudson subiu um rio, que nos dias de hoje chama-se Rio Hudson, em sua homenagem. Poucos anos mais tarde, em 1625, a Companhia das Índias Ocidentais comprou dos índios locais a ilha de Manhattan. Segundo a lenda, na verdade, ela negociou utilizando quinquilharias como colares, chocalhos, apitos, espe-lhos e algumas ferramentas manuais, tais como machados, facas, canivetes, potes metálicos e outros utensílios. Somando tudo, não valeria mais que 24 dólares. Ali estabeleceram uma cidade chamada por eles de: “Nova Amsterdam”, por serem eles e a com-panhia holandeses.

Alguns anos mais tarde, em 1664, a cidade foi invadida e dominada pelos ingleses, que passaram a chamá-la “Nova York”, em homenagem ao duque de York.

300

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

301

Em junho de 1776, quase no final de Guerra de Indepen-dência dos Estados Unidos da América, os americanos detinham o controle total de todos os estados, mas a Marinha Real Britâ-nica capturou Nova York, fazendo desta cidade a sua base prin-cipal. Em 1789, anos depois da independência, ocorrida a 4 de julho de 1776, a cidade de Nova York passou a ser a capital dos Estados Unidos da América, ficando nessa condição até o ano de 1790. Na verdade, o reconhecimento mundial da soberania dos Estados Unidos da América só ocorreu em 1783 com a assinatu-ra do Tratado de Paris, que punha fim à guerra envolvendo, além dos Estados Unidos, também a França, a Espanha e os Países Baixos. Na oportunidade, foram fixados os limites: ao norte, o Canadá, ao sul, a Flórida, a oeste, o Rio Mississipi e a leste o Oce-ano Atlântico. Os demais territórios foram negociados mais tar-de. Em meados do século XIX, a cidade tornou-se o maior porto de imigração do país e possivelmente do mundo, o que resultou em sua diversidade étnica atual.

Formação da área urbana

Nova York (em inglês New York City) situa-se na costa les-te dos Estados Unidos, na foz do rio Hudson. Atualmente, a área metropolitana da cidade possui cinco distritos separados por água. Brooklyn e Queens estão na parte oeste da Ilha de Long Island. Ao norte, estão as ilhas de Manhattan, Staten Island e o Bronx. Na parte continental estão vários distritos, nos estados de Nova York e Nova Jersey.

Manhattan Island

A ilha de Manhattan, especificamente, possui a seguinte delimitação: a oeste, o Rio Hudson, a leste, o Rio East, sendo a

área mais turística e o centro financeiro. O traçado da cidade foi concebido da seguinte forma: avenidas que correm no sen-tido norte–sul/sul–norte e ruas transversais a esta no sentido leste–oeste/oeste–leste. As ruas e avenidas são numeradas, e os endereços podem referir-se aos cruzamentos mais próximos de avenidas ruas. A Broadway é um caso especial, pois corta a cida-de no sentido diagonal, direção norte–sul. Essa divisão em cinco distritos existe desde 1898, tendo sido definida por lei estadual.

Dados geográficos:

Segundo referências ao censo de 2000, Nova York possuía 8.008.278 habitantes, sendo a maior cidade dos Estados Unidos da América. Mas a população metropolitana era de 11.678.650 habitantes. Ocupa uma área de 946 km², possuindo uma densi-dade demográfica de 846,5 habitantes por km² . Sua altitude é ao nível do mar.

Dados socioeconômicos

A cidade de Nova York pode ser considerada o maior cen-tro financeiro mundial.

Em termos de diversões, artes e cultura também figura como um dos melhores lugares do mundo. Seu movimento tu-rístico é impressionante. Segundo registros do ano 2000, recebeu mais de 38 milhões de visitantes naquele ano, e a tendência é de crescimento.

A cidade também é a sede da Organização das Nações Unidas.

302

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

303

Mapa do centro de Manhattan

O mapeamento urbano da ilha de Manhattan tem o se-guinte traçado:

Downtown (Centro) – abaixo da Rua 1;

Village – entre as Ruas 1 e 14; dividido entre Greenwich Village (a oeste da Broadway), e East village, a leste da Broadway;

Chelsea – entre as Ruas 14 e 34;

Midtown – entre as Ruas 34 e 59;

Upper West Side – entre as Ruas 59 e 110, a oeste da Quin-ta Avenida;

Upper East Side – entre as Ruas 59 e 110, a leste da Quinta Avenida;

Harlem – entre as Ruas 110 e 145;

A área composta pelas ruas acima da 145 não possui de-signação especial.

Ellis Island

Está situado no porto de Nova York, entre dois estados e cidades, Jersey City, New Jersey e New York , New York. Foi a principal rota de entrada de imigrantes dos Estados Unidos entre o final do século 19 e meados do século 20, tendo iniciado em 01 de janeiro de 1892, indo até 12 de novembro de 1954. Mais de 12 milhões de imigrantes passaram por Ellis Island entre 1892 e 1954. É administrada pelo governo federal e atualmente faz parte do monumento nacional da Estátua da Liberdade, apesar de a estátua estar em outra ilha. É administrada pelo serviço Nacional de Parques. Ellis Island foi o tema de uma disputa de fronteira entre Nova Iorque e Nova Jersey.

Ilha e Estátua da Liberdade

A Ilha da Liberdade (Liberty Island), assim denominada após o ano de 1956, situa-se na baía de Nova York. Nesta ilha, está localizada a mundialmente famosa estátua.

A Estátua da Liberdade, cujo nome oficial é A Liberdade, iluminando o mundo

(Liberty Enlightening the World), foi um presente do im-perador Napoleão III aos Estados Unidos, pois, com seu apoio, conseguira a vitória na guerra contra a Inglaterra. A estátua foi

304

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

305

construída e montada na França e, posteriormente, desmontada e montada em Nova York, na pequena ilha que recebeu o nome de “Ilha da Liberdade”, em referência ao nome da estátua. Foi idealizada pelo escultor francês Frédéric Auguste Bartholdi e sua equipe em 1875. Bartholdi também escolheu a localização. A base e o pedestal ficaram a cargo dos norte-americanos. A inau-guração foi em 28/10/1886. A parte física da estátua foi inspi-rada no colosso de Rodes, outra da antiguidade situada na Ilha de Rodes, no mar Egeu, em homenagem a Helio, o deus sol da mitologia grega — principalmente se observado o diadema de sete espigões. A criação foi do escultor Carés de Lindos entre os anos 292 e 280 a.C. Ela media 30 metros de altura e pesava 70 toneladas, sendo toda feita de bronze obtido dos armamentos e utensílios dos antigos dominadores, depois vencidos.

A Estátua da Liberdade mede um total de 92,9 m de altura, sendo 46,9 m a altura da base e 46 m a da estátua. Nessa escultura há também uma relação com a deusa grega da sabedoria, Sophia, se observados o livro na mão direita e a tocha na esquerda. Esses símbolos, igualmente adotados pela maçonaria, foram caracteri-zados na estátua pelo seu escultor que também era um maçom, referindo-se à ideia: a sabedoria iluminando o mundo.

A formação da comunidade judaica de Recife–Brasil

A formação de uma comunidade judaica em Pernambuco ocorreu efetivamente na primeira metade do século XVII, graças à liberdade religiosa durante o governo holandês, comandado aqui no Brasil, em Recife, pelo conde João Maurício de Nassau. Durante seu governo de sete anos (1637–1644), ocorreu uma contínua imigração de judeus. Além da motivação principal, que era a religiosa, também havia uma razão econômica para a imi-gração, já que os judeus portugueses que viviam em Amsterdã tinham fortes laços econômicos com negociantes holandeses.

Com 600 famílias, a comunidade judaica de Recife se comple-tou com a chegada do famoso líder religioso Rabino Isaac Aboab da Fonseca, mandado pela Congregação de Amsterdã. Foi então que a congregação Kahal Zur Israel e a construção da primeira sinagoga das Américas ocorreram. No mesmo momento, foram construídas as escolas religiosas Talmud Torah e Etz Hayim, que ficavam localizadas em edifícios multiníveis. Também havia um cemitério judeu fora dos limites da cidade, conforme manda a tradição, onde hoje está a Comunidade dos Coelhos. Provavel-mente, a confraria estava infiltrada no meio judeu, sendo o ra-bino Izaac Abiad seu Grão-mestre e, possivelmente, o próprio conde Nassau um importante membro.

Em 1654, os portugueses retomaram Recife, e os ho-landeses foram obrigados a se desfazer de todos os negócios e propriedades e desocupar o espaço num prazo curtíssimo, caso contrário, seriam perseguidos pela Inquisição, como ocorria em Portugal e suas possessões ultramarinas. Muitos retornaram para a Holanda, mas alguns preferiram se estabelecer em várias loca-lidades da América Central e região do Caribe e continuar com seus negócios de fabricação e comercialização de açúcar e fumo. As perseguições continuaram e tiveram de fugir mais uma vez.

A vida não foi fácil. Na fuga, um dos navios contendo 23 judeus caiu em poder de piratas espanhóis, no entanto, logo de-pois, próximo à Jamaica, foram libertados e resgatados pelo na-vio francês Saint Catherine, que depois de passar pelo cabo San Antônio, em Cuba, desembarcou-os na localidade que eles cha-maram de “Nova Amsterdã”, hoje Nova York. Na época, tratava-se apenas de um entreposto comercial.

A comunidade Judaica de Nova York

Depois de todas aquelas peripécias e enormes dificuldades por que passaram, chegaram a Nova Amsterdam praticamente

306

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

307

sem nada com que se manter e passaram até por privações. So-freram, inclusive, entraves burocráticos por parte do poder pú-blico, que lhes discriminava e tudo fazia para dificultar sua vida. No entanto, por influência da Companhia das Índias Ocidentais, grandes comerciantes com influência nos mercados Europeus, acabaram sendo aceitos.

Assim, no ano de 1655, foi fundada a primeira congrega-ção judaica dos Estados Unidos da América na cidade de Nova Amsterdam, mais tarde chamada de Nova York. Essa congrega-ção foi chamada inicialmente de Shearith Jacob, e, pouco mais tarde, Sheaith Israel. Um de seus fundadores foi Asser Levy, que provavelmente também se tornou o Grão-mestre da confraria naquele país.

Semelhantemente, foi construída a primeira sinagoga, que funcionou no mesmo lugar até 1825. Autorizado também pelo governo local na compra de terras para construir o cemité-rio, que, pela tradição, deveria ficar fora dos limites urbanos. O cemitério era o item de maior importância e até prioritário em comparação com a sinagoga, pois, conforme a tradição, os ofí-cios religiosos poderiam se realizados em ambiente domiciliar, bastando que houvesse espaço suficiente e adequado e contasse com a presença de pelo menos 10 homens. Segundo registros, o primeiro culto judaico de maior importância celebrado em solo norte-americano foi em 12 de setembro de 1655, quando caiu o ano novo judaico, chamado Rosh Hashanah, do ano de 5415 do calendário judaico. Dali em diante, a comunidade judaica cres-ceu e se espalhando por outras partes — como Massachusetts, Connecticut, Rhode Island e Filadelphia. Segundo registros, no período colonial, seis sinagogas foram construídas — em Nova York, Montreal, Filadélfia, Savannah, Charleston e Newport.

Somente então muitas informações começavam a fazer al-gum sentido. Os documentos, secretos ou não, ou seja lá o que

fosse que a confraria guardava e protegia com tanto empenho, teriam feito um longo caminho da Europa até o novo mundo de então, as Américas. Provavelmente, os principais guardiões, membros da confraria, estavam entre os cristãos novos, fugidos de Portugal para a Holanda. Quando sentiram a necessidade de proteger melhor tudo aquilo de importante que guardavam e protegiam, trataram de transportá-lo para a colônia Nova Holan-da, a atual Recife, no Brasil, no meio das cargas de mantimentos, utensílios e víveres, além de imigrantes que vinham com o desejo de trabalhar e morar em paz, longe das perseguições europeias. Quando foram expulsos, alguns não voltaram para a Holanda porque precisavam cumprir sua missão como guardiões. Em vez disso, rumaram para o norte, passando e se estabelecendo em lo-calidades pelo Mar do Caribe e Antilhas e fugindo cada vez que eram expulsos, mas sempre encontrando uma forma de carregar o que há muito já consideravam sagrado.

A mão protetora da confraria estava sempre presente. Aquele navio Saint Catherine não era qualquer navio nem estava ali por mero acaso. Era um navio apropriado, tinha provisões e armas e gente apta a lutar e derrotar os piratas, que, provavel-mente, eram contratados e pagos pelo pessoal da Inquisição para realizar aquela tarefa. Provavelmente, queriam se apropriar da-quilo que também sabiam que continha, um farto material que poderia ser utilizado pelo tribunal da Inquisição, acusando-os de heresia. Entre os 23 adultos e crianças que estavam no navio e foram salvos pelo Saint Catherine, podemos citar três homens que figuram no relatório da cidade como pessoas que assinaram o livro de atas da Congregação Zur Israel do Recife, no ano de 1648: Abraham Israel, David Israel e Mose Lumbroso. Esse eram membros importantes da Confraria do Torah Moshê.

Paschoal e Pedro decidiram que realmente viajariam para Nova York a fim de verem o que descobririam. Juntaram todo o material que já haviam estudado e começaram a conversar sobre

308

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

309

suas expectativas, seus planos e tudo que fosse necessário para implementar sua estratégia.

— Pedro, você acha que o primeiro cemitério judaico pode conter algo do que procuramos?

— Paschoal, segundo consta, lá existem referências sobre os primeiros judeus e possivelmente alguns documentos, inclu-sive ocultos nos túmulos. É possível que num primeiro momento todos os documentos que esperamos encontrar tenham passa-do por lá. No entanto, não creio que ficaram por lá por mui-to tempo, por ser um local retirado, de dificil manutenção da vigilância e haver gente constantemente procurando por algo. Possivelmente, o funcionario que cuidava da manutenção, sendo possivelmente membro da confraria, deve ter informado a seus confrades mais graduados, que providenciaram a remoção de forma a não levantar suspeitas.

— Você acha que o lugar para onde levaram seria a sina-goga mais antiga de Nova York?

— É possível que também tenha passado por lá e estives-sem ocultos no subsolo de forma bastante resguardada. No en-tanto, esse era tambem um local muito visado. Então, possivel-mente, devem ter levado os documentos para outro lugar, livre de suspeitas.

— Pedro, Nova York é provavelmente a cidade mais visita-da do mundo por turistas de muitos países. Fico bastante curioso para saber se realmente existe algum lugar livre de suspeitas onde se pudesse guardar por muitos anos algum documento secreto. Pela enorme lista que já examinamos, nenhum deles atenderia ao quesito segurança.

— Concordo Paschoal, mas há um local que ainda não consideramos: a Estátua da Liberdade.

— Mas esse é o local mais vivitado do mundo. Como isso seria possível?

— Exatamente por isso. Ninguém suspeitaria que alguém esconderia algo logo ali. Ademais, construtivamente, ela reúne condições para acondiconar várias coisas em locais apropriados caso alguém a projetasse especialmente para essa finalidade. A metade da altura do monumeto é base. E, para sustentar aquele peso enorme, deve possuir fundações muito sólidas. Outro pon-to a considerar é que a estátua propriamente dita veio da França, mas a base foi feita no local pelo pessoal dos Estados Unidos da América. Segundo consta o próprio escultor, esteve nos Estados Unidos para escolher o melhor lugar. Na hipótese de ele também ser um membro da confraria, poderia ter orientado a construção de forma a melhor atender aos propósitos vislumbrados.

— Pedro, percebo que você fala como se tivesse a certeza de que tudo o que procuramos está ali. Voce tem ideia da forma como estariam acondicionados?

