JOO MANOEL SIMCH BROCHADOEia_Av… · Oxalá meu esforço tenha a sorte de acicatar a juventude...

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JOÃO MANOEL SIMCH BROCHADO Cel Ref (Infantaria e Estado-maior) O ESPÍRITO COMBATENTE – Livro 1 (o método) E E I I A A , , A A V V A A N N T T E E ! ! a energia dos agrupamentos humanos Ensaio sobre o caráter, o moral, a vontade das pessoas e a importância de seus líderes. 80.357 palavras 456.189 caracteres (s/espaços) 536.669 caracteres (c/espaços) 1.268 parágrafos 7.744 linhas 19 ilustrações 6 quadros (tamanho do texto: 6,82 MB: principal fonte: “Arial/12) @ EDIÇÃO ELETRÔNICA/2010 @ Texto paradidático orientador do exame e da discussão de matérias relacionadas com o interesse profissional dos coman- dantes de organizações de combate na força terrestre TÍTULO: “Eia, avante!SUBTÍTULO: a energia dos agrupamentos humanosASSUNTO: “Ensaio sobre o caráter, o moral, a vontade das pessoas e a importância de seus líderes

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JJOOÃÃOO MMAANNOOEELL SSIIMMCCHH BBRROOCCHHAADDOO CCeell RReeff ((IInnffaannttaarriiaa ee EEssttaaddoo--mmaaiioorr))

OO EESSPPÍÍRRIITTOO CCOOMMBBAATTEENNTTEE –– LLiivvrroo 11 ((oo mmééttooddoo))

““EEIIAA,, AAVVAANNTTEE!!””

aa eenneerrggiiaa ddooss aaggrruuppaammeennttooss hhuummaannooss

EEnnssaaiioo ssoobbrree oo ccaarráátteerr,, oo mmoorraall,, aa vvoonnttaaddee

ddaass ppeessssooaass ee aa iimmppoorrttâânncciiaa ddee sseeuuss llííddeerreess..

80.357 palavras

456.189 caracteres (s/espaços) 536.669 caracteres (c/espaços)

1.268 parágrafos 7.744 linhas

19 ilustrações 6 quadros

(tamanho do texto: 6,82 MB: principal fonte: “Arial/12)

@ EDIÇÃO ELETRÔNICA/2010 @

TTeexxttoo ppaarraaddiiddááttiiccoo oorriieennttaaddoorr ddoo eexxaammee ee ddaa ddiissccuussssããoo ddee mmaattéérriiaass rreellaacciioonnaaddaass ccoomm oo iinntteerreessssee pprrooffiissssiioonnaall ddooss ccoommaann--

ddaanntteess ddee oorrggaanniizzaaççõõeess ddee ccoommbbaattee nnaa ffoorrççaa tteerrrreessttrree

TTÍÍTTUULLOO:: ““EEiiaa,, aavvaannttee!!”” SSUUBBTTÍÍTTUULLOO:: ““aa eenneerrggiiaa ddooss aaggrruuppaammeennttooss hhuummaannooss””

AASSSSUUNNTTOO:: ““EEnnssaaiioo ssoobbrree oo ccaarráátteerr,, oo mmoorraall,, aa vvoonnttaaddee ddaass ppeessssooaass ee aa iimmppoorrttâânncciiaa ddee sseeuuss llííddeerreess””

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

João Manoel Simch Brochado - janeiro de 2010 2

“““EEEiiiaaa,,, aaavvvaaannnttteee!!!””” AAA EEENNNEEERRRGGGIIIAAA DDDOOOSSS AAAGGGRRRUUUPPPAAAMMMEEENNNTTTOOOSSS HHHUUUMMMAAANNNOOOSSS

TTTeeexxxtttooo pppaaarrraaadddiiidddááátttiiicccooo ooorrriiieeennntttaaadddooorrr dddooo eeexxxaaammmeee eee dddaaa dddiiissscccuuussssssãããooo dddeee mmmaaa---tttééérrriiiaaasss rrreeelllaaaccciiiooonnnaaadddaaasss cccooommm ooo iiinnnttteeerrreeesssssseee ppprrrooofffiiissssssiiiooonnnaaalll dddooosss cccooommmaaannndddaaannn---

ttteeesss dddeee ooorrrgggaaannniiizzzaaaçççõõõeeesss dddeee cccooommmbbbaaattteee nnnaaa fffooorrrçççaaa ttteeerrrrrreeessstttrrreee

Trago à memória dos camaradas do Exército Brasileiro, como minha sentida homenagem, dois grandes amigos de juventude, de profissão, de arma, de turma, de ideais e de toda a vida,

GGGiiilllbbbeeerrrtttooo BBBeeezzzeeerrrrrraaa CCCaaavvvaaalllcccaaannntttiii SSSoooaaarrreeesss

e RRRuuubbbeeemmm CCCaaarrrlllooosss LLLuuudddwwwiiiggg

Muitos companheiros da Turma “Gen Cyro do

Espírito Santo Cardoso” (1948) da Escola Mili-tar de Resende, também não puderam continuar conosco nessa longa caminhada, já com mais de sessenta anos.

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SUMÁRIO de “Eia, avante!”

HHoommeennaaggeemm aa ddooiiss ggrraannddeess aammiiggooss....................................................................................................................................................................................000022 PPrreeffáácciioo ddaa eeddiiççããoo BBIIBBLLIIEEXX//11999999................................................................................................................................................................................................000066 UUmmaa bbooaa ddiissccuussssããoo............................................................................................................................................................................................................................................000077 EEppííggrraaffee ddaa oobbrraa......................................................................................................................................................................................................................................................000088 NNoottaass ppaarraa aa oorriieennttaaççããoo ddaa lleeiittuurraa............................................................................................................................................................................................000099

INTRODUÇÃO – Aladim e sua lâmpada mágica.....................010

O LÍDER E AS INSÍDIAS DO VIGOR COLETIVO............................011 (Responsabilidade de liderança. A energia anímica que se instala, se esvaece ou irrompe nos agrupamentos humanos.

O enfoque deste ensaio)

DDeevvooççããoo ttrraannssffoorrmmaaddoorraa..........................................................................................................................................................................................................................001111 AA eenneerrggiiaa aanníímmiiccaa qquuee ssee eessvvaaeeccee ee ssee rreeccuuppeerraa -- ooo cccooommmaaannndddaaannnttteee fffeeerrriiidddooo ..............................................................001122 AA eenneerrggiiaa aanníímmiiccaa qquuee iirrrroommppee -- oo ppeerriiggoo nnaass mmuullttiiddõõeess................................................................................................................001155 PPaarraa oonnddee eessttaarráá ddiirriiggiiddaa nnoossssaa aatteennççããoo??................................................................................................................................................................001177

PRIMEIRA PARTE – O gênio da lâmpada e suas serventias.......021

CAPÍTULO 1 - A “ENERGIA RADIANTE” DO CARÁTER..............022 (Caráter individual e caráter coletivo. Os fatores e os protagonistas de uma nacionalidade. Caráter nacional. A mu-

tabilidade dos traços psicológicos de um povo. Exemplos)

OO ccaarráátteerr ddaass ppeessssooaass ee ddooss aaggrruuppaammeennttooss hhuummaannooss........................................................................................................................002222 AA rreelleevvâânncciiaa ddoo ccaarráátteerr ccoolleettiivvoo..................................................................................................................................................................................................002288 -- oo ccaarráátteerr ffaammiilliiaarr..................................................................................................................................................................................................................................002288 -- oo ccaarráátteerr pprrooffiissssiioonnaall......................................................................................................................................................................................................................003300 -- oo ccaarráátteerr ccoolleettiivvoo ccoommoo ffoorrççaa rreeffrreeaaddoorraa ddee ddeessvviiooss..............................................................................................................................032 EEssttaaddooss nnaacciioonnaaiiss ssoobbeerraannooss..........................................................................................................................................................................................................003344 IInnfflluuêênncciiaa ddee ffaattoorreess ee cciirrccuunnssttâânncciiaass hhiissttóórriiccaass eessppeecciiaaiiss........................................................................................................003377 OO iiddeeaall ddee lliibbeerrddaaddee nnaa ccoonnssoolliiddaaççããoo ddoo mmooddeerrnnoo EEssttaaddoo nnaacciioonnaall ssoobbeerraannoo..........................................004433 CCaarráátteerr nnaacciioonnaall -- ppeerrffiill ppssiiccoollóóggiiccoo ddee uumm ppoovvoo..........................................................................................................................................004466 AA mmuuttaabbiilliiddaaddee ddoo ccaarráátteerr nnaacciioonnaall........................................................................................................................................................................................004488 NNuuaannççaass rreeggiioonnaaiiss ddoo ccaarráátteerr nnaacciioonnaall............................................................................................................................................................................005566 UUmm ccoommpplleexxoo pprroocceessssoo iinntteerraattiivvoo ddee ttrraaççooss ppssiiccoollóóggiiccooss............................................................................................................005599 CCaarráátteerr nnaacciioonnaall bbrraassiilleeiirroo -- uummaa vviirrttuuddee,, ddooiiss ddeeffeeiittooss ee uummaa tteennddêênncciiaa ppeerriiggoossaa..........................006622 -- AA vviirrttuuddee:: aattiittuuddee ppoossiittiivvaa ee ttoolleerraannttee qquuee eessttiimmuullaa oo ssiinnccrreettiissmmoo ccuullttuurraall ee aa mmiisscciiggeennaaççããoo..................................006622 -- UUmm ddeeffeeiittoo:: aattiittuuddee ppaassssiivvaa ee ccoonnffoorrmmaaddaa ffaaccee aaoo eennoorrmmee ccoonnttiinnggeennttee ddee eexxcclluuííddooss ((ssíínnddrroommee ddaa ““ccaassaa ggrraannddee//sseennzzaallaa””))..................................................................................................................006644 -- OOuuttrroo ddeeffeeiittoo:: aattiittuuddee iinnddiiffeerreennttee eemm rreellaaççããoo àà ddeeffeessaa ((ssíínnddrroommee ddoo ““bbeerrççoo eessppllêênnddiiddoo””))..........................................006666 -- UUmmaa tteennddêênncciiaa ppeerriiggoossaa:: sseennttiimmeennttoo ddee ppaattrriioottiissmmoo ddeecclliinnaannttee??............................................................................................................006688

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CCAAPPÍÍTTUULLOO 22 -- AA ““EENNEERRGGIIAA PPOOTTEENNCCIIAALL”” DDOO MMOORRAALL............................................007722

((OO eessttaaddoo ddee eessppíírriittoo ddaass ppeessssooaass ee ddooss aaggrruuppaammeennttooss hhuummaannooss:: ddiissppoossiiççããoo ppaarraa oo ttrraabbaallhhoo ee ppaarraa aa vviiddaa.. MMoorraall nnaacciioonnaall.. EExxeemmppllooss..))

DDiissppoossiiççããoo ppaarraa aa vviiddaa..................................................................................................................................................................................................................................007722 MMoorraall ccoolleettiivvoo:: oo ppaappeell ddoo llííddeerr ppaarraa oobbttêê--lloo ee mmaannttêê--lloo....................................................................................................................007788 MMoorraall nnaacciioonnaall -- iinngglleesseess eemm 11994400//4411 ee bbrraassiilleeiirrooss nnoo ffiimm ddoo ssééccuulloo XXXX..............................................................008822

CCAAPPÍÍTTUULLOO 33 -- AA ““EENNEERRGGIIAA CCIINNÉÉTTIICCAA”” DDAA VVOONNTTAADDEE..........................................008899 ((AA ffoorrççaa ee aa ddeebbiilliiddaaddee ddaa vvoonnttaaddee ccoolleettiivvaa.. VVoonnttaaddee nnaacciioonnaall.. EExxeemmppllooss..))

VVoonnttaaddee iimmppllaaccáávveell............................................................................................................................................................................................................................................008899 OOppiinniiããoo ee vvoonnttaaddee................................................................................................................................................................................................................................................009900 OO cciicclloo hhiissttóórriiccoo ddaa vvoonnttaaddee ddooss ppoovvooss........................................................................................................................................................................009922 RRaazzõõeess ee mmoottiivvaaççõõeess -- oo llííddeerr ee aa mmííddiiaa..........................................................................................................................................................................009955 CCoonnfflliittooss bbéélliiccooss ee vvoonnttaaddee nnaacciioonnaall..................................................................................................................................................................................009977 VVoonnttaaddee nnaacciioonnaall bbrraassiilleeiirraa nnaa SSeegguunnddaa GGuueerrrraa MMuunnddiiaall................................................................................................................009999

SEGUNDA PARTE - O guapo Aladim... .............................110

CAPÍTULO 4 - A ATUAÇÃO DOS LÍDERES..............................111 (A formação do caráter coletivo, a criação e a manutenção do moral coletivo, a orientação e consolidação da von-

tade coletiva em agrupamentos espontâneos e instituídos. Percepção do método)

AA aattuuaaççããoo ddoo llííddeerr -- oo ccaarráátteerr,, oo mmoorraall ee aa vvoonnttaaddee ddee sseeuu aaggrruuppaammeennttoo............................................................111111 AAççããoo ee oommiissssããoo:: aallgguunnss bboonnss ee mmaauuss llííddeerreess ccoonntteemmppoorrâânneeooss..........................................................................................111166 MMééttooddoo ppaarraa aa iinnssttaallaaççããoo ddaa eenneerrggiiaa aanníímmiiccaa nnooss aaggrruuppaammeennttooss hhuummaannooss -- sseegguuiimmeennttoo nnaattuurraall............................................................................................................................................................................................................112200

CCAAPPÍÍTTUULLOO 55 -- AAGGRRUUPPAAMMEENNTTOOSS IINNSSTTIITTUUCCIIOONNAAIISS

HHIIEERRAARRQQUUIIZZAADDOOSS EE NNÃÃOO HHIIEERRAARRQQUUIIZZAADDOOSS..................................................112244 ((DDeesseennvvoollvviimmeennttoo ee mmaannuutteennççããoo ddaa eenneerrggiiaa aanníímmiiccaa nnooss aaggrruuppaammeennttooss iinnssttiittuucciioonnaaiiss:: eessppíírriittoo ccoolleettiivvoo.. EExxeemmppllooss))

LLííddeerreess iinntteerrffeerreenntteess ee llííddeerreess ssoolliiddáárriiooss –– uumm ssiisstteemmaa ddee lliiddeerraannççaa mmiilliittaarr??..............................................112244

AAggrruuppaammeennttooss iinnssttiittuucciioonnaaiiss mmiilliittaarreess –– eeexxxaaammmeee dddeee uuummm c ccaaasssooo ....................................................................................................112277 -- OO ccaarráátteerr pprrooffiissssiioonnaall mmiilliittaarr ddee uumm ppeelloottããoo ddee ffuuzziilleeiirrooss............................................................................................................112299 -- OO mmoorraall ddaa ttrrooppaa eemm uumm ppeelloottããoo ddee ffuuzziilleeiirrooss......................................................................................................................................113333 -- AA vvoonnttaaddee ddaa ffoorrççaa eemm uumm ppeelloottããoo ddee ffuuzziilleeiirrooss................................................................................................................................114400

EEssppíírriittoo ccoolleettiivvoo ee uunniivveerrssaalliizzaaççããoo ddooss ccoonncceeiittooss ee pprroocceeddiimmeennttooss............................................................................114433

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AAggrruuppaammeennttooss iinnssttiittuucciioonnaaiiss nnããoo hhiieerraarrqquuiizzaaddooss –– eeexxxaaammmeee dddeee uuummmaaa cccrrriiissseee e outro exemplo........................................................................................................................................114455 AAss qquuaalliiffiiccaaççõõeess ffííssiiccaass ee hhaabbiilliiddaaddeess ttééccnniiccaass ee ppssiiccoommoottoorraass ddooss SSoollddaaddooss........................................115522

“Eia, avante!” - O digno meneio da lâmpada......................154

CAPÍTULO 6 - SEIS DESTAQUES PARA A MEDITAÇÃO DO JOVEM COMANDANTE/LÍDER......................................155

(Enfoque do problema de liderança. Espírito combatente. Interesses essenciais comuns e valores sobrelevantes. Confiança no líder. Assistência ao processo. Zelo pelo espírito nacional)

OO eennffooqquuee............................................................................................................................................................................................................................................................................115555 OO eessppíírriittoo ccoommbbaatteennttee....................................................................................................................................................................................................................................115555 OOss vvaalloorreess eemmbblleemmááttiiccooss........................................................................................................................................................................................................................115566 AA ccoonnffiiaabbiilliiddaaddee ddoo llííddeerr............................................................................................................................................................................................................................115577 AA ddeevvooççããoo..........................................................................................................................................................................................................................................................................115588 AA pppeeerrreeennniiidddaaadddeee dddaaa pppááátttrrr iiiaaa ee oo eessppíírriittoo nnaacciioonnaall..........................................................................................................................................................115599 LLiissttaaggeennss ddee iilluussttrraaççõõeess ee ddee qquuaaddrrooss............................................................................................................................................................................116611

AANNEEXXOO –– GGLLOOSSSSÁÁRRIIOO DDEE AAPPOOIIOO......................................................................................................................................................................116622

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Prefácio da edição BIBLIEX/1999

publicação 689 (obra avulsa)

“As pessoas são essenciais, mas o desafio do líder é compreender

o agrupamento humano que lidera como uma entidade plural, com espírito próprio, para tratá-lo e conduzi-lo assim.

Com base neste conceito o autor discorre, com profundidade maior do que aquela

que pretende transparecer, sobre o delicado e instigante tema da liderança; particu-larmente importante para nós militares, principalmente para os mais jovens, a quem, aliás, o livro é dedicado.

Estudioso do assunto e observador arguto das experiências, inclusive na área civil, que a vida lhe proporcionou, o Coronel Brochado delas tira preciosas e objetivas conclusões que não só ampliam o universo de vivência do leitor, como, também, es-timulam-no a, por sua vez, analisá-las e chegar às suas próprias conclusões, aumen-tando, assim, seu interesse pelo tema.

Analisa o autor, com rara propriedade, marcantes passagens da História Militar mundial – antiga e contemporânea – bem como discorre com pertinência sobre a his-tória de diversos países, inclusive o Brasil, estudando o comportamento de seus líde-res em momentos cruciais de sua existência como nação; induzindo o leitor, mercê das considerações que faz e das judiciosas conclusões que tira, ao estudo de outros casos históricos, pretendendo, dessa forma, estimulá-lo a pesquisar o assunto.

A figura do líder, particularmente do líder militar, é objeto da preocupação do autor, ao procurar, em seu trabalho, caracterizar a importância da exercitação geral dos va-lores apropriados ao universo de seus liderados, como base para a consolidação do caráter coletivo, a melhora da disposição de todos para a vida e para as atividades profissionais, mantendo em bom nível o moral coletivo e ao estímulo e direcionamen-to da vontade coletiva para a ação conveniente e oportuna.

Em suma, a obra que tenho a honra e o prazer de prefaciar conduz o leitor, através de seis capítulos de uma redação escorreita e objetiva, ao âmago do assunto, enfo-cando todas as nuances de tão delicado quão importante tema, ampliando os horizon-tes de quem a lê, estimulando-o, como é o desejo do autor, ao estudo e à pesquisa.

Resta-me congratular-me com o companheiro de turma pelas inquietações que o tema sugere, pela ampla, cuidadosa e objetiva abordagem do assunto; com seus lei-tores, principalmente os jovens militares, a quem, em particular, o livro é dirigido pelo excelente trabalho que lhes é oferecido; e, finalmente, com os Estabelecimentos de Ensino, não só do Exército como também das Forças coirmãs e mesmo de Organis-mos civis nem sempre atentos ao tema pela importante fonte de consulta que a obra representa.

General-de-exército Carlos Tinoco Ribeiro Gomes”1

1 O prefaciador é colega de Turma do autor na Escola Militar de Resende (1948) e foi Ministro de Exército de 1990 a 1992.

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UUmmaa bbooaa ddiissccuussssããoo

Planejei e desenvolvi este ensaio pensando em ajudar, orientar e esper-

tar para o assunto os cadetes, aspirantes, tenentes e capitães brasileiros das Armas e dos Serviços, todos Soldados profissionais jovens, destinados às lides do comando e da liderança dentro do Exército. A matéria que a-borda, a meu ver, não pode continuar com um tratamento simplesmente empírico e referências tradicionais vagas à sua existência como realidade psicossocial dentro dos agrupamentos humanos (**). É preciso trazê-la mais próximo de uma sistematização científica para que, efetivamente, fundamente o processo, as técnicas e os procedimentos de liderança.

Nesse sentido é que pretendo estar contribuindo modestamente, ao ofe-recer o texto para um importante grupo de interessados e observadores cujo dever de ofício obriga ao permanente envolvimento com os fenôme-nos anímicos coletivos. Trata-se, em princípio, de uma proposta de discus-são. Os jovens leitores militares irão perceber que não me moveu a pre-sunção de dar a lume escrito científico. Com certeza, entretanto, corres-ponde a um preâmbulo para que doravante esse seja o enfoque conveni-ente. A matéria que abordo, as teses que defendo e as ideias que este tex-to apresenta, em princípio, introduzem os textos subsequentes que formam a trilogia “O espírito combatente” (leia as informações na página seguinte)2.

Oxalá meu esforço tenha a sorte de acicatar a juventude militar estudio-sa para o exame mais acurado desses assuntos essenciais no exercício da profissão das Armas. A única pretensão que me atribuo é a de compartir com as novas gerações, de alguma forma, como um velho instrutor, uma já longa experiência de vida.

Minha Turma de Aspirantes completou meio século de diplomação no dia dezessete de dezembro de 1998. Para marcar sua presença - ainda vi-va e atuante -, nas comemorações daquela data ofereci meu trabalho - edi-tado no ano seguinte pela BIBLIEX - aos cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras, como preito de saudade e respeito à velha e majestosa Escola Militar de Resende que ajudamos a criar e a implantar.

Almejo, hoje ainda, há mais de sessenta anos da diplomação, ao rever o texto desta obra para uma edição eletrônica, que a AMAN, essa grande organização de ensino militar, se envolva com a discussão que sugiro, promovendo-a dentro de seus limites físicos e, muito além, no vasto campo de sua venerável influência doutrinária.

Brasília, janeiro de 2010

João Manoel Simch Brochado Coronel Reformado (Infantaria e Estado-maior)

2 O ensaio complementar “A fascinante gestão de um espírito” trata das razões e vantagens de um sistema de liderança militar, complementando uma abordagem instigadora no Capítulo 5 (neste texto, item “Líderes interferentes e líderes solidários – um sistema de liderança militar?”, na página 124). Procure o link neste site.

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EEPPÍÍGGRRAAFFEE DDAA OOBBRRAA AAss ppeessssooaass ssããoo eesssseenncciiaaiiss,,

mmaass oo ddeessaaffiioo ddoo llííddeerr éé ccoomm--pprreeeennddeerr oo aaggrruuppaammeennttoo hhuummaa--nnoo qquuee lliiddeerraa ccoommoo uummaa eennttiiddaa--ddee ppssiiccoollóóggiiccaa pplluurraall,, ccoomm eessppíí--rriittoo pprróópprriioo,, ppaarraa ttrraattáá--lloo ee ccoonn--dduuzzii--lloo aassssiimm..

IInnffoorrmmaaççããoo ppaarraa eessttaa eeddiiççããoo eelleettrrôônniiccaa: Este texto corresponde ao LLiivvrroo 11, “o método”, o pri-

meiro de uma trilogia que intitulei “O espírito combatente”. Os dois outros são: LLiivvrroo 22, (os valores) - “OO ccaarráátteerr ddooss SSoollddaaddooss –– uummaa ssaaggaa ddee ddeezz mmiillêênniiooss” e LLiivvrroo 33, (as vicissi-tudes) - “AA iimmiittaaççããoo ddoo ccoommbbaattee –– ssoobbrree aa eexxppeerriiêênncciiaa mmiilliittaarr iinnddiirreettaa”. Além disso, o ensaio complementar “AA ffaasscciinnaannttee ggeessttããoo ddee uumm eessppíírriittoo” procura desenvolver uma idéia su-gerida neste Livro (Capítulo 5, página 124).

Sempre que julgar indicado, farei referência aos demais Livros no curso do ensaio que estou reapresentando. Toda a obra está disponível neste site, em arquivo PDF.

Credito as Ilustrações das páginas 10, 21 e 110 à Vikipédia acessada pelo Google; a Ilustração na página 162 deve ser creditada à História em Revista – EditoresTime Life; outras I-lustrações, como alegorias relacionadas com a matéria tratada neste texto, foram obtidas com o recurso do ClipArt do Word/Microsoft-Vista.

Com exceção da Ilustração 9, página 103, as demais Ilus-trações numeradas foram preparadas pelo autor.

Brasília, janeiro de 2010

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NNoottaass ppaarraa oorriieennttaaççããoo ddaa lleeiittuurraa

11 -- OO tteexxttoo ddeessttee eennssaaiioo ccoonnttéémm,, eennttrree oouuttrrooss eexxeemmppllooss,, oo rreellaattoo ddee ttrrêêss ssiinnggeellooss eeppiissóóddiiooss eemm qquuee eessttiivvee eennvvoollvviiddoo ccoommoo ccoommaannddaannttee oouu aauuttoorriiddaaddee;; ccoommeennttoo,, ttaammbbéémm,, uumm ccoonnfflliittoo ppoollííttiiccoo rreeggiioonnaall ccuujjaass cciirrccuunnssttâânncciiaass mmee eennlleeaarraamm.. OO ffaattoo ddee ooss tteerr vviivviiddoo ee aa nneecceessssiiddaaddee ddee rreeffeerriirr ffeennôômmeennooss ppssii--ccoossssoocciiaaiiss qquuee eeffeettiivvaammeennttee ccoonnssttaatteeii,, mmee iinndduuzziirraamm,, ppeelloo vvaalloorr ddiiddááttiiccoo ddee ccaaddaa uumm,, aa iinncclluuíí--llooss nnoo eessttuuddoo.

22 -- PPrreetteennddoo ccoommpprroommeetteerr oo lleeiittoorr mmiilliittaarr ppaauullaattiinnaammeennttee ccoomm aass iiddeeiiaass,, ccoonncceeiittooss,, ddiissccuussssõõeess ee ppoollêêmmiiccaass qquuee eessttee eennssaaiioo ddeesseennvvoollvvee oouu ssuuggeerree. O exame paralelo das notas de rodapé, dos apon-tamentos e das sugestões de consulta, é, a meu ver, parte importante desse comprometimento:

- apontamentos: determinado símbolo ( ) apontará matérias – ideias ou comentá-rios - que poderão ser esclarecedoras à leitura no ponto em que estiverem referidas com a indicação da página no texto, antes ou adiante desse ponto, sugerindo remissão para compulsação;

apontamentos

- sugestões de consulta: para facilitar o acompanhamento e o encadeamento das ideias e argumentos apresentados nesta obra organizei, a partir da página 163, na ordem alfabética, um glossário de apoio (Anexo I, página 163) que oferecerá ao leitor o conceito conveniente - segundo o meu ponto de vista -, referente a cada expressão impressa em itálico ao longo do texto; essas ex-pressões poderão estar seguidas de um asterisco entre parêntesis, sempre que julgar indicada a consulta.

sugestões de consulta

- ► Exemplos: caráter coletivo [significará que há conceito dessa expressão no glossário de apoio]; líder interferente (*) [significará que há conceito dessa expressão no glossário de apoio, mas é inte-ressante que o leitor, nesse ponto da leitura, o examine ou reexamine].

*

33 -- EEmmpprreeggaarreeii ttrrêêss eexxpprreessssõõeess ccoomm ccoonnoottaaççõõeess eessppeeccííffiiccaass: AArrmmaass: quando impressa com maiúscula e destacada em itálico, a referência às Armas, neste tex-

to, entendê-las-á como um sinônimo de forças armadas ou aludirá à profissão que essas forças re-presentam.

CCoommaannddaannttee//llííddeerr: é uma expressão, aparentemente redundante, empregada neste ensaio no singular ou no plural, 87 vezes como uma espécie de reforço didático para acentuar a imprescindibili-dade dessa qualificação para o comandante militar de uma força de combate – chefe militar que em-prega a força organizada como cabo-de-guerra e condutor de seus homens, consolidador do proces-so anímico coletivo no universo de seu comando. Estará impressa em itálico.