— Paschoal, por enquanto, tudo são conjeturas, mas algo me diz que por ali há algo de muito Importante. Quanto a forma de guardar, não tenho uma ideia muito clara a respeito. Tudo que sei é que era um costume antigo colocar dentro de garrafas de vidro uma cópia do documento de lançamento do monumen-to ou prédio público e plantar essa garrafa nas paredes em local próximo a fachada, selando-o a seguir com argamassa, embolso, reboco e finalmente a pintura. Mas se a documentação for muito grande e volumosa, provavelmente não seja esse o caso. Então deveria haver outro local maior, porem oculto para acondicionar tudo.

— Então, vamos fazer logo essa visita e ver o que conse-guimos apurar.

Como de costume, reuniram a equipe e seus imediatos responsáveis, nos moldes da primeira vez, e passaram todas as

310

João Roberto Vasco Gonçalves

Capítulo IV

Visita à Estátua da Liberdade

Logo no dia seguinte à sua chegada a Nova York, rumaram para a tão esperada visita à Estátua da Liberdade. Algum tempo depois de iniciada a visita, desceram a um primero patamar do subsolo, o único de área pública, juntamente com o grupo de turistas. Em dado momento, propositadamente, eles se atrasa-ram em relação ao grupo e se esconderam atrás de uma columa. Observaram que havia uma porta de onde saíram dois sujeitos uniformizados com macacão. Na porta estava escrito: “Proibida a entrada de estranhos. Área restrita ao pessoal da manutenção.” Quando os dois sujeitos já estavam a uma certa distância, entra-ram. Primeiramente, havia uma antesala de uma subestação elé-trica, com os devidos avisos de segurança. Nessa antesala havia também uma porta corta-fogo. Entraram e viram uma escadaria com vários lances que descia, e, no final dessa, outra porta corta-fogo. Ao abrí-la, perceberam o ronco dos geradores, algo con-tidos pela eficiente proteção acústica. Desceram mais dois lon-gos lances de escadaria até o piso dos geradores e seus quadros elétricos. Na extremidade oposta da sala, outra porta corta-fogo indicava que havia mais dois lances de escada para descer até o piso das unidades de refigeração das máquinas e centais de con-dicionadores de ar. Desceram e, depois de atravessar outra por-ta corta-fogo, tiveram acesso a tal sala, de enormes dimensões. Na extremidade oposta dessa sala, mais uma porta corta-fogo e mais dois lances de escada. Desceram e observaram que a única coisa que havia eram enormes tubulações de captação de água

instruções sobre o desenvolvimentos dos projetos em curso. A seguir, foram arrumar toda a bagagem, examinando tudo caute-losamente e checando o material que costumavam levar nas suas mochilas nas viagens de pesquisas. Por sorte, conseguiram logo as passagens de ida e volta de que precisavam. Daí, a dois dias, viajaram.

312

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

313

de refrigeração e retorno de água aquecida, que penetravam em poços onde havia água. Após mais um lance de escada, a partir dali mesmo, descia até uma estrutura feita de pedras, como se fosse um cais primitivo onde a água chegava a até 30 cm da borda superior — situação curiosa, pois não saía para nenhuma área externa. A partir daí, não parecia haver mais nada a ser visto, era realmente o fim da linha. No entanto, descendo até a metade da escadaria, observava-se num dos lados uma abertura algo como uma entrada para a parte inferior de toda a construção, provavel-mente para inspeção periódica das estruturas da edificação. As oscilações de ar fresco naquele ponto sugeria uma saída.

Examinando com mais cuidado e discernimento aquela edificação subterrânea, perceberam que onde desciam os grossos tubos era uma espécie de canaleta embutida no concreto até o poço, formando uma reentrância que se sobressaía ao plano da parede. Examinando ao lado dela, descobriram que havia uma fenda de cerca de 45 cm de largura, que, aparentemente, fazia parte do sistema na parte posterior da canaleta da tubulação. Analisando cuidadosamente, acharam que aquilo seria dispensá-vel e não haveria razão aparente que justificasse aquela abertura à primeira vista, a menos que fosse uma entrada de ar vindo dos andares superiores — o que seria muito difícil definir sem con-sultar a planta da construção. Resolveram entrar, empunhando suas lanternas. Para a surpresa deles, havia um pequeno corredor e no final deste uma porta robusta e rústica de modelo antigo. Inalando oxigênio de suas bombas portáteis, seguiram em frente. Com algum esforço, abriram a porta e perceberam uma espécie de corredor de cerca de 10 m, com cinco aberturas com a parte superior em arco romano, sem portas, cada uma levando a um túnel sem saída. Examinando detidamente esses túneis, desco-briram que suas paredes eram cheias de cavidades retangulares onde estavam guardados vários livros e alguns objetos, possivel-mente utilizados em rituais litúrgicos de várias religiões antigas.

Candelabros ao estilo do menorah, castiçais, turíbulos, ânforas, âmbulas, cutelos, patenas, bacias e uma infinidade de peças a mais de difícil listagem em pouco tempo. Resolveram verificar cada um deles para anotar e fotografar tudo o que viram.

Os dois primeiros tuneis, da esquerda para a direira, pa-reciam ser um mausoléu, onde as lápides que cobriam prováveis aberturas longitudinais na rocha continham nomes e sobreno-mes, datas e epitáfios comuns em sepulturas. O terceiro túnel continha os vasos e utensílios sagrados antigos. O quarto e o quinto abrigavam uma vasta biblioteca antiga com muitos docu-mentos escritos em hebraico e grego antigos, todos manuscritos, mas redigidos com muita ordem e capricho — mostrando até certa preocupação com a inteligibilidade. Ali foram encontrados uma cópia do Pentateuco e de livros apócrifos, como o Livro de Adão (versão complementar do gênesis contando outros deta-lhes importantes), o Livro dos Segredos de Enoque e o Livro da Sabedoria do Céu e da Terra.

Tiveram muito trabalho para fotografar tudo aquilo e precisaram repetir a visita algumas vezes mais usando disfarces para não levantarem suspeitas. A saída também era algo bastante complicado, e eles tinham de controlar muito bem o tempo para não perderem a última viagem de retorno dos turistas. Tiveram, inclusive, dificuldade para sair sem serem notados pelo pessoal da manutenção e para se juntar ao grupo. Na última vez, quase foram pegos e tiveram de falar que estavam perdidos e buscando ajuda para encontrar a saída e encontrar o grupo.

Capítulo V

Volta a Coimbra e compilação das informações

Assim que terminaram sua agenda de visitas, fizeram ra-pidamente a viagem de volta, ansiosos que estavam para come-çar a esmiuçar as informações colhidas. Chegaram a Coimbra, cumprimentaram os membros de suas equipes e disseram que continuassem seus trabalhos, pois eles precisavam continuar suas pesquisas. Logo a seguir, naquele mesmo dia, começaram a análise pelas fotos. Na lateral esquerda do pórtico de entrada do primeiro túnel estava escrito em hebraico, em letras cavadas na rocha, o que parecia ser a identificação daquele recinto, seguido imediatamente de sua tradução em grego antigo: “Caverna dos Tesouros”. Como constataram que aquilo era, na verdade, um mausoléu, logo entenderam que o nome era uma referência à ca-verna do tesouro citada em alguns livros deuterocanônicos, tais como: os livros de Adão e Eva, Caverna dos Tesouros e outros.

As fotos das lápides mostravam inscrições curiosas. Os nomes grafados nas sete primeiras lápides eram, da esquerda para a direita, os mesmos nomes citados naqueles livros: Adão, Seth, Enos, Cainan, Mahalalel e Jared. Espaçados de uma lápide, estavam: Enoque, cujo nome estava circundado por um retan-gulo (talvez porque este tenha sido abduzido e não fora morto e enterrado; logo após: Matusalém, Lameque, e Noé, circundados da mesma forma que Enoque. Separados por mais uma lápide, vinham os nomes dos outros patriarcas: Sem, Arpachade, Selá, Éber, Pelegue, Reú, Serug, Naor, Terá, Abraão, Isaac e Jacó. O

316

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

317

nome de Sem também era ressaltado com o retângulo, porém, no texto hebraico, não traduzido, referia-se a Melquisedeque, como se fosse o nome do mesmo personagem, renomeado. O mesmo acontecia com Abraão em relação à sua renomeação.

Nas fotos das lápides do segundo túnel apareciam mui-tos outros nomes, com destaque para José, filho de Jacó, Moisés, Josué, Davi e Salomão. Semelhantemente, era fato curioso que, se vistas em conjunto, as letras em destaque em cada lápide, em sequência, pareciam formar uma frase — cujo significado ainda precisava ser analisado melhor, por constituir-se provavelmente numa indicação inportante a respeito de algo que ainda não sa-biam ao certo o que era. A frase formada pelas lápides do primei-ro túnel dizia: “O espelho de Jerusalém reflete em Alexandria” e as do segundo túnel: “Em Alexandria se concentra o mundo”. Tudo fora cuidadosamente arrumado para transmitir aquelas mensagens. A engenhosidade era impressionante, assim como a arrumação geometricamente perfeita e a precisão matemática. Ainda assim, muitas eram as incógnitas, muito a ser estudado, analisado e concatenado para produzir algo coerente.

Paschoal e Pedro começaram a sua tradicional conversa de diligentes historiadores e experientes investigadores. Inicial-mente, a respeito dos dois túneis, o significado do mausoléu, seu possível conteúdo e as informações que possuía.

— Pedro, proponho algumas questões a respeito dos dois primeiros tíuneis. Qual o significado do mausoléu? Qual o seu real conteúdo material? Qual o real significado das informações que possui?

— Sim, Paschoal. Vamos por partes.

— Pedro, voce acha que isso realmente é um mausoléu? Em outras palavras: acha que contém corpos? De quem realmen-te seriam?

— Paschoal, é difícil afirmar com absoluta certeza, mas é possível que existam corpos, sim. Não é razoável, contudo, pen-sar que esses correspondam aos nomes registrados nas lápides. Seus nomes reais devem estar anotados em alguma parte, possi-velmente no mesmo recinto, referenciados aos números dos ja-zigos. Ali, provavelmente estejam guardados os restos mortais, talvez as cinzas dos confrades mais importantes da confraria; os Grão-mestres.

— Bela dedução, Pedro. É curioso tambem que cada lápi-de possua epitáfios significativos, frases históricas e/ou bíblicas. Talvez, elas contenham referências para estudos futuros.

— Também pensei nessa possibilidade, Paschoal.

— Pedro, e quanto às informações contidas?

— Paschoal, quanto aos nomes dos primeiros patriarcas, creio que façam referência tanto aos livros canônicos como aos deuterocanônicos. Quanto à primeira frase formada, penso que ela sugere que algo que esteve em Jerusalém e possivelmente te-nha ido parar em Alexandria. A segunda parece indicar que em Alexandria há informações importantes sobre o mundo inteiro, muitos lugares, muitas culturas e muitas épocas.

— Ótimas conjeturas, Pedro. Ainda assim, precisamos es-tudar tudo mais amiúde. Mas, vamos ao terceiro túnel. O que voce pensa daquela enorme variedade de objetos e utensílios?

— Pashoal, penso que estão separados ou organizados por épocas e culturas como um pequeno Museu, porém oferecendo certa ideia de sequencia ou evolução temporal. Provavelmente, examinando-se a sequência, aparecerão informações adicionais.

— Pedro, observei isso e partilho dessa dedução, mas, igualmente, temos de estudar melhor. Passemos, então, ao es-tudo dos livros. Tomemos as fotos e as anotações e organizemos

318

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

319

um estudo. Alguns livros menos comuns, principalmente os deuterocanônicos, sabemos como conseguir. Outros dessa lista, mais corriqueiros, já os temos por aqui.

Estudo dos livros

Os primeiros livros canônicos indicados eram os cinco primeiros da bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Deuteronômio e Números. Eles possuíam características religiosas e históricas. Seus ensinamentos são, na verdade, cívico-religiosos, pois eles contêm regras de comportamento, ética, responsabilidades civís e criminais, aplicação da justiça, questões de saúde, organiza-ção social e econômica. Mostra que as sagradas escrituras não funcionavam apenas como livros religiosos, mas se confundiam com uma constituição civil, sugerindo que seu sistema de gover-no era teocrático.

O início do Gênesis possui uma dissertação quase infantil, cheia de alegorias e metáforas. Isso talvez fosse necessário para facilitar a compreensão de quem lesse sem o devido embasamen-to ou conhecimento mínimo suficiente, além de servir para várias épocas e estágios de evolução cultural. O restante do primeiro livro e os livros seguintes eram um pouco mais compreensíveis, mas, ainda assim, possuíam ambiguidades e outras dificuldades. Talvez, tudo isso se devesse às dificuldades semânticas e outras criadas nas múltiplas traduções, transliterações, interpretações, etc. De todo modo, muitas perguntas ficam no ar ou são respon-didas com fracas argumentações fundamentadas em explicações inconvincentes que os teólogos tentam propor.

O Deus que aparece e os anjos possuem uma forte correla-ção e mesmo influência dos deuses da mitologia grega. São pas-sionais, ciumentos, irados, odeiam, castigam, incoerentemente preferem a um povo ou tribos em detrimento de toda a huma-nidade que criaram, interagem diretamente com o homem, além

de outras coisas. Submetem o homem à prova, ideia conflitante com o princípio da onisciência, ou seja, se Deus conhecesse tudo profundamente, não precisaria testar até onde vai a fé e a obe-diência. Caso contrário, no conceito filosófico, não seria o deus de verdade. Isso remete à primeira ideia de que o deus bíblico não era o Deus verdadeiro. Não que ele não exista, mas, o Deus verdadeiro estaria infinitamente longe dessas ideias, sendo tre-mendamente anterior ao Deus que apregoavam. Esse, sim, seria o Deus verdadeiro, onipotente, onipresente, onisciente, senhor do tempo e do espaço em todas as dimensões possíveis, imagi-náveis e inimagináveis, criador do universo e de todas as coisas visíveis e invisíveis.

Os livros deuterocanônicos, embora parte da septuaginta, estão escritos somente em grego. Não foram derivados dos do-cumentos escritos em hebraico, mas em siríaco, copta e outras línguas antigas. Portanto, aquelas referências a eles encontradas nos jazigos, grafados em hebraico, são meras alegorias. Esses não possuem características religiosas. São no máximo históricos e se aproximam muito mais de descrições científicas. A única (porém gigantesca) dificuldade é que são frontalmente conflitantes com os livros de cunho religioso, principalmente no que concerne à criação da raça humana. Esses livros sugerem a preexistência de uma raça super avançada, tecnicamente, num planeta biofisica-mente exaurido e com previsão de extinção em médio prazo. A criação do homem terrestre, segundo sua versão, mais se apro-xima de uma experiência científica avançada. Seu objetivo era prover uma depuração genética para corrigir muitos problemas causados pelo seu próprio desenvolvimento científico.