SSoollddaaddoo: esta expressão, também impressa em itálico e maiúsculo (ou no plural) - como uma qualificação profissional distinta -, se referirá genericamente ao integrante (ou integrantes) de organi-zação de combate, independente de posto ou graduação. O foco de minha atenção, porém, estará posto na força terrestre por ser a sede de meu interesse e a matriz ancestral de todas as demais.

O segredo de uma cômoda leitura sequencial ou simples compulsação deste texto

eletrônico paradidático está no domínio dos recursos disponíveis no arquivo PDF em que está apresentado. Esse conhecimento será imprescindível para a ampla e fácil navegação sobre as matérias desenvolvidas ( decisão e implantação do zoon mais indi-cado para a leitura – “Fit width” para a simples compulsação do texto, “Fit visible” para uma leitura cômoda, ou, eventualmente, 200% para o exame de algum detalhe de ilustração? -, bus-ca ou remissão à páginas ou assuntos, cópias, etc.).

Apreciaria receber do leitor sugestões e a indicação de dificuldades: [email protected] [email protected]

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO

AAllaaddiimm ee ssuuaa llââmmppaaddaa mmáággiiccaa.. (Osório, o vanguardeiro - 1866)

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

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OOO LLLÍÍÍDDDEEERRR EEE AAASSS IIINNNSSSÍÍÍDDDIIIAAASSS DDDOOO VVVIIIGGGOOORRR CCCOOOLLLEEETTTIIIVVVOOO

RRReeessspppooonnnsssaaabbbiiilll iiidddaaadddeee dddeee lll iiidddeeerrraaannnçççaaa ... AAA eeennneeerrrgggiiiaaa aaannnííímmmiiicccaaa qqquuueee ssseee iiinnnssstttaaa---lllaaa,,, ssseee eeesssvvvaaaeeeccceee ooouuu iiirrrrrrooommmpppeee nnnooosss aaagggrrruuupppaaammmeeennntttooosss hhhuuummmaaannnooosss ... OOO eeennnfffooo---qqquuueee dddeeesssttteee eeennnsssaaaiiiooo...

DDeevvooççããoo ttrraannssffoorrmmaaddoorraa Nas forças armadas de todo o mundo, desde épocas imemoriais quando essas

organizações começaram a se esboçar como instituição dentro de sociedades hu-manas incipientes, o exercício do comando vem sendo, sempre, cultuado como uma espécie de culminância profissional. Combatentes em situações dramáticas de risco, em princípio, seguiam um comandante por razões compulsórias de disciplina, de expectativa do butim ou de outras compensações materiais dominantes, de forte consciência da necessidade de defesa e conquista ou do sentimento de dever; o que criava uma prudente confiança no sucesso. Um líder militar, entretanto, através dos tempos – nem todos o foram -, pôde contar com a força arrebatadora provinda da disposição e da vontade de seus liderados. O que mudava radicalmente a perspecti-va de bom êxito no empreendimento em que estavam envolvidos, pois que esses combatentes, cheios de determinação, jamais se habituavam à derrota ou à submis-são como vencidos.

Além de transformar tão extraordinariamente o desempenho de um comandante, o líder pode alterar as virtudes e a eficácia de qualquer autoridade quando estiver engastado no gerente, no diretor, no chefe, no administrador, no prefeito, no gover-nador, no Chefe de Estado, como um precioso componente de suas habilitações profissionais. A responsabilidade de liderança assumida nos diversos níveis de auto-ridade, quando tudo estiver perturbado pela angústia e pela incerteza das crises, criará e manterá a energia positiva capaz de dar força e dignidade ao agrupamento humano (**) considerado (Ilustração 1, página 18), de assegurar a permanência das grandes instituições e de promover o enobrecimento das pessoas.

Algo somente possível para seres privilegiados e predestinados? Não. O bom lí-der pode prescindir de talento inato emergindo, sem esforços ingentes, de uma sim-ples atitude de devoção e, como decorrência prática, de algumas preocupações cor-relatas. Seu grande desafio, como veremos, sempre será o de compreender e tratar seu grupo como uma entidade plural com espírito peculiar. Nos processos naturais de liderança, quando o líder surge da escolha ou emerge do consentimento coletivo, mesmo ao se definir uma autoridade, essa aptidão ou talento inatos, em princípio e de alguma forma, estarão identificados e reconhecidos. Há uma frase atribuída ao célebre prefeito de Nova York por três períodos administrativos (1933-1945), Fiorello Harry La Guardia, que ilustra essa devoção: “Se morre um pardal no Central Park, eu me sinto responsável!” (voltarei a citar La Guardia no Livro 3 dessa trilogia: “A imitação do combate”).

A essência da liderança (**) deve ser percebida dentro dessa visão de qualifica-ção funcional inarredável, sem consentir ao titulado civil ou militar o argumento da inaptidão natural e, por conta dessa concessão, a desculpa para a omissão ou falta de zelo.

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As autoridades só ficam ungidas quando se deixam imbuir pela devoção da lide-rança. Precisam ser bons líderes, portanto, com empenho muito além da simples dedicação a seus deveres formais. Não há alternativa.

AA eenneerrggiiaa aanníímmiiccaa qquuee ssee eessvvaaeeccee ee ssee rreeccuuppeerraa -- oo ccoommaannddaannttee ffeerriiddoo O relato que se segue - um episódio quase sem importância da rotina castrense

ocorrido há cinquenta e cinco anos - servirá de base para o desenvolvimento do ca-pítulo 5, Segunda Parte, deste ensaio. A distância no tempo pode torná-lo apenas romântico à crítica de jovens militares brasileiros, por percebê-lo, já um pouco enco-berto pela pátina dos anos, trazido de uma realidade ultrapassada. A tese que ilus-tra, todavia, é eterna e universal como procurarei evidenciar ao longo deste ensaio.

Novembro de 1955 O exercício de “ataque a uma posição sumariamente organizada” vinha

sendo preparado com esmero e preocupação para aproximá-lo, ao máxi-mo, da realidade de um combate. Mesmo com as severas restrições de uma unidade sem os equipamentos e armamentos que a época exigia. Os alunos do Curso de Candidatos a Cabo, todos conscritos, ocupariam as funções dessa graduação e algumas de sargento dentro dos quatro pelo-tões da companhia de fuzileiros cujo comando eu exercia havia algum tempo. A companhia seria transformada, naquele exercício, em subunida-de-escola. Um bom teste de fim de curso, portanto, para observar o com-portamento 3 daqueles moços - conhecimentos práticos, iniciativa e capa-cidade de liderança em campanha. Todos desejavam as divisas que mate-rializariam, para a maioria, a primeira conquista da juventude. Os cabos efetivos da companhia, assim, mais os sargentos e oficiais subalternos de seus quadros permanentes seriam substituídos pelos alunos do curso e seus monitores; não ficariam de fora, entretanto, pois figurariam o “inimi-go”, construindo e ocupando um núcleo de defesa ou integrando a arbitra-gem. Esse “plastron” 4 teve uma longa preparação material e psicológica por ser a chave do realismo desejado no teste. A camuflagem da posição “inimiga” foi primorosamente executada e suas armas automáticas – na época as metralhadoras Madsen de 7 mm – posicionadas em espaldões para obter, no cruzamento de seus fogos sobre os “atacantes” quando a-bordassem a posição, o máximo de rasância e flanqueamento como convi-nha à lógica de seu emprego e obediência da doutrina; a munição de fes-tim, para garantir o automatismo do mecanismo – apresentação do cartu-cho e força propulsora dos gases -, vinha preparada em seus carregadores metálicos com um balim de madeira à feição de projetil. Os metralhadores sabiam que deveriam suspender o fogo quando os primeiros “atacantes” estivessem a cerca de trinta metros da linha de defesa; essa era a distân-cia de segurança para prevenir a ação dos fragmentos de madeira lança-

3 Valores (**), atitudes (**), sentimentos (**), comportamentos (**) e reações (**) são expressões importan-tes quando relacionadas aos agrupamentos humanos (**) e que, neste ensaio, têm significados espe-ciais - pretendo esclarecê-los ao longo das anotações. Sempre estarão destacadas em itálico (procu-ra-as no Glossário de apoio, página 162). 4 Uma antiga expressão do jargão militar francês, ainda remanescente na época entre os oficiais mais antigos, que significava figuração inimiga.

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dos pelo tiro. Em função dessa precaução, a área de perigo estava demar-cada e reconhecida pelos defensores.

Um sistema de explosões planejadas e armadas com cuidado, seria controlado pela arbitragem para representar a preparação de artilharia e das armas de apoio do regimento. O armamento individual do “inimigo”, fu-zis Mauser de 7 mm, empregaria a munição de festim tradicional - pólvora pressionada no estojo por uma pequena bucha de papelão que provocava um fraco estampido, quase um estalo, próximo de uma caricatura do tiro real, mas seguramente não ofensivo a partir de um metro de distância da boca da arma. Os soldados não gostavam daquele barulhinho falso. Assim ficara preparado o que seria o objetivo de ataque da companhia de fuzilei-ros.

A operação militar, sem equipamentos de comunicações adequados, foi iniciada numa fria madrugada de primavera no Rio Grande do Sul. Um al-to-astral dominava tudo e sentia-se uma saudável expectativa entre os par-ticipantes: minha Companhia tinha forte orgulho de si mesma e suas fra-ções se emulavam por destaque no empenho coletivo e na eficácia de su-as atividades profissionais. O “inimigo” estava atento e disposto e havia tensão natural entre os “atacantes”, perceptível além da pintura de seus rostos, com as primeiras claridades do amanhecer. Os incidentes criados pela arbitragem e as dificuldades naturais do terreno durante a progressão do ataque permitiram que o assalto ao objetivo só pudesse ser organizado e iniciado por volta das doze horas, já sob um sol escaldante e calor inten-so. Esse momento de confronto físico sempre era crítico nos exercícios simulados no terreno, mas, na minha avaliação, as recomendações e pro-vidências preventivas tinham sido suficientes.

Já chegávamos nas treze horas quando recebi, de um aturdido estafeta, a comunicação de que havia alguém ferido na área do objetivo, cerca de seiscentos metros do ponto onde me encontrava. Venci a distância, rápido, não sem esforço pelas dificuldades de vegetação e aclive, apesar de meus vinte e oito anos. Ao atingir o local encontrei um grupo institucional - o me-lhor pelotão da subunidade - em completo colapso. O 3º sargento que o comandava, monitor do curso, ardoroso no seu ímpeto de assalto e esti-mulando seus comandados-alunos àquele esforço de “conquista”, defron-tou-se com um defensor não menos disposto e renitente para cumprir a o-rientação de retraimento. O “inimigo” apontou-lhe o fuzil e disparou a queima-roupa. Numa iniciativa de desastrada negociação com um metra-lhador havia substituído seus cartuchos de festim por cartuchos da metra-lhadora Madsen. Pretendia dar mais realismo à defesa com um estampido convincente... Atingiu o ombro esquerdo do sargento. O tiro ofendeu bas-tante o músculo deltóide e, com farpas de madeira, abriu uma enorme feri-da que poderia alojar uma mão fechada. O acidente ocorrera havia cerca de quinze minutos e o ferido vinha sangrando continuamente com o feri-mento aberto, já com as bordas escuras. As moscas, atraídas pelo cheiro de sangue, venciam o esforço de um soldado atarantado para afastá-las. Com a forte hemorragia o sargento foi enfraquecendo e havia perigo de que entrasse em choque.

José Sardão, o auxiliar do pelotão, um soldado/aluno, ao ver seu co-mandante ferido, deixou-se envolver pela confusão e, com isso, aprofun-dou-a, esquecendo que era o substituto do ferido. Encontrei-o sentado no chão, com os cotovelos sobre os joelhos e as mãos amparando o rosto, abúlico. Os soldados integrantes do pelotão, acostumados com seus co-

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mandantes efetivos, perderam o sentido de unidade e agiam desordena-damente e sem objetividade. O suor e a pintura já bastante desfigurada de seus rostos tornavam grotesca aquela situação. As técnicas de primeiros socorros que todos dominavam não haviam sido empregadas e, com o es-tupor geral, o próprio exercício, de muita importância para os candidatos a cabo, fora inteiramente desprezado. A realidade do faz de conta estava esmagada pela realidade traumática daquele acidente. Aguardavam socor-ro, assustados e inertes.

Por que aqueles moços, alguns quase cabos, treinados e com conheci-mentos suficientes esqueceram, de súbito, seus valores (*) e suas respon-sabilidades? Seria possível reverter rapidamente aquela perda? Por que meus soldados, com forte orgulho profissional se deixaram engolfar pela confusão e perderam o reflexo de ação objetiva? Seriam praticáveis provi-dências imediatas para recuperar a força desses suportes? A queda drás-tica no alto-astral do grupo, perceptível no início da operação, seria defini-tiva? Como seria possível reabilitar aquela disposição positiva anterior? Por que houve um colapso da vontade entre aqueles homens? Caberia al-guma medida para regenerá-la e concluir o exercício? Por que, em um e-xercício de imitação do combate, um simples ferimento provocou o colapso do valor operacional de um agrupamento destinado a perseverar no cum-primento da missão sob condições reais de fogo?

--- “““QQQuuueeemmm ééé ooo aaauuuxxxiii lll iiiaaarrr dddooo pppeeellloootttãããooo??? S SSaaarrrdddãããooo??? aaassssssuuummmaaa ooo cccooommmaaannndddooo!!!””” ;;; --- “““EEEssstttaaannnqqquuueeemmm aaa hhheeemmmooorrrrrraaagggiiiaaa!!!””” ;;; --- “““PPPrrrooottteeejjjaaammm ooo fffeeerrr iiimmmeeennntttooo dddooo sssaaarrrgggeeennntttooo!!!””” ;;; --- “““PPPrrreeevvviiinnnaaammm ooo ccchhhoooqqquuueee nnnooo fffeeerrr iiidddooo!!!””” ;;; --- “““PPPrrreeepppaaarrreeemmm uuummmaaa m mmaaacccaaa cccooommm dddoooiiisss fffuuuzzziiisss!!!””” ;;; --- “““PPPrrrooovvviiidddeeennnccciiieeemmm aaa eeevvvaaacccuuuaaaçççãããooo dddooo sssaaarrrgggeeennntttooo aaatttééé aaa rrrooodddooovvviiiaaa!!!””” ;;; --- “““SSSooollldddaaadddooo SSSaaarrrdddãããooo,,, rrreeeooorrrgggaaannniiizzzeee ooo pppeeellloootttãããooo eee ppprrrooossssssiiigggaaa cccooommm aaasss ppprrrooovvviiidddêêênnn---

ccciiiaaasss pppaaarrraaa cccooonnnsssooolll iiidddaaarrr aaa cccooonnnqqquuuiiissstttaaa dddooo ooobbbjjjeeettt iiivvvooo... PPPrrreeevvviiinnnaaa---ssseee pppaaarrraaa uuummm cccooonnntttrrraaa---aaatttaaaqqquuueee!!!””” ;;;

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Foram duas ordens diretas ao soldado/aluno José Sardão, novo co-mandante do pelotão, cinco ordens orientadoras para o imediato socorro ao ferido e uma mensagem otimista; isso foi suficiente para restabelecer, num instante, a lógica e a espontaneidade das providências em campanha, recuperar a consciência coletiva dos valores em jogo, reanimar todo o gru-po, ressuscitar o vigor de suas vontades e restaurar a hierarquia funcional dentro do pelotão. O sentimento de desânimo foi revertido e o acidente magicamente transformado em um desafio que, logo, todos aceitaram, in-corporando-o como um fato importante dentro – e não fora - do exercício que estavam concluindo. Estancar a hemorragia, mesmo com a dificuldade de um ferimento alto, próximo da articulação do braço, proteger aquele fe-rimento aberto, prevenir o choque e preparar uma boa maca com meios de fortuna eram práticas corriqueiras e consideradas básicas, do conhecimen-to geral.

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A execução foi perfeita e o sargento ferido pode suportar uma evacua-ção através do campo, por mais três quartos de hora 5 – o torniquete apli-cado o reanimara quase instantaneamente. O exercício teve uma conclu-são de sucesso, particularmente pelos bons ensinamentos do acidente que puderam ser recolhidos para os futuros cabos, para a conquista das divi-sas da graduação que ambicionavam, mas, certamente, também, para su-as vidas; uuummm bbbooommm aaallleeerrrtttaaa pppaaarrraaa ooosss jjjooovvveeennnsss lll ííídddeeerrreeesss sssooobbbrrreee aaasss iiinnnsssííídddiiiaaasss qqquuueee ooo vvviii ---gggooorrr,,, cccooommmooo eeennneeerrrgggiiiaaa pppooosssiii ttt iiivvvaaa iiinnnssstttaaalllaaadddaaa 666 nos agrupamentos humanos, apa-rentemente inabalável, pode criar.

nnooss aaggrruuppaammeennttooss hhuummaannooss,, aappaa--rreenntteemmeennttee iinnaabbaalláávveell,, ppooddee ccrriiaarr..

AA eenneerrggiiaa aanníímmiiccaa qquuee iirrrroommppee -- oo ppeerriiggoo nnaass mmuullttiiddõõeess..77

Poucos brasileiros, pelo menos entre brasileiros do sexo masculino, deixaram de participar e sentir a formidável energia que emana de uma multidão dentro de um estádio de futebol lotado em dia de decisão. Essa força espantosa congloba valores desportivos locais, regionais ou nacionais, atitudes positivas em relação a seu time, sentimentos de orgulho e paixão desportiva, comportamentos hostis para com o ad-versário e reações intensas aos lances do jogo, tudo podendo ser confundido em determinadas disputas, numa exacerbação muito comum, com pundonor patriótico ou bairrista. Entre tantos esportes coletivos que apaixonam, entusiasmam e movi-mentam multidões, o futebol (“association football”), pela parcimônia de pontos em cada jogo e pela tensão e expectativa de vê-los, senti-los e festejá-los, gera tensão incomum. Esse fato, sem dúvida, satura de mais energia os aficionados presentes aos enfrentamentos; uma decisão que se conclua com um empate de zero a zero desgasta e leva a emoção aos seus limites perigosos; uma goleada, em contraparti-da, descarrega essa energia e, ao contrário do que pareceria, não se transformará em problemas de ordem pública.

A percepção intuitiva e instantânea dessa identificação psicossociológica entre torcedores de um mesmo time determina uma crítica relação de causalidade: cada pessoa transfere sua disposição para a multidão, o que contribui para disposição do time em campo, recebendo o efeito disso como vigoroso consenso coletivo que e-clipsa sua individualidade e resulta em fenômeno avassalador. O perigo e a dificul-dade de controle dessa energia instalada dentro de um estádio esportivo tem deter-minado, no mundo inteiro, a medida preventiva de separação física das torcidas. Evi-ta-se com isso, é verdade, o confronto direto durante o jogo. Estimula-se, entretanto, a intensidade energética da multidão. Alegria, frustração, revolta, humilhação podem ser efeitos na multidão reunida em torno do evento esportivo a partir dos fatos que se desenrolarem em campo. As torcidas organizadas sem orientação legal, sujeitas simplesmente aos azares dessa expectativa energética, são extremamente perigo-sas porque potencializam esse fenômeno. Os líderes já estão definidos.

5 Vinte anos depois desse fato encontrei-o como um dedicado subtenente, com fortes e bem humora-das lembranças, ostentando, com certo orgulho profissional, uma grande cicatriz no braço esquerdo, pouco abaixo do ombro. 6 Empregarei, a partir daqui, o verbo “instalar” para definir a energia anímica consolidada e atuante dentro de um agrupamento humano - relacionada ao caráter coletivo, ao moral coletivo e à vontade coletiva, principal objeto deste ensaio. 7 Estarei me referindo, em princípio, a multidões heterogêneas e anônimas na classificação de Gusta-ve Le Bon (“A psicologia das multidões” – lb 365, europa-américa).

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Há o exemplo do “soccer hooliganism” com a tragédia do Heysel Stadium de Bru-xelas em 1985: trinta e nove espectadores morreram, na maioria italianos, e quatro-centos ficaram feridos durante a partida final da Copa Europeia dos Campeões entre o Liverpool e o Juventus de Turin. Mais recentemente, no Brasil, os “gaviões da fiel” do Corintians (SP) nas manifestações de crescente violência que culminaram com seu impedimento legal de existência e na Argentina, as agressões da torcida do La-nús sobre os jogadores e dirigentes do Atlético Mineiro dentro de um pequeno está-dio de futebol em Buenos Ayres.

No dia 24 de agosto de 1954, como capitão da arma de infantaria, eu servia em uma unidade do Exército em Pelotas (RS). Tomei conhecimento da morte do Presi-dente Getúlio Vargas pelo rádio, no informativo do meio dia e passei, com muita difi-culdade de recepção pela deficiência de antena e estática àquela hora, a ouvir os noticiosos contínuos das rádios Jornal do Brasil e Nacional. O detalhamento de uma notícia com tal carga emocional, há cinquenta e seis anos, dentro de uma mídia na-cional que engatinhava lutando contra suas limitações técnicas, após a surpresa do suicídio, ao calar a oposição que acossava o Presidente envolvendo-o com escân-dalos de seus assessores íntimos, fez surgir entre o povo mais simples um senti-mento de estupefação e de dor que logo identificou o suicida como uma vítima. Jus-tamente o que o Presidente pretendia com seu gesto político extremo.

A energia daquele consenso, estimulada, transfigurou-se em vontade destruidora: houve manifestações no Rio, palco dos acontecimentos e nas grandes cidades onde esses sentimentos podiam ser mais fortes por receberem mais diretamente as infor-mações provocando reflexos imediatos sobre populações urbanas mais densas. Re-ferindo-se às reações da tragédia política no Rio, Cláudio Bojunga escreveu8:

“A bala que matou Getúlio atingiu também seus adversários. (...) A multi-dão enfurecida queimou os caminhões de jornais da oposição, enfrentou a polícia, apedrejou a embaixada americana. O homem das ruas amava Vargas e para ele a Carta-testamento não deixava dúvidas. (...)”.

Dois mil quilômetros ao sul, em Porto Alegre, grupos manifestaram revolta e ocor-reram quebra-quebras e choques com a polícia. Mais trezentos quilômetros ao sul, em Pelotas, apenas a estupefação inicial, a compunção e a expectativa.

A morte trágica do piloto de “Fórmula 1” Aírton Senna no circuito de Ímola, Itália, em 1º de maio de 1994 prostrou a Nação e manteve os brasileiros em estado de so-frimento pungente e dor coletiva intensa e legítima durante alguns dias. Embora o acidente fatal estivesse dentro dos riscos da atividade que exercia, o forte carisma do campeão que empunhava a Bandeira no festejo de suas vitórias, sua compleição um tanto frágil e uns modos tímidos meio de menino carente, induziram entre seus compatriotas, de todas as idades e níveis sociais, o sentimento de desvelo protetor. Cada um de nós, dependendo da idade, acompanhava sua brilhante carreira de su-cessos internacionais como se fosse a do neto, do filho ou do irmão.

Os milhões de cidadãos presentes no doloroso cortejo e nos serviços fúnebres, as dezenas de milhões de outros cidadãos que se mantiveram fixados em seus televi-sores e, mesmo, aqueles que por algum dever profissional não puderam acompa-nhar esses eventos, estiveram magicamente envolvidos e identificados na mesma atitude, nos mesmos sentimentos, com comportamentos semelhantes e reações i-dênticas. Todos os brasileiros testemunharam e se sentiram, de alguma forma, pre- 8 Cláudio Bojunga – Citado em “Nosso Século” - Editora Abril

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sentes e participantes dos eventos fúnebres, acompanhando pelo rádio ou pela tele-visão, esse extenso e enternecedor consenso. É claro que a mídia consolidou o ído-lo, mitificou-o e exacerbou o sofrimento de sua perda. O fato perturbador, no entan-to, é que uma gigantesca e populosa nação, inteira, acima de suas profundas dife-renças sociais, esteve em harmonia na dor, como sentimento unânime, pelo desapa-recimento de seu herói juvenil. A energia que aquela tragédia criou entre nós, trans-formando cento e cinquenta milhões de brasileiros em cogitabunda multidão, embora surgida da tristeza e do sofrimento, merece atenção dos psicólogos sociais e dos governantes líderes nas sociedades municipais, regionais e nacionais.

As multidões apresentam entre seus integrantes a unanimidade de reação e de comportamento porque são reuniões espontâneas de seres humanos em torno de um fato, um acontecimento, ou motivadas por alguma intensa emoção comum pró-xima ou aproximada pela eficiência técnica da mídia (no futebol, também, a audiên-cia televisiva compele as pessoas ao encontro físico e é capaz de criar multidões apaixonadas). Quando o resultado de tudo é a frustração, a humilhação, a depres-são e a revolta, ficam perigosamente energizadas e precisam de cuidados especiais para não se transformarem em incontroláveis vetores da desordem pública (voltarei ao assunto na Primeira Parte deste ensaio, próximo capítulo, página 21).

PPaarraa oonnddee eessttaarráá ddiirriiggiiddaa aa nnoossssaa aatteennççããoo?? Aí está, justamente, o enfoque deste ensaio: a identificação da energia anímica

disponível nos agrupamentos humanos, que pode ser estimulada, dirigida, controla-da, mantida, recuperada, acompanhada, protegida ou, simplesmente, perdida. Um fenômeno que condiz com os objetos da psicologia social e, de forma determinante, deve orientar o comportamento dos líderes.

Para efeito do que examinaremos, os agrupamentos humanos ou agrupamentos sociais - a partir daqui empregaremos a primeira expressão - serão considerados espontâneos ou instituídos (Ilustração 1, adiante). O surgimento ou a instituição de interesses essenciais comuns entre seus integrantes cria uma compulsão à convi-vência e à união e inicia, para isso, um processo psicossocial interativo entre eles. Seus líderes tendem a emergir desse processo por destaque natural ou imposição 9; no caso dos agrupamentos instituídos, são outorgados por decisões externas. Fortes motivações comuns são capazes de criar com rapidez um agrupamento humano (uma multidão, p. ex.), mas a efemeridade de seus efeitos prejudicará a definição de uma liderança, embora a tendência natural seja, sempre, de defini-la e consolidá-la. Examinarei esses fenômenos e orientarei meu ensaio para a análise mais atenta do problema institucional, conservando uma preocupação com as nações, esses agru-pamentos espontâneos e permanentes que de forma tão marcante envolvem os se-res humanos.

9 Consulte o Anexo I – “Glossário de apoio” (página 163): líder, líder integrado, líder outorgado, líder natural e líder imposto, líder interferente e líder solidário (procure, também, a Ilustração 10, página 111).

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

INSTITUÍDOÉ o agrupamento humano que surge

como decorrência de estruturas administrativas ou de atividades profissionais

especializadas e tem sua existência definida e regulada por responsabilidades e tarefas tornadas comuns (uma unidade policial,

determinado departamento de uma empresa, uma diretoria no serviço

público, a tripulação e a guarnição de um navio)

INSTITUÉ o agrupamento hu

dentro das estruturasdo serviço público (

operacional do Exérdo Departamento

CIONALmano instituído

administrativasuma unidade

cito, uma seção de Correios)

AGRUPAMENTO HUMANO (agrupamento social)

É uma conjugação de seres humanos, natural ou determinada por decisão

administrativa, estimulada ou despertada pelo instinto gregário dos homens ou

por fatores e circunstâncias que geram interesses comuns e promovem um

processo de interação psicológica entreseus integrantes, dando -lhes

consistência social.

ESPONTÂNEOÉ o agrupamento humano formado

pela congregação natural deseres humanos estimulados pelo instinto

gregário e por outros fatores e circunstâncias que, de alguma forma,

revelam afinidades, atividades ou interesses comuns (uma família, uma

nação, torcedores de um clube defuteból reunidos no local do jogo).

PERMANENÉ o agrupamento humano es

têm existência contínua e que se vislumbre sua ex

no processo social emenvolvido (uma família, u

TEpontâneo quenão permite

tinção que estáma nação)

EFÊMEROÉ o agrupamento humano espontâneo que

tem existência previsivelmente limitadadentro do processo social em que surgiu (uma multidão reunida por

motivações políticas, uma associação emfavor de algum propósito definido

e alcançável em determinado prazo)

PRIVADOÉ o agrupamento humano instituído

em estruturas administrativas fora dserviço público (um setor de

vendas de uma loja de departamentos,um clube social)

o

Ilustração 1 - As definições e as características dos agrupamentos humanos, organizadas dentro das conveniências deste ensaio, assinalam, como elemento congregante de seus integrantes e que determina um processo psicossocial entre eles, a existência de interesses essenciais comuns, surgidos naturalmen-te, agrupamento espontâneo, ou despertados por comandos externos, agrupa-mento instituído (podem ser melhor examinadas no Anexo 1, “Glossário de apoio”, página 162, ou no zoom acima de 200%; o leitor militar encontrará esta Ilustração repeti-da nos dois outros Livros desta Trilogia, “O caráter dos Soldados” e “A imitação do combate”).

A energia anímica gerada por um agrupamento humano é potencialmente natu-ral, surgindo do que se assemelha a uma de reação química. Basta que exista um grupo de seres humanos com interesses essenciais comuns (**) – estes seriam os reagentes - e o vigor que a define lá estará, instalado, sólido, denso e dominante ou latente, insipiente, frágil e volátil. Um processo psicossocial que provoque a aproxi-mação de pessoas lentamente, formando um agrupamento humano através das dé-cadas ou dos séculos criará vigor mais definido e mais permanente que aquele inici-almente existente em um grupo instituído por alguma motivação recente ou decisão administrativa. Justamente a incitação e o estímulo à congregação é que provocam esse estado psicológico coletivo. Em ambos, entretanto, estarão embutidas as ar-madilhas que podem alterar a intensidade ou, mesmo, anular a situação existente.

Esse fenômeno, a meu ver, deve ser compreendido antes de serem estabelecidas regras, conselhos ou mementos para a orientação de líderes. Compreendendo-o, o líder se transformará, com mais naturalidade, no Aladim das “Mil e uma noites” ca-paz de dominar os segredos para liberar o gênio da lâmpada mágica e orientá-lo em favor do fortalecimento dos objetivos de existência e de sobrevivência do agrupa-mento humano que lidera...

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

Durante cerca de quarenta e seis anos, a maioria dos quais como Oficial do Exér-cito Brasileiro e doze em atividades civis, estive envolvido diretamente nesse esforço de Aladim com a fricção de sua lâmpada para obter as serventias do gênio e solu-cionar preocupações e problemas na liderança de grupos institucionais. Enfrentei crises e fui compelido, para debelá-las ou conduzi-las a bom termo, a considerar a energia positiva dentro de agrupamentos humanos. Fui exigido e desafiado perma-nentemente a manter minha autoridade e, sobretudo, a despeito de reações e difi-culdades, a sustentar a disposição dos grupos institucionais sob o meu comando ou sob a minha direção e chefia, conservando-os, sempre, como força favorável aos esforços que se exigia ou à orientação que se imprimia.

Aproveitando a curiosidade que pode ter sido despertada no leitor militar, exami-narei os fenômenos psicológicos do caráter, do moral e da vontade na Primeira Par-te (capítulos 1, 2 e 3, páginas 22, 72 e 89 respectivamente); deixarei a distância, todavia, pre-ocupações exageradas com a discussão científica dessa fenomenologia nos agru-pamentos humanos10. As teses se enquadram, como já disse, nas inquietações, pesquisas, teorias e polêmicas da psicologia social no seu ramo específico da dinâ-mica de grupo. Procurarei analisá-las de um ponto de vista conveniente para o líder, propiciando um novo reconhecimento de seu problema de liderança, em qualquer nível que possa estar. Incluí no texto exemplos pertinentes, com citações originais simples e desenvolvi – ou procurei fazê-lo – condições para examinar, na Segunda Parte, um caso concreto com algum cuidado didático, que recapitulasse, afinal, as anotações descritivas, motivadoras ou teóricas deste ensaio, com considerações de ordem prática.

Não há diferenças de essência nos fenômenos coletivos de caráter, moral e von-tade identificados no pequeno grupo esportivo (agrupamento instituído) que se estru-tura, treina e se volta para a conquista de vitórias e medalhas durante o curto perío-do de um campeonato, na unidade das Forças Armadas destacada para o cumpri-mento de missão da ONU em alguma parte do mundo (agrupamento instituído, insti-tucional), na multidão reunida em praça pública por forte motivação política e dispos-ta à ação violenta (agrupamento espontâneo, efêmero) ou no povo nacional que se aglutinou ou longo dos séculos (agrupamento espontâneo, permanente), luta cons-tantemente pela sua continuidade como Estado soberano e ambiciona um futuro de modernidade e tranquilidade social. São, em princípio, a mesma projeção do caráter, do moral e da vontade de cada integrante do agrupamento humano para uma di-mensão coletiva por um curso contínuo de interação psicossociológica; esse proces-so interativo é que, por certo, se apresentará com variação no grau de complexidade e de espontaneidade, criando, como iremos ver, uma energia nova. As pessoas são, apesar de tudo, os elementos essenciais a serem considerados nessa interação mental coletiva.

Tive a intenção de abordar genericamente a dinâmica dessas grandes e insidio-sas forças anímicas responsáveis pelo vigor dos agrupamentos humanos. O proces-so que as desenvolve, as mantém ou as recupera deve ser o fundamento da lide-rança e sua mais importante razão. Os líderes devem conhecê-lo e, tanto quanto

10 Serão feitas referências aos fenômenos do caráter (**), do moral (**) e da vontade (**), entretanto, com o emprego dessas expressões sempre registradas em itálico desde o início e ao longo do texto para que se possa absorver a relação permanente que mantêm entre si até compreendê-los dentro das teses deste ensaio.

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

possível, senti-lo para dirigi-lo. Não pretendi descrever novas técnicas. Apenas su-geri-las dentro de uma interpretação do fenômeno inteiro para apontá-lo como um novo enfoque diretivo capaz de proporcionar a reformulação do conceito e dos pro-cedimentos de liderança. Na verdade faço o registro neste ensaio de procedimentos que observei, estudei, apliquei e desenvolvi, com resultados positivos, durante mi-nha vida profissional ativa. Um método, portanto, para criar e manter o verdadeiro espírito de uma força de combate - o espírito combatente (**). Meus liderados foram e são meus principais críticos mas, também, minhas testemunhas.

O processo de globalização desde o fim do século XX está produzindo efeitos sobre o desempenho tradicional dos Estados nacionais soberanos. Ainda não há, todavia, elementos claros e precisos para uma estimativa das acomodações que ocorrerão no futuro em médio e longo prazos nessa nova e instigante era. Já se per-cebe, no entanto, uma espécie de cerco restritivo da autoridade e da autonomia das nações. A soberania dessas grandes instituições permanecerá tal como a vimos e sentimos durante o século que findou? Resistirão às pressões globalizantes que es-tão aparecendo sub-repticiamente das transformações de grandes empresas que se fundem e se reorganizam adquirindo poderes crescentes em setores importantes das economias nacionais? Como reagirão à autoridade política, financeira e, mes-mo, militar, das megaorganizações supranacionais que estão surgindo ou se trans-formando com rapidez? Qual será, afinal, o papel dos blocos econômicos dentro desse processo? Haverá controle possível para a implacável economia especulativa que anula em escala internacional o sentido social da riqueza? As nações ricas, in-dustrializadas e poderosas dominarão esse processo? Qual será o futuro das na-ções pobres ou em curso de desenvolvimento? 11

Essa é a razão do destaque, ao longo da Primeira Parte deste ensaio, para o ca-ráter, o moral e a vontade das nações. Julgo que nesse quadro de perplexidades, só o vigor anímico dos povos nacionais será capaz de preservá-los para o futuro.

11 Já no início do século XXI essas mesmas indagações permanecem sem respostas definitivas (re-corra à “Introdução” do Livro 3 integrante da trilogia – “A imitação do combate”).

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

PPRRIIMMEEIIRRAA PPAARRTTEE OO ggêênniioo ddaa llââmmppaaddaa ee ssuuaass sseerrvveennttiiaass...... (Caxias em Itororó – dezembro de 1868)

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

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CCCaaapppííítttuuulllooo 111::: AAA “““EEENNNEEERRRGGGIIIAAA RRRAAADDDIIIAAANNNTTTEEE””” DDDOOO CCCAAARRRÁÁÁTTTEEERRR

CCCaaarrráááttteeerrr iiinnndddiiivvviiiddduuuaaalll eee cccaaarrráááttteeerrr cccooollleeetttiiivvvooo ... OOOsss fffaaatttooorrreeesss eee ooosss ppprrroootttaaagggooonnniiisss---tttaaasss dddeee uuummmaaa nnnaaaccciiiooonnnaaallliiidddaaadddeee... CCCaaarrráááttteeerrr nnnaaaccciiiooonnnaaalll ... AAA mmmuuutttaaabbbiiilll iiidddaaadddeee dddooosss tttrrraaaçççooosss p ppsssiiicccooolllóóógggiiicccooosss dddeee uuummm pppooovvvooo... EEExxxeeemmmppplllooosss...

OO ccaarráátteerr ddaass ppeessssooaass ee ddooss aaggrruuppaammeennttooss hhuummaannooss “EEnneerrggiiaa rraaddiiaanntt

ee?” Antes de examiná-la, tomo emprestado da física essa qualifi-cação metafórica para a energia anímica do caráter pela sua capacidade de influen-ciar permanentemente todo o processo psicológico interativo no âmbito dos agrupa-mentos humanos.

“Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo.”12

O que é um mau-caráter na linguagem usual? Imaginemos alguém, não muito di-fícil de identificar neste princípio de século entre nós, com alguma das seguintes qualificações incomodativas: ardiloso e velhaco para assegurar ganhos e vantagens pessoais, mentiroso deslavado e contumaz, descumpridor, incapaz de manter a pa-lavra empenhada, falso, dissimulado, sempre apto e disposto a assediar a mulher do amigo ou prejudicar um colega de trabalho para ficar bem com o chefe, ambicioso sem medida que atropela e prejudica quem estiver no caminho para atingir seus in-tentos de melhoria de posição financeira ou social; solteiro, procura conquistar mu-lheres ricas ou de famílias com prestígio ou poder político; casado, é infiel sem arre-pendimentos. Em resumo, não pauta sua vida na guarda dos valores aceitos e pro-fessados pela maioria das pessoas que vivem, como ele, nesse inter-relacionamento e interdependência de trabalho e de sociedade, deixando que prevaleçam, dissimu-ladamente, como deformidade de interação psicológica, impulsos existenciais super-valorizados e mal-interpretados. Não assume, porém, essas iniquidades e escamo-teia seu desprezo por esses valores comuns; finge professá-los e, com esse proce-dimento, torna-se um ser imprevisível pelas surpresas desagradáveis de suas atitu-des, comportamentos e reações. “Um tremendo mau-caráter...!” seria, na sugestiva expressão coloquial brasileira, a indicação precisa e sucinta de sua qualificação, a-lertando os ingênuos para, à cautela, manterem um precaucioso distanciamento...

Essa compreensão popular do mau-caráter, voltada para a conduta das pessoas e na

“... circunstância de que, em todos os tempos e lugar es e em todas as culturas, sempre existiu o par conceitual bem/mal, indicativo da fé que a humanidade sempre mostrou na existência de uma lei universal dos valo-res” 13

12 José Ortega y Gasset – “Meditaciones del Quijote”,I. 13 “A psicologia do caráter” – Rudolph Allers – AGIR. É interessante que se transcreva sua conceitua-ção de caráter individual: “Aquela lei de preferência dos valores, apoiado no qual um indivíduo huma-no orienta sua conduta, não é outra coisa senão o que chamamos caráter. O caráter de um homem é, portanto, uma forma de legalidade de sua conduta, qualquer coisa como uma regra, ou uma norma.”

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- não necessária e exclusivamente voltada para valores morais -, está muito próxi-ma, no seu inverso, do conceito de caráter que adotaremos no estudo que estamos iniciando.

O caráter - caráter individual (**) -, no entendimento deste ensaio, se configura como um conjunto de valores aceitos e professados por uma pessoa, que serve de base para o desenvolvimento de atitudes, sentimentos, comportamentos e reações, com todas as decorrências sobre sua conduta, geradas pela interiorização desses atributos14. Esse processo mental confere a cada ser humano um perfil psicológico próprio, por mais fracos que tenham sido, sobre ele, os efeitos dos grupos de influi-ção – a família inexistente ou desestruturada, moral religiosa inconsistente, a escola deficiente ou interrompida, a sociedade degradada, o Estado omisso ou desorgani-zado, etc. Dentre os grupos de influição, a família desempenha papel preponderante pois é capaz de desenvolver o caráter familiar ao qual faremos referência mais adi-ante.

O caráter, portanto, quanto mais fortes ou nítidos forem seus traços, pode tornar previsível um cidadão porque o fará de conduta coerente ao reagir, se comportar e manifestar sentimentos, comportamentos e reações consequentes em relação aos valores que professa e às atitudes que incorporou. Essa previsibilidade o aponta como um ente social confiável, importante e útil. Um fraco ou frágil caráter criará, ao contrário, a imprevisibilidade do indivíduo não confiável e socialmente perigoso, ca-racterísticas do mau-caráter do exemplo inicial e dos marginais.

A confiabilidade de um líder junto a seus liderados, por essa lógica razão, dependerá grandemente da solidez de seu caráter - é preciso, entretanto que, além disso, seja reconhecida-mente competente; quando o líder é outorgado, como nos agrupamentos instituídos, a fragilidade de seu caráter o invalidará. De nada adiantará, nesse caso, sua compe-tência técnico-profissional.

Existem desvirtuamentos caricatos dessa conceituação. Os espiões e agentes secretos da realidade, mitificados na ficção com os órgãos que os dirigem, precisam ser imprevisíveis em relação à escala universal do bem/mal. São profissionais do mau-caráter, portanto, pois a previsibilidade os impediria de cumprir suas tarefas. Porque não professaram valores como os demais mortais, quando aposentados, velhos ou inoperantes recolhem-se à solidão e ao anonimato. Serão sempre os anti-heróis dos Estados que os criam e empregam. Alguns políticos brasileiros têm trans-formado a atividade política, pela crença da sobrevivência a qualquer custo, na prá-tica do “mau-caratismo”. “A política é como a visão das nuvens no céu, muda cons-tantemente”: uma interpretação deformada e desbriada dessa assertiva tem justifi-cado amiúde, para políticos, o atropelamento de valores morais e éticos.

As questões que se põem são bem simples: em um plano mais elevado, a sobre-vivência da nação, do Estado ou de um governo justifica o sacrifício de valores no plano profissional? podemos ser indignos em nome da dignidade da pátria? nobilís-simos fins justificariam os meios? Julgar que essas questões sejam românticas ou alienadas da realidade seria negar, na verdade, um distúrbio moral e ético embutido nas especulações para respondê-las que nos aflige, abala e confunde. A CIA (“Cen-

14 O mesmo Allers (obra citada) acredita que o caráter tem justamente por base uma reação objetiva entre o eu e o não-eu e é determinado pelas condições da pessoa. Entenda-se pelo não-eu de Allers, além do mundo exterior físico, o mundo das ideias, verdades e valores não interiorizados pela pessoa em questão.

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

tral Intelligence Agency”), desde sua formal criação em setembro de 1947 e a julgar, apenas, pelo conhecimento público de seus escândalos e estripulias, vem sendo um veemente exemplo dessa distorção na pátria das liberdades democráticas.

Os valores são o substrato que fundamenta as filosofias relacionadas com a vida e com a existência do ser humano na permanente relação do eu e do não-eu de Al-lers15, preocupado em compreender sua realidade física e metafísica e sua inserção no universo – o presente e o destino de sua espécie. Surgiram, surgem e sempre surgirão desse processo intelectivo e evolutivo ininterrupto que baliza a saga dos homens no planeta, determinando visões renovadas da significação de sua existên-cia pessoal, do sentido de sua vida de relação na família, na profissão e nos agru-pamentos humanos em que estão integrados. Criam, com isso, o assentimento das pessoas a preocupações existenciais, a qualidades morais, éticas, espirituais e pro-fissionais e, dentro de uma dinâmica interativa que examinaremos ao longo deste capítulo, projetam-no para a coletividade. Os valores orientam a conduta das pesso-as, precedendo e, por isso, respaldando a formação de atitudes como seu compo-nente cognitivo/afetivo (no relacionamento entre nações, entretanto, existem sérios problemas e os abordaremos nos dois outros Livros desta trilogia: “O caráter dos Soldados” e “A imitação do com-bate”).

Aceitamos, por exemplo, a “verdade” como um valor essencial decorrente de ex-periências pessoais e da tradição histórica e cultural que recebemos e absorvemos. O conhecimento dos efeitos maléficos no descuramento de sua prática nas socieda-des nacionais, desenvolve em cada cidadão, na medida daquela aceitação, uma ati-tude hostil à “falsidade” e à “mentira”; ou, na contrapartida, uma atitude positiva, a-probativa, para tudo o que se referir à prática da “verdade” e de suas boas conse-quências na vida das pessoas e de seus agrupamentos humanos. É, assim, sobres-selente o papel dos valores no processo mental de formação do caráter individual. São fundamentais (Ilustração 2, abaixo).

Em face de sua importância no caráter individual e buscando um respaldo mais consistente e claro para este estudo, tentarei conceituar convenientemente os valores e formular uma proposta para clas-sificá-los. Os valores devem ser entendidos, genericamente, como o assentimento incorporado ao caráter das pessoas pela definição de qualidades morais, éticas, espirituais, profissionais e preocupações existenciais a serem professadas, refletindo a importância atribuída a fundamentos filosóficos relacionados com determinada compreensão da realidade.

COMPORTAMENTOS

SENTIMENTOS

REAÇÕES

Ilustração 2 - Os valores têm impor-tância fundamental para o caráter indi-vidual, pois geram e orientam a forma-ção das atitudes e estas determinarão os sentimentos, os comportamentos e as reações das pessoas.

São, assim, as variáveis intervenientes iniciais para a definição do caráter. Procu-remos compreender esse mecanismo psicológico com um pequeno exemplo: o

15 Op. cit..

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patriotismo exacerbado pode ser um intenso sentimento com origem em um conju-gado de valores e atitudes sob um quadro hipotético de tensão bélica:

Circunstância ameaça concreta à sobrevivência nacional; Valores em questão liberdade, pppeeerrreeennniiidddaaadddeee dddaaa pppááátttrrr iiiaaa, independência, identidade

nacional, inviolabilidade territorial, etc.; Atitudes que lhes decorrem defensiva, xenófoba, agressiva, etc.; Sentimento gerado patriotismo exacerbado; Comportamentos gerados voluntariado militar, etc.; Reações produzidas manifestações violentas contra o inimigo potencial, etc.. Os valores só podem ser inferidos de traços psicológicos observáveis e constatá-

veis. Como decurso dos valores “liberdade”, “independência”, “identidade nacional”, “inviolabilidade do território”, as atitudes, apesar de serem seus reflexos imediatos e mais diretos, também são difíceis de serem constatadas objetivamente a não ser por suas derivações nos sentimentos, nos comportamentos e nas reações das pessoas. A atitude de “defesa” é observável se vemos homens e mulheres, voluntários e de-terminados, na preparação militar, em comportamentos do governo e nos sentimen-tos de cada cidadão; a atitude de “xenofobia”, da mesma forma, pode ser percebida nas reações a determinados estímulos relacionados com a presença estrangeira ou sua ameaça e em comportamentos ou sentimentos claramente expressos das pessoas; a atitude de “agressividade”, também distinguível nos comportamentos, surge da circunstância especial “iminência de guerra” que avivou, no exemplo, a função dos valores em pauta. A “verdade”, para retomar outra referência anterior, é um valor que gera uma atitude e, essa sim, ainda subjetiva, orientará, objetivamente, comportamentos, sentimentos e rea-ções. As atitudes são precedidas e estimuladas pelo assentimento a algum valor. Valor-atitude é, desse modo, uma expressão que reflete com propriedade o papel desse conjugado psicológico na formação do caráter individual e, como mostrarei mais adiante, dos agrupamentos humanos.

VALORES ÉTICOS

VALORES PROFISSIONAIS

São valores que se relacionam com o assentimento incorporadoao caráter individual ou coletivo, no sentido absoluto, na

importância e na necessidade do ser humano preservar sua dignidade e a dignidade de seus semelhantes.

(As variações culturais e a evolução do conceito de dignidade humana têm sido capazes, ao longo da história, de definir valores morais diferençados)

São valores que se relacionam com o assentimento incorporado ao caráter individual ou coletivo, na importância do

aprimoramento da vida de relação e que, para isso, os sereshumanos devem ter sua conduta social qualificada segundo

determinados juízos de apreciação,como adequada ou inadequada.

São valores que se relacionam com o assentimento incorporadoao caráter individual ou coletivo, em orientações e poderes

subjetivos, intemporais e sobrenaturais sob os quais os seres humanos devem pautar suas vidas.

São valores que se relacionam com o assentimento, incorporadoao caráter individual ou coletivo, nas qualidades objetivas e subjetivas que sustentam as profissões de uma sociedadehumana e as atividades de seus respectivos profissionais.(Nas profissões, além desses valores específicos, devem ser considerados

os valores éticos para o relacionamento institucional ou para o relacionamento de seus profissionais com os objetos de suas atividades)

VALORES MORAIS

VALORES ESPIRITUAIS

São valores quese relacionam com

o assentimentoincorporado ao

caráter individualou coletivo, provindo

de instintos quedominam a consciência

profunda dos sereshumanos em relação

à preservação daprópria vida, da

busca permanentede menor sacrifício para vivê-lae dapermanência de

sua espécie.

VALORESEXISTENCIAIS

Ilustração 3 - Classificação dos valores e uma tentati-va para conceituá-los, facilitando, assim, a identificação de seus reflexos sobre a conduta das pessoas (atitudes, sentimentos, comportamentos e reações) e, como mostrarei adi-ante, dos agrupamentos humanos (examine os conceitos desta Ilustração no Anexo 1, “Glossário de Apoio”, página 162).

O acompanhamento e o interesse pela formação e consolidação do caráter dos cidadãos, dentro de um esforço essencialmente educativo, deve voltar-se, de início,

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para a identificação desses substratos deflagradores do processo mental que carac-teriza aquele fenômeno psicológico. No seio de uma família organizada, muitos valo-res podem ser professados pela tradição cultural, espontânea ou intuitivamente. No exercício de uma profissão, entretanto, os valores éticos precisarão de maior aten-ção pois podem não ser espontâneos nem intuitivos.

Nos exemplos examinados os valores aos quais fiz referência se enquadram co-mo morais, por estarem ligados à dignidade dos seres humanos - “verdade”, “inde-pendência”, “identidade nacional”, “liberdade”. A “lealdade”, a “gratidão”, a “urbani-dade”, etc. e todos aqueles que regulam o relacionamento das profissões com os objetos de suas atividades, são valores éticos por se referirem ao “certo” e “errado” da vida de relação. Sentimos que “deus”, “alma imortal”, “salvação eterna”, etc. são valores espirituais. Já a “pontualidade”, muitas vezes apenas uma boa regra ética de conduta para a convivência das pessoas, pode transmudar-se na medida de sua importância no exercício profissional; entre militares modernos, por exemplo, insta-dos a realizarem convergentes atividades de risco, coordenando o emprego de ins-trumentos e técnicas letais com a necessidade da precisão de minuto e de segundo, é praticada como um forte valor profissional por ser uma das qualidades objetivas que sustentam a profissão das Armas.

Os valores existenciais são dominantes, mas amiúde podem ser sacrificados pela sublimação de outros dentro de um complexo processo psicológico que promove a interação do caráter individual: deixa-se de comer para protestar, morre-se pela pá-tria ou na defesa da família, enfrenta-se grandes sacrifícios para ajudar, para salvar, para ser julgado e aprovado pelos seus semelhantes ou face aos apelos e pressões do caráter coletivo como veremos adiante; podem, também, ao serem exacerbados, provocar deformações no referido processo (apontamento na página 117, sobre o triste epi-sódio do colapso francês na Segunda Guerra Mundial).

A transposição do conceito de caráter individual como o perfil psicológico que dis-

tingue as pessoas entre si, para a multiplicidade de um agrupamento humano (qual-quer um dos indicados na Ilustração 1, página 18) é razoável porque, da mesma forma, é possível que se considere a unidade que existe em cada grupo de pessoas reunidas por dominantes interesses comuns. O caráter coletivo (**), dessa forma, dentro de um enfoque abrangente, deve ser definido pelo conjunto de valores aceitos e professa-dos pela maioria dos integrantes de um agrupamento humano e pelas atitudes, comportamentos, sentimentos e reações, com os procedimentos semelhantes que lhes decorrem, capazes de conferir a esse agrupamento como um todo, um peculiar perfil psicológico que provocará uma conduta coletiva característica. Se por hipótese tomarmos a referência de determinado valor aceito e professado por muitas pessoas dentro de um agrupamento humano, a identificação de sua incorporação ao caráter coletivo não se reduzirá à simples constatação de um número que o represente co-mo maioria. Há um intenso e contínuo processo de interação psicológica em cuja dinâmica grupal se identificará uma nova e extraordinária energia.

Criarei uma fantasia para ilustrar o surgimento desse fenômeno. Imaginemos a existência, há algum tempo, de uma pequena e isola-

da colônia de pescadores na beira de uma praia onde o mar formava ver-des e fantásticas ondas. Nesse lugar ensolarado e paradisíaco os homens, chefes de família, noivos e namorados, por força da atividade na procura de cardumes distantes da costa, se afastavam regularmente durante se-

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manas. Confiavam, com certa ingenuidade machista, no comportamento fiel de suas bonitas e jovens mulheres, noivas e namoradas – criemo-las assim –, desamparadas e aparentemente tristonhas nas madrugadas em que os barcos se encafuavam mar adentro, deixando para traz a certeza de um longo afastamento.

Quando retornavam, todavia, envolviam-se em farras e bebedeiras e não davam muita assistência às suas sonhadoras mulheres. Fantasiemos mais: durante esses períodos de ausência, a aldeia ficava tomada por atlé-ticos, charmosos e endinheirados surfistas que promoviam, com esses convincentes recursos, sistematicamente, a pressão sedutora sobre aquele saudável grupo de mulheres solitárias e mal-amadas. Algumas sucumbên-cias tiveram consequências traumáticas para a comunidade. O registro desses fatos, entretanto, comprovando a potencial vulnerabilidade femini-na, de alguma forma, estimulava a presença dos aventureiros em busca daquelas conquistas em terra firme. Não era muito raro o sucesso de um surfista sobre a “resistência” de uma bela praiana cor de jambo.

A pressão dessas circunstâncias, porém, aos poucos, foi mudando as coisas. As juras de amor eterno entre namorados, noivos e cônjuges, muito românticas, revelaram-se inócuas; a procura de resultados práticos as fo-ram transmudando, com perda de romantismo, para um cada vez mais fe-roz pacto de fidelidade absoluta que teve uma tragédia como primeira con-sequência. Isso precipitou a incorporação da fidelidade como um valor de sobrevivência importante entre algumas famílias mais assustadas. Com o passar do tempo esse valor foi absorvido, com um sentido mais prático, pelos membros da pequena cooperativa da aldeia que mantinham razoável poder de persuasão sobre os cooperativados: a inquietação e a desconfi-ança durante a atividade pesqueira prejudicavam, cada vez mais, o rendi-mento do trabalho.

A infelicidade se instalou na aldeia. Face ao envolvimento com os fatos, queixas e angústias, a velha e res-

peitada professora da escola passou a conversar com os pais de seus alu-nos sobre a importância da fidelidade como um valor moral, acrescentando a ele uma incômoda mão dupla e estimulando uma discussão comunitária mais ampla com base no toma-lá-dá-cá que a princípio preocupou os ho-mens... A verdade é que o valor em questão, já sem o enfoque machista, deixando de ser professado por poucos, adquiriu uma dimensão grupal e, com isso, força nova, uma espécie de consciência coletiva ativa (**), vigilan-te, permanente e contínua, sobre recalcitrantes nas escapadelas ou des-leixo amoroso. A infidelidade foi erradicada da aldeia e a restauração da confiança mútua fez retornar a alegria naquelas areias.