Sua raça original fora deturpada por clonagens malsu-cedidas e outras realizações de engenharia genética buscando a criação de alguns atributos e desenvolvimento ou melhoramento de outros. O que pleiteavam inicialmente era a criação de uma super-raça, imune a doenças, fisicamente mais forte, com expec-

320

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

321

tativa de vida saudável muito superior, possibilidade de loco-moção avançada. Dotariam os seres de asas como os pássaros. Semelhantemente, a capacidade mental seria muito maior, etc. Essas experiências, entretanto, não foram muito bem-sucedidas, e, na verdade, acarretaram enormes problemas que acabaram por degenerar a raça original. Outros problemas gravíssimos ocasionados pelo super desenvolvimento científico foram a con-taminação com radioatividade de várias naturezas, tipos e níveis que provocaram alterações importantes no DNA e deturpações cromossômicas. Elas culminaram em problemas teratológicos ou alterações genéticas, produzindo seres híbridos, com carac-terísticas humanas misturadas com as de outros animais — asas, caldas, chifres, pelagem grossa, penas, escamas, crostas, cascos, etc. O objetivo da depuração genética da raça era manter os atri-butos considerados interessantes e eliminar os ruins.Assim, ao procurarem exaustivamente por várias galáxias, encontraram num sistema solar da via Láctea o planeta terra, dotado das con-dições quase ideais e precisaram esperar e até agir sobre ela até ficar propícia ao desenvolvimento do projeto “Vida Pura”. O jar-dim do Éden foi criado como uma espécie de redoma natural onde o ser depurado e em desenvolvimento poderia viver prote-gido, com a subsistência garantida, em estado de graça, sem um mínimo de conhecimentos, como os animais. As experiências, no entanto, tiveram seus problemas. Segundo a lenda, houve dis-córdia entre os cientistas. Uns achavam que precisavam ceder aos novos habitantes o “gene” da inteligência, da força física e da agressividade, além de ministrar-lhes conhecimentos básicos, para quando os seres selecionados precisassem sair daquele es-paço protegido e favorável, assim, poderiam lutar pela sua sobre-vivência. Isso exigiria uma alteração substancial no projeto cien-tífico, que já estava avançado. A maneira mais fácil e mais rápida que conceberam foi a miscigenação. Então, escolheram 200 de sua raça, dos considerados mais sadios e que ainda não haviam desenvolvido problemas teratológicos para cruzar com as fêmeas

daqueles seres e obter filhos com as propriedades esperadas. En-quanto isso, atuavam como professores da nova raça que surgia, ensinando tudo que consideravam útil à sobrevivência.

O Livro dos Mistérios do Céu e da Terra diz: “Aqueles que ensinaram aos homens a arte da civilização é que provocaram a ira de ‘deus’ e que o levaram a fazer o dilúvio sobre a terra”. Era como se o dilúvio fosse um processo de correção, realinhamen-to ou retorno ao projeto original, deturpado pela ação dos cien-tistas descontentes, que, num paralelo ao Gênesis, funcionaram como a serpente tentadora e corruptora.

Os nomes deles e seus ensinamentos são: Pipirôs ensinou sobre o sol, Ruridê, a extração de pedras; Zarrél os meses do ca-lendário; Pineno mostrou o cavalo e sua utilidade, Galé instruiu sobre o machado, Tigana, sobre o escudo; Horeri, sobre os ins-trumentos musicais; Yuebê, a trabalhar o ferro; Meged ensinou a cavalgar, Negode, sobre as plantas e outras fontes medicinais, além de mostrar a época em que a influência dos planetas so-bre as águas era mais favorável. Garge ensinou sobre o moedor de milho; Seter, como misturar a massa; Giner, o uso de vasos de barro para os alimentos, Zare ensinou a ordenhar os animais para obter o leite, Saper, a fazer manteiga. Hegge ensinou a fazer telhados e outras coberturas, Tentoreb, a fazer portas; Halage, a esculpir em madeira e pedra; Heder, a cultivar árvores; Sino, a construção de casas, Tof ensinou a fazer tijolos, Artorbegas ensinou sobre implementos agrícolas; Sebedegaz, sobre óleos e tintas. Zare ensinou a fabricar cerveja, Beteneladas ensinou so-bre o forno, Nafil ensinou a fazer plantações, hortas e jardins; Yarbeh, como derrubar árvores, Elyô ensinou a dança; Penemos, a arquitetura e a escrita, Agalemum; sobre animais para arar e como efetuar os sulcos na terra, Kueses, sobre a fabricação de arados e chicotes de couro, Akor, sobre o trabalho com cobre e fabricação do bronze, Certos ensinou a trabalhar as madeiras de cedro e salgueiro. Akis ensinou sobre as artes circenses, Wasag,

322

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

323

Aberegya e Zaberegued ensinaram vários tipos de jogos. Nem tudo deu certo, no entanto. Uma parte realmente evoluiu como pretendiam e, depois de poucos milhares de anos, produziu uma supercivilização de conhecimentos técnicos muito avançados em várias áreas científicas, passando a viver numa região chama-da Atlântida, localizada entre o norte da África e da América do Sul e Central, bem como Australásia, que vem de Ásia Austral ou Austral Ásia, localizada próximo de onde hoje é a Oceania. Eram cópias daquela área protegida inicial, acrescida de algu-mas condições que julgavam necessárias. Contudo, a outra parte herdou os defeitos da raça geradora, em cuja memória genética estavam as deformidades. Essas foram, então, transmitidas inte-gralmente. Curiosamente, o mesmo princípio que conferia a lon-gevidade, também causava problemas teratológicos. O horizonte de vida previsto era de mil anos terrestres. O referido princípio era a multiplicação mais rápida das células para substituir outras já desgastadas, rejuvenescendo-as — o que evitava a morte pre-matura delas. O problema que aparecia quando algo saía errado era o aparecimento de tumores e partes extras, resultando o de-senvolvimento excessivo das células por alguma razão que ainda não sabiam. Aquilo, no entanto, não era tudo, apareceu outro pior que ainda não havia sido previsto: para além de desenvolve-rem partes características de corpos de outros animais, quando chegavam à idade adulta, no terceiro jubileu, 75 anos terrestres, não paravam de crescer, como normalmente seria esperado, o que era acompanhado das deformidades e monstruosidades, que evoluíam muito para pior. Por consequência disso, a alimentação ficou cada vez mais escassa; somado a isso, eles começaram a se multiplicar com muita velocidade e em grande número. Em bre-ve, devorariam tudo que encontrassem, inclusive seus semelhan-tes, atingindo estaturas descomunais — cerca de 25 a 30 metros. E suas deformações em nada lembravam mais espécies huma-nas. Pelas descrições detalhadas, eram figuras bem próximas aos

dinossauros e outros animais pré-históricos que mencionamos hoje.

Quando a situação ficou insustentável, precisaram abortar o projeto e provocar uma explosão nuclear em pontos específicos para extirpar totalmente a raça indesejável, que àquela altura, já possuía uma superpopulação e estava espalhada por extensa área geográfica. A explosão, apesar de ser em pontos específicos, acar-retou abalos sísmicos catastróficos. Foi forte demais e provocou a fratura da crosta do planeta, já devidamente resfriada e consis-tente, porém quebradiça. As fraturas evoluíram para rachaduras e fendas mais abertas e mais instáveis. Então, o que era inteiriço passou a ser o que chamamos de placas tectônicas, que apenas se encaixam e ou se apoiam sobre as extremidades umas das ou-tras. Quando estavam inteiras, davam consistência e equilíbrio ao sistema geológico. Devido à mudança, a expansão súbita dos gases e do magma do centro da terra provocou movimentações importantes na crosta, criando montanhas e vales de grande am-plitude, fazendo o mar virar continente e o continente virar mar em vários pontos. Então, a civilização da Atlântida submergiu, bem como a de Australásia. Os poucos que conseguiram se sal-var acabaram se deslocando para áreas secas e agora montanho-sas das Américas e criando as civilizações Incas, Astecas e Maias e outras na África, Ásia e Oceania. O passo seguinte foi limitar a velocidade de multiplicação celular, mesmo que isso baixasse substancialmente a expectativa de vida material, ficando a longe-vidade na faixa de média de 100 anos, gerando a expectativa de que as gerações futuras não teriam mais problemas como aque-les.

O estudo de muitos outros livros antigos dava conta da existência de alguns personagens importantes, como homens do céu, como era o caso de Melquisedeque e Enoque e os filhos dos homens do céu ou “filhos do céu”, que eram derivados de rela-ções entre homens do céu e as mulheres da terra. Falavam, ainda,

324

João Roberto Vasco Gonçalves

de seres que se encarnaram na raça humana em diversas épocas diferentes, várias gerações adiante, sendo, entretanto, espiritual-mente ou intelectualmente a mesma pessoa.

Outro fato curioso é que muitos dos seres mencionados não morreram nem foram enterrados como todos os humanos. Alguns casos de assunção, ascensão, abdução foram registrados, assim como o de Elias, que subiu aos céus numa carroça de fogo, Enoque foi chamado para os céus e simplesmente sumiu, etc. Ou-tros casos curiosos de filhos dos homens do céu com as mulheres da terra, predestinados a serem salvadores de uma raça, também foram registrados. Um dos casos mais interessantes foi o de Noé. Voltando Lamec de uma viagem longa, ao retornar, deparou-se com uma criança que sua mulher jurara ser seu filho natural. Fa-zendo suas contas, poderia ser, no entanto, o menino tinha tra-ços físicos completamente diferentes do de sua raça, como pele, olhos, cabelos, etc. Desconfiado, Lamec procurou seu pai, Ma-tusalém, para se aconselhar. Matusalém também nada concluiu, então, foi procurar um sábio chamado Enoque. Este afirmou que realmente não era filho natural dele, mas que o recebessem como filho, pois haveria um grande extermínio da raça humana, que àquela altura, era desagradável ao Senhor por suas iniquidades. O menino, Noé, seria o pai dos escolhidos para serem salvos. De fato, ele teve a revelação sobre o dilúvio e construiu uma arca para passar incólume por tamanha catástrofe.

Capítulo VI

Comentários finais da parte II

Era realmente um gigantesco volume de informações, eram de difícil análise e compreensão. A cada etapa que o estudo avançava, mais se tornava uma intrincada rede. Era realmente muito difícil ou talvez impossível filtrar tudo aquilo e produzir uma literatura única e definitiva com as verdades sobre tudo — sem cair naquela mesma armadilha em que tantos haviam caído ao longo da história.

Depois de analisar e estudar exaustivamente todo aquele material de pesquisa obtido até então, acrescido das informações obtidas durante as visitas, fotos, estudos de inscrições e afins, Paschoal e Pedro concluíram: os livros Apócrifos e Deuteroca-nônicos sofriam afinal da mesma deficiência e dificuldade dos canônicos ou de quaisquer outros que apareceram na história da humanidade. Possuíam ambiguidades, imprecisões, inconsistên-cias, improbabilidades, transliterações, traduções, imposições ideológicas dos que escreveram julgando que era o certo sem conferir a ninguém o direito à dúvida e, até mesmo, atos de má fé para atender interesses escusos.

Poderiam dar por concluída aquela segunda parte e, até mesmo, dar por encerrado aquele estudo. Mas, apesar daquilo, havia uma terceira. Independentemente do que pudessem en-

326

João Roberto Vasco Gonçalves

Parte III

contrar, a curiosidade deles como historiadores e pesquisadores e o seu senso de responsabilidade sobre as informações à huma-nidade jamais permitiria que pusessem um ponto final em tudo aquilo. Assim, precisavam planejar a execução da terceira parte dos estudos.

Capítulo I

A caminho do oriente – Encontro com o passado

Paschoal e Pedro saíram de Portugal rumo a Istambul, porta de entrada do Oriente. Foram percebidos. Apesar de já serem membros bem graduados da confraria, dois elementos importantes dela os seguiram sem serem notados, a pretexto de ajudar em momentos difíceis e complicações que eles sempre acabavam por enfrentar. Da mesma forma, Moshê e João haviam viajado disfarçadamente.

Mal sabiam todos que seria como atravessar um vestíbulo entre dois ambientes. Era como atravessar um portal de tempo, e quem se atrevesse a fazer aquela passagem era violentamen-te arremessado de volta ao passado, onde os minutos pareciam eternidade, os sentimentos eram revividos e potencializados. O ambiente era uma espécie de espelho mágico com uma vista pa-norâmica ou uma câmara de tortura onde se purgava o que se devia e o que não se devia — uma passagem incrivelmente rápi-da com sensação de parada no tempo.

Paschoal foi o primeiro a sentir o impacto daquele con-tato com o portal do tempo. Logo ao desembarcar em Istambul, parecia ter levado a descarga de um raio, já que suava frio e foi acometido de um ligeiro tremor. Não sabia exatamente o que era. Seria um resfriado que sutilmente vinha chegando? Teria comi-do algo que não lhe fizera bem? O que estaria acontecendo? Não era nada disso. Era apenas um choque das imagens gravadas no seu subconsciente com as imagens reais da cidade que começou

330

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

331

a rever, a mesma da sua saída amargurada, que ele se dispunha a esquecer, sepultando-a dentro de si. Aquele choque era a colisão do passado com o presente, um incômodo sentimento que não havia como descartar. O único modo de neutralizá-lo era aceitar o seu divã, enfrentar os problemas, remoê-los até que o seu ve-neno perdesse sua força. Ele tinha de superar tudo, ainda que a duras penas, e, possivelmente, sair dali definitivamente de alma lavada.

As imagens retrocediam na ordem inversa, como uma fita de vídeo rodando ao contrário. Primeiramente, ele visualizou sua partida para a Europa, rumo a Lisboa. Depois, viu seus tem-pos felizes como professor numa conceituada universidade de Istambul — mas era uma felicidade do tipo rolha, para tapar a garrafa vazia de sua vida. Era um vazio deixado pelas mortes em sequência do pai adotivo e, anos depois, da mãe, logo depois, sua noiva. Acometidos de peste, haviam falecido, assim como alguns amigos dele. Lembrou-se de como fora pesaroso concluir os ne-gócios decadentes, vender tudo, pagar a dívidas e embrenhar-se de vez na universidade — na qual ele se afogou em trabalho para preencher todo aquele vazio e conseguir sobreviver à crise. Após aquilo, passou diante se si sua infância, o brutal assassinato de sua mãe, a usurpação de seus poucos pertences e sua captu-ra para vendê-lo como escravo. Ouvindo a conversa escondido, descobriu em seguida que haviam conseguido um comprador e que a condição exigida era torná-lo eunuco. Viu sua fuga de-sesperada, sua premanência provisória no esconderijo, na colina próxima. Lembrou-se da ferroada do inseto, sua perda de senti-dos e seu acordar numa nova família, sendo essa a melhor parte, um milagre da providência para o seu pobre destino. Tristes re-cordações. Como era amargo ser inesperadamente invadido por elas sem chance de recusa!

Concomitantemete, Pedro passava pelas mesmas agruras. Seu primeiro contato com a localidade foi um golpe de vento

frio que passou e parecia congelar até a alma.Teve, a seguir, certa indisposição; o sangue parecia latejar na cabeça, sentia-se ligei-ramente desconfortável, com certa tontura e náusea. Atribuiu a sensação ao efeito daquele vento e pensou que um resfriado pos-sivelmente estava a caminho. Os ventos, todavia, eram outros, que procediam do seu subconsciente, o que concluiu logo de-pois, quando foi invadido por um dilúvio de lembranças de fatos há muito soterrados na arca do tempo. Elas insistiam em aflorar agora, numa sequência inversa, como um filme a retroceder. Via sua partida do oriente para o seu desterro voluntário, as aulas que lecionava e seu afogamento em trabalho para preencher o vazio de sua vida. Viu o seu quase casamento com Débora ser desfeito por pressão da família da noiva, que o rejeitou quando soube que nem ele sabia ao certo sua nacionalidade — mesmo tendo sido adotado legalmente como filho de família judia. Viu a parte boa que havia ocorrido quando saíra da enfermaria militar para a casa da família que o adotou, seus estudos, seus primos, seu namoro com Débora — tudo para enchê-lo de felicidade e ser retirado com maior pesar depois. Viu seu acordar numa en-fermaria de campanha da Cruz Vermelha, a batalha e seu feri-mento no fogo cruzado. Viu a escola de formação de guerrilhei-ros, com sua rígida disciplina e os duros castigos aos faltosos. Viu, ainda, diante de si, a sua captura por aqueles brutamontes que o jogaram em um caminhão velho depois de uma bofetada por ter protestado e aquela viagem super desconfortável de vá-rios dias. Depois, viu a parte mais triste: o assassinato em massa do povo da sua vila, que incluía seus pais, sua fuga para a colina e a posterior descida até ser encontrado por aqueles brutamon-tes do caminhão que o agarraram à força e bateram nele quando protestou.