Os atléticos surfistas desencaminhadores foram procurar outras on-das...

Essa consciência coletiva ativa, justamente, identifica a energia anímica “radi-ante” do caráter coletivo. Trata-se de um fenômeno peculiar, que surge e se acres-centa à dinâmica interativa para a incorporação de valores dentro de um agrupa-mento humano; voltaremos a considerá-lo ao analisar o caráter nacional, mais adi-ante. Podemos defini-la, portanto, como a percepção dos valores que conformam o caráter coletivo de um agrupamento humano, instalada no âmbito desse agrupamen-to como uma faculdade grupal e que, por estímulo de liderança, passa a exercer su-pervisão constrangedora - pela vigilância, pela permanência e pela continuidade -, sobre eventuais desvios desses valores em atitudes incorretas, comportamentos

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inadequados, sentimentos impróprios ou reações indesejáveis por parte de cada um de seus integrantes.

AA rreelleevvâânncciiaa ddoo ccaarráátteerr ccoolleettiivvoo

OO ccaarráátteerr ffaammiilliiaarr..

Em seus termos mais despojados, a família é formada por um homem e uma mu-

lher que coabitam para a procriação. A instituição do casamento (ou contrato cível de união heterossexual), dessa forma, basicamente protetora da família, não seria capaz de criá-la se não houver a intenção da prole. Essa será sempre a essência inabalável da família, a despeito de todas as transformações em sua estrutura, parti-cularmente a partir da revolução industrial do século dezoito, em face das transfor-mações políticas, econômicas e tecnológicas da sociedade humana. A expectativa de filhos ou, efetivamente, a presença deles com um casal natural, consanguíneos ou adotados, é que cria uma família com o seu sentido sociológico de grupo de influ-ição matriz, capaz de induzir os primeiros valores no ser humano em desenvolvimen-to, dando consistência a um caráter familiar - caráter coletivo desenvolvido no âmbi-to de uma família, em princípio, na interação com os grupos de influição que a en-volvem diretamente e com os caracteres regional e nacional.

Duas pessoas que se juntam e estabelecem uma vida em comum sem a intenção de procriar, dividindo despesas ou um a expensas do outro, mesmo com intenso e sincero envolvimento afetivo, não caracterizaria uma família. Aí está embutida a po-lêmica atual da união entre pessoas do mesmo sexo. Sem confundi-la com a institui-ção do casamento, pode caracterizar, entretanto, com restrições relacionadas à a-doção ou ao perfilhamento, um contrato reconhecido pela lei para preservar direitos e respeitar vontades livres de dois seres humanos.

Os valores incorporados ao caráter familiar, dentro da classificação que adotei pa-ra melhor conduzir este ensaio, são sedimentados no convívio de progenitores e ir-mãos – dentro do processo interativo no âmbito da sociedade, da região e da nação. A força transcendental desse processo familiar, pela dependência inicial compulsiva da prole, entretanto, nos permite imaginar uma família isolada de qualquer convívio com semelhantes e, assim mesmo, desenvolvendo os valores necessários à sua sobrevivência física e como instituição natural16. No sentido mais amplo de clã, co-mo uma congregação consanguínea que preserve a autoridade de um patriarca, uma matriarca ou a memória de ancestrais comuns, a consolidação do caráter fami-liar deixa de ser, simplesmente, um processo de indução dos valores necessários à sobrevivência e desenvolvimento de filhos e, ultrapassando esse limite, estende-se para descendentes, sobrinhos, primos, netos, sobrinhos-netos, criando códigos mo-rais, éticos, espirituais e, mesmo, profissionais, próprios. A desfiguração desse espí-rito, por inúmeros fatores, pode dar origem, entre os “familiares”, a uma prevalência peculiar da “moralidade” e da “ética” no caráter familiar sobre a legalidade de um

16 Há algumas décadas (1967, em viagem à Amazônia como instrutor da Escola de Comando e Estado-maior do Exército) soube da existência de famílias completamente isoladas nas margens de subafluentes do rio Amazonas, estruturadas e com valores familiares professados, onde o pai/chefe, com o envelhe-cimento da genitora da prole, passava a procriar com uma das filhas. Essa anomalia comportamental, entretanto, não desmente a tese.

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Estado omisso ou, mesmo, interpretações próprias do bem e do mal relacionadas aos valores espirituais incorporados na família. O crime organizado com o funda-mento em “famílias” e no seu espírito mostra, em muitos países do mundo, esse tipo de desencaminhamento pela omissão, tolerância ou fraqueza do Estado.

A história recente da Itália, desde sua unificação em 1861, após a implantação da república em 1946 e até, pelo menos, 1951 quando o país era, ainda, predominan-temente agrícola, tem sido tumultuada e confusa com governos ineptos, desacredi-tados e corruptos. Hoje, a despeito desse processo histórico, a Itália é um exuberan-te e rico estado industrial e, com certeza,

“em qualquer outro lugar este ambiente de caos institucional e corrup-ção levaria um país não só à beira do desastre, mas ao próprio desastre – uma nação mergulhada na ruína e na miséria. No entanto, os italianos não só sobrevivem, como fazem progressos. Os que estudam a Itália se de-frontam com duas perguntas básicas. A primeira é óbvia: como é que eles fazem para se sair tão bem? A segunda é feita quando se descobre que os italianos não são loucos, despreocupados e românticos, como diz a lenda, mas fortes, espertos e obstinados. E aí vem a questão: por que então eles suportam uma situação dessas? As duas perguntas conduzem à mesma resposta, centrada na única instituição em que os italianos acreditam de verdade. É uma instituição que não tem sede nem depende de uma buro-cracia para existir. Protege os italianos do desgoverno embora garanta que o desgoverno é inevitável. Essa instituição é a família. Seus membros se ajudam uns aos outros não apenas com vinho caseiro ou “grappa”, mas com ações concretas que visam a proteger os interesses de todos. A im-portante posição da família na vida italiana é em grande parte resultado da turbulenta história da nação.” 17

Sem sombra de dúvida, tem sido a sua salvação. A família é um agrupamento humano espontâneo, permanente, que surge de for-

tes compulsões naturais de sexo, proteção e guarda da prole. Pôde se ampliar, co-mo veremos adiante ao examinar a formação de uma nacionalidade, pelo espírito gregário e pela consanguinidade ou, por extensão, pelos laços de conhecimento. A força dessa essência original mesmo dentro do seu grupo mínimo de um pai, uma mãe e um filho, lhe assegura grande importância sociológica. A experiência do Esta-do substituto da família, desde a Pérsia do século IV a. C. e Grécia clássica, até o que restou da prevalência imposta pelo comunismo cubano, têm fracassado como um procedimento permanente pela força transcendental dessa compulsão gregária da prole em torno de seus genitores. Este foi um recado importante do Papa João Paulo II a Fidel Castro, em sua visita a Cuba em janeiro de 1998.

O caráter familiar, como um caráter coletivo nuclear, deve ser o início de todo o processo interativo que desenvolverá o caráter nacional. Por essas razões a exis-tência da família na sociedade precisa de proteção do Estado preposto dela, para que mantenha a sua função social sem distorções ou perdas – a consciência coleti-va ativa dentro do grupo familial. Sem esse amparo capaz de consolidá-la, mesmo absorvendo suas mutações, será difícil conceber ou acreditar em uma sociedade e no seu futuro (casamento, conúbio real, união estável, etc.).

17 “Nações do Mundo – Itália. A força da família” – Editora Cidade Cultural.

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O caráter profissional. O processo de formação e consolidação do caráter coletivo em agrupamentos

humanos instituídos, institucionais, embora se refira fundamentalmente ao mesmo fenômeno identificado em outros agrupamentos (Ilustração 1, página 18), é pouco es-pontâneo e, dessa forma, precisa ser mais dirigido. O agrupamento considerado terá de incorporar uma conduta profissional adequada, com valores/atitudes, sentimen-tos, comportamentos e reações convenientes à sua própria existência e ao ofício que a justifica. Exemplos: um plantel de atletas para a prática de um esporte coleti-vo; todo o grupo de atletas selecionados para a participação em diversas modalida-des desportivas de uma competição nacional ou internacional; uma unidade militar18; os operários de uma fábrica ou de um determinado setor de atividade dentro dessa fábrica; o departamento de trânsito de uma unidade federada; os funcionários de uma empresa; os religiosos profissionais de uma seita; uma unidade policial; os ser-vidores públicos de um setor que mantenha contato direto com a população; os fis-cais da receita federal; todos os servidores públicos federais; os membros dirigentes de um partido político; etc. O caráter profissional consolidado, dará a um grupo de pessoas envolvidas com atividades comuns a base segura para o exercício da pro-fissão sem desvios morais e éticos ou perdas de proficiência pela influência de fato-res adversos sempre existentes, sempre perigosos e nem sempre perceptíveis.

Relembro outro episódio castrense para tornar evidente o efeito prático da energia “radiante” do caráter coletivo entre profissionais.

Os soldados da 4a. Companhia de Fuzileiros se autodenominavam “os calungas”. Eu havia inventado esse apelido a partir de um desenho que os representava como combatentes e estimulava sua consolidação. A ex-pressão criava um sentimento de orgulho que os destacava em relação ao Regimento e facilitava para mim - um jovem capitão comandante -, o de-senvolvimento de valores/atitudes, sentimentos, comportamentos e rea-ções que conformariam o caráter coletivo daquele grupo de cento e cin-quenta conscritos. Estava presente e conversava com eles em todas as oportunidades de reunião coletiva, no quartel e nos exercícios de campo. Era a mim que viam e ouviam no alojamento logo após o toque de alvora-da; ouviam-me, ainda, diariamente no fim de cada dia de trabalho, na re-vista do recolher, que era a última reunião importante dos “calungas”.

Em 1956, em Porto Alegre, grande parte dos convocados para o serviço militar provinha das regiões coloniais e, por esse motivo, um significativo grupo morava no quartel. Nos fins de semana e feriados submetiam-se às rotinas castrenses e horários de rancho, curtindo saudades dos familiares e das namoradas. Não os deixava nem nesses dias de folga, sem que me vissem preocupado e envolvido com eles, pronto para ajudá-los em seus problemas, mas sempre exigindo um comportamento reto e disciplinado. Buscava, apenas, liderá-los e poder contar com a absoluta confiança de todos em caso de emergência. Convalescíamos das confusões políticas de 1954 e 1955.

Em determinado fim de semana, excepcionalmente, por envolvimentos familiares deixei de comparecer ao quartel no sábado e no domingo. A se-gunda feira amanheceu com uma aflição. Uma greve de marítimos exigiu que no sábado, cedo, a toda a pressa, o oficial de dia ao regimento organi-

18 O Livro 2 da trilogia “O espírito combatente” tratará especificamente do caráter profissional militar (“O caráter dos Soldados – uma saga de dez milênios”).

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zasse dez pelotões, um de cada companhia, com os “laranjeiras” disponí-veis, para ocupação dos navios atracados no porto sob risco de invasões e depredações19. A organização de grupos não constituídos permanente-mente, mesmo dentro de cada companhia, reunindo soldados e graduados sob o comando eventual de um terceiro sargento, todos fora do enquadra-mento (**

) normal - mais ou menos desacostumados, portanto, da cerrada proximidade no trabalho - apresentava um risco inicial para o bom cumpri-mento da missão (assunto que tratarei no Livro 2 desta Trilogia, “O caráter dos Soldados”) .

Assim um pouco frouxos em seus liames psicológicos de sustentação, foram dispersos em grandes navios, com acesso livre a cantinas, adegas, cabinas, instrumentos curiosos e objetos. Solitários e retidos naquela per-manência não muito bem esclarecida, com frio, dobrando o serviço, sem os líderes de suas frações institucionais, entregaram-se a uma espécie singular de furto coletivo espontâneo, não combinado, sem guias ou con-dutores - uma procura de “lembranças”. A denúncia chegou ao regimento na segunda feira pela manhã e, por determinação do comando, os capi-tães comandantes das dez companhias envolvidas aguardaram a chegada daquele grupo que atingia o efetivo de mais ou menos trezentos homens. Foram sendo organizados em linha no campo de formaturas, por cada companhia que representavam à medida que desembarcavam das viaturas que os haviam transportado do cais do porto para o quartel.

Perceberam rapidamente o que estava acontecendo e o motivo daque-la recepção. Logo se transformaram em um patético grupo de jovens ca-bisbaixos e vexados. Iam desemalando suas mantas e capotes e revelan-do o produto do furto: bebidas, objetos pessoais, pequenos instrumentos náuticos, cachimbos, cigarros, fumo, material de costura dos marinheiros... A cena prolongou-se penosamente.

Havia uma exceção, entretanto. Os “calungas”, que se encontravam no meio do dispositivo, estavam todos de cabeça erguida e, senti, ansiosos pela revista. Tanto o sargento comandante como os graduados e soldados olhavam para seu comandante de subunidade e percebi, de longe, um bri-lho de orgulho em seus olhares. Suas mantas e capotes, a final, foram desdobrados. Fizeram isso com rapidez e desenvoltura. Nada, absoluta-mente nada haviam trazido como “lembrança” dos navios que ocuparam durante quarenta e oito horas.

O esforço para consolidar o caráter profissional entre os soldados da 4ª Compa-nhia de Fuzileiros estabelecendo um padrão coletivo de conduta adequado a um soldado pela consciência coletiva ativa dentro da subunidade, tivera um bom teste e surtira o efeito desejado. Isolado, fora da fiscalização direta dos comandantes efeti-vos, cada “calunga” sentiu a influência vigilante do grupo, representado pela maioria dos companheiros, presentes ou não, que criara a saudável convicção de consenso para coibir todo o tipo de desvio. Na consolidação do caráter coletivo de um agru-pamento institucional, a relação de compromisso mútuo que se estabelece entre li-derados e líder sobre esse consenso é de importância definitiva.

19 Designação no jargão militar para aqueles que dormem e permanecem no quartel em dias de folga. Ao tempo desses fatos, o cais acostável de Porto Alegre ainda operava com grandes navios de cabo-tagem, como um porto de mar.

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OO ccaarráátteerr ccoolleettiivvoo ccoommoo ffoorrççaa rreeffrreeaaddoorraa ddee ddeessvviiooss..

Vejamos um exemplo que exacerbe os fatores intervenientes. Uma multidão20 de-

ve ser considerada como um agrupamento humano espontâneo, efêmero e circuns-tancial que reúne seres humanos dissímeis pela manifestação inicial da vontade im-pulsiva de cada um, gerando, com a reunião, vigorosa e instável vontade coletiva21. Pelas próprias circunstâncias da reunião esses seres reagirão de maneira seme-lhante e mais ou menos impulsiva quando submetidos aos mesmos estímulos. A multidão é, assim, um grupo humano que surge de circunstâncias específicas forte-mente motivadoras e mobilizadoras que lhe asseguram uma existência limitada à prevalência dessa mobilização. Para que sua dinâmica se desenvolva dentro de uma expectativa de normalidade como fenômeno social preponderantemente urbano – só haverá uma multidão enquanto a mobilização tiver sucesso -, é conveniente que o caráter coletivo preexistente exerça influência entre seus integrantes.

A intensidade e a impulsividade das manifestações de uma multidão poderão ser coibidas por valores/atitudes, sentimentos, comportamentos e reações do caráter nacional ou regional 22, quando preexistentes, dominantes e, assim, capazes de pre-valecer, ou, ao contrário, instigadas a práticas desabridas pela ausência ou fragilida-de desses traços psicológicos coletivos. Uma sociedade impetuosa e indisciplinada, sem controles inibidores adequados, preventivos ou repressivos, terá manifestações de agressão e destruição nos estádios de futebol, quando ocorrerem frustração e revolta na multidão. Uma sociedade pacata e respeitadora da lei e da ordem verá seus cidadãos frustrados ou revoltados manifestarem sua energia coletiva de uma forma mais civilizada, durante uma disputa esportiva. Como um fato social moderno produzido pela mídia, circunstâncias capazes de reunir uma multidão em determina-do local, poderão ser reproduzidas à distância para que uma reunião análoga ocorra em outro; a proximidade física ininterrompida, portanto, não é essencial, desde que haja sensação de contiguidade e identificação de motivações.

Sempre será efêmera, entretanto: a multidão deve ficar caracterizada pela impos-sibilidade de permanência e continuidade das circunstâncias motivadoras e mobili-zadoras que a geraram no tempo e no espaço. Justamente essa intuição de efeme-ridade, de inexistência de compromisso social permanente, de ausência de respon-sabilidades individuais e coletivas, embutida na vontade da reunião que produziu uma multidão, é que destaca a impulsividade nas manifestações de seus membros.

André Maurois 23, após ter desempenhado as funções de oficial de ligação jun-to às forças britânicas em operações na Europa continental no curso da Primeira Guerra Mundial, percebendo as diferenças de caráter entre ingleses e franceses (ca-ráter nacional), afirmou por um dos personagens, bem humorado, no seu livro “Os silêncios do coronel Bramble”:

“... para interessar um francês num match de Box, a gente tem de lhe dizer que sua honra nacional está comprometida; para interessar um inglês nu-ma guerra, nada melhor do que lhe sugerir que esta se assemelha a um match de Box.”

20 Refiro-me à “multidão heterogênea, anônima”, na classificação de Gustave Le Bon (Op. Cit.) 21 Examinaremos o fenômeno da vontade coletiva no capítulo 3 deste ensaio, página 89. 22 O caráter nacional e o caráter regional serão analisados mais adiante. 23 “Os silêncios do coronel Bramble” – André Maurois – Editora Globo - Porto Alegre/RS/1944, com texto revisado e versos traduzidos por Mário Quintana.

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O caráter coletivo assim, na verdade, é também determinante para uma manifes-tação coletiva espontânea – especificamente as reações que o conformam. Os vio-lentos “hooligans” ingleses do futebol de hoje, portanto, têm contestado ou evidenci-ado uma importante transformação no caráter inglês revelado pela imagem do escri-tor francês, divulgada há oitenta anos... Alguns analistas do fenômeno, entretanto, apontam os hooligans como grupos alienados de jovens violentos, infensos aos va-lores do caráter nacional inglês. É muito provável que circunstâncias criadas no Bra-sil para reunir uma multidão, reproduzidas de forma semelhante em outra nação, não obtenham o mesmo efeito motivador e mobilizador, ou, mesmo que o obtiverem, essa multidão estrangeira certamente reagiria de forma distinta aos mesmos estímu-los. Por que? O caráter nacional, o caráter coletivo de cada região dentro de uma nação ou o caráter coletivo de profissionais integrantes de uma multidão, dependen-do do grau de generalidade das motivações mobilizadoras, farão a diferença.

Há, por exemplo, no bojo da violência no futebol brasileiro, a crise de valores deste fim e princípio de séculos que afeta nossa juventude e enfraquece a energia positiva do caráter nacional ou regional, liberando, sem peias psicológicas coletivas - morais, éticas, espirituais ou profissionais -, as explosões emocionais de torcedores dentro ou fora dos estádios. A escola, em todos os seus níveis, com preocupações de ensino meramente cognitivo e psicomotor, sem capacidade de envolvimento afe-tivo (motivações e valores), é uma das causas.

“Estar na escola, infelizmente, já não significa nada em termos de integra-ção social, de fortalecimento de auto-estima, de se estimular vocações, de se aprofundarem valores e sentimentos ou de qualificações para os mer-cados de trabalho.” 24

Por essa razão, as multidões são diferentes nos diversos ambientes sociais em que se formam. A fragilidade de alguns aspectos do caráter coletivo de formação antecedente entre os integrantes de uma multidão pode torná-la perigosa. A turba é uma multidão formada por um tipo de reação, altamente motivada que se torna in-controlável por não ter valores/atitudes, sentimentos, comportamentos ou quaisquer peias psicológicas de consenso coletivo que seriam capazes, de alguma forma, de refrear ou direcionar suas manifestações; ou esses traços psicológicos coletivos foram suplantados pela paixão grupal desatinada que a gerou e exacerbou a reação. O caráter coletivo preexistente, consolidado e influente – profissional, regional ou nacional – como o enfocarei, exercerá uma espécie de contenção sobre as motiva-ções de uma multidão e seus efeitos impulsivos na vontade de ação. Impede a for-mação de turbas embora não padronize o comportamento.

Uma deformação grave do caráter coletivo está sendo estendida e aprofundada pela economia clandestina do narcotráfico - onde consumidores são cidadãos co-muns que aceitam essas desfigurações -, com códigos de valores invertidos em re-lação ao par conceitual bem/mal da economia oficial e do caráter das nações onde atuam; a agravante e, ao mesmo tempo, a vantagem que a faz próspera neste prin-cípio de século, é que não tem fronteiras e se expande sem dificuldades intranspo-níveis, criando todo o tipo de obstáculos e de ludíbrios com articulação internacional para neutralizar a ação e a reação de defesa e a repressão policial.

Para a boa compreensão do fenômeno caráter nacional é necessário que se dis-cuta, antes, o processo psicossocial que forma e consolida uma nacionalidade.

24 Carlos Alberto Rabaça – “Jovem, você tem futuro?” – Jornal do Brasil/30 de abril de 1998.

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EEssttaaddooss nnaacciioonnaaiiss ssoobbeerraannooss As nações modernas, como Estados soberanos, se formaram e foram configura-

das por um extenso e complexo processo evolutivo que aglutinou suas populações ao longo de grandes períodos da história. Existem e embora apontem diversos ní-veis para a consistência dessa aglutinação que as tornou reais, apresentam-se co-mo grandes instituições no concerto da humanidade. O que poderia, hoje em dia, sobrepujar, para um povo consciente de sua individualidade, a importância de uma existência particular, original, permanente e de sucesso como Estado soberano?25

Um exemplo dessa tenacidade. A dissolução da União Soviética em 26 de de-zembro de 1991 e as pressões centrífugas na artificiosa Iugoslávia (tentativa frustrada para criar, desde 1918, uma “Terra dos Eslavos do Sul”), liberaram vinte identidades nacio-nais históricas que estiveram sufocadas por arranjos dinásticos e sequelas cruentas dos conflitos europeus do século XX (quatorze repúblicas da antiga União Soviética e seis repúblicas balcânicas)26. A maioria participa, hoje, das competições desportivas mundi-ais com bandeiras, símbolos e hinos, exibindo para uma audiência universal, identi-dades e orgulho patriótico na poderosa mídia que cobre esses eventos.

A visão imaginária, devaneadora, de um mundo de homens unidos, sem frontei-ras, ou é mística – utópica, portanto - ou é autoritária (uma tese que discutirei no Livro 3 desta trilogia – “A imitação do combate”). O instinto gregário do homem foi sempre uma força muito vigorosa para a vida social, uma espécie de compulsão à formação de núcleos com atividades articuladas em torno de líderes familiares. A família é a mais antiga e natural sociedade dos homens, como já afirmara Rousseau em 176227. O famoso filósofo acrescentara, entretanto que

“Tão logo essa necessidade cesse [dos filhos em relação aos pais], o vínculo natural está desfeito”.

A permanência da prole próxima do pai, entretanto, mesmo cessando a depen-dência orgânica dos filhos, decorreu de uma compulsão gregária espontânea. A am-pliação desse agrupamento humano manteve a familiaridade e, por extensão, os não estranhos como razão e objeto do congraçamento. Essas células sociais iniciais se expandiram e adquiriram maior importância, mas sempre encontraram limites na incidência de algum desestímulo ou desencorajamento à união mais ampla pela quebra na garantia de sobrevivência. Quem estivesse fora desse processo circuns-crito pela familiaridade, interesses essenciais diretos comuns e, com isso, pelo co-nhecimento e confiabilidade, poderia não ser inimigo, mas era necessariamente es-tranho e não confiável.

Defenderem-se, dominarem, serem dominados ou procurarem uma convivência de alianças para a interação de atividades vantajosas, nunca alteraram essa coesão e consciência de harmonia entre não estranhos, que promovia integração social en-tre eles. A ideia de união universal contraria essa busca ancestral dos homens para a formação de famílias, tribos e agrupamentos maiores de conhecidos, semelhantes,

25 Existem riscos, todavia, cercando esse ideal; releia o apontamento da página 20. 26 URSS (CCCP): Uzbequistão, Azerbaijão, Tadjiquistão, Estônia, Ucrânia, Cazaquistão, Moldávia, Armênia, Letônia, Bielorússia, Geórgia, Quirguízia, Turcomenistão e Lituânia; Iugoslávia: Croácia, Bósnia-Herzegovina, Sérvia, Montenegro, Eslovênia e Macedônia. 27 “O contrato social ou princípios do direito político” – Livro I – 2/As primeiras sociedades – Jean Jac-ques Rousseau.

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criando uma história comum que é reforçada, no mundo moderno, pelo ideal de li-berdade do indivíduo projetado ao grupo de indivíduos que apresentem afinidades recíprocas e, por essa razão, congreguem suas atividades e unifiquem seus desti-nos. E são capazes de sobreviver dessa forma. A humanidade, no seu processo so-cial, assim, teve o desempenho da coalhadura do leite: o instinto gregário dos ho-mens nunca os impulsionou para a união universal, mas para coalhos sociais que os dividiram e apontaram uma inevitável vocação onde a paz entre as nações, como agrupamentos humanos de maior expressão, por sincera que seja a busca, jamais será um padrão de comportamento assegurado. Uma grave inferência que justifica, para as nações, a institucionalização da capacidade de defesa, sem devaneios en-ganosos de paz permanente assegurada28. É uma herança remota preservada pela natureza dos homens.

O bahaísmo (de bahá’i) parece ser um exercício contemplativo honesto dessa presunção de união universal. Segundo os ensinamentos de Mirza Ali Mohammed, místico persa do século XIX que reuniu elementos do islamismo, do cristianismo e do judaísmo para pregar a unidade espiritual essencial da humanidade29. Outras visões de união pressupõem, sempre, a preponderância do mais forte sobre os fra-cos ou subdesenvolvidos. Hollywood em seus devaneios ficcionistas sobre a unifica-ção do planeta em face de invasores extraterrenos sugere sempre os Estados Uni-dos como o líder da humanidade ameaçada... e conta com nossa boa vontade, es-pectadores basbaques de filmes com convincentes efeitos especiais, numa espécie de lavagem cerebral involuntária, agradável ao egotismo americano.

As nações têm sua história gravada a cada minuto, cada hora, em cada um de seus dias, cada ano, em todos os séculos de sua existência. A saga dos povos no mundo revela um conflito permanente para a preservação de tudo o que, afinal, foi-lhes dando individualidade e tornando irreversível a consolidação de suas nacionali-dades.

A região onde os agrupamentos humanos se articularam é, sempre, um fator es-sencial de união pela geografia que determina vocações coletivas e pelo fascínio que exerce sobre os seres humanos que aí se aclimam e aprendem a sobreviver. O que justificaria a permanência dos homens no Saara, nos desertos da Arábia Saudi-ta, na cidade de Tromsø (Noruega, a quase 70º N), na desolação da Sibéria, nas selvas insalubres, no calor escaldante dos trópicos, na solidão gelada das aldeias “inuits”, no isolamento da ilha de Spitsbergen no Ártico, em regiões sob permanente perigo sísmico, nas montanhas escarpadas do Tibete, em Thule na Groelândia? - o mar, a montanha, o deserto, a planície, a floresta, o excesso de água, a falta de á-gua, o frio, o calor, as dificuldades da escassez, a terra pródiga e a natureza gene-rosa aos cultivos ou, ao revés, a terra hostil e a natureza ingrata, o insulamento, a vulnerabilidade como área de confrontos de culturas, as distâncias, o estorvo das comunicações ou o desembaraço delas.

A atividade econômica é outro fator primordial, pois consolida a sociedade30, con-grega as pessoas pelo interesse básico de sobrevivência e desenvolve-lhes a ambi-

28 Uma tese muito importante que tratarei na Primeira parte do Livro 3 da trilogia “O espírito comba-tente” (“A imitação do combate”). 29 Em Haifa está o centro mundial do bahaísmo, onde Mirza Ali Mohammed foi sepultado. Há cente-nas de milhares de bahaís no mundo inteiro. 30 Sociedade como o “conjunto de relações entre os seres humanos” - Toynbee.