Todo aquele dilúvio de lembranças péssimas e difíceis de remoer era inexorável, e não havia como evitá-lo. Fora mesmo invadido sem permissão e o jeito era enfrentar. É, Istambul pa-

332

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

333

recia mesmo um portal mistico de passagem entre dois mundos, duas realidades, duas dimensões. Ninguém conseguiria passar por ali sem sentir determinada comoção. Com Moshê também não foi diferente. Assim que chegou, densas nuvens negras do passado pareciam ter pesado sobre ele, fazendo aquele homem aparentemente calmo, comedido e inabalável curvar-se diante si mesmo. Viu passar diante de si a retrospectiva de sua vida. Sua chegada a Amsterdan, procurando o Rabino Ariel, sua desolação e peregrinação após sair como persona non grata daquele grupo de judeus, responsabilizando-o por uma derrota prevista, sobre a qual não quiseram tomar conhecimento e que fora voto vencido. Viu seu retorno desastroso do campo de batalha após fragorosa derrota. Viu seu povo mal treinado e inexperiente lutando até a morte com um exército de mercenários cujo ofício era matar por dinheiro. Viu sua última insistência ser rejeitada pelo grupo que queria a guerra e o tratara grosseiramente. Viu a morte do velho rabino, seu mestre, mentor e quase um deus para ele, que lhe confirma uma missão e o manda procurar o rabino Ariel. Viu a sua admissão no grupo como judeu, por influência do velho rabino, seus estudos orientados por ele. Viu nitidamente o mo-mento em que o velho o identifica como judeu e complementa a história que ele nunca soubera e lhe informa que ele possui uma missão que ainda descobriria. Lembrou-se de sua primeira entrevista com aquele velho de longos cabelos e barba brancas, e viu, ainda, diante de si sua pereginação pelo mundo com aquele enorme vazio que nem mesmo ele sabia o que era. Viu sua vida como um bravo soldado na legião estrangeira, sua mãe adoti-va (a única que conhecera) morrendo em seus braços, o tempo em que exercia a profissão de ourives, herdada do pai, ganhando o seu sustento e de sua mãe. Viu tambem passar diante de si a morte de seu pai adotivo, que tanto lhe ensinara. A partir dali, não havia mais registros de nada a ser visto, embora ele soubesse que a história existia, a dos pais que não conhecera. Era como se fosse filho daquela estrela cuja imagem trazia pendurada no

pescoço. Era realmente muito pesado aquele fardo que já estava muitos anos sedimentado no fundo da mente havia muitos anos, mas que reaparecia para atormentá-lo. Ainda assim, ele tinha de enfrentar aquilo.

João tambem não passou incólume por Istambul. Sua hi-persensibilidade o fazia perceber a atmosfera tóxica da superfície do Averno, como se Istambul fosse localizado às suas margens. Era só impressão. O Hades, o Averno tinto de sangue e a lama incandecente do Aqueronte povoavam mesmo suas lembran-ças, suas dúvidas, suas ansiedades. Passaram diante dele muitas visões. Viu sua chegada no grupo de judeus que o recebeu por recomendação do amigo rabino, sua saída do seminário, apesar de ter estudado e ser versado em filosofia e muitos outros co-nhecimentos, cheio de dúvidas e de coisas que jamais conseguira explicar, o que o mortificavam demais. Viu seus anos de semina-rista, com muitos estudos, muita disciplina e as constantes idas e vindas às bibliotecas na tentativa de encontrar-se nos livros. Viu quando um colega fez aquela brincadeira que o deixou per-turbadíssimo exacerbando seus sentimentos, sua entrada no se-minário depois de seu pai muito batalhar para consegui-la, seu trabalho anterior na roça e a sua vida em família e com os amigos locais, com quem ia junto para a escola. Lembrou-se do dia em que o pai quase lhe deu uma surra por causa da pergunta sobre judeus, pois sua professora falara sobre na escola depois de uma brincadeira. Nada daquilo deveria ter mais importância, mas os caminhos tortuosos da mente parecem determinar o seu próprio rumo sem pedir licença para aflorarem quando bem entendem. Não adiantava resistir. Restava-lhe mesmo enfrentar a situação com coragem e vencer seus traumas.

Todos eles passaram maus bocados, mas resistiram brava-mente à passagem pelo seu inferno astral, passaram pelo portal e atingiram outra dimensão mais elevada. Curiosamente, sen-tiam-se fortificados. Seus espíritos foram enrijecidos numa for-

334

João Roberto Vasco Gonçalves

Capítulo II

Istambul – Conhecendo a cidade

Situa-se a noroeste da Turquia, na Região de Marmara. É a capital da província de Istambul. Foi chamada de Bizâncio até 330 a.C., depois, Constantinopla, até 1453. Posteriormente, foi renomeada em 1930 para Istambul. Sua área metropolitana é de 5.343 km², sendo 65% ou 3.479 km² do lado europeu e 35% ou 1.864 km² no lado asiático. Foi fundada em 667 a.C. por Bi-zas, rei de Mégara. Possui altitude máxima de 537 m, População de13.120.596 — senso de 2010 — e densidade demográfica de 7166,12 habitantes/ km².

O estreito de Bósforo divide a cidade em duas partes, fi-cando a Rumélia na Europa e a Anatólia na Ásia. O Estreito de Bósforo é ligado ao Mar Negro ao norte e ao Mar de Marmára ao sul. O Mar de Mármara é ligado ao Mar Mediterrâneo pelo Estreito de Dardanelos. A parte histórica do lado europeu é divi-dida no sentido leste-oeste pelo Corno de Ouro, que é um porto natural e estuário de um rio que flui no sentido noroeste-sudeste. Fica ao norte da península onde era a antiga Bizâncio, no Cabo do Serralho, atual distrito urbano de Faith. Istambul é a maior cidade da Turquia e a quinta maior do mundo. A maioria da po-pulação é muçulmana, mas há, também, um grande número de ateus e uma minoria de cristãos e judeus. Apesar de a capital da Turquia ser Ancara, Istambul continua a ser de enorme impor-tância por ser o principal polo industrial, comercial, cultural e

ja, a fornalha do seu próprio purgatório, independentemente de dever algo ou não. Tão somente para prepará-los para uma nova vida e levar suas missões a bom termo.

Sim, estavam preparados para seguir seu caminho e cum-prir a missão a que se propunham, independentemente do que fariam com o resultado.

336

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

337

universitário. É a sede do patriarcado ecumênico de Constanti-nopla, sede da Igreja Ortodoxa.

Devido a estar localizada próximo à Falha Setentrional de Anatólia, já sofreu vários terremotos, sendo os mais devastado-res o de 1509, que causou um grande tsunami que ultrapassou as muralhas, destruiu muitas mesquitas e causou muitos mortos e o de 1999, ou o terremoto de Izmit, que levou à morte mais de 18000 pessoas, sendo 1000 somente em Istambul.

O clima é classificado entre o úmido subtropical e o me-deiterrâneo. Caracteriza-se por verões longos, quentes e úmidos e invernos frios, chuvosos e poucos dias de neve. A temperatura média no inverno fica entre 3 e 8 °C, podendo esporadicamente chegar a -5 ºC. No verão, a média de temperatura é de 28 °C. A temperatura mínima já registrada foi de -16 °C em 08/02/1927, e a máxima, 40,5 °C em 12/06/2000.

A chuva é comum no verão, sendo, às vezes, intensa. O outono e a primavera são tipicamente temperados e frequente-mente úmidos, havendo, no entanto, dias quentes e dias frios — apesar de as noites serem sempre frias.

O índice de precipitação pluviométrica de 844 mm de chu-va é distribuída tipicamente em 152 dias. A umidade é muito alta o ano inteiro, aumentando a sensação de calor nas temperaturas mais altas. Geralmente, pela manhã, atinge 80%, sendo comum o nevoeiro, que normalmente só se dissipa próximo ao meio dia, sendo comum em média, 228 dias por ano e mais observado no período de inverno. Em Istambul venta bastante, sendo a veloci-dade do vento, em média, 18 km/h.

Em termos de religião, podemos assim distribuir a popu-lação: 70 a 85% de muçulmanos sunitas, 15 a 30% de alevitas; igualmente, há minorias de xiitas duodecimanos, yarsanistas e

yasidis, além de alguns poucos sufistas. Segundo dados de 2007, há 2944 mesquitas em Istambul.

81,33% da população se identifica como turca. A maior parte da minoria étnica é curda. Outros dados informam que os curdos representam 25% da população de Istambul.

Quanto ao aspecto econômico, consta que é o maior cen-tro industrial e financeiro, concentrando cerca de 20% dos em-pregos nas indústrias — ou 38% em relação ao país, dados de 2000. Quanto ao comércio, concentra 55% do varejista e 45% do atacadista. É responsável por 21% do PIB e 27% do PNB da Tur-quia. Da receita em Impostos da Turquia, 40% são geradas em Is-tambul, bem como 27,5% do consumo nacional, dados de 2006. Nesse mesmo, ano o PIB da cidade foi de 133 milhões de dólares.

Em relação ao movimento bancário, Istambul detém 35%, sendo que 20% das dependências bancárias da Turquia estão lá. Talvez, o que explica esses dados são o fato de a cidade estar no meio de todas as rotas marítimas, ferroviárias e rodoviárias que atendem a vários países.

Educação

Istambul tem um grande número de universidades, dentre as quais há oito estatais e mais de vinte privadas — a maior partes destas últimas criadas nos últimos anos. Entre elas encontram-se algumas das mais prestigiadas da Turquia, como a Universidade de Istambul e a Universidade Técnica de Istambul. Há, também, sete escolas superiores profissionalizantes. Em 2007 existiam em Istambul 4350 escolas não superiores (comuns e profissionais), sendo que cerca de metade delas eram primárias. O número de professores nessas escolas era de 90.784, e o de estudantes, 2.991.320. No total, havia 59.238 salas de aula. O número médio de alunos por escola era de 688, o de alunos por professor, 33, e de alunos por sala de aula, 50. Nos últimos anos, houve um

338

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

339

grande reforço das infraestruturas de educação — por exemplo, de 2000 para 2007, quase duplicaram o número de professores e de salas de aula, e o número de alunos aumentou mais de 60%.

Saúde

A cidade tem inúmeras unidades de saúde, tanto estatais como privadas, entre hospitais, clínicas, laboratórios e unida-des de investigação médica. Muitas dessas unidades dispõem de equipamento de alta tecnologia.

Transporte

Istambul tem dois aeroportos internacionais de grande di-mensão. O Aeroporto de Ataturk está em Yesilcöy, no lado Euro-peu, 20 km a oeste do centro histórico, e o Aeroporto de Sabiha Gökçen está em Pendik, lado oriental, a 35 km do centro da cidade.

Os transportes marítimos são uma componente impor-tante da infraestrutura de transportes públicos da cidade. Há inúmeras linhas de ferryboats que cruzam o estreito de Bósforo, o Mar de Mármara e o Corno de Ouro. A maior parte são os co-muns, chamados Vapur, mas existem, além deles, os catamarãs rápidos.

Existe uma linha ferroviária que liga os dois continentes com cerca de 14 km de extensão, passando a maior parte por baixo do fundo do Estreito de Bósforo e do Mar de Mármara.

A cidade possui uma frota de 2768 ônibus, segundo dados de 2010, percorrendo diariamente 448.000 km em 468 linhas e 7889 pontos de parada. Possui também o transporte rápido do tipo metrobus, duas linhas de metrô de superfície e uma linha de metrô convencional, além de duas linhas de trolleys elétricos e duas linhas ferroviárias suburbanas.

Cultura

A cidade oferece espetáculos de ópera, jazz, teatro, balé, etc. Recebe vários artistas internacionais que lotam os estádios. Alguns eventos sazonais importantes são realizados na cida-de, tais como o Festival Internacional de Cinema de Istambul, a Bienal de Istambul e uma exposição de Arte Contemporânea. O principal centro cultural estatal é o Centro Cultural Atatürk, localizado num dos edifícios que domina a Praça Taksim. A ci-dade conta com, pelo menos, 15 centros culturais importantes, 11 salas de concerto de grande qualidade e centenas de galerias de arte.

Um dos centros culturais mais modernos é o Santralis-tambul, que inclui um museu de arte moderna, um museu de energia, um anfiteatro, uma sala de concertos e uma bibliote-ca pública. Uma das melhores salas de concerto de Istambul é a Semal Resid Rey Konser Salonu. Há inúmeros Museus, como o Istambul Modern — de arte contemporânea —, o Museu de Pera — que contém coleções de azulejo e arte oriental — o Mu-seu Sakip Sabance — que possui coleções de porcelana chinesa e europeia, além de mobiliário, caligrafia e pintura islâmica, prin-cipalmente as obras orientais de pintores otomanos e europeus. O museu Rahmi M Koç exibe vários equipamentos industriais, como automóveis, locomotivas, etc. Os museus arqueológicos de Istambul possuem mais de um milhão de peças oriundas da ba-cia do Mediterrâneo, dos balcãs, oriente médio, norte da África e Ásia Central. O Museu dos Mosaicos abriga mosaicos do grande palácio de Constantinopla. O Museu de Arte Turca e Islâmica possui mais de 40.000 peças de arte islâmica, que vão desde o Califado de Omíada até os dias de hoje.

Capítulo III

A cidade eterna

No último manuscrito que haviam copiado havia as indi-cações do terceiro lugar referido como “Cidade Eterna”, que, para os ocidentais, trata-se de Roma. Realmente, havia essa possibi-lidade, pois, em termos de possíveis informações antigas, essas poderiam ser encontradas numa parte reservada da biblioteca do Vaticano para a qual haviam ido parar muitos livros supos-tamente sumidos ou destruídos — ou mesmo guardados como peças de processos inquisitórios que acabaram caindo no esque-cimento ao longo dos séculos.

Apesar disso, a cidade poderia, igualmente, ser Jerusalém, muito mais antiga e com histórias da antiguidade muito interes-santes alem de disputada por inúmeras nações dominadoras e seus chefes militares desde os primórdios da civilização humana. Coincidência ou não, muitas eram as indicações que apontavam para Jerusalém. Assim acabaram optando por essa cidade. De um modo ou de outro, o fato é que faltava a última parte e muito trabalho e haveria pela frente.

Jerusalém

Desta vez, a tarefa seria árdua, portanto, eles precisavam de um plano muito bem elaborado e de pessoas influentes em várias esferas das sociedades judias, árabes, cristãs orientais e or-todoxas. Jerusalém é uma cidade extremamente complexa. Além de ser uma cidade com bairros de várias nacionalidades, não se-ria o que poderíamos chamar de “uma” cidade cosmopolita. Na

342

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

343

verdade, são várias cidades dentro de uma. Vários comandos po-líticos, várias disputas por pontos históricos, principalmente pe-los lugares considerados sagrados, muitas vezes, ao mesmo tem-po por várias religiões — e todas elas sendo irredutíveis em seus direitos sobre ela. Muros, proteções, vigilâncias e afins também existem ali. Conflitos abundam, sempre exacerbando os ânimos cada vez mais e potencializando desavenças históricas. Em suma, a cidade pode ser considerada um barril de pólvora sempre na iminência de explodir.

As dificuldades de ordem legal eram imensas. O modo mais fácil que encontraram era o de sempre. Inicialmente, eles se passarem por turistas, e, depois, buscariam uma forma de se infiltrarem no meio de arqueólogos e outros grupos de pesqui-sadores já autorizados por acordos internacionais. Numa dessas investidas, acabaram indo a profundos túneis, ao que tudo indi-cava, sob onde fora o palácio de Salomão. Na ramificação de um daqueles túneis, na parte próxima ao final, na face lateral direi-ta, Pedro acidentalmente tropeçou, e ao apoiar-se para manter o equilíbrio, seu braço direito empurrou uma pedra que caiu, quase ferindo seus pés. No local de onde a pedra saíra ficou um buraco. Instintivamente, ele acionou sua lanterna e verificou que se tratava de um recinto muito maior, uma gruta. Ele e Paschoal resolveram remover mais pedras até criar espaço suficiente para passarem e fazer uma minuciosa inspeção como historiadores utilizando seus olhos experientes em investigações daquele tipo.