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ção coletiva pela prosperidade; a língua ou, mesmo, apenas, o linguajar, que surge dessa articulação física com a atividade econômica, aproxima, une e as transforma em seres não estranhos entre si, pertencentes a um mesmo universo; a história co-mum que vai gerando uma tradição de convivência; a cultura que se forma por essa tradição e as identifica pelos mesmos usos, gostos e vocações, criando, com o tem-po, um importante alicerce da nacionalidade; muitas vezes a etnia prevalece porque, sendo fruto de um isolamento em relação aos demais agrupamentos humanos, fun-da-lhes uma consciência de singularidade.

Esse conjunto de fatores - não necessariamente exclusivos ou homogêneos na in-fluência que exercem, nem obrigatoriamente presentes no processo de formação de uma nacionalidade, uns preponderando mais do que outros - vai gerando afinidades e dificuldades sentidas coletivamente, sofrimentos, solidariedade, aglutinando a von-tade de todos em relação a determinados propósitos de ação ou de sobrevivência; catástrofes periódicas ou não, como estímulos nesse sentido, foram e são, também, responsáveis pela união dos povos: invernos avassaladores, longas crises de fome, secas destruidoras, pestes ou epidemias, guerras ou a ameaça permanente delas. A despeito de todos os confrontos e hostilidades, as nações se admitem mutuamente e se reconhecem como realidades histórico-culturais e político-sociais -, resultado da necessidade de equilíbrio para a sobrevivência de todas ou de conveniência recípro-ca. O ideal de harmonia nessa convivência é legítimo e pode ser uma meta perma-nente: a procura de um sistema global de equilíbrio geopolítico auto-sustentável.

Com base nessas primeiras ideias devo tentar a formulação de um conceito, para facilitar o prosseguimento de minhas reflexões: nação, como Estado nacional sobe-rano e instituição universal reconhecida, é o agrupamento humano orgulhoso de sua unidade e soberania, surgido de aspiração coletiva dentro de um processo histórico específico, pela perseverante e manifesta vontade de seus membros, fixados em um território e ligados por laços culturais, econômicos e, muitas vezes, étnicos e linguís-ticos.

Uma nação, dentro dessa visão, pode fortalecer sua existência e presença ou fi-car vulnerável ao início de um seguimento inverso de perda contínua de vigor como instituição universal respeitada. A perda de intensidade no orgulho coletivo é uma boa medida dessa debilitação. Embora essa deva ser a convicção de seu povo, o Estado-nação soberano não é asseguradamente permanente. Como no amor infindo dos apaixonados, o ideal de pátria eterna deve ser reconquistado a cada dificuldade surgida e a cada desafio identificado31. Os grandes sacrifícios, as guerras, mesmo as derrotas, são capazes de fortalecer a obstinação pela nacionalidade. A energia anímica gerada dentro de um Estado-nação soberano pelo orgulho ferido é congre-gante, pois assinala a capacidade potencial de reação e a vitalidade do propósito de unidade. O povo nacional que adquire pela análise equivocada de sua realidade, como um traço psicológico coletivo (caráter nacional), um sentimento de pátria eter-na sem desafios e perigos que a possam ameaçar, além da desventurada ilusão em

31 Discutirei com mais abrangência o dogma sócio-político da pppeeerrreeennniiidddaaadddeee dddaaa pppáááttt rrr iiiaaa na Primeira Parte do Livro 3 (“A imitação do combate”) da trilogia “O espírito combatente”.

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que estará envolvido, perderá o elã e a energia que o poderia manter conquistando a cada dia essa perenidade32.

Essa privação do orgulho nacional, entretanto, pode ser lenta, insidiosa, com cau-sas sutis não perceptíveis por atos ou quaisquer eventos de manifestação concreta. O fenômeno degenerativo sobrevém por falta de acuidade ou inaptidão, em determi-nado momento histórico, para que um povo nacional perceba esses desafios e lhes dê respostas. Líderes insensíveis ao aproveitamento dos fatores e revigoramento dos estímulos que fizeram um povo sobreviver unido, podem ser responsáveis por essa perda da vitalidade coletiva. Ao deixar de perceber o que verdadeiramente lhe ameaça a existência, como tem acontecido com as civilizações33, uma nação, per-dendo a consciência de sua nacionalidade, pode omitir-se ou descuidar-se da opor-tunidade, da intensidade ou da qualidade das reações que a confirmariam como im-portante e permanente instituição humana.

IInnfflluuêênncciiaa ddee ffaattoorreess ee cciirrccuunnssttâânncciiaass hhiissttóórriiccaass eessppeecciiaaiiss Alguns fatores têm a faculdade de exercer maior influência na formação de cada

nacionalidade ou de desempenhar um papel peculiar, dependendo das circunstân-cias históricas especiais que envolvam esse processo. Na China, por exemplo, cuja formação de nacionalidade remonta às origens de uma antiquíssima civilização in-dependente, a escrita foi por muito tempo e continua sendo um poderoso elemento de unidade cultural e política. A partir de quatro grandes grupos linguísticos, os chi-neses reúnem, na verdade, diversas raízes étnicas e uma infinidade de dialetos inin-teligíveis entre si - o que representaria, em princípio, uma pressão para dissociação na imensa massa humana articulada em extenso e diversificado território.

Sua escrita, cujo desenvolvimento data de cerca de dois mil anos a. C., possui em torno de dois mil ideogramas de uso corrente dentro de uma vastíssima relação de cerca de cinquenta mil. Cada um desses símbolos identifica uma palavra única e diferente de todos os demais; podem ser lidos, entretanto, pela ideia universal que representam, por todos os chineses instruídos, quaisquer que sejam seus dialetos dentro dos grupos linguísticos existentes. Exatamente como nós, ocidentais, identifi-camos o significado e o valor que cada um dos algarismos arábicos representa, em-bora expressos oralmente de forma diferenciada em cada língua. Não obstante a existência de palavras diferentes nas línguas e dialetos de seu território, a escrita chinesa, ao tornar compreensíveis, por séculos, as obras clássicas, perpetuou as ideias e as formas tradicionais. Assim, incutiu certas noções filosóficas na mente das elites e cristalizou padrões de comportamento individual, relações familiares e orga-nização governamental34.

Na formação da identidade nacional chinesa a linguagem escrita, mais que a fala-da, foi a chave do poder e da influência. Os percalços enfrentados pelos povos chi-neses para se consolidarem como Estado soberano unificado, desde a lendária di-

32 Medite, no fim deste capítulo, na indicação da página 66, sobre os problemas da “síndrome do ber-ço esplêndido”, um perigoso traço do caráter nacional brasileiro (procure os conceitos de Estado nacional soberano, nação, pátria e patriotismo no Glossário de Apoio, página 167). 33 Desafio e resposta, importante tese de Arnold Toynbee (“Um estudo da História” - Martins Pontes). 34 “Nações do mundo - China” - Unificação pela escrita - Cidade Cultural.

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nastia Xia (2200-1766 a. C.) até hoje, tiveram, no desenvolvimento da escrita ideográfi-ca, um importante e peculiar fator de aglutinação e de identificação cultural. De uni-dade, portanto.

A Alemanha, outro interessante exemplo, pelo fato de situar-se no centro euro-peu, tem suportado a pressão e sobrevivido ao embate de culturas e etnias por três mil anos, desde a ocupação pelas tribos primitivas dos “germani” das terras que se estendiam do mar Báltico até o Danúbio e do rio Reno ao Oder. Um país que sem-pre esteve aberto a todos os ventos do continente e que viveu, no século passado, momentos críticos de grande turbulência, tem sido, por isso mesmo, importantíssimo para o equilíbrio de forças da OTAN (NATO)35. Um momento crítico para o sucesso desse tratado foi, justamente, a negociação para o ingresso da Alemanha Ocidental, no início de 1950, considerado essencial para o futuro da paz pela articulação de suas forças. Hoje, unificada, a Alemanha é a chave da harmonia europeia e do su-cesso para o avanço na integração econômica e política de suas nações – ou o grande percalço para esse propósito. Seus povos formadores articularam-se nessa encruzilhada do continente, atravessada pela Grande Planície Setentrional, onde fronteiras naturais só existem ao norte, com o mar, e ao sul, com os Alpes. Os seus rios mais importantes - o Reno, o Ems, o Weser, o Elba, o Main, o Oder e o Danúbio - são acidentes que serviram mais para ligar suas populações do que para isolá-las.

Uma terra assim exposta estava fadada, desde o início, a atrair nômades, coloni-zadores e invasores. A inconsistência do fator espaço geográfico capaz de assegu-rar uma permanente definição de fronteiras, lançou os alemães, através dos séculos, na identificação de sua nacionalidade pela aproximação de grupos étnicos e linguís-ticos afins. O surgimento de uma língua universal, embora como instrumento de eru-dição, a partir da tradução da Bíblia do hebreu e do grego, feita por Lutero (1483/1546), serviu a esse esforço e, em grande parte, contribuiu para que a nação tivesse uma língua literária36. As deformações e os exageros dessa particularidade do caráter alemão estimularam Hitler no esforço para integrar à “Grande Alemanha” as minorias de “raça” e fala germânicas na Europa e alhures.

Os alemães compreendem e sentem esse tipo de apelo, mais do que qualquer outro povo europeu. Constantes extirpações e mutilações de território, particular-mente aquelas ocorridas após as duas guerras mundiais, algumas importantes - Prussia Oriental, Silésia e o seccionamento em dois países, por exemplo - têm sido contribuições para esse peculiar e indisfarçável apego dos alemães às suas etnias e língua dentro de um ideal pangermanista, como recurso para a preservação da iden-tidade nacional.

Os Estados Unidos foram se formando como nação a partir da fundação de Ja-mestown, na Virgínia, em 1607. A tendência das colônias era o fortalecimento regio-nal, os códigos próprios e a defesa de suas crenças, tudo como decorrência do im-pulso de liberdade e de temor a governos centrais fortes e autoritários. Justamente esse espírito havia afastado os pioneiros de suas terras de origem. A língua unifica-da e o consenso contra a dominação britânica que prejudicava, inibia e agredia o interesse dos colonos e a expansão do comércio nas colônias, provocaram, com o Congresso de Albany, o início das definições para a união nas lutas da independên-cia. Em 1754, em Albany, N. Y., Benjamin Franklin propõem aos delegados de um 35 Organização do Tratado do Atlântico Norte (“North Atlantic Treaty Organization”). 36 “Nações do mundo - Alemanha - Séculos de conflito”, Abril Livros.

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congresso intercontinental a criação de um Grande Conselho que teria o poder de se sobrepor às assembleias ou parlamentos de cada colônia em questões de defesa. A proposta não foi aceita, mas deu início ao processo de união. Sobreviveram, entre-tanto, após 4 de julho de 1776, tanto a tendência regionalista para a fragmentação, como um movimento de “Join, or die” que culminou com a vitória dos federalistas na constituição de 1787. Hoje, segundo a opinião do editor brasileiro de “Os artigos fe-deralistas” 37, sem instituições ou símbolos intemporais, sem uma história suficien-temente longa para constituir uma memória integradora, povoado por pessoas de diferentes religiões, nacionalidades e raças, os Estados Unidos têm na Constituição o mais importante pilar da identidade nacional. Escrita por apenas cinquenta e cinco delegados, de doze estados, presentes à Convenção da Filadélfia em 1787, é o mais antigo texto constitucional em vigor, sendo objeto de veneração em seu país.

Muitas vezes vigorosos antagonismos internos impediriam a unidade nacional se algo, identificado acima de tudo, não fosse capaz de preservar a união historicamen-te conveniente. A monarquia espanhola é um exemplo. Aceita pela significante maio-ria dos habitantes das dezessete províncias, preserva a unidade espanhola que, cer-tamente, seria difícil sem a figura do monarca acima dos movimentos separatistas ou da marcante individualidade histórica de algumas delas. Esse instituto procura se identificar com as origens mais remotas e mais importantes do povo espanhol. O herdeiro do trono, por exemplo, com o título nobiliárquico de “Príncipe de Astúrias” desde o reinado de Juan I de Castela (1379-1390), traz à memória coletiva, com forte simbolismo, o início da restauração da Espanha cristã face ao domínio multissecular dos mouros - representa, assim, a invencibilidade e a permanência da Espanha visi-gótica. Em 718 de nossa era, a reação contra a invasão mourisca nas Astúrias, sob a liderança de Pelágio, derrotou-os em Covadonga, fato que, mais tarde, foi conside-rado o início da “Reconquista” - um esforço de seis séculos para expulsar os muçul-manos da península. Dificilmente um basco ou catalão de bom senso deixaria de aceitar essa simbologia que faz da monarquia uma representação da força e conti-nuidade da Espanha não pagã, de glórias assombrosas e em cujos domínios “o sol jamais se punha...”. Sem dúvida um poderoso apelo, acima das culturas regionais e dos movimentos emancipacionistas. O Generalíssimo Franco que tentou garrotear os regionalismos pela força de sua ditadura rendeu-se a essa realidade, preparando, para garantia da união, a restauração da monarquia e o rei para sucedê-lo na chefia do Estado.

O fundamento da identidade britânica é a monarquia que, em princípio, não impe-de a paulatina transformação do Reino Unido em uma descentralizada federação de nações. Sem a monarquia, entretanto, os britânicos perderiam sua identidade. A Grã-Bretanha tem, na sua característica insular, um forte elemento de persuasão à união face ao resto do mundo e, particularmente, à Europa, de onde sempre vieram as ameaças, disputas políticas e os conflitos econômicos. A monarquia tem se colo-cado acima dos antagonismos e diferenças de geografia, cultura, tradições e língua entre escoceses, galeses, ingleses e, menos, irlandeses do norte e mantém uma coesão vantajosa e proveitosa para todos. Suprimi-la seria por em risco essa união, mesmo que os britânicos tenham que absorver as periódicas crises decorrentes do comportamento social da família real, ontem e hoje. O drama da Princesa Diana e a comoção do mundo com seu martírio, ao contrário do que se possa imaginar, apon-

37 “Os artigos federalistas”- James Madison, Alexander Hamilton e John Jay - Nova Fronteira.

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tou o fascínio que a monarquia exerce sobre as pessoas, capaz de unificar os sen-timentos acima de quaisquer divergências, além de proporcionar lucrosas audiências mundiais de televisão. Antes de pensar em abalo dessa instituição britânica e de perda de prestígio dos Windsor, a despeito da atitude iconoclasta e sensacionalista dos tablóides ingleses, podemos especular sobre a força do carisma da Princesa projetando-se sobre seu primogênito – esguio e com o mesmo sorriso com que a mãe cativou o planeta - e, com isso, fazendo medrar entre os britânicos a expectati-va de tê-lo como soberano. E o deslumbramento em todas as latitudes por esse epí-logo de um conto de fadas...

Os judeus preservaram sua identidade nacional resguardando, de forma quase obsessiva, sua cultura, tradições, misticismo religioso e língua. O ódio e as perse-guições que provocaram em terras estranhas após a diáspora, - o Holocausto da Segunda Guerra Mundial é a lembrança trágica mais recente - pelo talento financei-ro, capacidade de trabalho, destaque intelectual e isolamento cultural, serviram para essa preservação até a reconquista do território de suas origens e o reconhecimento internacional como Estado soberano em 1948 - um esforço que não tem sido fácil e que está, ainda, longe de sua conclusão. E, no momento atual, em grave crise.

A estabilidade de limites geográficos como definição de espaço físico ocupado tradicionalmente por um povo, acaba transformando a linha de fronteira em forte e-lemento de unidade e de orgulho nacional. Uma língua original e uniforme falada e cultivada por todos os nacionais pode representar, simultaneamente, um instrumento muito importante para o entendimento entre eles, para caracterizar a individualidade pátria e para a difusão e consolidação culturais. Mas se a língua nacional tem sido tão importante para a nação alemã pelas constantes mutações na definição de suas fronteiras, o mesmo não ocorreu com a Itália que iniciou a universalização de sua língua pela península a partir da conclusão, em 1321, da “Comédia” de Dante Alighi-eri no dialeto toscano (primeira edição escrita como “A Divina Comédia” em 1555), e só foi politicamente unificada em 1861. A língua conhecida atualmente como o italia-no é, essencialmente, o dialeto da Toscana - apenas uma dentre as várias modifica-ções, transformações e adaptações da antiga língua latina da península. Foi esse dialeto, porém, que o poeta Dante utilizou em sua obra prima do século XIV. Os es-critores italianos posteriores foram muito influenciados por Dante e pouco a pouco o toscano ficou sendo a língua da intelectualidade38. Em 1982 apenas 29% dos italia-nos falava a língua oficial em casa.

Não há uma regra. As circunstâncias determinam o processo. Os povos formado-res da Alemanha vivem, há três mil anos, em um empenho coletivo pela sobrevivên-cia nacional. Os povos da península itálica, ao contrário, com uma tradição histórica de autonomia política nas regiões, resistiram, permanentemente, à unificação, desde o século V da nossa era até 1861. A proteção intransigente de seus dialetos serviu a esse propósito.

Fronteiras estabilizadas dão ao Brasil, com uma língua nacional dentro de um continente hispânico, fortes elementos de união - o desenho com os contornos de nosso País é tão representativo como a Bandeira e as cores verde e amarelo. Um idioma comum, também, pode identificar e irmanar regiões e culturas distantes. Houve, no fim do século XX, o exemplo do drama vivido desde 1975 pelo Timor Les-te de fala portuguesa em busca de socorro contra a agressão e o martírio a que es- 38 “Nações do mundo – Itália – Uma terra severa” – Editora Cidade Cultural.

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tavam sendo submetidos pela Indonésia que não reconhecia sua determinação pela independência. Os timorenses procuraram entre nós, do outro lado do mundo, a aju-da daqueles que sentem ser seus “conhecidos” porque falam o mesmo idioma.

A língua castelhana, no entanto, não foi suficiente para aglutinar populações su-jeitas a desafios específicos e articuladas em regiões com expressivas diversidades, submetidas a influências diversas do Caribe, do Atlântico, do Pacífico, do confronto de interesses de grandes potências ou do isolamento imposto pelos elementos geo-gráficos – uma monarquia talvez obtivesse esse efeito de união dos povos dos re-cém-desfeitos vice-reinados de Nova Granada, do Peru e do Rio da Prata. Os dois grandes libertadores, Bolívar e San Martín, reunidos em Guayaquil em julho de 1822, não lograram entendimento nesse sentido, pelo choque, quem sabe, de ciú-mes, orgulho e ambições pessoais. É bastante razoável a versão histórica de ideias monárquicas na cabeça de San Martín até sua conferência com Simon Bolívar em Guayaquil - afastadas por algum motivo ainda não esclarecido: seria a única forma de manter unidos os povos dos três vice-reinados sul-americanos. Antes de sua morte, Bolívar, desiludido com a anarquia e disputas regionais que substituíram um grande sonho, declarou que a América era ingovernável e “aqueles que serviam à revolução aravam o mar”, concluindo que a única coisa a fazer era emigrar. Foi jus-tamente o que fizera San Martín, dois meses após a citada conferência...

No México, uma região de terras altas, os espanhóis iniciaram a conquista em 1519, apossando-se de Tenochtitlán, capital de um império já existente – a conver-são de milhões de índios e a unificação do catolicismo com o mito da Virgem de Guadalupe, ajudou ao processo de união e de identificação da nacionalidade mexi-cana. Em doze de dezembro de 1531, Juan Diego39, um índio da tribo Nahua con-vertido declara ter testemunhado a aparição da Virgem Maria, com a pele morena, na cidade de Guadalupe: os índios consideraram uma benção, abandonando, em conversão maciça, seus ritos sangrentos e crença em deuses cruéis e implacáveis, abraçando com ingenuidade a nova religião que pregava o amor, a igualdade dos homens e o acesso ao paraíso.

Qual seria a força e o significado para o povo alemão de um mapa com o dese-nho atual da Alemanha unificada? Ontem dividida? Anteontem, por um fugaz mo-mento, ampliada com as anexações e vitórias de 1941-42? Trasantontem dominada pelo espírito prussiano logo extirpado de seu território? Com a Silésia ora incorpora-da, ora suprimida? Anteriormente, com os lindes do Império Alemão de Guilherme II? Mais remotamente dividida e esfacelada por discórdias e disputas sem fim?

Na bota italiana - vigorosa sugestão geográfica para unificar um povo - desenha-da pelas praias do Adriático, do Jônico, do Tirreno e do mar da Ligúria e sustentada, ao norte, pelo arco dos Alpes e suas portentosas montanhas, o divisor longitudinal dos Apeninos impediu ou dificultou muito as comunicações e a articulação política até meados do século XIX, quando o nosso intimorato guerrilheiro farroupilha, Giu-seppe Garibaldi, “herói de dois mundos”, um republicano convicto, obteve a unifica-ção política da península (1861), assimilando a solução monárquica sob a Casa Real de Savoy...

A fragmentação espontânea da União Soviética, cessada a motivação ideológica e a coerção que reunira regiões, etnias, culturas e línguas dessemelhantes mostrou 39 Juan Diego Cuauhtlatoatzin, em Tepeyac, noroeste da Cidade do México, em 9 de Dezembro de 1531.

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a um mundo surpreso, a força dos fatores de individualização que permaneceram apenas contidos, mas vigorosos e prontos para fazerem emergir intacto, após seten-ta anos de dominação, o orgulho nacional dos povos que sempre se sentiram domi-nados (releia o apontamento da página 34).

O exame atual do mapa político do nosso planeta mostra que ainda restam muitos ajustes, a despeito da força que submete e do interesse dos dominadores eventuais. A globalização das economias com a abertura dos mercados nacionais e o domínio de novas regras e de nova ética no relacionamento entre governos, como uma es-pécie de defesa ou de melhor organização para esse convívio internacional, deter-minaram uma tendência para a reunião de Estados soberanos em blocos regionais, uma vez descobertas e aceitas as afinidades e interesses essenciais comuns. As nações economicamente mais vigorosas, entretanto, formam o alicerce dessas es-truturas de poder e de comércio - o que as torna, sempre, suspeitas...

Reconhecemos hoje os novos desafios aos Estados nacionais, como a revolução financeira internacional onde "o mundo sem fronteiras representa certa perda, pelo país, do controle sobre sua moeda e suas políticas fiscais", como o aquecimento do globo terrestre, a pressão demográfica, a biotecnologia, a robótica, o terrorismo in-ternacional e as drogas. São indiscutivelmente forças e pressões transnacionais provocadoras de distúrbios futuros sobre as nações, fora de seus tradicionais contro-les ou recursos de ação.

"As forças-tarefas navais e as divisões blindadas têm seu uso, mas não são capazes de impedir a explosão demográfica mundial, conter o efeito estufa, sustar as transações cambiais, proibir as fábricas automatizadas e a agricultura a em outros países, e assim por diante." 40

Estruturas intergovernamentais de supervisão e ação devem preservar os Esta-dos soberanos no exercício do entendimento necessário às soluções, na rapidez e objetividade de resultados. Já a criação de mecanismos e órgãos supranacionais será sempre estranha e perigosa, porque estariam – como estão os existentes - sob o controle dos Estados mais ricos e poderosos. Uma espécie “civilizada” de domina-ção e de submissão.

Nações, para serem fortes, devem surgir como resultado dos conflitos gerados pelos fatores enunciados. Estados artificiais, criados, sob circunstâncias especiais de pressão política, com o obscurecimento de seus principais protagonistas - o povo e seus líderes integrados no processo social que o envolve - pela eventual conveni-ência de outras nações perdem a saúde e estarão condenados ao desaparecimento se, no momento histórico azado, não estiverem motivados para as modificações e ajustamentos que retomem o processo evolutivo natural para se converterem, de fato, em nações soberanas.

As aglutinações na Europa Central, como Estados independentes, organizadas e impostas em decorrência das duas guerras mundiais, acabaram cedendo à pressão mais forte das etnias, das culturas e das línguas mudando, nem sempre sem violên-cia, o mapa outorgado (apontamento na página 34). Politicamente instáveis, alguns Es-tados “independentes” africanos subsaarianos, herdeiros de fronteiras administrati-vas interessantes e vantajosas para as antigas metrópoles imperiais, sofrem e ar-quejam pela preponderância das raças e culturas tribais que manifestam antagonis-mos internos profundos e de difícil reversão. O retorno de Hong Kong ao seio da 40 "Preparando para o século XXI" - Paul Kennedy - Editora Campus

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mãe-pátria – após cento e cinquenta anos de sucesso econômico e prosperidade geral -, embora tenha gerado preocupações e receios entre os antigos súditos britâ-nicos sobre o futuro de sua liberdade, demonstrou ao mundo, sem sombra de dúvi-da, a resignação dominante dos chineses residentes nesse reencontro com suas origens.

OO iiddeeaall ddee lliibbeerrddaaddee nnaa ccoonnssoolliiddaaççããoo ddoo mmooddeerrnnoo EEssttaaddoo nnaacciioonnaall ssoobbeerraannoo Uma nação não é, somente, uma economia que funcione. Ou um território tradi-

cionalmente ocupado. Nem um povo falando uma mesma língua original. Ou, sim-plesmente, uma raça. O orgulho coletivo e a vontade nacional, perseverante, de e-xistir como Estado soberano - não obstante efervescências e dissensões internas - devem despontar dos conflitos e da influência dos fatores históricos de união para dominarem como um poderoso sentimento nacional todo o processo de formação da nacionalidade, suprindo a eventual fragilidade de alguns deles com o desvelo por outros. Os croatas e seu recente Estado nacional soberano são um belo exemplo da perseverante vontade de um povo (examinarei o problema da vontade coletiva no capítulo 3, página 89).

A pertinácia palestina que acompanhamos desde o reconhecimento do Estado de Israel em 1948 - ele próprio decorrente da vontade multissecular dos judeus -, transmudou-se da inquietação de cerca de setecentos mil refugiados de sua terra natal, para uma mobilização crescente que cede, periodicamente, ao recurso deses-perado e traumático do terrorismo; pouco e pouco, entretanto, ao sentir o apoio dos estado islâmicos, foi se transformando em intenso, dramático e inegavelmente im-portante movimento político da vontade de um povo. Criou-se, afinal, uma expectati-va mundial para o reconhecimento de seu Estado soberano. O fator atual (item “A mu-tabilidade do caráter nacional”, página 48) mais importante para essa motivação de união e de vontade do povo palestino tem sido justamente a presença de judeus no território que ocupavam desde o século sétimo de nossa era. Do ponto de vista palestino é irrelevante a argumentação de posse, em tempos bíblicos, de uma terra mística para ambos. O então Presidente da Autoridade Nacional Palestina Yasser Arafat, em 24 de abril de 1998, confirmava em Bonn (Alemanha) a proclamação - maio de 1999 -, do Estado Nacional Palestino com capital em Jerusalém Oriental. A intenção já pro-curava uma data, portanto. Seus sucessores ainda a procuram em um quadro cada vez mais dramático.

Essa participação imprescindível do povo e de seus líderes integrados na forma-ção da nacionalidade – como seus verdadeiros protagonistas -, tem evoluído com a maior consciência universal dos direitos humanos, com a valorização da cidadania e com a consequente envoltura das pessoas pelo ideal de liberdade, no seu sentido mais amplo. Nada pode ser bom sem que o homem seja preservado no seu valor e integridade física e psicológica. Esse pensamento, pelo menos, representa a ten-dência para o fortalecimento das nações modernas e foi a causa da derrocada de impérios despóticos, opressores e escravizantes. Segundo Daniel Goleman41, toda-via, essa inclinação atual para a autonomia cada vez maior do indivíduo encerra al-guns perigos como o aumento, muitas vezes brutal, da competitividade, o isolamento 41 “Inteligência emocional”- Daniel Goleman - Objetiva

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das pessoas e, portanto, a deterioração da integração social. Uma dificuldade nova das grandes nações para que seus cidadãos permaneçam voltados para os interes-ses da nacionalidade.