Quando finalmente conseguiram penetrar, ficaram pas-mos. Guardava uma grande semelhança com aquela que viram pela primeira vez. Da mesma forma, havia uma arca, não exata-mente igual a da aliança, como da primeira vez, mas, igualmente, continha informações muito parecidas com aquelas. Mas havia uma particularidade: havia o que seria a vara de Arão, sem o flo-rescimento, é claro. Mas uma simples inspeção revelou que essa era oca. Examinando, verificaram que na verdade era uma folha

de pergaminho enrolada. Desenrolando-a, descortinou-se um mapa. Com uma análise deste, descobriram que se tratava de um mapa geográfico da região, porém com as delimitações do tempo antigo. Era um curioso mapa circular centrado em Jerusalém, com vários círculos concêntricos, marcando acidentes geográ-ficos e dando perfeita noção de distâncias. Alem de Jerusalém, havia em destaque um ponto localizado sobre a ilha de Faros, no Egito, com a notação: “Alexandria”.

Olhando o interior da arca, encontraram o pote de ouro em que haveria o maná, porém no seu interior havia um frag-mento de um documento antigo com as bordas um tanto cha-muscadas e com aquelas mesmas inscrições encontradas no sub-solo da Estátua da liberdade. Paschoal e Pedro fizeram questão de ler letra por letra as frases: “O espelho de Jerusalém reflete em Alexandria”; e: “Em Alexandria se concentra o mundo”. Abaixo dessas frases, havia o desenho de algo que parecia ser um mapa de algo imcomum, como se fossem túneis formando um labi-rinto — e cada segmento possuindo notações como se fossem coordenadas ou endereços.

Analisando essa primeira frase, seria como se Alexandria fosse uma colônia ou fizesse parte de Jerusalém, ou, abusando um pouco da dedução, seria ideologicamente a mesma. A análi-se da segunda frase parecia mostrar que quaisquer referências à história mundial estariam de alguma forma concentradas ali ou a alma do mundo estaria em Alexandria. Aquelas

eram frases sugestivas. Então, o que quer que fossem os tesouros a serem encontrados, certamente não se encontravam ali no subsolo de Jerusalém, mas em Alexandria, seu espelho, como sugeria a primeira frase. Assim, não havia duvida alguma. Deveriam interromper suas pesquisas em Jerusalém e partir para Alexandria para tentarem descobrir algo de significativo.

Capítulo IV

Jerusalém – Conhecendo a cidade

História

Falar da história de Jerusalém não é tarefa muito fácil. Seu nome Hebaico é Yerushaláyim, que significa: “Cidade da paz”. Em Árabe é Al-Quds, que significa: “A sagrada”. A cidade tem uma história que data do IV milênio a.C. Segundo a arqueolo-gia, teria sido habitada desde a idade do cobre, cerca de 3000 a 2000 anos a.C. Alguns arqueólogos acreditam que, na qualidade de cidade, teria sido fundada por povos semitas ocidentais em cerca de 2600 anos a.C., e, segundo a tradição judaica, a cidade foi fundada por Sem, filho de Noé e Éber, seu bisneto, que foram antepassados de Abraão. David, segundo relatos bíblicos, con-quistou a cidade e a declarou a capital do Reino Unido de Israel e Judá, cerca de 1000 anos a.C., o que parece estar coerente com os estudos arqueológicos.

Jerusalém passou por muitas disputas em vários períodos históricos. A despeito das imprecisões e aproximações, esses pe-ríodos são:

Período Templário – 970 a.C. a 152 a.C.;

Guerras Romano-Judaicas – 6 d.C. ao século VII.;

Guerras Romano-Persas – 614 d.C. a 629 d.C.;

346

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

347

Estado Islâmico – 638 d.C. a 1099 d.C.;

Cruzadas – De Saladino até os Mamelucos – 1099 d.C. a 1517 d.C.;

Domínio Otomano – 1517 d.C. a 1860 d.C.;

Mandato Britânico – 1917 d.C. a 1948 d.C.;

Controvérsia sobre a divisão – Pós-Britânico – 1946 a 1967 – Guerra dos 7 dias.

Dias de hoje – Após 1967. Continuam as controvérsias, as disputas, as declarações próprias e o desacordo das comunidades internacionais que esperam por negociações entre israelenses e palestinos.

Jerusalém foi destruída duas vezes, sitiada 23 vezes, ataca-da 52 vezes, e capturada e recapturada 44 vezes. Hoje, Jerusalém é, ao mesmo tempo, a Cidade Santa dos judeus, cristãos e mu-çulmanos, possui muitos lugares sagrados para os cristãos e é a terceira cidade mais sagrada dos muçulmanos, depois de Meca e Medina. A cidade antiga, apesar de pequena (cerca de 0,9 km²), abriga os principais pontos religiosos, como a Esplanada das Mesquitas, o Muro das Lamentações, o Santo Sepúlcro, a Cúpula da Rocha e a Mesquita de Al-aqsa. Nos dias de hoje a cidade é di-vidida basicamente em quatro bairros: Armênio, Cristão, Judeu e Muçulmano. Essa divisão ocorreu a partir do século XIX.

A cidade é sede do governo de Israel, residência do presi-dente, repartições do governo, Suprema Corte e Parlamento. Is-rael, segundo a lei básica, declara a cidade, completa e unida ser sua capital, o que não é reconhecido pela comunidade interna-cional. Por isso, as embaixadas dos países, atendendo à resolução 478 do conselho de segurança da ONU, passaram a sua sede para Tel Aviv, principal centro financeiro do país. A Jordânia disputa com Israel a parte oriental da cidade.

Localização

Jerusalém está situada no sul do planalto da Judeia, onde está o Monte das Oliveiras, ao leste e o Monte Scopus, a nordes-te. A altitude máxima, 760 m, ocorre na cidade velha. A Grande Jerusalém é cercada por vales e leitos de rios secos. Os Vales de Cédron, Hinom e Tyropoeon se unem ao sul da cidade antiga.

O Vale do Cédron segue para o leste da Cidade Velha e di-vide o Monte das Oliveiras a partir da cidade propriamente dita. Ao longo do lado sul da antiga Jerusalém está o vale do Hinom, uma escarpa íngrime e esburacada, sempre associado à ideia de Geena, ou “Inferno”, em hebraico. O Vale de Tyropoeon começa na região noroeste, próximo ao Portão de Damasco, dirige-se ao sudoeste através do centro da Cidade Velha e para baixo até o reservatório de Siloé. A parte inferior é dividida em duas colinas, o Monte do Templo, no leste, e o resto da cidade no oeste.

O abastecimento de água é uma notória dificuldade desde os tempos antigos. Essa é a razão de tantos artifícios, como aque-dutos, túneis, reservatórios e cisternas. Jerusalém está localizada na região central do país, a 60 quilômteros ao leste de Tel Aviv e do Mar Mediterrâneo. No lado oposto da cidade está o Mar Morto, a cerca de 35 km de distância.

Clima

O clima é mediterrânico, com verões quentes e secos e in-vernos frescos e chuvosos. A queda de neve é rara — em torno de uma ou duas vezes a cada inverno.

A temperatura média no inverno é 8 °C, em janeiro e no verão, em julho e agosto, 23 °C. As variações de temperatura en-tre o dia e a noite são grandes, esfriando muito à noite, mesmo nas épocas de verão. O índice de precipitação pluviométrica mé-dio anual fica em torno de 590 mm, sendo o período chuvoso em outubro e maio.

348

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

349

Demografia

A população da cidade, segundo o senso de 2007, era de 732.100 habitantes. Desses, 64% eram judeus, 32% muçulmanos e 2% cristãos. A densidade demográfica era de 5.750,4 habitan-tes/ km². A porcentagem de judeus na cidade tem decrescido; o que foi atribuído a uma maior taxa de natalidade dos palestinos e a moradores judeus que deixaram a cidade. A taxa total de fe-cundidade em Jerusalém, 4,02, é superior à de Tel Aviv (1,98) e bem acima da média nacional de 2,90. O tamanho médio das 180.000 famílias de Jerusalém é de 3,8 pessoas.3

Economia

A economia de Jerusalém ainda tem forte relação com o turismo religioso, sendo os pontos mais visitados, o Muro das Lamentações e a Cidade Antiga. Hoje, é de entendimento geral que a cidade não pode continuar a viver só de turismo. As famí-lias com pessoas empregadas são 76,01% árabes e 66,8% judai-cas. A taxa de desemprego em Jerusalém é de 8,3%, pouco me-lhor que a média nacional de 9,0%. O número de pessoas abaixo da linha de pobreza chegou a crescer 40% em 2006. A renda per capita mensal foi de 1410 dólares, menor que em Tel Aviv.

Não é estimulada a instalação de indústria pesada em Je-rusalém. Nas imediações, somente 2,2% da área é dedicada a in-dústrias e infraestrutura. Essa é duas vezes maior em Tel Aviv e sete vezes em Haifa. Somente 8,5% da força de trabalho do distri-to de Jerusalém é empregada no setor de manufatura. O restante é: 17,9% na educação; 12,6% na saúde; 6,4% em comunidade e serviços sociais; 6,1% em hotéis e restaurantes e 8,2% na admi-nistração. Há uma tendência de empresas de alta tecnologia se-rem instaladas em Jerusalém, tendo chegado a oferecer 12.000 empregos em 2006. Existe um plano de expansão para o parque industrial, que prevê uma centena de novos negócios. O governo, centrado em Jerusalém, gera um grande número de empregos.

Transportes

O aeroporto mais próximo de Jerusalém é Atarot, situado entre Jerusalém e Ramallah. Foi usado para voos domésticos até ao seu fechamento em 2001. Hoje, está sob controle das Forças Armadas. O Aeroporto de Ben Gurion é o maior e mais movi-mentado, possuindo um fluxo anual de nove milhões de passa-geiros.

As linhas de Ônibus, locais e interurbanas, saem da Es-tação Central, na estrada de Jaffa, próximo à entrada ocidental de Jerusalém, pela Autoestrada nº1. Ônibus, carros particula-res e táxis continuam a ser meios de transportes importantes, mas existe ainda a Light Rail de Jerusalém, uma ferrovia capaz de atender a 200.000 passageiros por dia, possuindo cerca de 24 pontos de parada.Tambem importante é o trem de alta veloci-dade entre Jerusalém e Tel Aviv. A Via Rápida Begin é uma das maiores vias transversais norte-sul de Jerusalém; vai desde o lado ocidente da cidade, fundindo no norte com a Via 443, que conti-nua em direção a Tel Aviv. A Via 60 atravessa o centro da cidade perto da Linha Verde entre Jerusalém Leste e Oeste.

Educação

A Universidade Hebraica é constituída de três unidades em Jerusalém: um campus no Monte Scopus, um em Givat Ram e um campus médico no Hospital Hadassah. A Universidade de Al-Quds é principal universidade para os povos árabes e palesti-nos. Há, também, a Academia de Música e Dança de Jerusalém e a Academia de Arte e Design Bezalel cujos edifícios ficam no Campus da Universidade Hebraica. O Instituto de Tecnologia de Israel ministra Engenharia e outras matérias de alta Tecnologia, sendo uma das muitas de ensino tanto fundamental como supe-rior que inclui estudos seculares e religiosos.

350

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

351

Para além das escolas públicas, existem várias do sistema Haredi — judeus ortodoxos avessos a mudanças e adaptações dentro do judaísmo. Essas escolas não têm preparado seus alu-nos para os exames oficiais, Bagrut, porque o ensino secular não os atrai. O governo tem criado incentivos financeiros no intuito de atraí-los para que cheguem às universidades. Colégios para árabes em Jerusalém e em outras partes de Israel são criticados por oferecerem uma educação de qualidade inferior à provida aos israelenses judeus.

Cultura

Somada à religiosidade, Jerusalém apresenta tambem uma intensa vida cultural. O museu de Israel recebe um milhão de visitantes por ano. O Santuário de Livro, entre outras coisas, possui os pergaminhos do Mar Morto, descoberto na cavernas de Qumran. O Museu Rockefeller, localizado no lado leste de Jerusalém, foi o primeiro museu arqueológico do oriente médio; ele existe desde 1938, ainda durante o mandato britânico.

O Museu Islâmico no Monte do Templo, estabelecido em 1923, guarda muitos artefatos islâmicos, do menor Kohl cantil e manuscritos raros a colunas gigantes de mármore. Yad Vashem, o memorial nacional de Israel para as vítimas do holocausto, guarda a maior biblioteca do mundo de informações relacio-nadas ao holocausto, com estimados 100.000 livros e artigos. O complexo contém um museu de arte que explora o genocídio dos judeus através de exibições que focam em histórias pessoais de indivíduos e famílias mortas no holocausto e uma galeria de arte apresentando o trabalho de artistas que pereceram. Yad Vashem também relembra as 1.5 milhões de crianças judias assassinadas pelos nazistas.

A Orquestra Sinfônica de Israel, estabelecida nos anos 1940, se apresentou pelo mundo. Outros estabelecimentos de arte incluem o Centro Internacional de Convenções, próximo à entrada da cidade, onde a Orquestra Filarmônica de Israel se apresenta; a Cinemateca de Jerusalém, o Centro Gerard Behar, na parte baixa de Jerusalém; o Centro de Música de Jerusalém e o Centro Musical de Targ. O festival de Israel, com a apresentação de cantores locais e internacionais, tem ocorrido regularmente. O teatro de Jerusalém apresenta 150 concertos por ano. O Fes-tival de Cinema de Jerusalém tambem é realizado anualmente, com filmes locais e internacionais. O Teatro Nacional Palestino é um dos poucos centros de cultura árabe. Há, também, o

Al-Hoach, uma galeria de arte palestina.

Religião

Jerusalém tem um significado especial para as três reli-giões monoteístas: judaísmo, cristianismo e islamismo. Na cida-de há 1204 sinagogas, 158 igrejas e 73 mesquitas. A manutenção de uma coexistência pacífica não vem sendo fácil, pois alguns lu-gares são disputados como sagrados ao mesmo tempo por mais de uma religião — como, por exemplo, o Monte do Templo. Jeru-salém é sagrada para os judeus porque o Rei David a teria decla-rado sua capital no século X a.C. É sagrada para os muçulmanos porque acreditam ser o lugar onde o proféta Maomé teve sua ascenção aos céus para se encontrar com os profetas anteriores a ele. Semelhantemente, ela é sagrada também para os cristãos por ser o lugar em que viveu, pregou e foi crucificado Jesus Cristo.

Em Jerusalém foi construído o Templo de Salomão e o Se-gundo Templo, ambos destruídos. O Muro das Lamentações é a única edificação que sobrou do muro que cercava o Segundo Templo. O Santo dos Santos fica no próprio Monte do Templo. Esses últimos são os lugares mais sagrados para os judeus.

352

João Roberto Vasco Gonçalves

Igreja do Santo Sepulcro

Para os cristãos, talvez seja esse o local mais sagrado. Ain-da hoje, há certa controvérsia sobre o local da crucificação, Gól-gota, e o local do Santo Sepulcro. O Evangelho de João o des-creve como sendo localizado fora de Jerusalém, mas evidências arqueológicas recentes indicam que Gólgota fica a uma curta distância do muro da Cidade Antiga, dentro do confinamento dos dias de hoje. De qualquer forma, tem sido um local de pere-grinação dos mais visitados por cristãos pelos últimos dois mil anos. O Cenáculo é outro local sagrado para os cristãos. Acre-ditam ser o local da última ceia de Jesus. É localizado no Monte Sião, no mesmo prédio que sedia a Tumba de David.