No ocidente, o primeiro movimento renovador no sentido que estamos enfocando foi o que os britânicos evocam como a “Revolução Gloriosa de 1688”, um remate incruento do longo conflito no século XVII entre os reis da dinastia dos Stuart e o parlamento. Em 1689 foi promulgada a “Bill of rights” e implantada definitivamente a monarquia constitucional. O conflito foi iniciado com o rei Carlos I, intransigente de-fensor do direito divino e da ação por incontestáveis “prerrogativas” reais: o sobera-no só se submeteria a Deus. Após guerra civil entre os partidários do rei e do Parla-mento, Carlos foi decapitado (janeiro de 1649) e Cromwell implantou uma ditadura com os rigores do puritanismo. Cromwell morreu em 1658 e a recidiva das “prerrogativas” voltou com Jaime II. O Parlamento interveio em 1688 (“Glorious Revolution”) ofere-cendo a coroa a Maria, filha do monarca, com o marido holandês Guilherme de O-range, sob as condições dispostas na “Bill of rights” (em 1689). O absolutismo que se fundamentava no direito divino foi erradicado da ilha.

Outro brado revolucionário que iria influenciar definitivamente as nações do mun-do ocidental, com o lema de “liberdade, igualdade e fraternidade”, foi ouvido com a Revolução Francesa no final do século XVIII e consolidado nos Estados Unidos da América com o desenvolvimento da democracia representativa. Nesse lado do Atlân-tico, também, os pensadores que o provocaram na França42, já haviam impressio-nado os líderes fundadores da nação em 1776, onde as inquietações de mudanças mais amplas aportaram em Massachusetts, no dia 11 de novembro de 1620, com os peregrinos do “Mayflower”. O valor de uma lei que defina os direitos do povo e limite a autoridade de um governante, a importância do povo para o Estado nacional sobe-rano e o governo desse povo, foram os grandes passos concretizados em 1689, 1776 e 1789 na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França, criando o fermento para a transformação das grandes nações ocidentais.

A Coroa Portuguesa se manteve isolada da evolução jurídica no ocidente te-mendo as grandes transformações que ocorriam no mundo civilizado, dentro de sua própria cultura. Durante os mais de trezentos anos de domínio lusitano o Brasil ge-meu sob o regime penal extremamente cruel do Livro V das Ordenações Filipinas. A sentença de condenação de Tiradentes, nosso grande herói nacional e Protomártir da Independência, bárbara e medieval, é do Tribunal de Alçada do Rio de Janeiro no ano de 1792 em julgamento presidido pelo Vice-Rei do Brasil, José Luiz de Castro Resende, Conde de Resende. Parece claro que o remédio desnaturado tentava con-ter os ventos libertários que já sopravam na América:

“(...) Portanto condenem o réu Joaquim José da Silva Xavier por alcu-nha o Tiradentes, alferes que foi da tropa paga da Capitania de Minas, a que, com baraço e pregão seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca e nela morra (...) E o seu corpo seja dividido em quatro quartos, e pregados em postes pelo caminho de Minas, no sítio de Varginha e das Cebolas, onde o réu manteve suas infames práticas, e os mais nos sítios de maiores povoações, até que o tempo também os consuma; declaram o réu infame, e seus filhos e netos sendo-os, e os seus bens apliquem para o Fisco e Câmara Real, e a casa em que vivia em Vila Rica será arrasada, e salgada, para que nunca mais no chão se edifique, e, não sendo própria,

42 Voltaire (“Candide”), Montesquieu (“O espírito das leis”), Rousseau (“O contrato social”).

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será avaliada, e paga a seu dono pelos bens confiscados, e no mesmo chão se levantará um padrão, pelo qual se conserve na memória deste a-bominável réu.”

O ideal de liberdade vem, assim, aos poucos, se transformando na condição fun-damental da união de um povo – mesmo com sequelas e dificuldades novas -, uma meta que a “aldeia global” 43 desse início de milênio não deixa que se oculte, nem mesmo nas mais remotas paragens do planeta. Sem homens livres, já pensava A-braham Lincoln ao enfrentar a primeira grande crise de secessão na guerra civil, a União não teria condições de sobrevivência. Valia dizer que a nação americana, no pensamento político daquele grande líder, tal como pregaram os federalistas vitorio-sos em 1787, perderia sua unidade sugerida por circunstâncias históricas que vi-nham sendo trabalhadas e que, naquele trágico momento de confronto, passavam por teste definitivo. A partir de 27 de outubro daquele ano, no Independent Journal de Nova York, James Madison, Alexander Hamilton e John Jay, iniciaram a publica-ção de 85 artigos escritos na defesa do texto da constituição firmado pela Conven-ção de Filadélfia daquele ano, para obter a crucial adesão do estado de Nova York. Os artigos deram início a uma dura polêmica que obteve, afinal, a ratificação do tex-to pelo estado por apenas três votos. A harmonização dos conceitos abstratos de liberdade e felicidade individuais, definidos pelos impulsos emocionais e entusiásti-cos da declaração de independência dos Estados Unidos44, com a dura realidade de sobrevivência da nação, teve o acréscimo dos ideais práticos de ordem e de tranqui-lidade social no texto genial da constituição, cerca de treze anos depois. A concilia-ção desses propósitos muitas vezes colidentes tem marcado a história americana.

O cidadão comum das nações modernas, apreendendo a notável lição, deve acei-tar esse permanente conflito como o grande desafio para a preservação e fortaleci-mento nacionais. Está aí, nesse ponto crucial, o embasamento para a perenidade de um povo que deve orientar governos soberanos, legisladores e líderes políticos, co-mo delegados da sua vontade. As nações de hoje precisam da vontade nacional (e-xaminarei o problema da vontade coletiva no capítulo 3, página 89) manifesta para se mante-rem e se fortificarem como Estados soberanos com o dominante ideal de liberdade e seus eflúvios como base dessa determinação coletiva. Não pode bastar ao cidadão que sua nação seja independente política e economicamente forte, se sua liberdade estiver contida, ameaçada ou sacrificada. Mesmo que tenha de ceder, eventualmen-te, sem o eclipse desse ideal, para a manutenção da ordem e da tranquilidade social que assegurarão a sobrevivência coletiva. Sempre, de qualquer forma, uma luta em torno de valores.

Com as considerações desses dois últimos itens, retomo a idéia de caráter nacio-nal, de sua formação e de sua importância.

43 Na acepção utilizada por McLuhan. 44 “We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal; that they are endowed by their Creator with certain unalienable rigths; that among these are life, liberty, and the porsuit of hap-piness. That, to secure these rigths, governments are instituted among men, deriving their just powers from the consent of the governed; that, whenever any form of government becomes destructive of these ends, it is the right of the people to alter or to abolish it, and to institute a new government, lay-ing its foundation on such principles, and organizing its powers in such form, as to them shall seem most likely to effect their safety and happiness.” Excerto da Declaração de Independência, 4 de julho de 1776 – Thomas Jefferson.

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CCaarráátteerr nnaacciioonnaall -- ppeerrffiill ppssiiccoollóóggiiccoo ddee uumm ppoovvoo Nesse grande processo que desenvolve e consolida a vontade de um agrupamen-

to humano fazendo nascer uma nação como Estado soberano, avulta de importância a formação do caráter nacional que tem no orgulho coletivo a sua primeira e mais importante manifestação. Esse perfil psicológico coletivo surge, espontâneo, no es-pírito das pessoas conciliadas em torno do desejo permanente de união, criando for-te consenso dos valores que daí decorrem e conformando, entre elas, as atitudes que condicionarão os comportamentos, os sentimentos e as reações (a Ilustração 4, página 50, mostra essa prevalência dos valores e das atitudes no processo interativo da formação de uma nacionalidade). O caráter de um povo deve sintetizar o efeito de toda aquela força centrípeta que o congrega e o conscientiza para uma existência peculiar e irreversí-vel no planeta. Só existirá uma nação com presente denso e futuro assegurado se puder ser identificado entre seus cidadãos um caráter nacional, refletindo-se nas imposições formalizadas pela lei vigente, nos costumes, na cultura e nas sugestões e envolvimentos de consenso, como uma energia positiva, inspiradora, insinuante ou, muitas vezes, coerciva, fruto das pressões e contrapressões na formação de sua nacionalidade. O enfraquecimento ou os desvios nessa definição da identidade cole-tiva indicarão, certamente, o definhamento do vigor nacional pela desfiguração de sua cultura. O caráter nacional é, assim, por definição, a principal base para a for-mação cultural de um povo.

O caráter nacional - é preciso cuidado para não simplificar em demasia um pro-cesso complexo e de difícil aclaramento - é a projeção mais ampla do caráter coleti-vo, embora seja possível a definição do caráter de um grupo humano mais numero-so – ainda que sem a sugestão da mesma força aglutinativa -, que abarque os vários povos de uma mesma civilização em determinado período de sua evolução social. Qual seria, assim, o caráter do homem ocidental de hoje? Há, certamente, um cará-ter hispano-americano ou, com mais amplitude, um caráter latino-americano ou ibe-ro-americano. Qual o caráter dos homens de antigas civilizações independentes45 como a sumério-acadiana, egípcia, egeia, hindu, sínica? Mesmo que nesse caso a força da cultura substitua a vontade que assinalamos na formação das nações. Sem uma comparação razoável com outras espécies próximas, os mais 6,6 bilhões de homens pensantes e imaginativos que hoje habitam o planeta Terra podem ter defi-nido seu caráter, como o caráter do gênero “homo sapiens sapiens” - sociável, a-gressivo, competitivo, dominador?

Esse esforço teria de procurar os valores comuns, as atitudes que lhes corres-pondessem e os efeitos do conjugado valores/atitudes sobre os procedimentos ca-racterísticos da maioria das pessoas face aos mesmos estímulos. A definição do caráter de um grupo, desde um pequeno grupo profissional até uma nação ou, como vimos ser possível, de um grupo de nações, seria tanto mais restrito quanto maior fosse o universo abrangido. Parece lógico que os traços comuns ficariam mais difí-ceis e mais raros - embora mais vigorosos -, na proporção direta da amplitude do universo considerado. Além disso, também parece lógico, o caráter coletivo surgiria da intensidade da influência dos fatores de unificação, de união, de harmonia, de

45 Segundo Arnold Toynbee.

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associação, de aproximação, de adesão, presentes e atuantes - seja na simples ati-vidade profissional do pequeno grupo a que se fez referência, seja na formação da nacionalidade de um povo, nos percalços desafiadores, instigadores, devastadores, durante os períodos de existência de uma civilização ou na incrível aventura do ho-mem do planeta. Percebemos, com clareza, a existência dessa sinergia quando so-mos obrigados a permanecer em país estrangeiro por um período maior do que uma simples turnê. Mesmo quando há identidade cultural, passados os primeiros dois ou três meses de entusiasmo turístico, ao notarmos nossas próprias dificuldades para expressar um pensamento ou nosso sotaque no esforço de falar a língua local, de repente, além disso, um dia, amanhecemos com a percepção de que, nós brasilei-ros, pensamos, sentimos e agimos de forma diversa de nossos anfitriões. Reconhe-cemo-nos estrangeiros muito além de um simples passaporte que declara burocrati-camente nossa nacionalidade.

Por razões históricas em sua própria formação o caráter dos espanhóis os aponta como trágicos e passionais (sentimentos). A tourada que em todo o tempo os fasci-nou é, sempre, uma expectativa de tragédia. Transmitiram esses traços, também por circunstâncias específicas, aos povos de algumas nações que surgiram de suas conquistas e colonização. O tango argentino, como manifestação do gosto popular portenho, com suas letras de desgraças amorosas, traições e abandono, de alguma forma, reflete essa marca. Vivenciei essas diferenças.

Atividades e obrigações profissionais levaram-me a morar em Lima, Pe-ru, durante o ano de 1972 onde vivi, pela segunda vez, essa experiência de estrangeiro residente. Ainda no início de minha estada naquele país, cumprindo indefectível programa turístico familiar, na tarde cinzenta de um domingo limenho, sugeri à minha mulher um circuito a pé para a aprecia-ção do barroco espanhol de algumas igrejas do centro da cidade. Encerra-ríamos o giro na Catedral construída em 1535. Ao entrar na primeira delas, em altar especial, deparamo-nos com a imagem de Cristo supliciado que provocou uma espécie de pânico em minha filha caçula – na época uma menina de oito anos - e nos impediu de prosseguir no roteiro da visita den-tro do templo. Os negros cabelos implantados na imagem compunham um sinistro desgrenhamento... A figura apresentava um semblante de dor co-mo jamais havíamos visto em imagens coloniais brasileiras. O corpo es-quálido e massacrado mostrava, concreta e convincentemente, pelo san-gue em figurações hemorrágicas e hematomas, a materialização da tragé-dia e do sofrimento atroz. As escuras olheiras de cansaço que circunda-vam olhos fundos transmitiam pungente amargura, resignação e suplica-vam piedade. Os nervos crispados do pescoço e do rosto provocavam um ricto de angústia.

Aquela visita nunca saiu da nossa memória porque nos provocou, brasi-leiros típicos, uma espécie de precaução com o gosto pela tragédia, que seria várias vezes confirmado - e um medo remanescente em minha filha em relação a igrejas peruanas. Próximo dali, na Catedral de Lima, o fun-dador da cidade, Francisco Pizarro, estava exposto em urna envidraçada, em decúbito dorsal, como uma sinistra ossada vestida com roupas cerimo-niais e atavios arruinados pelo tempo...46 Embora esse traço não nos a-prouvesse, estava em perfeita consonância com os sentimentos dos na-cionais. A partir daquele lastimoso e amargurado Cristo e da lúgubre ho-

46 Pizarro morreu assassinado em Lima em 26 de junho de 1541.

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menagem a Pizarro, insepulto dentro de um templo cristão, percebemos que éramos católicos estrangeiros...

Como temos visto, as raízes do caráter nacional surgem e se desenvolvem ao longo do processo de formação da nacionalidade. O caráter de um povo é influenci-ado e alimentado, criando traços marcantes em função disso, pelos fatores que le-vam um agrupamento humano a se sentir singular, único e permanente. O universo dentro do qual, aos poucos, essa metamorfose vai ocorrendo e essas marcas psico-lógicas coletivas, concomitantemente, vão se consolidando, caracteriza-se pelo do-mínio do conhecido sobre o desconhecido, estrangeiro ou estranho. Por isso, fun-damentalmente, a formação de uma nacionalidade cria cada nação, dentro de um contexto moral e ético singular, como uma realidade histórico-cultural e político-social homogênea. Embora, nesse longo processo histórico, ocorra a influência de alguns fatores e circunstâncias mutáveis (próximo item)47.

Quando participamos de alguma atividade dentro de um grupo de amigos nos sentimos seguros e, certamente, a atividade nos dará uma sensação de bem-estar. Numa projeção mais ampla desse sentimento, aceitamos que os que falam nossa língua e têm um passado em comum conosco, nos conhecem e nós os conhecemos o suficiente para que haja, sempre, uma expectativa de entendimento ou, pelo, me-nos, um esforço para que isso ocorra. A língua comum desempenha no relaciona-mento social um importante papel. As pessoas, em qualquer parte do mundo, são, por via de regra, incapazes de utilizar com desembaraço mais de uma língua. Só no idioma de infância a maioria dos homens e mulheres pode expressar todas as sutile-zas do pensamento, todas as formas de ódio e amor.

“Além disso, o local em que nascemos e crescemos, a paisagem que co-nhecemos, tudo isso parece constituir um universo próximo e amigo, cujo reencontro é sempre uma alegria e uma consolação.” 48

AA mmuuttaabbiilliiddaaddee ddoo ccaarráátteerr nnaacciioonnaall Por tudo o que disse, posso inferir a característica de mutabilidade no caráter na-

cional em razão da inconstância ou eventualidade de alguns fatores e circunstâncias do processo histórico que forma a nacionalidade. Fatores constantes e poderosos podem definir traços psicológicos coletivos que permanecerão resistentes ao tempo. Como marca profunda. Outros provocam efeitos de importância variável sobre as pessoas, com a estabilidade desses efeitos apresentando diversos níveis, entretan-to. Devo teorizar essa realidade para o prosseguimento de minhas considerações.

O fator histórico-primitivo (HP) (acompanhe no Quadro 1, adiante), que gera traços pro-fundos de grande estabilidade, é aquele que cria forte sugestão para a consolidação de um agrupamento humano, no início do processo histórico de sua aglutinação e prossegue, sem interrupção, com sua influência - o território, o clima, a etnia, a lín-gua, a crença religiosa, etc. Fator histórico-decorrente (HD), é o que produz traços fortes com estabilidade tanto mais resistente quanto seu período de atuação, surge de alterações sobre essas influências primitivas – mudanças de território, miscigena-

47 Voltarei a essa discussão na Primeira Parte do Livro 3 da trilogia “O espírito combatente”: “A imita-ção do combate”). 48 “O caráter nacional brasileiro” - Dante Moreira Leite - Pioneira-novos umbrais

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ção de etnias e culturas, etc. As circunstâncias específicas de um processo histórico - políticas, econômicas, particularmente - desenvolvendo traços importantes mas bem mais mutáveis se forem recentes, definem o fator histórico-circunstancial (HC). As influências atuais, que estão sendo exercidas como uma força modificadora, cri-adora ou restauradora de valores/atitudes, sentimentos, comportamentos e reações coletivos, podem identificar o que estamos designando como fatores atuais (A).

Formação e consolidação do caráter nacional (I)

FATORES DE INFLUÊNCIA HISTÓ-

RICA

IINNTTEENNSSIIDDAADDEE EE MMUUTTAABBIILLIIDDAADDEE DDOOSS

TTRRAAÇÇOOSS PPSSIICCOOLLÓÓGGIICCOOSS

Histórico-primitivo (HP)**

Traços profundos: ggrraannddee eessttaabbii--

lliiddaaddee

Histórico-decorrente (HD)**

Traços fortes: rreellaattiivvaa eessttaabbiilliiddaaddee

Histórico-circunstancial (HC)**

Traços importantes: ppoouuccoo eessttáá--

vveeiiss

Atual (A)

Traços recentes: nnããoo eessttáávveeiiss

Quadro 1 – Deve ser considerado o processo de formação da nacionalidade (sinopse gráfica da

Ilustração 4, página seguinte) e o tempo de atuação de cada fator histórico. Os traços psicológicos coletivos que conformam o caráter nacional, portanto, têm

relação com o tempo de influência dos fatores indicados. Um fator atual tenderá a tornar-se “histórico” e a dificultar cada vez mais sua reversão se não for desejável dentro de uma sociedade, por má sugestão no caráter (um exemplo brasileiro apontado na página 51). Uma filosofia religiosa, mesmo como fator histórico-decorrente (fator HD), gera marcas importantes no caráter coletivo. A modificação subsequente desse quadro, como fator histórico-circunstancial (fator HC), não teria esse vigor. Exemplo: a influência da moral cristã ortodoxa sobre o povo russo, ligada ao estado imperial e seus czares, marcou o caráter nacional da Rússia; essas marcas devem ter resistido à coerção comunista de setenta anos, muito embora esse fator histórico-circunstancial (fator HC) possa ter provocado efeitos modificadores sobre o perfil psi-cológico do povo russo que perdeu sua proverbial ingenuidade mística, ou teve um notável abalo nessa atitude coletiva.

Homens do deserto - como um fator histórico-primitivo (fator HP) -, compelidos à economia da escassez, vivendo em meio inóspito, clima rigoroso, parcos meios de subsistência, sob temperaturas altíssimas, com dificuldade de se fixarem, assentam e incorporam ao seu caráter coletivo os valores “liberdade” e “independência” com

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visão própria, entregam-se ao nomadismo, desprezam fronteiras físicas e criam sis-temas e comportamentos de união familiar para a sobrevivência. A imensidão do deserto e céu infinito sob o qual dormem os levará a uma atitude mística e a senti-mentos relacionados com misticismo e fatalismo. Desenvolvem sua cultura sob es-ses estímulos peculiares.

Os beduínos são pastores nômades de camelos da península arábica. Para esses seres errantes não existem fronteiras políticas nas areias de seu deserto. Não as entendem. Enquanto cuidam de seus animais, fixados nessa atividade centenária que creem legítima para sua sobrevivência, em meio profundamente hostil, cruzam os limites entre países com desenvolta ingenuidade49. Hoje, três quartos dos habitantes da Península Arábica, inclusive as famílias que governam a Arábia Saudita e os Estados do litoral, manifestam orgulho de serem descendentes dos beduínos - embora muitas vezes os critiquem pelo desalinho, por andarem descalços e sujos, mas a verdade é que os errantes do deserto exercem fascinação sobre as populações da geração do petróleo que mantêm e cultivam os valores de “lealdade tribal”, “bravura”, “honra” e “solidariedade” de seus avoengos. São traços muito profundos de caráter, gravados pelo meio ambiente que os uniu e teve impor-tante participação na formação da nacionalidade dos países da península. Não ne-cessariamente permanentes em longo prazo, com certeza, para aqueles que se a-fastaram do deserto como hábitat (um fator histórico-decorrente – fator HD).

VONTADE NACIONALFORMAÇÃO DA NACIONALIDADE

VALORES - ATITUDES: COMPORTAMENTOS,SENTIMENTOS E REAÇÕES

CARÁTERNACIONAL

ATUAL

DESENVOLVIMENTO CULTURALDESENVOLVIMENTO CULTURALDESENVOLVIMENTO CULTURAL

Fatores ecircunstâncias para a união

HP HP HD HC A

NAÇÃOATUAL

Ilustração 4 – Sinopse gráfica da formação de uma nacio-nalidade e da consolidação do caráter nacional (**) que é uma de suas importantes expressões, forjadora da cultura nacio-nal.

Os noruegueses estão perfeitamente habituados a um meio ambiente hostil - um fator histórico-primitivo (fator HP) que remonta a alguns milhares de anos. O isola-mento que lhes impuseram montanhas, descampados e florestas, o mundo desafi-ante dos fiordes e vales, os invernos longos e escuros, toda essa hostilidade do meio lhes desenvolveu uma atitude de autoconfiança para a sobrevivência (“sobrevi-vência” nesse quadro é um importante valor).

A projeção desse traço de caráter nacional da Noruega tem gerado heróis que desafiam teimosamente todos os tropeços em busca de seus objetivos: homens co-mo Fridtjof Nansen, explorador polar, Roald Amundsen, primeiro homem a chegar ao Polo Sul, e o “viking” moderno Thor Heyerdahl, que navegou à deriva durante 101 49 “Nações do mundo - Península Arábica - Os errantes do deserto” - Editora Cidade Cultural.

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dias em uma jangada de balsa, a Kon-Tiki, para provar a teoria que a Polinésia po-dia ter sido colonizada por sul-americanos. Essa intimidade com um ambiente selva-gem e assustador fez, também, com que muitos noruegueses desenvolvessem o sentimento do sobrenatural, de uma aguda percepção do fantástico, do extraordiná-rio. Gerações de contistas cheios de imaginação povoaram a Noruega com espíritos das águas, feiticeiras, serpentes marinhas e “trolls”. “O mais importante é que a at-mosfera mágica do país serviu de fonte de inspiração para escritores, pintores, poe-tas e compositores, que tentaram capturar o espírito único que anima tantas partes do país.” 50

Fatores e circunstâncias emergentes (fator HC), por outro lado, serão capazes de modificar o caráter nacional e é possível impedir, estimular ou reverter esse proces-so.

Vejamos um exemplo angustiante entre nós. “Acrescentando-se aos fatores sociais indutores da marginalidade, a te-

levisão brasileira tem promovido o convívio e, consequentemente, a cres-cente tolerância da sociedade com a violência provocando, por um proces-so modificador comprovado, o estímulo a ações e reações que provocam o constrangimento físico contra a pessoa. Essa convivência e tolerância do cidadão comum refletem-se inicialmente na conduta marginal. O padrão do comportamento criminoso não violento - onde prevalece a esperteza, a agi-lidade safada, a rapidez no aproveitamento de descuido na vigilância e guarda do patrimônio e a preocupação dominante do marginal em evitar qualquer confronto físico com a vítima e com a polícia - transmuda-se para a ação armada, mais fácil, mais direta, que procura o confronto físico, constrangedor, para obter, com maior risco, melhores e mais rápidos resul-tados. O reflexo estatístico dessa mudança é o crescente aumento da inci-dência de crimes violentos, particularmente nas áreas urbanas - homicí-dios, roubos, estupros e lesões corporais dolosas -, além da própria violên-cia em cada ato criminoso; são assaltos a mão armada com arrojo e per-versidade na manipulação das vítimas, não raros com morte, homicídios e tentativas de homicídio com motivações cada vez mais banais. Com o a-gravamento da ação marginal e a insólita resignação do cidadão comum ao convívio com ela, como resultado desse conluio terrível a vida vai per-dendo o significado transcendente que tem e que deve sustentar todo pro-cesso civilizador.

Sofremos esse assédio pelas redes nacionais de televisão, como influ-ência perniciosa que encaminha a juventude para a brutalidade física e se-xual. O trânsito é outro reflexo direto de uma sociedade íntima da violência: o relacionamento iracundo entre condutores de veículos e o desprezo sub-consciente que nutrem pelos pedestres mostram-se tragicamente concre-tos. As estatísticas, mesmo imprecisas, comprovam os resultados funestos dessa guerra de todos contra todos.” 51

Esse formidável “marketing” da violência que nos atinge como um fator atual (A) de influência sobre o comportamento da sociedade e reações coletivas, nos envolve e nos transforma, altera, também, o comportamento da polícia na sua atividade com o público que deve servir e, principalmente, como agressividade reativa, com os

50 “Nações do mundo - Escandinávia - Uma família de nações” - Abril Livros 51 Transcrevo as considerações que fiz em meu livro “Socorro...! Polícia!”- opiniões e reflexões sobre segurança pública – Universa – Universidade Católica de Brasília – 1997.

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bandidos. Gera-se um processo deformador em cadeia, estimulado de forma contí-nua pela eficácia técnica e envolvimento da mídia, capaz de modificar o próprio ca-ráter nacional: acabaremos aceitando a violência como um fato social inexorável e irreversível com o qual teremos de conviver. Erradicada a crise econômica e reto-mada a prosperidade, continuaríamos uma sociedade violenta. A questão da violên-cia na programação de televisão, em horários de grande audiência, nos vídeos e DVD que invadiram as residências de classe média, no cinema e o efeito maléfico desse cerco sobre a juventude mais impressionável, devem ser discutidos ampla-mente pela sociedade; acima dos interesses financeiros dos grupos envolvidos na compra, na produção, na difusão e comercialização indiscriminada desses produtos de consumo.

A indigência instrucional, isto é, no nível de escolarização e de conhecimento - por uma relação de causalidade, ela própria uma vulnerabilidade a alterações no caráter coletivo - e a incapacidade de discernimento sobre os perigos e riscos de uma programação imprópria para crianças e adolescentes, em quase metade dos núcleos brasileiros de família, além da impossibilidade da presença contínua de um censor doméstico espontâneo para ser o guardião dos valores familiares, dá ao Es-tado, particularmente no nível regional, responsabilidades que devem ser assumi-das; não serão deveres de censura, por certo, mas de orientação pública e de en-tendimento com os produtores, programadores e exibidores dessas matérias.

A reversão do caráter violento de uma sociedade ou o esforço para impedir que as manifestações de violência social afetem o caráter nacional e, ainda, a remoção dos fatores que compelem ao crime o cidadão culturalmente desprotegido, sugerem um programa de Estado de porte e de longo prazo, criando a contrapartida de um fator atual (A) inverso para esse resultado.

Outros fatores e circunstâncias (fator HC), entretanto, ao perderem seu significado alteram o comportamento das pessoas de uma nação. Um poderoso, longo e inexo-rável inverno, com forças primevas assustadoras, abraça, a cada ano, os países es-candinavos. Durante séculos e dominando a formação da nacionalidade de quatro dos cinco países do grupo - a Dinamarca tem clima mais ameno - a chegada do in-verno significava grandes privações e um longo período de confinamento e passivi-dade para as famílias dedicadas à agricultura, à silvicultura, à pesca ou à mineração. O espectro da fome influenciou o caráter coletivo das populações escandinavas e desenvolveu-lhes, como vimos no exemplo específico norueguês, uma atitude inven-tiva e autoconfiante para a sobrevivência. Esse quadro foi modificado pelo progresso social e modernidade. Sem amenizar o terrível amplexo do frio, a industrialização, como fator histórico-decorrente (fator HD), acabou com o desemprego sazonal, a modernização das técnicas e métodos agrícolas permitiu excedentes confortáveis na produção, as comunicações deixaram de ser interrompidas e a prosperidade geral ofereceu conforto e defesas contra as baixíssimas temperaturas. De figuras soturnas - um sentimento -, ameaçadas e sofridas, os escandinavos estão se transformando em seres satisfeitos – uma nova atitude e um sentimento oposto - cuja inventividade voltou-se para a transformação do inverno, não mais um período de reclusão, numa estação de trabalho e de práticas e competições esportivas ligadas a suas ativida-des.