Para os muçulmanos, Jerusalém é a terceira cidade mais santa do Islã, mas já foi a primeira, na antiguidade. Acreditam que a Pedra Fundamental, que fica hoje dentro da Cúpula da Rocha, foi o local da Noite de Ascensão do Profeta Maomé ao paraíso para encontrar-se com os profetas anteriores a ele. Além desse lugar, há também a Mesquita de Al-Aqsa (que significa: “A mais distante”). Creem que numa noite o profeta foi transporta-do, por milagre, de Meca para o monte do templo de Jerusalém, nesse local.

Capítulo V

História de Alexandria

No ano 322 a.C., Alexandre Magno venceu Dario III, rei dos persas, que dominava o Egito com mão de ferro. O povo egípcio o aclamou como libertador, até porque não o considera-vam estrangeiro, pois havia por ali grande quantidade de colô-nias gregas.

Alexandre III, mais tarde conhecido como Alexandre, o grande, ou Alexandre Magno, era oriundo da Macedônia antiga que conquistara sua hegemonia na Magna Grécia no reinado de seu pai Felipe II. Alexandre era culto, tendo sido educado por Aristóteles, o grande filósofo grego que fora discípulo de Platão e Sócrates. Da Macedônia, Alexandre levou seus exércitos até o Egito, vencendo os dominadores de então.

Alexandre fundou no delta do rio Nilo a cidade que foi chamada de Alexandria, em honra do seu nome. Localiza-se a oeste do delta, no istmo entre o Mar Mediterrâneo e o lago Ma-reótis, perto do braço canópio do rio Nilo. A escolha do lugar foi excelente, pois ficava imune às variações do rio, que, em determi-nado período do ano, inundava a várzea, mas ao mesmo tempo, suficientemente próximo dele para receber as mercadorias que vinham através dele em direção ao porto. Para isso, há um canal que liga o rio ao lago Mareótis e ao porto. Como a cidade ficava de frente para a ilha de Faros, contrataram o arquiteto Dinócates de Rodes para construir um dique de 1295 m de extensão unin-do esses dois pontos, o que permitiu a construção de dois portos: o Grande Porto e o Porto do Bom Regresso, a oeste.

354

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

355

O Farol de Alexandria foi construído na ilha de Faros (por isso o nome “Farol”), em 280 a.C. pelo arquiteto Sóstrato de Cnido. Possuía 120 m de altura. Servia principalmente para a orientação à navegação por emitir um facho de luz visto a 50 km de distância. Foi alimentado à lenha, depois, a gás acetileno pro-duzido pela reação do carbureto de cálcio com a água. Ademais, servia para previsões meteorológicas, direção do vento, informar as horas e, ainda, dispunha de alarme sonoro ouvido a grande distância para avisar sobre mau tempo. Foi o primeiro farol do mundo. Existiu até o ano de 1340, quando foi destruído por um terremoto.

Biblioteca de Alexandria

No século III a.C., durante o reinado de Ptolomeu I, foi construído um rico palácio de mármore com fontes, jardins e es-tátuas. Do outro lado do jardim, construiu o templo das Musas, ou Museum. A ideia era concentrar ali todo o saber da época. O museu possuia uma enorme biblioteca cuja proposta era conter um exemplar de cada documento escrito do mundo. Seu primei-ro organizador foi Demétrio de Faleros. Essa biblioteca era depo-sitária de obras de enorme importância para a humanidade, tais como obras de geometria, trigonometria, astronomia, medicina, literatura, idiomas, etc.

Frequentaram esssa biblioteca muitos estudiosos famosos da história — Euclides, Aristarco de Samos, Arquimedes, Calí-maco, Eratóstenes, Galeno, Hipátia, Herófilo, Ptolomeu e outros. Muitos trabalhos científicos e experiências históricas foram fei-tas ali. Na verdade, a Biblioteca de Alexandria seria o que hoje chamamos de universidade.

Segundo a história registra, foi ali que 72 sábios judeus traduziram as sagradas Escrituras do hebraico para o grego, fi-

cando essa tradução conhecida como “Septuaginta”, em referên-cia aos 72 tradutores.

Orientados por mapas antigos, localizaram onde teria sido a antiga bibioteca, próximo à parte que resistira às depredações (voluntárias ou não), invasões militares, incêndios, terremotos e afins. Em meio a um monte de pedras de uma edificação muito antiga em ruínas, havia uma abertura que lembrava uma gruta com um amontoado de pedras no centro, tendo ao fundo uma abertura — início de uma caverna que se alongava, aprofundava e se distribuia em vários túneis. Era semelhante à descrição mi-tológica do labirinto da ilha de Creta, que o rei Minos mandara construir para guardar tesouros.

Ficava, então, mais difícil, e o risco de se perder naque-le emaranhado era uma possibilidade real. Pedro se lembrou daquele mapa que pegara no pote, local onde também estavam escritas as frases. Fazendo uma inspeção minusciosa com uma lanterna, verificou que na entrada de cada túnel, na face lateral direita, à cerca de 1,5 m de altura, havia uma inscrição escavada na rocha que nada mais era do que aquelas notações do mapa. Se isso fosse um padrão, conforme concluíram depois, ficava mais fácil explorar.

Outra curiosidade era que as paredes dos túneis, que avançavam vários metros adiante, tinham uma constituição pa-recida com a daquela gruta que viram pela primeira vez no Mon-te Urubu. Além de camadas protetoras (à prova de tremores e radiações) possuíam luminescência, como se a claridade do sol exterior, de alguma forma, fosse transmitida por veios de rocha translúcidas e retida ali, além de toda a extensão interna ser reco-berta por uma camada de algo que remetia a uma tinta fosfores-cente. De fato, era mesmo um plâncton de algas microscópicas com essa propriedade, típicas de algumas cavernas. Isso permitia haver alguma luminosidade quando o sol se escondia.

356

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

357

Consulta ao mapa

Era curioso. O mapa era bastante tosco, parecia ter sido desenhado à mão livre e às pressas. Quem o fizera, deveria tê-lo copiado do projeto original e, provavelmente, tenha sido surpre-endido ou atacado por alguém que ateou fogo em algum lugar onde ele esteve com intuito de destruir todas as referências. Pro-vavelmente, à duras penas, deve ter salvado pelo menos aquele mapa, única forma rápida de entrar no labirinto, acessar o ende-reço certo que procurava e conseguir sair de lá.

Observando de modo geral, o traçado do labirinto lem-brava a figura de um besouro do tipo escaravelho estilizado, o que sugeria a ideia de que quem fizera o projeto possuía a cultura do Antigo Egito.

Notações sobre o desenho:

O escaravelho é um tipo de besouro que vive a revirar o esterco. Ali, capta resíduos e os empurra e aglutina até torná-lo de formato esférico. Em seguida, ele o empurra até seu ninho, onde abriga seus ovos. Esse globo foi relacionado ao sol, deus egípcio; os ovos, à fertilidade, à reprodução e à vida e o renascer da vida a partir de algo no último estágio de degradação, consi-derado divino — como a semente, que morre para nascer uma nova árvore.

Devido a isso, o escaravelho era o amuleto preferido dos antigos egípcios. Era associado à renovação, ao renascimento e à ressurreição. Quem trouxesse consigo esse amuleto pleiteava continuar vivo, e quem fosse enterrado com ele pleiteava renas-cer.

Era um símbolo tão importante que constava dos selos do rei, e das vestes dos defuntos, que também tinham seus corações substituídos por esse amuleto feito de pedra.

O desenho geral mostrava os caminhos internos (ou tú-neis), e as paredes à sua volta formavam ilhas, tudo devidamente indicado ou endereçado. Os endereços das ramificações dos tú-neis pareciam referir-se à serventia e ao conteúdo. Observando o traçado, verificaram também que existia um caminho único para se chegar até o recinto principal, onde estariam os tesouros. No entanto, a lista do conteúdo de cada ilha despertava o interesse de qualquer pesquisador de não perder nenhum detalhe, e, por isso, visitar ponto por ponto para conhecer o conteúdo geral.

358

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

359

A1 - Livros antigos 1B1 - Livros antigos 2A2 - Banco Mineral 1B2 - Banco Mineral 2A3 - Banco Genético Animal B3 - Banco Genético VegetalA4 - Euclides, Aristarco, ArquimedesB4 - Clímaco, Eratóstenes, GalenoA5 - Hipátia, Herófilo, PtolomeuB5 - Biblioteca das 7 Artes e CiênciasC - Arca da Aliança

Mausoleu dos Patriarcas:

A-Adão, S-Set, E-Enos, C-Cainan, M-Mahalabel, J-Ja-red, N-Noé, A-Abraão, I-Izaac, J-Jacó, D-David, S-Salomão.

Paschoal e Pedro fizeram um planejamento de visita ao local seguindo as indicações do mapa de modo a não perder ne-nhum detalhe importante. Embora estivesse determinado o ca-minho para chegar à parte principal, resolveram começar em or-dem crescente a partir da entrada. Assim, passaram a examinar o conteúdo das “ilhas” A1 e B1.

— Veja só, Paschoal, toda a extensão das paredes está re-pleta de escaninhos. Cada um deles contém muitos livros em forma de rolos de papiro e um tipo de tecido primitivo.

— Sim, Pedro. Eu observei também que há um tipo de identificação ou endereçamento de cada escaninho dentro do conjunto, talvez para identificar melhor e mais rapidamente o assunto que se quer localizar. A ideia seguinte é que houvesse

algum catálogo ou índice, indicando o conteúdo e os respectivos endereços.

— Veja, Paschoal, é exatamente o que eu acabo de encon-trar na primeira posição, à esquerda, da primeira fileira de baixo. É bom que guardemos esse conceito, pois, se isso for um padrão organizacional, em todas as ilhas encontraremos um desses com os endereços e o conteúdo de cada livro nessa mesma posição. Isso adiantará bastante o trabalho.

— Pedro, eu proponho que façamos uma verificação geral de tudo que existe em cada “ilha” mediante a consulta a esses catálogos. A seguir, analisemos os pontos mais interessantes para o nosso trabalho. Assim, gastaremos menos tempo para ter uma visão geral do todo.

— Sim, Paschoal, continuaremos a seguir as ilhas na or-dem crescente, sempre examinando os livros índices e consul-tando alguns específicos que julgarmos mais interessantes.

Desse modo, verificaram no índice o conteúdo das “ilhas” A1 e B1 e fizeram uma verificação rápida nos livros. Na “ilha” A1 estavam todos os livros antigos da Bíblia, incluindo os que não foram eleitos para o cânone oficial, e mais alguns livros an-tigos escrito em hebraico e grego — e outros de algumas línguas antigas que ainda precisavam ser melhor estudados. Na ilha B1 apareciam livros referidos como receituários de manufatura, que ensinavam a produzir perfumes, venenos, remédios, poções, be-bidas, sabões, cremes, tintas e corantes de um modo geral. Igual-mente, ensinavam suas aplicações, processos de mumificação, tratamentos médicos, construção de edifícios, construção de ca-nais de irrigação, construção de açudes, construção de barcos a vela e produtos navais de um modo geral, construção de silos e métodos de armazenamento, construção de carros de transporte e de combate e outros. Era realmente uma universidade.

360

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

361

Nas ilhas A2 e B2 encontraram uma espécie de museu con-tendo amostras minerais diversas. Cada escaninho possuía potes contendo as amostras. Cada pote era acompanhado de uma ficha de identificação com o nome escrito em hebraico e grego antigo, acompanhado de um tipo de código de identificação específico que provavelmente estava no índice. Como ocorria nas ilhas exa-minadas anteriormente, havia no primeiro escaninho da parte de baixo e à esquerda um livro índice, e em outros adjacentes um completo catálogo com todas as informações sobre o conte-údo de cada pote, muitos deles, completamente desconhecidos ou dos quais só se ouvira falar alguma vez na vida em estudos específicos.

Na ilha A3 também encontraram o livro índice e os livros catálogo, todos completos. Verificaram tratar-se de um banco genético animal. Havia uma particularidade: além da descrição e identificação por um código específico, havia outro que pare-cia referir-se ao DNA. O conteúdo dos potes era seco, sugerindo que talvez possuíssem o conhecimento de clonagem de seres a partir de células específicas. Muitas eram as espécies de animais ali contidas, desde alguns microscópicos até os enormes seres conhecidos, além de muitos desconhecidos.

Na ilha B3 encontraram uma organização semelhante à que fora observada para o reino animal. Além de material genéti-co seco, de diversas texturas, encontraram, também sementes di-versas e vários outros tipos de amostras, desde as algas, líquenes e fungos microscópicos até as mais frondosas arvores das mais variadas espécies conhecidas — e muitas desconhecidas. Valia, ali, a sugestão de que conheciam o processo de reprodução das espécies por métodos especiais em laboratório. Num dos livros encontrados, havia o conhecimento de produção de seres híbri-dos e manipulação genética para melhorar suas características, tornando-os mais produtivos, mais resistentes às doenças e pra-gas gerais, com maior conteúdo energético, acentuando odores e

sabores de produtos alimentícios. Algumas propriedades, como eliminação de caroços, aumento de polpa ou líquido e muitas outras coisas que só foram conhecidas nos últimos anos pela ci-vilização atual, também estavam ali.

Na ilha A4, consultando o livro índice e, depois, os livros específicos indicados, viram ali os estudos do grande sábio Eucli-des, do século IV a.C., dedicados à matemática, geometria e até ótica, cujos conceitos fundamentam nossos conhecimentos sobre o assunto até nossos dias. Em escaninhos seguintes, os estudos do astrônomo Aristarco de Samos, do século III a.C., precursor da teoria do heliocentrismo — segundo a qual os planetas giram em torno do sol. Num desses estudos, mediante a trigonome-tria, tentava calcular a distância entre o sol e a lua, Assim como o tamanho desses corpos celestes. Semelhantemente, vinham os escaninhos com os estudos do grande Arquimedes, matemático, engenheiro, inventor e pesquisador com enormes descobertas científicas, como as noções de peso específico ou densidade dos materiais, armas de guerra avançadas com a utilização de espe-lhos concentradores de raios solares, catapultas e outras. Foram igualmente notórios seus estudos matemáticos que culminaram com a determinação da constante pi, obtida quando se divide a circunferência pelo diâmetro num circulo.

Na ilha B4 encontraram nos primeiros escaninhos os es-tudos de Clímaco, que viveu entre 305 e 240 a.C., um jogo de 120 rolos contendo todos os conceitos sobre as bibliotecas, sua orga-nização, sua indexação e controle. Ali estava o catálogo completo de tudo que havia naquela biblioteca, minuciosamente relatado e especificado com todos os índices e códigos. Realmente, uma perfeição organizacional.

Nos escaninhos a seguir vinham os estudos de Eratóstenes de Polímata, sábio que dominava muitos conhecimentos cientí-ficos da época e um dos primeiros bibliotecários de Alexandria,

362

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

363

tendo vivido no século III a.C. Num dos estudos constantes, num daqueles livros, aparecia a famosa experiência que culmi-nou com a determinação do exato comprimento da circunferên-cia da Terra, utilizando cálculos trigonométricos e medindo a distância entre pontos situados naquela cidade e na cidade vi-zinha. Segundo informações que captou na época num livro de curiosidades, a imagem do sol dentro de um poço ocorrida com o sol a pino aparecia na cidade seguinte algum tempo após a que se observava ali. Muito engenhoso, seu cálculo vale até hoje, e, curiosamente, naquela época, o único aparelho que havia era a cabeça do sábio.

Nos escaninhos seguintes apareciam os livros do sábio Ga-leno, que viveu no século II da era atual, contendo estudos sobre a medicina e tudo que se sabia a respeito naquela época, estando o conteúdo distribuído em 15 rolos. Aqueles conhecimentos ser-viram de referência para praticamente tudo que se sabia e se fazia até vários séculos adiante. Na ilha A5, por sua vez, depararam-se com os primeiros escaninhos dos estudos de uma grande sábia chamada Hipátia, que vivera no século IV e dominava os conhe-cimentos de astronomia, matemática e filosofia, tendo, inclusive, dirigido a Biblioteca de Alexandria em sua época. Segundo os registros históricos, ela teria sido assassinada por cristãos num ato de intolerância religiosa, pelo simples fato de ela ser pagã.