Fiz referência anterior à escrita ideográfica chinesa, à monarquia espanhola, à monarquia britânica e à constituição dos Estados Unidos como fatores de união que, acrescento agora, podem ser apontados como histórico-circunstanciais (fator HC)

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capazes de criar traços psicológicos coletivos importantes na época em que surgi-ram e que crescerão de importância na proporção do tempo em que se mantiverem atuantes.

A introdução da escrita ocidental na China debilitaria sua unidade. O enfraqueci-mento da instituição monárquica criaria uma grande vulnerabilidade para a preser-vação da unidade da Grã-Bretanha e da Espanha. Quais seriam as consequências sobre os Estados Unidos se sua constituição deixasse de ser um mito? Se, por hipó-tese, da conferência de Guayaquil de 26 de julho de 1822, San Martín e Bolívar ti-vessem acordado o estabelecimento da monarquia, os povos dos três vice-reinados sul-americanos deparariam, provavelmente, uma boa chance de união como uma ou duas grandes nações. No Brasil, se a independência tivesse banido a monarquia possivelmente teríamos perdido a unidade ao longo do século XIX. Além dos indis-cutíveis méritos próprios, o grande argumento acima das dissensões e da força per-suasora de Caxias no século XIX, como pacificador, foi a monarquia e o carisma do Imperador. Simon Bolívar, na época de sua epopeia libertadora, já havia percebido a solidez envolvente e aglutinante dessa instituição no Brasil, como um fator HP (apon-tamento da página 66 sobre a monarquia no Brasil).

As mudanças no caráter nacional podem ser lentas e espontâneas, somente per-cebidas ao longo de grandes períodos de tempo; podem ser, também, notadas den-tro de uma geração pela incidência de fatores que os meios modernos de comunica-ção de massa e a ação de governo tornam, a um só tempo, perigosos quando apar-tados dos valores morais e éticos convenientes, ou importantes instrumentos para o vigor nacional quando ajustados ao fortalecimento da nação. Qual será o efeito da indiscutível influência cultural americana sobre o ocidente e sobre os povos do orien-te médio e da Ásia, com a “fast food”, a música e os ídolos pop, o consumo compul-sivo de filmes, etc.? Essa constatação cria, para o Estado como instrumento consen-tido da sociedade, uma responsabilidade de identificação, acompanhamento e pre-servação dos traços marcantes e convenientes do caráter nacional: deixa de ter sen-tido o estudo teórico de sua formação, o esforço simples de formulá-lo vagamente ou a discussão de validade em seu conteúdo científico. É imprescindível que seja efetivamente identificado, preservado, recuperado ou consolidado – mesmo como uma realidade empírica52.

Nem sempre, no entanto, no mundo moderno, isso será uma decisão interna e um cuidado exclusivamente nacional e soberano, sem consequências fora das fronteiras de quem a assuma e pratique. A doutrina atual de integração das economias entre as nações desenvolvidas e seus blocos econômicos para a conquista, expansão e consolidação de mercados, contando com o interesse dos países em desenvolvi-mento53, suscita sequelas contraditórias e conflitos relacionados com a nova ética nem sempre afinada com os interesses superiores do ser humano, principal objeto de todo o processo civilizador.

52 Nesse sentido examinaremos no fim deste capítulo alguns aspectos do caráter nacional brasileiro. 53 Os seis constructos aos quais me refiro na introdução do Livro 3 desta trilogia, “A imitação do com-bate”.

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Formação e consolidação do caráter nacional (II) TRAÇOS PSICOLÓGICOS GENÉRI-

COS

AALLGGUUMMAASS QQUUAALLIIDDAADDEESS CCOORRRREESSPPOONNDDEENNTTEESS

VVVaaalllooorrreeesss (Importância atribuída pelo povo

nacional a fundamentos filosóficos relacionados com a compreensão da realidade, que definem qualida-

des morais, éticas, espirituais e profissionais professadas pela

coletividade)

Ordem; verdade; justiça; pátria; indepen-

dência; deus; lealdade; urbanidade; grati-dão; pontualidade; segurança; bem-estar; igualdade; tradição; responsabilidade pro-

fissional; alma imortal; etc.

AAAttt iii tttuuudddeeesss (Disposições coletivas previsí-

veis do povo nacional favoráveis ou desfavoráveis, face a objetos sociais ou a situações sociais de

conflito)54

Xenófoba; defensiva; agressiva; ingênua;

tolerante; indiferente; mística; despreocu-pada; intolerante; desconfiada; etc.

SSSeeennnttt iiimmmeeennntttooosss (Expressões emocionais no po-

vo nacional que se manifestam, de uma mesma forma, como qualida-

des coletivas permanentes)

De orgulho; ou de patriotismo; ou de ro-

mancismo; ou de paixão; ou de solidarieda-de; ou de lealdade; ou de tristeza; ou de

alegria; etc. CCCooommmpppooorrrtttaaammmeeennntttooosss (Atividades com padrões coleti-

vos que geram procedimentos co-letivos repetitivos em um povo

nacional)

Demonstrações coletivas sistemáticas de organização; ou de método; ou de discipli-na; ou de confiabilidade; ou de desleixo; ou

de irreverência; ou de afabilidade; ou de rudeza; ou de autoconfiança; ou de inventi-vidade; ou de pacificidade; ou de belicosi-

dade; etc.

RRReeeaaaçççõõõeeesss (Respostas emocionais coleti-

vas, em um povo nacional, a estí-mulos intensos que se apresentem

de inopino)

De indignação; de violência; de paixão;

de pânico; de alegria; etc.

Quadro 2 – Uma tentativa para facilitar a análise do caráter nacional (coletivo e coletividade são re-

ferências à maioria dos membros de um agrupamento humano). A globalização, como um fator atual (fator A), pelo menos em curto e médio prazo,

irá dispensar mão-de-obra nos países em curso de desenvolvimento pela necessi-dade de modernização em seus parques industriais, em suas lavouras e pecuária. Esse desemprego aumenta a pressão dos imigrantes sobre as grandes nações eu- 54 O estudo das atitudes tem sido um tema importante e polêmico para a psicologia social. Entende-mos que os valores as precedem e as estimulam. O conjugado valores/atitudes é mais consentâneo com as teses deste ensaio.

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ropeias e sobre os Estados Unidos, para citar os dois principais pólos de atração no ocidente. A corrente migratória que já tinha um estímulo pela explosão populacional nos países pobres com a desnatalidade entre as nações ricas acaba se tornando preocupante para os hospedeiros que reagem por motivos menos econômicos e mais culturais. Nesse quadro estão a pressão de africanos, árabes e turcos sobre as maiores nações da Europa desenvolvida, e de mexicanos e centro-americanos, par-ticularmente, sobre os Estados Unidos. Na verdade os hospedeiros temem uma descaracterização de suas culturas o que, como vimos, pode atingir frontalmente suas identidades nacionais.

Leis francesas e americanas disciplinando mais rigidamente a entrada e a perma-nência de imigrantes -, periodicamente discutidas - sempre provocarão grande ce-leuma entre os atingidos para o repatriamento e entre os pretendentes que tiverem seus sonhos desvanecidos. Podemos negar, de sã consciência, a essas nações o direito de preservarem suas nacionalidades? É claro que a reação acaba gerando uma onda de xenofobia e estimula os exageros da direita radical ou conservadora (Le Pen e o crescimento de seu partido na França - a terra onde as massas excluí-das obtiveram a primeira vitória e formularam o lema “Liberté, égalité, fraternité” - ou a plataforma de Bucannam, candidato a candidato entre os republicanos conserva-dores nos EUA em 1996) que lhe acrescenta um ingrediente racista: é mais concre-tamente fácil reagir contra a presença de um negro imigrante na Europa ou, nas de-mais potências ocidentais, de um árabe, de um turco, de um asiático, de um “chica-no”, ou de um “latino” dentro de sociedades que se creem “brancas” ou é dominada por eles, imaginando já ter recebido sua quota máxima dessas etnias.

Nos Estados Unidos o problema possui um complicador extra, pois a própria de-mocracia representativa conduz os analistas político-eleitorais a um cálculo aritméti-co simples: número de eleitores americanos satisfeitos com a reação racista versus número de eleitores imigrantes integrados, seus parentes e descendentes... Mesmo que essa grande nação tenha sido formada por imigrantes, com o poema no pé da estátua da liberdade em Nova York - “(...) Mother of exiles. (...)”? O nome formal da estátua é significativo: “Liberdade iluminando o mundo”; o soneto de Emma Lazarus, “The New Colossus” (1883), a qualifica como “Mãe dos expatriados” e atribui a ela esse apelo às terras de origem daqueles que se sentem infelizes e desejam buscar a felicidade:

“Give me your tired, your poor, your huddled masses yearning to breathe free, (...)” “Dá-me teus filhos cansados, teus pobres, tuas mas-sas desamparadas que querem respirar livres (...)”

Vi em dias de protestos a fotografia de um imigrante nos Estados Unidos empu-nhando cartaz com uma indagação de difícil resposta para os americanos: “Pilgrins, show me yours green-cards!”... Um Presidente afro-americano não altera essa pro-blemática.

O que sobreleva de forma insofismável nessa discussão - se dispensarmos a ar-guição de “direito” dos imigrantes, “razões humanitárias” para o acolhimento dos in-teressados ou permanência dos ilegais -, é o legítimo esforço de um povo, segundo suas próprias razões, pela preservação de sua identidade cultural - de seu caráter nacional. Essa atitude, aliás, deve ser do nosso interesse, pois amanhã, libertos dos grilhões terceiromundistas, poderíamos nos transformar - uma das nações gigantes do planeta - em meca dos infelizes, insatisfeitos, desempregados ou excluídos do mundo. Com o nosso caráter acolhedor e tolerante acrescentaríamos um estímulo

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extra para o esfacelamento da nossa cultura e a perda da identidade nacional. Ou devemos nos filiar ao bahaísmo?

NNuuaannççaass rreeggiioonnaaiiss ddoo ccaarráátteerr nnaacciioonnaall As nuanças regionais no caráter nacional são uma interessante realidade que en-

contra explicação nas considerações até aqui desenvolvidas. Isso terá importância particular como problema potencialmente capaz de se contrapor à união nacional, em nações com vastas populações articuladas em territórios extensos, com varieda-de de clima, apresentando, ainda, a presença de fatores geográficos que caracteri-zem distintos meios ambientes, mais de uma língua falada ou dialetos regionais.

Um relevo característico – a serra que isola as pessoas e as influencia para a transfiguração em casmurrice e desconfiança com forasteiros ou a planície que as liberando ao horizonte sem fim, pode torná-las indômitas e fanfarronas, a proximida-de ou afastamento do mar, o contato com fronteiras externas, ou a inexistência dis-so, entre outros fatores semelhantes, em princípio, àqueles sugeridos no Quadro 1 (página 49), produzirão efeitos análogos (Quadro 2, página 54). Regiões com história própria formam suas sociedades sob essa influência, mantendo suas tradições mui-tas vezes com forte regionalismo. Dialetos, linguajares ou sotaques, podem ser culti-vados com zelo e mantidos com orgulho para que as pessoas se sintam destacadas ou diferençadas do conjunto nacional. Contudo esses elementos não devem ser de-sagregadores a ponto de produzirem movimentos de opinião ou de vontade separa-tista (apontamento na página 90, “Opinião e vontade”). Os fatores de união nacional devem preponderar com força suficientemente capaz de manter essas populações regionais integradas na permanente motivação da vontade coletiva e do orgulho coletivo para esse propósito (o fenômeno da “vontade” será abordado no capítulo 3, página 89).

O desenvolvimento do turismo internacional e interno tem uma relação de causa e efeito com esse fenômeno e estimula hoje em dia, nas nações desenvolvidas ou com potencial turístico, a permanência de diferenciações regionais. Qual seria o sa-bor de uma viagem de nacionais por seu país se a paisagem geográfica fosse mono-tonamente semelhante à de suas origens e, dentro dela, não encontrassem figuras humanas falando, vestindo, comendo, cantando, dançando e se comportando de forma peculiar?

A força do turismo espanhol está, justamente, nessa diversidade de caleidoscópio que encanta o viajante de todos os quadrantes e carreia para os cofres do Estado e das províncias um gordo item para suas receitas. Existem na Espanha, admitidas e ensinadas nas escolas de suas respectivas regiões de influência, quatro línguas, três delas oriundas das mesmas raízes latinas – o castelhano que é o espanhol ofi-cial propriamente dito, dominante, o galego falado no noroeste, e o catalão da Cata-lunha, de Valência e das ilhas Baleares – a quarta, entretanto, é anterior à chegada dos romanos na península e nada tem de semelhança com os outros idiomas fala-dos na região: o “euskara” ou a língua basca. Essas diferenças regionais dentro de uma nação compõem um espetáculo fascinante para o observador itinerante ou tu-rista sequioso pela diversidade. Podem ser, também, uma fonte permanente de dor de cabeça para a união nacional.

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Retomemos o exame de outros países anteriormente citados neste ensaio para assinalar as dessemelhanças e contradições regionais que se refletem no caráter coletivo das pessoas que aí vivem. A maior população entre as nações do mundo ocupa regiões geográficas absolutamente distintas. São Chinas diferentes dentro de um espaço de 9.596.960 quilômetros quadrados abrigando uma população com cer-ca de um bilhão e trezentos milhões de habitantes – mesmo com severas políticas para a desnatalização ainda há um nascimento a cada dois segundos. O sudeste é subtropical, chuvoso, com um verão que não se interrompe; no noroeste são deser-tos áridos, períodos de secas cuja hostilidade só é superada por invernos impiedo-sos; as montanhas do sudoeste, com os picos mais altos do hemisfério ocidental, conformam uma região remota e escarpada. Distante 5.600 quilômetros de costa, a província de Sinkiang no extremo noroeste possui localidades mais afastadas do mar do que quaisquer outras do planeta. A população da China compreende cin-quenta e seis etnias, algumas importantes em determinadas regiões – Han, com presença majoritária que se considera historicamente chinesa, nas províncias do leste, Zhuang cultivadores de arroz incrustados na área mais populosa do país no sul, tibetanos budistas das montanhas do sudoeste, uygur muçulmanos dos desertos do noroeste, mongóis do norte e coreanos no nordeste. Um quadro tão diversificado de paisagens, climas, etnias, dialetos, religiões e atividades de subsistência, exerceu grande influência na cultura e no caráter regional de muitas províncias. A atual união política chinesa, dentro dessa multiplicidade regional, tem tido a participação dos legítimos protagonistas da nacionalidade? Até que ponto a coerção política e ideoló-gica exerce sua força? O que ocorreria, como na antiga União Soviética, caso dei-xasse de atuar para uma concórdia imposta e mantida pelo engessamento ideológi-co e pela repressão?

Os habitantes da Baviera – os bávaros -, com uma história regional intensa, são considerados por seus compatriotas alemães como “latinos”. Mais alegres, mais ex-pansivos que os alemães do norte, cultivam seu dialeto, suas fortes tradições, ves-tem-se caracteristicamente em suas festas regionais, divertem-se e cantam em cer-vejarias típicas. Vestfalianos, baixo-saxões, schleswig-holsteinianos, frísios, turín-gios, hessianos, suevos e francônios são alguns outros grupos étnicos que integram o incrível cadinho pangermânico cujas representações se reúnem na “Octoberfest” de Munique. A história e a cultura desses grupos tiveram desenvolvimento e forma-ção próprios, fixando características que permanecem até hoje, diferençando uns dos outros e fomentando o orgulho grupal. Com maior ou menor intensidade esse processo influenciou o surgimento de traços regionais no caráter coletivo dessas populações.

“Os vestígios mais claros do tradicional caráter ianque são encontrados ao norte da Nova-Inglaterra – uma região há muito habitada por gente sisuda, astuciosa nos negócios, trabalhadora, parcimoniosa, conservadora em ma-téria de família e religião, mas às vezes radical em política, orgulhosa, sa-gaz e que não se intimida facilmente.” 55

São pessoas que herdaram e conservaram os valores dos puritanos trazidos para a fundação da Nova-Inglaterra (os estados de Maine, New Hampshire, Vermont, Massachusetts, Connecticut e Rhode Island). O povo de “Dixie” 56, ao sul, é tradicio- 55 “Nações do mundo - Estados Unidos – Terra dos começos” – Editora Cidade Cultural 56 Designação tradicional dos estados do sul dos Estados Unidos, particularmente aqueles que inte-graram os Estados Confederados da América em 1860/1865.

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nalmente cortês, solidário e temente a Deus. O estado do Texas, rico e com uma história turbulenta, é motivo de orgulho para seus 14 milhões de habitantes que mantêm um comportamento presumido e arrogante em relação à sua região. Gos-tam de se vestir no estilo de seus avoengos “cowboys”, calçando botas com salto e chapéus de aba larga tipo “Stetson” e convivem com folclóricas manifestações sepa-ratistas... Com a presença férvida de minorias étnicas e o afluxo de americanos de todos os quadrantes em busca dos empregos oferecidos, a Califórnia se transformou no estado mais populoso dos EUA - cerca de 25 milhões de habitantes. A riqueza que a colocaria em sétimo lugar se comparada com os produtos internos brutos dos países desenvolvidos do mundo e certo fatalismo com a espera conformada do “big one” 57 a transfigurou em meca dos prazeres da vida com influência no caráter regi-onal e deformações notáveis – é ai que ocorre o maior consumo de drogas do país. Os Estados Unidos, com um processo histórico recente - início do século XVII, na costa leste -, em decorrência da poderosa influência do espírito dos “pilgrim fathers” e do “american way of life”, apresentam uma evolução interessante nessa questão das marcas regionais de caráter. A televisão, o rádio, os jornais e revistas, mais do que em qualquer outra parte do mundo, além das guerras vencidas e perdidas com a mobilização permanente da vontade nacional e o sentimento coletivo de orgulho e de glória, têm ajudado, dentro da diversidade do país, a assimilação de um conjunto comum de valores/atitudes, de sentimentos, de comportamentos, de reações e, com isso, têm contribuído para o esmaecimento dos traços de caráter regional, em favor do caráter nacional americano. Não foi por acaso que a sonda espacial “Pathfinder” iniciou sua fantástica exploração do planeta Marte precisamente no “Independence Day”, 4 de julho de 1997, impregnando, mais ainda, uma data mítica para os ameri-canos com uma carga nova de orgulho nacional. Há, portanto, sempre, uma preocu-pação com o micróbio da diáspora, sobrevivente desde 1787...

A Itália é um exemplo antológico. Esforça-se para universalizar uma língua nacio-nal que vai substituindo um número infinito de falas regionais que dificultavam enor-memente a comunicação no interior do país. A tradição histórica italiana das cida-des-estados de sucesso político, econômico e cultural durante muitos séculos, criou forte consciência regional onde existiram e exerceram sua influência. Esse regiona-lismo permaneceu ativo, mesmo após a unificação relativamente recente da penín-sula. Um grande divisor longitudinal, o espinhaço dos Apeninos e suas escarpas, serviu, sempre, ao isolamento das populações e, por consequência, à diversidade regional.

“A língua italiana é para nós uma língua estrangeira, uma língua morta, uma língua cujo vocabulário e gramática não têm relação alguma com nos-so modo de agir, de pensar e de nos expressar”,

foi o desabafo do romancista Ignazio Silone, de Abruzzi, em 1930, definidor de difi-culdades, ressentimentos e brios regionais feridos pela obrigação de oficializar o idi-oma italiano. Abruzzi é uma província situada na Itália central, face ao Adriático, com um povo que cultiva a tradição histórica de insubmissão e apego a sua terra monta-nhosa, iniciada, há mais de dois mil anos pelos antigos habitantes, resistindo ao ex-pansionismo de Roma. Desenvolveram, com essa atitude, um caráter regional muito acentuado que sobrevive até nossos dias. Daí o clamor do novelista... Florença foi o

57 A espera do que seria o “grande terremoto” de proporções cataclísmicas. A região encontra-se sobre uma das grandes fendas geológicas da terra.

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berço da Renascença e a Toscana, de quem é a capital, foi a matriz da língua italia-na de hoje. Os toscanos

“... são uma raça à parte. São imaginativos e severos, trabalhadores e brin-calhões, têm fama de ser regateadores obstinados e de usar certa astúcia perversa. Segundo o escritor toscano Curzio Malaparte, quando os outros choram, os toscanos riem, quando os outros riem, eles ficam a vê-los rir sem piscar os olhos, até que o sorriso se congele em seus lábios” 58.

A Sicília com os “mafiosi” e seus governos corruptos e clientelistas, a Sardenha com seu povo sisudo, alheado e bandoleiros com uma curiosa tradição de honra e vingança e mais três províncias fronteiriças do norte, mais ou menos inventadas, gozam de um tipo especial de autonomia porque são regiões com problemas espe-ciais: as duas grandes ilhas com ressentimentos separatistas; Val D’Aosta, em torno do Monte Branco, onde o francês é uma língua tradicional; Trentino-Alto Adige é de fala alemã no Alto-Adige (Tirol do Sul) e italiana no Trentino; Friuli-Venezia Giulia é uma composição para dar suporte territorial ao porto de Trieste – quase iugoslavo ao final da Segunda Guerra Mundial - apesar de serem com Veneza os vínculos históri-cos de Friuli... Os piemonteses são austeros, trabalhadores e demasiadamente dis-ciplinados, mas grandes especialista nas artes de cozinhar e de comer. A Lombardi-a, região mais populosa da Itália, tem em Milão um centro econômico, financeiro e industrial que abriga um sentimento anti-romano que se estende à população da província. Os habitantes da Ligúria, grande centro de construção naval, são conside-rados astutos e sovinas. Com um sul ressentido com Roma, será possível a identifi-cação de algum traço de caráter nacional italiano nessa simpática bota de dezoito retalhos diferentes e suas duas províncias insulares? A incrível e prazerosa convi-vência com a diversidade parece ser um deles, dentre muitos, mas, de qualquer forma, o hino nacional italiano é um apelo emocional à união e à unidade...

A unidade política entre regiões federadas ou a definição histórica de províncias dentro de Estados soberanos são formas adequadas de convivência, sem conflitos, entre populações diversificadas de uma mesma nação; os níveis de autonomia, en-tão, devem refletir a intensidade das nuanças regionais, sob a prevalência mais forte e dominante da vontade e do orgulho pela nacionalidade. Se esse fenômeno surgir, no processo histórico de formação da nacionalidade, da participação dos verdadei-ros protagonistas a que se fez referência – o povo e seus líderes integrados – os regionalismos reforçarão o espírito nacional. Do contrário estarão, apenas, contidos e submetidos, aguardando a oportunidade de escapula e dispersão.

UUmm ccoommpplleexxoo pprroocceessssoo iinntteerraattiivvoo ddee ttrraaççooss ppssiiccoollóóggiiccooss

“Em toda a sua longa carreira política, Roosevelt tinha trabalhado duro pa-ra entender a insondável opinião pública. Da longa experiência tinha a-prendido que numa democracia um só homem não podia guiar dezenas de milhões de pessoas sem seguir (ou formar, até onde fosse possível) a in-tangível força chamada espírito do país.” 59

58 “Nações do mundo - Itália – Uma terra severa” – Editora Cidade Cultural 59 Doris Kearns Goodwin, confundindo um pouco a fenomenologia do caráter nacional, mas identifi-cando-lhe a essência para uma grande nação em momento crítico de sua história recente - “Tempos muito estranhos”, página 206 – Editora Nova Fronteira.

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A indagação anterior sobre a Itália, de qualquer forma, sugere uma questão im-portante que nos obriga, para esclarecê-la, a descer mais um pouco na escala de amplitude do caráter coletivo, voltando a considerá-lo, dentro das mesmas ideias, para o cidadão. O que temos dito até aqui sobre o caráter nacional e sua importân-cia, afinal, tem fundamento na incorporação de valores/atitudes, sentimentos, com-portamentos e reações, modificando e assemelhando a conduta da maioria dos membros de um agrupamento humano, considerados individualmente, durante a formação da sua nacionalidade.

Os fatores que exercem influência sobre o caráter de um indivíduo durante esse processo – sobre cada um dos membros do agrupamento, independentemente - são os mesmos que apontamos ao considerar o fenômeno coletivo que se instala a partir da constatação da existência de traços comuns. Isso ocorre à medida que o agru-pamento vai adquirindo consciência de sua individualidade nacional e de seus cres-centes interesses essenciais comuns. Os líderes, desde os primórdios da história de uma nacionalidade, sob o influxo dos fatores de união, interiorizaram esses traços psicológicos (o assentimento a valores, em primeiro lugar no processo) e foram e-xercendo influência sobre seus liderados mais impressionáveis no agrupamento ancestral. Todos foram desenvolvendo sua própria vontade e orgulho em relação ao universo conhecido em que viviam e sobreviviam, multiplicando a sugestão desse sentimento para outros no mesmo universo, que o incorporaram e, por uma dinâmica contínua de interação e de mútua influição, ao longo do tempo, dos séculos, projetaram tudo para uma dimensão coletiva que se ampliava com a permanência e intensificação dos fatores de união (detenha-se no exame analítico da Ilustração 5, ao lado: critique-a e imagine outra que expresse melhor o fenômeno).

CARCARÁÁTERTERNACIONALNACIONAL

CARCARÁÁTER REGIONALTER REGIONAL

COMUNIDADE

RELIGIÃOFAMÍLIA

FATORES ECIRCUNSTÂNCIAS DE

UNIÃO

PROFISSÃOOUTROS AGRUPAMENTOS

CARCARÁÁTER INDIVIDUALTER INDIVIDUAL

Essa interação mental entre os membros de um grupo é, na opinião de muitos psicólogos sociais, o principal fun-damento de todo o processo social 60. Surgiram assim os traços psicológicos co-muns dentro de uma região e os traços psicológicos comuns no âmbito maior da na-ção; os últimos só foram capazes de sustentar a união, se dominantes e mais fortes como anseio de Estado nacional, permanecendo com esse domínio. Os grupos de

Ilustração 5 - As marcas do caráter nacional de-vem ser identificadas dentro do caráter regional e essas, em princípio, estarão dentro do caráter indivi-dual da maioria dos cidadãos; os traços de caráter nacional, por isso, devem ser mais genéricos, mais fortes e, como um fenômeno da nacionalidade, mais importantes.

60 Essa interação se processaria pela imitação, a forma social de repetição, pela discussão, competi-ção e conflitos, as formas sociais da oposição, e pela invenção, a forma social da adaptação, segun-do os estudos de Jean-Gabriel de Tarde em “Les Lois de l’Imitation”.

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influência sobre o indivíduo, dentro do grande quadro nacional, foram se formando, se consolidando e incorporando esses traços coletivos.

Há, portanto, na verdade, a partir dos indivíduos, um complexo processo interativo que evolui positivamente com o fortalecimento das sugestões de busca do Estado nacional soberano ou se desvia desse caminho pelo enfraquecimento dos estímulos. Não haverá alternativa para um povo. Se o orgulho nativo da nacionalidade, primor-dial, e a vontade coletiva (página 89) para a união nacional não puderem ser perma-nentemente mantidos e fortalecidos, ocorrerá o fracionamento ou a absorção por outra nacionalidade mais forte. O caráter do cidadão, além desses traços comuns à região e à nação, terá outros que decorrerão de seu temperamento e da influência específica do seu grupo familial, do grupo escolar que o envolveu na infância e na adolescência, do grupo religioso quando organizado e atuante, da sua formação pro-fissional, do processo educacional e cultural que o compromete, etc.

Um indivíduo, por hipótese, fora desse envolvimento psicológico positivo e intera-tivo de líderes, companheiros, familiares, educadores, professores, mídia responsá-vel, estaria reduzido a um patético anticidadão. Além de não participar do processo de consolidação do seu estado nacional soberano, estará em perda permanente sem os valores morais e éticos convenientes à sua cidadania, sem atitudes adequa-das, sem sentimentos, comportamentos e reações harmonizados com a nação e sem sentir o desejo ou o dever de integrar-se a ela. Alienados desse tipo existem em todas as nações.