Nos escaninhos seguintes, encontraram os rolos referidos a Herófilo, que teria sido um grande médico e pesquisador. Foi o primeiro a revelar em seus estudos que o centro de toda a inteli-gência, sentimentos e emoções, de modo geral, se encontravam no cérebro, e não no coração, como se acreditava na época — e como até hoje aparece em sentido figurado quando nos referi-mos a emoções e entendimentos. Nos últimos escaninhos dessa ilha, encontraram os livros de Ptolomeu, que viveu no século II e que defendia a teoria do geocentrismo, segundo a qual a Terra era fixa e tudo girava ao seu redor. Todas as suas referências ge-

ográficas e astronômicas foram aceitas sem questionamentos até os tempos de Kepler, Galileu e Newton. Na época da Inquisição, Galileu, defensor do heliocentrismo, chegou a ser condenado por defender posições contrárias aos ensinamentos de Ptolomeu. A teoria do heliocentrismo ficou, no entanto, a de Ptolomeu não atrapalhava em nada às orientações as quais pretendia. Apenas o seu referencial era diferente, ou seja, não importava quem estava em movimento, caso se tomasse como referência onde estava lo-calizado o observador.

Na ilha B5, a última que Paschoal e Pedro visitaram, eles encontraram os livros sobre as sete ciências (ou artes liberais) do mundo antigo, cuja classificação provavelmente tenha sido feita por Aristóteles poucos séculos antes da era atual. Arquimedes disse: “Ordenar é o ofício dos sábios”. Provavelmente, ele deve ter ordenado todo o conhecimento disponível na época conforme as prioridades que julgava dessas artes e ciências em relação à sua utilidade à humanidade. Portanto, ele classificoua dialética, que propiciava a percepção entre o verdadeiro e o falso; a retórica, que ensinava como falar e argumentar para convencer; a música, estudos do som, da voz, do canto e dos instrumentos musicais; a aritmética, que estuda os cálculos com números; a geometria, que ensina as medidas sobre a terra, objetos, acidentes geográ-ficos, daí evoluindo para a construção de edifícios; a gramática, que ensina a falar e escrever corretamente e a astronomia, que estuda a trajetória e os ciclos do sol, da lua e dos demais corpos celestes, propiciando a construção de calendários e ajudando na demarcação da história.

Paschoal e Pedro vasculharam aquele imenso material. Eram livros de muitos autores da antiguidade. Na verdade, eles são a base de tudo que dominamos hoje. Acharam tudo muito interessante, e a forma como tudo fora catalogado arrumado e guardado era impressionante. Somente grandes bibliotecários e

364

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

365

museólogos do quilate de Clímaco, Eratóstenes e Hipátia conse-guiriam conceber e colocar em prática tudo aquilo.

Faltava agora a nave principal, cuja visita eles ansiavam por fazer.

— Pedro, depois de tantos dias, finalmente nós consegui-mos, com o auxilio do mapa, cobrir toda a extensão dos túneis e examinar o material contido em cada ilha. Foi um estupendo trabalho, mas, afinal, vencemos mais esta etapa.

— Sim, Paschoal. Agora só nos falta a nave principal, que embora conheçamos o percurso correto para chegar lá sem nos perder, deixamos para o final.

— Claro, não poderíamos deixar de verificar cada parte, para que tivéssemos a ideia do todo. Agora, portanto, vamos à etapa final.

No dia seguinte, ainda muito cedo, começaram a última visita. Agora que já haviam passado alguns dias se orientando pelos túneis através do mapa, não parecia tão complicado nem assustador avançar túneis adentro até chegar à nave ou recinto principal daquele labirinto. Depois do último e curto corredor, de número 13, penetraram no recinto em que — pretensamente — estaria o grande tesouro da humanidade. Era um ambiente circular. Simetricamente espaçadas estavam lápides com as ini-ciais dos nomes dos 12 patriarcas, gravadas em hebraico e grego antigo, numa disposição em sentido anti-horário, cujos nomes eram: Adão, Set, Enos, Cainan, Mahalabel, Jared, Noé, Abraão, Isaac, Jacob, David e Salomão. Observando os nomes, faltavam alguns na ordem sucessiva genealógica, parecendo que alguns nomes haviam sido pulados e cujos significados não lhes era pos-sível determinar. Também não estavam ali nomes, como Enoque, Elias, Melquisedeque e outros importantes na história, embora constassem referências a eles nos livros deuterocanônicos. O

Gênesis (canônico) o Livro de Adão e outros fazem referência à gruta mortuária como caverna dos tesouros. Parece vir daquela época o costume de guardar os falecidos em locais apropriados e assegurar sua integridade, além de respeitar a sua memória e lamentar a sua perda.

Não sabiam se de fato sob aquelas lápides estavam real-mente os restos mortais daqueles aos quais se referiam e sob qual pretexto haviam decidido por ajuntarem-nos num único recinto. E não sabiam se sob aquelas lápides haveria algo mais de rele-vante para a história. De qualquer modo, o que ninguém duvida-ria é que o grande tesouro da humanidade era o conhecimento guardado através de gerações em sua memória, ou seja, a própria história do desenvolvimento humano. Faltava, então, a verifica-ção final.

No centro do recinto, num espaço igualmente circular, se-parado do restante por finas cortinas brancas já encardidas que pendiam do teto, estaria algo que realmente era o final de toda a história. Ao descerrar as cortinas bipartidas, tiveram a suntuosa visão e não puderam deixar de exclamar em alta voz: “A Arca da Aliança!”. Realmente, ela tinha a aparência que mais se aproxi-mava à descrição bíblica: Era uma arca de madeira de acácia, for-rada com uma fina folha de ouro por dentro e por fora, com duas argolas de ouro onde se podia encaixar os varões para transporte. Sobre a tampa, os dois querubins de ouro e o propiciatório donde falaria o senhor. Dentro, a cópia da Lei, pois a primeira Moisés quebrara ao ver o povo cultuando o bezerro de ouro. Outrossim, havia ali a vara de Arão que florescera depois de seca. Finalmen-te, havia ali o pote de ouro com o maná.

Aquela, se não fosse a original, seria uma cópia fiel do símbolo mais importante e antigo da humanidade, que o profeta Jeremias escondera no Nebo, que, segundo informação de um

Capítulo VI

Estudo do material colhido e discussão final

— Pedro, o que você pensa a respeito do grande tesouro?

— Paschoal, essa é uma ideia que carece de explicação e precisa ser avaliada em maior profundidade. A ideia geral de um tesouro é algo de valor incalculável ou inestimável. Partindo-se da ideia de um valor material e um raciocínio utilitário, esse va-lor serviria como meio de aquisição de tudo que atenda a algu-ma necessidade física ou psicológica. Em outras palavras, poder adquirir um imóvel, um meio de transporte, ser bem quisto por possuir riquezas, comprar os serviços de alguém, contratar um guarda-costas para proteger-se. Poder, poder, poder, ou seja, algo relacionado ao poder. Mas o poder também tem seu lado noci-vo: por ele mata-se, morre-se, o poder gera ambição, o poder corrompe, o poder gera a guerra, o poder semeia a discórdia, o poder pode todo o seu inverso ou em última análise se auto destruir.

Olhando o lado não material, o conhecimento seria poder ou um valor. Assim, um grande conhecimento seria um tesouro. A grande diferença entre o conhecimento e um bem material é que o conhecimento não pode ser subtraído de ninguém, além de ser conversível em bem material sem seu dispêndio defini-tivo, ou seja, utiliza-se o conhecimento para conseguir o bem material, mas ele não precisa ser dado como moeda de troca: permanece-se com ele. No Evangelho segundo Mateus, Cristo expressou muito bem essa ideia quando disse: “Não acumuleis

rabino versado em expressões hebraicas antigas, poderia ser um local incerto ou desconhecido. Essa atitude seria uma prevenção, pois temia que o invasor Nabucodonosor, rei da babilônia, a des-truísse, talvez por medo, achando que a destruição era o único meio de se livrar da maldição. A arca, talvez por conter símbolos e escritos em letras estranhas, venerada com todo o respeito e protegida com todo o ardor, causava muito medo nos povos ini-migos dos judeus, que a tinham como um objeto de bruxaria que atraía a maldição e a ira dos deuses.

Seja qual for a história, ela estava ali diante deles: a origi-nal ou uma cópia exata consagrada como objeto de veneração e lembrança mais antiga e notória da história da humanidade. Cerraram as cortinas e deixaram tudo ali da forma como a ha-viam encontrado, adormecido no sono dos séculos. Saíram com a sensação daquela parte importante da missão cumprida. Pode-riam, naquele momento, fazer o caminho de volta para a univer-sidade e tentar colocar as ideias em ordem, discutir tudo profun-damente e tentar escrever algum documentário.

Moshê e João estiveram ali presentes o tempo todo, mas, dessa vez, não apareceram. Ao saírem dali, não deixaram de co-mentar as qualidades dos escolhidos, agora seus irmãos e tão graduados quanto eles na confraria. Sua integridade e sua boa índole eram inquestionáveis. Eles sempre preservavam todo o material que encontravam, cuidavam para deixá-lo totalmente oculto e camuflar os caminhos de acesso. Eram membros natos da confraria, só fora necessário encontrá-los e lapidá-los conve-nientemente para realçar o seu brilho. Sim, mais uma vez, eles haviam cumprido sua tarefa com êxito: haviam identificado dois novos membros e os inserido no seio da confraria. Missão cum-prida.

368

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

369

vossos tesouros na terra onde os ladrões desenterram e roubam”. Diante de toda essa análise, a biblioteca de Alexandria e sua pro-posta de abarcar todo o conhecimento possível, seria um verda-deiro tesouro.

— Pedro, você acha que a Arca da Aliança em si seria um grande tesouro?

— Paschoal, penso que sim, nos seguintes termos: ela continha as Escrituras, símbolo do alimento espiritual e fonte de todo o conhecimento capaz de reger um povo. Também possuía o pote com o maná, símbolo do alimento material doado por Deus, que, diante da escassez total, alimentou seu povo. Possuía, também, a vara de Arão, símbolo da justiça. A capacidade dos ensinamentos ali contidos, de aglutinar um povo e mantê-lo coe-so, mesmo na ausência de uma pátria física, mesmo no cativeiro, no cisma, nas diásporas, eram atributos da Arca. Tudo isso é de um valor inestimável, um verdadeiro tesouro; infinitamente su-perior a qualquer valor material por maior que fosse.

— Pedro, você acha que aquela arca é realmente a origi-nal?

— Paschoal, não há evidência capaz de sustentar essa afir-mação. Pode ser ou não.

— Na hipótese de ter sido real, você acha que ela teria sido levada diretamente de Jerusalém para Alexandria na época da invasão de Nabucodonosor?

— Muito provavelmente não, pois a invasão de Nabucodo-nosor ocorreu em 586 a.C., muito antes da construção da Biblio-teca de Alexandria. A não ser que fosse colocada numa caverna em local de difícil acesso na ilha de Faros. A ideia mais aceitável é que tenha ficado com Jeremias numa masmorra no subsolo do próprio palácio em Jerusalém, onde, segundo consta, ele teria

vivido escondido por bastante tempo. Depois de muito tempo adiante, um de seus seguidores teria feito a transposição. Nesses termos, Jeremias teria sido o criador e primeiro Grão-mestre da Confraria do Torah Moshê.

— Pedro, como você avalia aquele pretenso banco genéti-co, caso seja mesmo?

— Paschoal, eu acho que, se for isso mesmo, conforme você mesmo menciona, seria uma versão mais exata e atual da alegórica Arca de Noé. O sentido seria o mesmo, a preservação das espécies, caso algum dia tudo fosse destruído. Nesse caso, a civilização responsável por essa reabilitação deveria possuir os conhecimentos sobre genética e reprodução em laboratório ne-cessários e suficientes para essa tarefa, caso contrário, não teria nenhuma utilidade.

— Pedro, você acha que todos aqueles livros dos sábios da antiguidade e suas experiências e descobertas estavam ali guar-dadas na qualidade de segredos ou conhecimentos ocultos que precisavam ser protegidos?

— Paschoal, fazia parte da proposta da Biblioteca de Ale-xandria concentrar ali todo o saber disponível na época, porém muito mais como uma referência do que como propriamente um segredo. No entanto, a necessidade de proteger os documentos contra as depredações era uma necessidade real. Prova disso é que essa biblioteca sofreu vários incêndios e outras depredações, voluntárias ou não.

— E sobre todo aquele material referente às sete artes (ou ciências) da antiguidade?

— Penso que quase a totalidade daqueles livros veio de várias partes da Magna Grécia, algumas junto com o pessoal de Alexandre, outras mandadas vir de lá pela sua ordem, tarefa con-fiada ao primeiro bibliotecário.

370

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

371

— Pedro, tenho algumas questões que me afligem profun-damente como perguntas sem respostas ou respostas não con-vincentes, de modo que nem ao menos consigo formular uma te-oria. Diante disso, eu lhe pergunto: você acha que todos aqueles livros bíblicos deuterocanônicos são autênticos? Suas afirmações são corretas? Quem consta como autor será mesmo quem escre-veu? Onde o autor buscou aqueles conhecimentos? Esses conhe-cimentos são válidos e reais ou não passam de um punhado de ideias inconsistentes, conjeturas, suposições e falsas deduções?

— Paschoal, eu penso em termos de referências a serem melhor estudadas. Da mesma forma como acontece com os li-vros canônicos, eles sofrem dos mesmos problemas. São eles: afirmações sem provas evidentes, afirmações sujeitas à exegese de cada estudioso, imprecisões, inconsistências, ambiguidades, dificuldades de ordem semântica, épocas e estágios de desenvol-vimentos diferentes, de transliterações e traduções, etc. Seria ex-tremamente difícil construir uma teoria com total exatidão. As questões básicas permanecem inexplicadas: quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?

— E quanto ao grande segredo oculto a sete chaves e que exige a preservação?

— É uma questão um tanto subjetiva. Os segredos, de certa forma, possuem prazos de validade, pois se deterioram à medida que o desenvolvimento humano avança. Muitos grandes segredos antigos são hoje óbvios e de domínio geral, além de vá-rios já estarem completamente defasados ou ultrapassados. Seu valor é praticamente histórico.

— Mas e aquele pretenso segredo bombástico que, se re-velado, poderia causar um verdadeiro caos à ordem das coisas atuais?

— No contexto atual, não sei se realmente existe algum que tivesse esse efeito tão devastador. Claro que algo que pudes-se mudar a ordem natural vigente poderia causar certa convul-são social, revolta, descrença, desânimo, etc. Mas creio que se-ria passageiro, em termos. No atual estágio de desenvolvimento humano, o impacto seria menor que em épocas anteriores. Por outro lado, as nações hoje enfrentam tantos problemas que estão praticamente na esfera fisiológica, pois são questões como nutri-ção, saneamento básico, saúde e todos aqueles levados em con-sideração no IDH — mal podendo cuidar de suas necessidades básicas. Na prática, ofuscaria qualquer outra questão de cunho mais elevado. Ainda assim, observa-se hoje que a ignorância é mais confortável do que o saber. Em outros termos, as pessoas não sabem e fazem questão de não saber para não ter de arcar com o ônus do conhecimento.

Paschoal tinha suas próprias ideias sobre tudo aquilo, mas fazia suas perguntas a Pedro na quase certeza de poder adivinhar suas respostas. Na verdade, gostava muito de ouvir suas explana-ções simples e concisas, oriundas de uma capacidade de análise espantosa e organização de raciocínio, seguidas de uma brilhan-te síntese. A sintonia entre eles era tal que era como se roubasse suas próprias respostas.

— Pedro, Você acha que concluímos algo de útil, com uma resposta definitiva e satisfatória ou voltamos à estaca zero?

— Paschoal, lamentavelmente, eu também não tenho essa resposta. Na verdade, o meu sentimento hoje é que o mundo é uma grande pergunta sem resposta.

— Então, vamos tratar de conceber um meio de dizer tudo isso na conclusão dos nossos estudos. O que você colocaria no fechamento do trabalho?

372

João Roberto Vasco Gonçalves

Capítulo VII

Os tesouros da confraria

A confraria recebeu seu relatório da parte de Moshê e João informando que levaram a termo suas tarefas e aqueles eram mesmo os membros enviados de Deus pelas mãos do destino para serem os novos membros. Missão cumprida, portanto.

Paschoal e Pedro receberam novo convite para uma reu-nião social na confraria. No dia e hora marcada, com a costumei-ra pontualidade que os caracterizava, compareceram.

Foram recebidos festivamente e receberam sua nova co-menda. A pedra de suas estrelas mudou para a cor amarela, o grau imediatamente superior, o penúltimo da escala da confra-ria. Agora, não havia mais nenhum segredo diante deles. Todos os anais da confraria, desde os mais remotos tempos, estavam disponíveis para eles, e era sua obrigação estudá-los profunda-mente e tentar produzir mais resultados, avançar e tentar evoluir aqueles conhecimentos. Os profundos conhecimentos específi-cos que possuíam e todo aquele adquirido nas suas andanças, análises, pesquisas e sínteses, poderia ser de grande valia para a confraria. Doravante, essa seria a sua missão.

Concluída a calorosa recepção e a noite festiva, os dias subsequentes foram de muito trabalho de pesquisa de todo ma-terial constante dos anais da confraria.

O exame da documentação antiga e a comparação de seu conteúdo com tudo que viram e pesquisaram era coincidente. O grande tesouro era mesmo o conhecimento. Quanto a revelação

— A menos que consigamos mais alguma informação pal-pável que explique cabal e definitivamente todas as questões que formulamos até agora, o que acho que dificilmente ocorrerá, eu colocaria exatamente a única verdade a que cheguei e escreveria: “Por tudo que vi, ouvi e estudei, concluo que o mundo é uma grande pergunta sem resposta”.

374

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

375

ser bombástica dependia muito do contexto em que aconteces-se a revelação, do tempo, do estagio cultural, da receptividade. Ali também havia a dúvida sobre a autenticidade da arca, mas igualmente informava que independentemente disso, sua vali-dade como símbolo e como ensinamento era inquestionável. Os personagens, prováveis antigos Grão-mestres da confraria que constavam nos registros, igualmente, pareciam coincidir com os de suas deduções pós análises.

Os grandes pesquisadores antigos da confraria também achavam, como eles, que a ignorância é mais confortável do que o saber. Em outros termos, as pessoas não sabem e fazem questão de não saber para não terem de arcar com o ônus do conhecimento. Por isso, muitas pessoas nunca questionam nada e preferem aceitar tudo como vem sendo transmitido. Também acharam até então que as perguntas existenciais básicas ainda es-tavam sem resposta.

Além disso, nos anais, nada afirmava com cem por cen-to de certeza que os livros deuterocanônicos eram autênticos, se o seu conteúdo realmente tinha algum valor científico, se eram confiáveis ou não, se alguns deles deveriam fazer parte do câ-none oficial, em sua opinião. Se sua comparação com os livros canônicos de mesmo assunto era divergente ou de alguma forma coincidente, embora pudessem não ser à primeira vista. Então, não puderam deixar de acrescentar no resultado dos seus estu-dos a conclusão a que chegaram no diálogo que tiveram: “Da mesma forma como acontece com os livros canônicos, esses so-frem dos mesmos problemas: afirmações sem provas evidentes, afirmações sujeitas a exegese de cada estudioso, imprecisões, in-consistências, ambiguidades, dificuldades de ordem semântica, criação em épocas e estágios de desenvolvimentos diferentes, alem de transliterações e traduções. Seria extremamente difícil construir uma teoria com total exatidão”.

Seus estudos continuariam ainda por tempo indetermina-do e sempre à espera de fatos novos a serem pesquisados e ana-lisados. Os estudos e as buscas incessantes da confraria tinham uma razão especial: a falta de alguns, na verdade, muitos docu-mentos em seus anais, a respeito dos quais havia apenas registros e referências completas. Em dois momentos distintos da história eles desapareceram. Na primeira, quando Jeremias escondeu a Arca da Aliança, com medo de sua destruição por Nabucodono-sor, parecem ter omitido propositadamente todo o restante que já havia na época. Possivelmente, as próprias tábuas da Lei con-tinham referências a esses de forma cifrada. Mesmo assim, ainda não estariam lá os que foram escritos depois em locais e línguas diferentes, que alguém recolheu e deu um jeito de juntar aos que já haviam.

Por outro lado, não era possível saber com certeza se aque-les documentos encontrados nos túneis subterrâneos de Alexan-dria eram os originais ou foram transcritos e traduzidos de lín-guas muito antigas como as pré-Babilônicas, o próprio hebraico antigo, e várias outras sob o pretexto de padronização, uniformi-zação linguística, atualização e facilidade de compreensão. Isso poderia ser também um enorme fator de inclusão de erros im-portantes, capazes de desvirtuar completamente o sentido, a in-terpretação e a real compreensão das coisas. Na segunda, um dos sábios dedicados a tradução das sagradas escrituras do hebraico para o grego detinha o segredo da localização e conseguiu buscá-lo, e, depois de usados, encarregou-se de novamente ocultá-los. Mesmo assim, só passaram para o grego, confeccionando, en-tão, a septuaginta, os textos em hebraico. Os outros escritos em aramaico, siríaco, língua copta e outras mais antigas não foram traduzidas para o grego, não fizeram parte da septuaginta e fi-caram fora do cânone oficial. Isso aconteceu provavelmente em 325 d.C. Provavelmente, Constantino ordenou que continuasse

376

João Roberto Vasco Gonçalves

oculto e que esse único detentor do segredo não fosse conhecido. Depois, esse tal desapareceu. Provavelmente, foi eliminado como queima de arquivo. A partir desse ponto, a cortina negra do pas-sado encobriu esse segredo. Ninguém sabe exatamente quem o guardou ou onde. O próprio Constantino pode, antes de morrer, tê-lo confiado a alguém e lhe passado a missão de guardião. Mais tarde, nas sucessivas fugas durante as perseguições, tudo isso fi-cou oculto em alguma parte e, até hoje, ninguém sabe exatamen-te. Há somente poucos indícios e uma lista de prováveis locais onde ele poderia estar oculto.

E, como ainda não conseguiam formular uma teoria com total exatidão, conforme escreveram acima, sugeriam que tudo ainda continuasse em segredo por tempo indefinido, até quando efetivamente pudesse ser concluído de modo cabal algo definiti-vo e pudesse ser revelado ao mundo sem medo de uma possível destruição.

Assim, continuaria ainda por muito tempo a guardiã dos tesouros do conhecimento perdidos no tempo e vitaliciamente seria sua guardiã. Essa era a razão de ser e o objetivo mor da Confraia do Torah Moshê.

Epílogo

O dia seguinte à última reunião da confraria não foi mui-to alentador. Todo aquele imenso volume de informações não resultava em certeza de nada, só aumentava as interrogações e as perguntas sem respostas convincentes. Afinal, tudo continuaria segredo. Tudo continuaria em questão. Os estudos continuariam e também as expectativas de algum dia tudo aquilo fazer mais sentido e aparecerem mais respostas confiáveis, convincentes e irrefutáveis. Mas, por enquanto, tudo ficava como estava. Custa-va muitíssimo admitir, mas voltavam à estaca zero.

Paschoal estava extenuado. Não tinha mesmo paciência para mais nada. Sua cabeça fervilhava com aquele dilúvio de in-formações mal ordenadas e pouco assimiladas e não suportava mais nada. Ele era racional, então, quando as emoções oscilavam e tendiam a se perder no espaço e no tempo, a razão simplesmen-te assumia e determinava o caminho a seguir. Repentinamente, foi como um travamento num ponto final. A partir dali, foi mais um final de tarefa como outro qualquer. Decidiu que finalizaria os relatórios de estudo, fosse qual fosse a conclusão, e sua vida levaria o curso normal de antes.

Pedro, apesar de ser igualmente racional, tinha o seu lado emocional um pouco mais presente. Sempre levava algum tempo para digerir todos os acontecimentos para depois racionalizá-los

378

João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro

379

e se estabilizar. Saiu atordoado de sua sala de estudos com a ca-beça fervilhando com os resultados inconclusos de tudo que pes-quisara, das verdades ou pseudoverdades que a confraria julgava possuir e em que tendia a crer. Estava aflito, agitado, angustia-do. Mal conseguia respirar. Como um autômato, saiu quase sem rumo para o jardim interno à edificação da universidade. Percor-reu sem se dar conta algumas alamedas. De repente, encontrou alguém. Era o jardineiro, um senhor de idade avançada, de barba e cabelos longos e brancos como a neve. Era o mais humilde dos funcionários, mas parecia calmo e feliz. Segundo comentavam, conversava com as flores e parecia se entender com elas. Tocava as plantas com tal delicadeza que uma luva de veludo não con-seguiria. Manuseava a terra com a reverência de um sacerdote em seu ofício litúrgico, e parecia que nesse contato havia uma sinergia, vital ao crescimento das plantas. Era calmo e paciente. Isso parecia ser o segredo de sua felicidade. Pedro instintivamen-te travou um diálogo com ele:

— O senhor crê que Deus existe?

— Certamente. Nunca duvidei disso.

— Se não houvesse um deus, o que você faria?

— Criaria um à minha própria imagem e semelhança por-que nós somos um. Sim, somos deuses por isso.

— Porque?

— Porque um homem não consegue viver sem a prote-ção do templo divino, senão a tristeza, a desesperança e o tédio consumiriam sua alma vazia. Já imaginou: a quem pediria ajuda quando estivesse oprimido? A quem dirigiria as suas orações? Com quem partilharia seus momentos de alegria? A quem agra-deceria?

— Que diria você se lhe provassem que Deus não existe?

— Eu acreditaria. Esse deus a quem querem provar a ine-xistência, realmente não existe. O verdadeiro Deus está acima de tudo, de todos os conceitos religiosos que produzem a falsa cer-teza do certo, que tornam o homem egoísta, semeiam a discórdia e o fazem derramar o sangue do seu semelhante em nome dessa convicção. Está alem dos conhecimentos da ciência e a percep-ção pela razão, que jamais o alcança. O único modo de percebê-lo é com o coração.

— Mas afinal onde está o seu Deus?

— Em mim, em ti, nas estrelas do firmamento, nas águas que correm pelo solo, no voo das aves do céu, nas pétalas das flores, em cada ínfimo fragmento de tudo que existe. É na força de sua presença que a cada momento tudo se recria. É milagro-so porque permite o nascimento de um ser segundo sua espé-cie. Onisciente porque conhece os mistérios de uma vida que se inicia e o enigma da morte para uma nova vida. É onipresente porque nele o passado, presente e futuro coexistem. É onipotente porque nele se concentra toda a força do universo. Não está ocul-to, porém presente em tudo: no sol que se declina, para levantar fulgurante no raiar de um novo dia. Na beleza das flores que nos enchem os olhos, na delícia dos frutos que nos alimentam, na magia das sementes que germinam. Nas folhas caídas que viram alimentos, retornam na seiva e voltam à vida anterior. Na eloqu-ência do silêncio que ensina a contemplar tudo à volta, na linha do horizonte que une o mar ao firmamento. Na essência do amor que perpetua a vida.

Pedro ficou maravilhado com aquela imensa sabedoria que os mestres da ciência não conseguem ensinar, pois jamais aprenderam. Nunca imaginaria que logo ali, em contato com a terra, um simples jardineiro lhe revelaria os segredos do univer-so. O mais humilde dos funcionários era o Grão-mestre da sabe-

380

João Roberto Vasco Gonçalves

Bibliografia

http://antt.dgarq.gov.pt/

http://antt.dgarq.gov.pt/exposicoes-virtuais/projecto-da-inqui-sicao-de-lisboa-online-workshop/

http://www.genealogiafreire.com.br/inquisicao_de_lisboa_antt.htm,

http://antt.dgarq.gov.pt/identificacao-institucional/historia/

http://www.inct-tmcocean.com.br/pdfs/Monografias/13_Pe-try2009.pdf

http://culturamaratimba.blogspot.com/2009_08_01_archive.html

http://www.meioambiente.es.gov.br/download/RT_409_09_RIMA.pdf

http://www.meioambiente.es.gov.br/download/RIMA_RT_045_09.pdf

http://www.palacioanchieta.es.gov.br/pdf/livro_palacio_anchie-ta.pdf

http://www.ape.es.gov.br/pdf/O%20Estado%20do%20Espiri-to%20Santo%20e%20a%20Imigracao%20Italiana.pdf - O Esta-do do Espirito Santo e a Imigracao Italiana - Carlo Nagar – Feve-reiro de 1895, Um relato do cavalheiro Carlo Nagar, cônsul real da Italia em Vitória-ES

http://www.ape.es.gov.br/imigrantes/Imigra.aspx .

BÍBLIA SAGRADA.Centro Bíblico católico.Tradução dos originais mediante a versão dos monges Maredsous(Bélgi-ca).62ªEd.1988.Editora Ave Maria.São Paulo.SP

doria. Seu templo era um jardim com toda a sua manifestação de vida. Sua confraria era o mundo.

Saiu dali calmo, com enorme sensação de felicidade por ter encontrado tão perto de si os portões do paraíso. Fosse o que fosse que escreveria no seu relatório final, nada abalaria os pila-res daquele templo que encontrara: Deus era ele, seus semelhan-tes, a terra, a água, o firmamento, o princípio e o fim. Tudo agora fazia sentido: tudo possuía a sua essência. Tudo era Deus, tudo estava com Deus. DEUS era tudo. Certamente esse era o grande segredo do universo, transmitido pelo evangelho segundo João: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus”. Tão evidente e diante de nossos olhos e nós procuran-do nas profundezas do nada.

Quanto às questões: “Quem somos, de onde viemos e para onde vamos?”, que importa, se somos Deuses? O Cristo disse, pelo seu evangelista João (10:34), referindo-se ao antigo salmo 82:7 (“Vós sois Deuses e todos filhos do altíssimo” “Todavia mor-rerão como homens e caireis como qualquer dos príncipes”).

O mundo poderia continuar a ser uma grande pergunta sem uma resposta racional. Talvez, porque a razão fosse insu-ficiente para perceber e explicar a essência imaterial. O grande tesouro fora encontrado e não precisariam ocultá-lo. Pertencia a todos.

FIM

http://revistahistorien.com/12-%20acaojesuitica.pdf . AÇÃO JE-SUÍTICA E CATOLICISMO NO BRASIL COLONIAL DO SÉ-CULO XVI.Emanuel Luiz Souza e Silva. Revista Historien – Ano II. Petrolina, jun./nov. 2011,

http://razaoelogica.blogspot.com.br/2012/01/os-livros-que-es-tao-fora-na-biblia.html

Montefiore Simon Sebag.JERUSALÉM:A BIOGRAFIA.Título Original:Jerusalém:The biography.Tradução:Berilo Vargas e Ge-orge Schlesinger.1ª Ed.São Paulo.Companhia das Letras.2013.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Coimbra

http://pt.wikipedia.org/wiki/Lisboa

http://pt.wikipedia.org/wiki/Istambul

http://pt.wikipedia.org/wiki/Jerusal%C3%A9m

http://pt.wikipedia.org/wiki/Escola_de_Sagres

http://pt.wikipedia.org/wiki/Amesterd%C3%A3o

Publicando sonhos!FONE - (27) 4105-3374

[email protected]