Em muitos países do terceiro mundo – entre os quais há o destaque do Brasil -, entretanto, com suas multidões de excluídos do processo econômico e social carac-teriza-se um fenômeno que cria uma ameaça direta e permanente à nacionalidade: amplos núcleos de miseráveis, desnutridos, doentes e analfabetos, como enclaves sociais negativos, indiferentes ou infensos ao processo positivo que consolida a na-cionalidade. Uma distorção dramática e vergonhosa do que vimos examinando 61. As forças da nacionalidade, em relação a esse problema, devem ser suficientemente envolventes e vigorosas para absorver os excluídos de sua perigosa marginalização.

Morris Ginsberg afirmou, como confirmamos conclusivamente, que os indivíduos são intrínseca e essencialmente relacionados entre si e o agrupamento humano não é um produto artificial, um mero recurso mecânico para manter unida uma massa de indivíduos, concebidos como capazes de existirem na plenitude de seu ser em iso-lamento. É fácil perceber, também, que as relações que mantêm unidas as pessoas são essencialmente mentais, de caráter portanto – valores/atitudes, sentimentos, comportamentos, reações comuns, como temos sugerido 62.

A pesquisa desses traços definidores do caráter dos habitantes de uma região e, no nível superior, o esforço para enunciar os atributos psicológicos do povo de uma nação, mostram a conveniência de uma variação no nível de generalidade dessas expressões, na proporção direta de suas populações. O caráter nacional de grandes nações populosas deve ser expresso por atributos no mais alto nível de generalida-de para terem valor como marcas coletivas; se isso for impossível não existe a boa

61 Embora sem serem miseráveis e desnutridos, os “hooligans” do futebol, contrariando o caráter na-cional inglês, alienam-se do processo integrativo e adotam comportamento violento ou contestador. Temos, também, nossos alienados desse tipo. Todos os têm. 62 “Psicologia da sociedade” – Morris Ginsberg – Zahar Editores.

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alma coletiva que caracteriza uma nação, mas uma aglutinação política forçada e condenada, mais cedo ou mais tarde, ao desmantelamento.

CCaarráátteerr nnaacciioonnaall bbrraassiilleeiirroo -- uummaa vviirrttuuddee,, ddooiiss ddeeffeeiittooss ee uummaa tteennddêênncciiaa ppeerriiggoossaa A formação do caráter nacional representa um processo histórico essencialmente

espontâneo que, por isso mesmo, pode sofrer desvios inconvenientes. Um povo na-cional não pode ter o que se designaria como um mau caráter no sentido completo e definitivo, representando uma espécie de vocação coletiva para o mal. Com certeza, no entanto, todos os povos nacionais, pelo menos do ponto de vista estrangeiro, in-cluem alguns traços psicológicos em seu caráter, sem préstimo social ou inconveni-entes para o relacionamento internacional.

Apenas para dar sentido ao que estou enfocando e exemplificando neste ensaio, selecionei quatro traços do caráter nacional brasileiro. Por tudo o que discuti neste capítulo compreendemos que tem cabimento a convocação do “gênio da lâmpada” para conservar e consolidar esses traços selecionados ou para removê-los, abran-dá-los ou modificá-los. É importante conhecer a origem histórica que os conformou como marcas nacionais para perceber que, em um deles, é conveniente que não se permita desvirtuamentos; nos outros três, como defeitos coletivos ou tendência gra-ve, há necessidade de esforços para que sejam revertidos ou neutralizados.

AA vviirrttuuddee:: aattiittuuddee ppoossiittiivvaa ee ttoolleerraannttee qquuee eessttiimmuullaa oo ssiinnccrreettiissmmoo ccuullttuurraall ee aa mmiisscciiggeennaaççããoo..

Em maio de 1973 assumi o comando de uma unidade do Exército em Porto Ale-

gre (RS). Estivera afastado da tropa desde 1962 (Escola de Comando e Estado-maior, Pre-sidência da República e Estado-maior do Exército) e voltava para comandar justamente a última unidade em que havia servido antes de meu afastamento. Ao ver o batalhão na formatura para a solenidade de passagem do comando, percebi que comandaria uma unidade de homens pardos 63. Essa era a tonalidade de pele dominante entre meus soldados. Uma significativa presença triguenha entre quase mil caras que me olhavam, de longe, por força do cerimonial militar e em cujos semblantes podia adi-vinhar a expressão de curiosidade e expectativa com a presença de um novo co-mandante. Não cheguei a me surpreender, mas senti que o período de doze anos tinha operado uma incrível transformação na massa de conscritos no Rio Grande do Sul 64. Eram meus soldados e já estava sentindo orgulho deles como legítimos patrí-cios prestando o serviço militar. Pertenciam à grande Nação Brasileira e a represen-tavam da melhor maneira: eram o resultado da nossa atitude para a miscigenação e absorção de raças e culturas – um importante traço no caráter nacional.

Herdamos essa atitude, como de resto, com variações regionais e uma ou duas exceções, toda a América Latina, de um singular fator histórico-primitivo (fator HP, Quadro 1, página 49): uma conquista dominantemente masculina, onde o conquistador solitário encontrou e submeteu populações autóctones. O pioneiro da América ingle-

63 Em abril de 1998 as estatísticas do IBGE sobre a população brasileira apontavam 42,5% de par-dos, 51% de brancos e 5% de negros (“Cor, discriminação e identidade social” – Simon Schwartzman – Presidente do IBGE). Outros números do IBGE (Anuário Estatístico do Brasil de 93 e 96): pardos 39% e 40%, brancos 55% e 54%, respectivamente. Cresce a miscigenação. 64 Mesmo com as variações de municípios de recrutamento e de nível social dos convocados.

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sa aportou no Novo Mundo trazendo sua família, seus pertences e sua determinação de permanência e prosperidade. O português e o espanhol, envolvidos numa aven-tura de homens, conheceram as mulheres da nova terra como necessidade mais ou menos irrefreável de sua impulsiva sexualidade - um mito ou uma real qualidade dos povos latinos? Não tinham ideia de criar raízes. Procuravam riquezas para si e para seus reinos e pretendiam retornar a seus lares, mas foram deixando o sangue e com ele a porta desmistificada para a fusão das raças envolvidas naquela empresa.

No Brasil, segundo o mestre Gilberto Freyre, o português colonizador acentuou essa aproximação.

“Assemelha-se nuns pontos à do inglês (referia-se à colonização); noutros à do espanhol. Um espanhol sem a flama guerreira nem a ortodoxia dra-mática do conquistador do México e do Peru; um inglês sem as duras li-nhas puritanas. O tipo do contemporizador. Nem ideais absolutos, nem preconceitos inflexíveis. O escravocrata terrível que só faltou transportar da África para a América, em navios imundos, que de longe se adivinha-vam pela inhaca, a população inteira de negros, foi por outro lado o coloni-zador europeu que melhor confraternizou com as raças chamadas inferio-res. O menos cruel nas relações com os escravos. É verdade que, em grande parte, pela impossibilidade de constituir-se em aristocracia euro-peia nos trópicos: escasseava-lhe para tanto o capital, senão em homens, em mulheres brancas. Mas independente da falta ou escassez de mulher branca o português sempre pendeu para o contato voluptuoso com mulher exótica. Para o cruzamento e miscigenação. Tendência que parece resul-tar da plasticidade social, maior no português que em qualquer outro colo-nizador europeu.” 65

Uma nacionalidade só estará consolidada, ou bem encaminhada para essa aspi-ração, se durante seu processo histórico, for capaz de unir suas gentes, motivar o congraçamento e promover o orgulho nacional sem exclusões. Quaisquer formas de dissociação, de separação ou de discriminação em relação à igualdade absoluta de seus nacionais, agride a nação na sua essência unificadora e a torna frágil, equivo-cada, com o vírus da cizânia que a condenará a dificuldades permanentes ou ao co-lapso.

A discriminação racial ou a segregação de raças, culturas ou religiões, são, as-sim, fatores de dissociação extremamente perigosos dentro de um Estado soberano. Impede-lhe a harmonia no povo. Quando as dissensões internas tiverem em si o ví-rus dessa rixa apontarão, latente, uma situação semelhante aos antagonismos cultu-rais, étnicos e linguísticos de alguns Estados africanos subsaarianos. A existência de núcleos culturais não absorvidos – minorias discriminadas e, apenas, admitidas como um problema - indica falta de força e intensidade nacionais para fazê-lo ou uma atitude, como traço de caráter coletivo, hostil a essa reconciliação. A tolerância para a convivência difere, de forma radical como atitude psicológica coletiva, da tole-rância para a mestiçagem. A repulsa ou o desprezo pelo mestiço e o argumento de pureza racial apontam uma obstinação muito antiga dentro de agrupamentos huma-nos de raça definida durante o processo de consolidação de suas nacionalidades. Entre nações modernas, hoje em dia, com sociedades desenvolvidas ou não, multir-raciais ou em cuja formação ficou preservado o domínio de uma etnia, essa atitude é encontradiça como traço ostensivo ou escamoteado de caráter coletivo.

65 “Casa-grande & senzala” – Gilberto Freyre – Livraria José Olympio Editora – Rio/1978.

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Li nos jornais, mas não me surpreendi, o registro de um escândalo sueco, que já teria atingido outros países escandinavos e a Suíça, com a verdade tornada pública de um programa de esterilização de homens e mulheres, nem sempre voluntário, “em nome da pureza da raça nórdica ou por motivos sociais”, executado entre 1935 e 1976...66 Nos Estados Unidos da América, minorias teriam sido usadas como co-baias para experiências do Pentágono com radiação entre 1944 e 1974. A “caixa preta” que, aos poucos, vai sendo aberta já revela que não foram somente soldados e pilotos da Força Aérea que se submeteram àquelas experiências. Setores margi-nais da população, como esquimós do Alaska, negros de baixo quociente de inteli-gência, crianças deficientes e os menonitas, um ramo dos religiosos amish, que não prestavam serviço militar, também foram incluídos nos sinistros estudos científicos americanos. O racismo norte-americano em relação ao negro, porque sempre identi-ficou a mestiçagem na ascendência - não na evidência da tez –, arraigou a segrega-ção racial e sua legislação federal a refletiu, admitindo-a, mesmo depois da Guerra de Secessão (28/06/1865) até a década de cinquenta do século passado. Hoje, com um candidato democrata negro eleito para a presidência, devemos observar os efei-tos dessa atitude coletiva remanescente sobre o processo eleitoral vigente e sua subsequência.

Nós, brasileiros, identificamos a mestiçagem na cor da pele e não cogitamos de procurá-la na ascendência ancestral – podemos indagar com descontração e bom humor: “quem não tem um pezinho na África?” 67 - e após o encerramento de um regime escravocrata de trezentos anos (13/05/1888), a legislação brasileira nunca mais admitiu qualquer tipo de distinção, exclusão, restrição ou preferência com moti-vação racial. Esse é um ponto fundamental para que o problema do negro no Brasil seja encarado dentro de suas próprias circunstâncias históricas. A capacidade para absorver minorias culturais autóctones, ou incluídas pela escravidão ou, ainda, arri-badas como imigrantes de outras raças durante a formação da nacionalidade, carac-teriza uma atitude nacional receptiva e envolvente, capaz de sincretizar os elemen-tos culturais em questão, mesmo antagônicos, para a nação hospedeira. Adquiri-mos, brasileiros, essa qualidade de caráter e o Estado sempre a refletiu na lei. Di-zemos, como uma espécie de orgulho pândego que o estrangeiro entre nós “cai no samba...” É verdade, desde que deixemos o processo fluir e os traços de nosso ca-ráter nacional provocarem a aproximação do alienígena e de seu grupo conosco, com boa vontade, simpatia, interesse e, principalmente, sem empáfia e intrujice.

É um dos mais importantes traços de nosso caráter nacional. Um defeito: atitude passiva e conformada face ao enorme contingente

dos excluídos (síndrome da “casa grande/senzala”). “É um erro estudar-se a escravidão (no Brasil) fora das suas circunstâncias históricas, como uma desumanidade, e não como um fato social. Esse fácil erro induz à deturpação - igualmente declamatória - dos acontecimentos que a criaram e mantiveram; e longe de elucidar, obscurece o conceito que procura definir” 68

Trouxemos da África como escravos cerca de quatro milhões de negros; o núme-ro norte-americano é bem menor: cerca de quinhentos mil. A pior consequência da 66 Jornal do Brasil de 26 de agosto de 1997. 67 Uma expressão que tem outras variantes, todas significando “quem não tem em sua ascendência um avoengo da raça negra?”. 68 Pedro Calmon no Prefácio da “História da escravidão”- Maurilio de Gouveia - Gráfica Tupy Editora

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escravidão no Brasil, como outro fator histórico-primitivo (fator HP, Quadro 1, página 49), foi uma marca profunda, um estrago, no caráter nacional que poderíamos chamar de «síndrome da casa grande/senzala». Abolida definitivamente em 1888 com a Lei Áurea, após uma longa convivência de cerca de trezentos anos com uma implacável economia escravocrata, ficamos e nos conservamos acomodados e tolerantes com o desnível social em que se mantiveram, por mais de cem anos, os escravos liberta-dos e seus descendentes.

“É peculiar à instituição do cativeiro a exclusão do trabalho voluntário. On-de há escravos, os operários livres desaparecem: porque toda forma de trabalho se torna, logicamente, um signo de inferioridade social, apanágio dos negros. A escravatura teve o condão, no Brasil, de aviltar o esforço braçal, monopolizando-o.”69

Trezentos anos com esses valores fizeram o estrago. Por extensão, a sociedade brasileira da “casa grande”, continuou a conviver e aceitar, como um fato social natu-ral, a existência de excluídos e miseráveis da “senzala”, já não mais exclusivamente negros, mas brancos e mestiços marginalizados do processo econômico, ou simples trabalhadores braçais. Hoje nos apresentamos ao mundo com um espantoso fenô-meno de insensibilidade no caráter nacional que se reflete, naturalmente, nas omis-sões de governo. Eric Hobsbawm considera nosso País um candidato a campeão mundial de desigualdade econômica. Escreveu:

“(...) nesse monumento de injustiça social [refere-se a nós citando dados de 1991 e 1992], os 20% mais pobres da população dividiam entre si 2,5% da renda total da nação, enquanto os 20% mais ricos ficavam com quase dois terços dessa renda” 70.

Esse autor omitiu, não sabe ou não quis considerar que as causas o tal “monu-mento” são excepcionais no concerto das nações ocidentais: os brasileiros vivem apenas há 119 anos do encerramento de três séculos de implacável escravagismo de inspiração, implantação e manutenção portuguesa. Um ano após a “Lei Áurea” de 1888, assinada pela Regente Princesa Imperial D. Isabel, a república foi proclamada e, cinco anos depois, 1894, aa pprriimmeeiirraa CCoonnssttiittuuiiççããoo RReeppuubblliiccaannaa iimmppeeddiiuu sseeqquueellaass lleeggaaiiss ddee ddiissccrriimmiinnaaççããoo rraacciiaall oouu ddee rraacciissmm

oo. Atualizemos, entretanto, seus dados com o “World Development Indicators” do Banco Mundial divulgado em 16 de abril de 1998: 23.6% da população brasileira vive abaixo dos níveis de pobreza com a renda diária de US$ 1,00 ou menos; 20% mais ricos ficam com 64,2% da renda e do consumo; 20% mais pobres ficam 8,3%; 4% dos pobres do mundo, portanto, esta-vam entre nós (abaixo do nível de pobreza em 2005, segundo a CIA World Factbook: Brasil, 22%, 79º no ranking mundial).

De qualquer forma somos considerados um grande destaque mundial de omissão social em relação à miséria que convive com uma parcela bem aquinhoada da popu-lação e cujo reflexo mais trágico é o enorme desnível na distribuição da renda na-cional. A insensibilidade coletiva em relação aos problemas sociais tem sido uma feia mancha no caráter nacional brasileiro. Estamos ainda acomodados com a exis-tência desses dois brasis, um miserável e subdesenvolvido e outro moderno e de-senvolvido e, com isso, permitimos que as grandes massas da “senzala” brasileira permaneçam miseráveis, com a conformidade e insensibilidade da sociedade da

69 “História das Américas” – Edição brasileira – W. M. Jackson Inc/1947 70 “Era dos extremos - O breve século XX - 1914/1991” - Companhia Das Letras.

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“casa grande”. O Estado brasileiro, como reflexo dessa sociedade, manteve o com-portamento abúlico e desinteressado na reversão do fenômeno, estendendo-o e a-profundando-o.

Essa ainda é, fora de dúvida, nossa pior marca no caráter nacional 71. Outro defeito: atitude indiferente em relação à defesa ( síndrome do

“berço esplêndido”). A ameaça externa sobre um agrupamento humano reunido pelo efeito de fatores

diversos tem sido, na história dos homens, um importante estímulo para o desenvol-vimento da vontade coletiva (apontamento no Capítulo 3, página 89) mobilizadora de es-forços para a sobrevivência e defesa.

Entre as mais populosas e extensas nações do mundo, o Brasil se estruturou pra-ticamente sem ameaças externas à sua existência. Nosso processo de libertação política, quase incruento, deu-se por circunstâncias históricas especiais que promo-veram a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808 e com cuja presença, atos e ações imediatas à instalação trouxeram importância política e econômica crescente e irreversível à antiga colônia. O retorno à situação anterior tornou-se impossível e a independência política, desconhecendo a recidiva autoritá-ria das Cortes de Lisboa a partir de dezembro de 1821, na visão do Príncipe Regen-te estimulado e entusiasmado por brasileiros na sua corte, afigurou-se como uma oportuna antecipação para a salvaguarda da coroa e da Casa de Orléans e Bragan-ça.

“Eu ainda me lembro e me lembrarei sempre do que Vossa Majestade me disse antes de partir dois dias, no seu quarto: Pedro, se o Brasil se sepa-rar, antes seja para ti, que me hás de respeitar do que para algum desses aventureiros.” 72

Se isso agradava aos próceres políticos brasileiros e aos patriotas mais exalta-dos, não foi, entretanto, um movimento revolucionário que tenha exigido sacrifício e pertinácia do povo e de seus líderes naturais diretos.

A monarquia era um fator histórico-primitivo (Fator HP, Quadro 1, página 49) ligado a todo o passado colonial e a independência política, sem enfrentamento, foi absor-vida pela aristocracia rural com naturalidade.

“Sem a pequena indústria, capaz de elaborar uma classe burguesa e pro-letária, e com a grande lavoura, do tipo senhorial, o Brasil oferecia o me-lhor ambiente para a aclimatação da monarquia, quando esta se transferiu da Europa para suas plagas semibárbaras. Cada senhor de engenho ou ri-co fazendeiro era, por natureza, pelo seu domínio territorial, um fidalgo. D. João VI não precisaria inventar uma aristocracia. Limitou-se a enobrecer, titulando, a elite dos patriarcas coloniais, que viviam, nas suas proprieda-des, a lei da nobreza. Os antigos pioneiros, os velhos senhores de enge-nho, os fazendeiros donos de muitas léguas de florestas e pastagens, en-contraram na monarquia adventícia um aliado amável.” 73

71 O Instituto Gerp revelou em pesquisa sobre o Plano Real indicando que 61,5% dos entrevistados no Estado do Rio melhoraram suas vidas, apesar das queixas da classe média (Jornal do Brasil de 29 de junho de 1997). Um pequeno sinal para exorcismarmos esse espectro de trezentos anos de es-cravidão. Hoje esse sinal está mais nítido, mas só a classe média está pagando a conta... 72 Carta de D. Pedro a D. João VI, de 19 de junho de 1822 – Citada no “A vida de D. Pedro I” – Octá-vio Tarquínio de Sousa – Biblioteca do Exército e Livraria José Olympio Editores. 73 “A história das Américas” – Obra citada

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A independência, mesmo com um Imperador estrangeiro, não buliu com esse sta-tus.

O mais significativo capítulo de resistência à cobiça europeia, o “Brasil Holandês” - raiz de nosso nativismo que deu origem ao exército nacional -, ficou com a luta contra os flamengos no nordeste e com os heróis de Guararapes, durante um quarto de século de domínio não lusitano, até 1654. A longa disputa geopolítica na bacia do Prata entre portugueses e espanhóis, longe dos nosso centro econômico e de deci-são política, conquanto tenha custado muito sangue, teve um desfecho satisfatório em 1825 para os brasileiros e argentinos, legatários da contenda e, por decorrência histórica, de uma renitente desconfiança mútua. Essa disputa herdada, pelo cres-cente desinteresse dos contendores, representou no século XIX, efetivamente, ape-nas a luta dos orientais pela sua independência. Os entreveros daquele século no sul do Brasil e a guerra contra o ditador paraguaio Francisco Solano Lopes, embora com invasões, em dezembro de 1864, no sul da província do Mato Grosso e incur-sões militares, em junho de 1865, no Rio Grande do Sul, nunca chegaram a afligir, como ameaça à Nação, aos brasileiros da corte imperial no Rio de Janeiro. Os mo-vimentos separatistas que pretenderam colocar em cheque nossa unidade nacional foram debelados sistematicamente, sem que se transformassem em dramáticas se-cessões.

Essas questões internas e confrontos militares internacionais do século XIX, em nenhum momento colocaram a Nação Brasileira sob ameaça de sobrevivência como Estado nacional soberano. Nossos esforços de união, portanto, não precisaram ser épicos embora tenhamos criado heróis na pacificação dos impulsos regionais sepa-ratistas e nas disputas bélicas de fronteira. O processo histórico brasileiro dentro das circunstâncias geográficas, políticas e econômicas que o envolveram durante cinco séculos (um fator HP, portanto: Quadro 1, página 49), dessa forma, decorreu, mais como uma instigação à capacidade interna de liderança e de administração em latitudes tropicais, do que como um desafio contra inimigos externos nos rondando com al-guma capacidade para interrompê-lo. Incorporamos, assim, uma atitude de despreo-cupação com ameaças que possam colocar em perigo a pppeeerrreeennniiidddaaadddeee dddaaa NNNaaaçççãããooo BBBrrraaa---sssiii llleeeiiirrraaa. Nossa maior luta e grande desafio sempre esteve dentro de nossas frontei-ras, com as disparidades econômicas regionais e nossa multidão de excluídos a que já fiz referência. NNoo iinnccoonnsscciieennttee ccoolleettiivvoo bbrraassiilleeiirroo nnoossssaa PPááttrriiaa éé eetteerrnnaa ee eennccoonnttrraa--ssee,, eeffeettiivvaammeennttee,, eemm bbeerrççoo eessppllêênnddiiddoo – uma expressão que revelou o inconsciente do poeta nos versos do Hino Nacional, como fruto do que analisamos.

Considere-se, ainda, o verdor da natureza o ano todo, a inexistência de invernos rigorosos, o comportamento ameno das forças telúricas que devastam regularmente outras terras, o sol radiante e fiel dominando nossos dias, os 7.500 quilômetros de costa pouco recortada que nos provocaram, menos para os desafios e mistérios do mar aberto, e mais para a contemplação das belas praias tropicais. A propósito des-se efeito tropical emoliente em nossas vidas, relembro que em 1981, conversando com um coronel do exército israelense, adido militar à embaixada daquele país em Brasília, ouvi dele uma simplista revelação a respeito do Brasil, como ingênua mani-festação de um grande problema de sua pátria, dificilmente compreensível para um brasileiro: “Não entendo como existem crises políticas em um país com tanta á-gua...!”

O efeito de tudo isso é a atitude de despreocupação no caráter nacional que que-bra o ímpeto patriótico sem o acicate que a consciência de grandes dificuldades, do

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perigo, da ameaça ou a lembrança dolorosa de sacrifícios pela sobrevivência nacio-nal com agressões e conflitos bélicos têm criado nas grandes nações do mundo. Esse é um fato. Ainda que a paz entre nações não possa ser um padrão de compor-tamento assegurado, como já registrei, essa percepção não está ao alcance do ci-dadão brasileiro comum e a síndrome do “berço esplêndido” cria embaraços à nossa atitude de defesa.

Temos uma ameaça concreta e permanente, cada vez menos dissimulada, em re-lação à Amazônia e outros desafios que devem ser identificados e trazidos à discus-são. A preservação da soberania nacional, também, precisa se voltar para as amea-ças que advieram, difusas e surpreendentes, a partir da Primeira Guerra Mundial, com a globalização dos conflitos e dos quais jamais poderemos estar apartados ou ambíguos como estivemos na Segunda Guerra Mundial, até agosto de 1942 (assunto que será abordado adiante, apontado na página 99).

UUmmaa tteennddêênncciiaa ppeerriiggoossaa:: ddeecclliinnaannttee sseennttiimmeennttoo ddee ppaattrriioottiissmmoo?? O patriotismo é um sentimento nobre no caráter de um povo que tem origem no

orgulho ancestral pela singularidade que uma nação representa com sua sobrevi-vência independente e o fato de fazermos parte desse processo, por nascimento ou adesão. Representa uma afeição telúrica pela pátria, podendo ser cultivada como um bem de família, que transcende a realidade muitas vezes pouco nobre e não se relaciona com o comportamento de governantes, de partidos políticos, de políticos e de ideologias. Está acima da eventual mediocridade, incompetência ou despreparo de seus nacionais investidos de autoridade. O patriotismo, assim, não se abate ou deprime com fracassos, derrotas, humilhações; nem, mesmo, com o espetáculo de-primente das injustiças de toda a ordem. Ao contrário, deve se exaltar e, como uma fênix imortal fortificar-se na adversidade. A verdadeira emoção do patriotismo, dessa forma, é o amor incondicional pela terra e o envolvimento fraterno com os compatrí-cios e seus dramas. Precisa ser estudado, acompanhado e desenvolvido como um forte alicerce da nacionalidade.

Dificilmente uma nação orgulhosa de seus feitos, de sua história e de sua contri-buição efetiva para a cultura da humanidade viveu e sofreu tantas e tão intensas humilhações como a França na Segunda Guerra Mundial. Precisamente por terem sido perpetradas em um conflito global em que pouquíssimos povos do planeta esti-veram de fora. Todos acompanharam sua agonia e, hoje, com respeito, deixam de invocá-la. Ao abrir seu livro de memórias dessa guerra, Charles De Gaulle, o general que entre poucos não se deixou engolfar na débâcle francesa, manifesta seu patrio-tismo como um sentimento denso surgido das entranhas da nacionalidade.

“Tive sempre, em toda a minha vida, determinada ideia acerca da França, ideia que me é incutida tanto pelo sentimento como pela razão. O que em mim há de afetivo imagina, naturalmente, a França, tal como a princesa dos contos de fadas ou a virgem dos frescos murais, votada a um destino eminente e excepcional. Instintivamente, tenho a impressão de que a Pro-vidência a criou para os maiores êxitos ou para os mais rotundos malo-gros. Por isso, se acontece que a mediocridade marque os seus atos e procedimentos, tenho a sensação de uma absurda anomalia, imputável às faltas dos franceses, e não ao gênio da Pátria. Simultaneamente, porém, o lado positivo do meu espírito convence-me de que a França só na primeira fila é verdadeiramente a França; que apenas as grandes empresas são capazes de compensar os fermentos de dispersão que seu povo traz em si mesmo; que o nosso país, tal como é, entre outros, tais como são, deve,

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sob pena de cair em perigo mortal, aspirar a grandeza e manter-se íntegro. Numa palavra: em minha opinião, a França não pode ser a França sem grandeza.” 74

Dispensando a alienação ufanista precisamos saber se de fato somos patriotas. Torcer pela seleção brasileira de futebol não é indicação de patriotismo, embora for-taleça o espírito coletivo pela sua contribuição com energia positiva para o moral nacional 75. Somos patriotas? Sentimos orgulho arrebatador pelo Brasil, acreditamos em seu futuro e estamos dispostos ao sacrifício pela imensa Pátria Brasileira? So-mos capazes de identificar e sentir o gênio da Pátria? Esse sentimento está acima das nossas frustrações diárias? Nos emociona? Sentimos o orgulho de ser brasilei-ro? Sofremos com a desventura de nossos excluídos? Onde estão nossos heróis?

Os símbolos e os heróis de uma nação devem ser buscados na formação de sua nacionalidade e, por isso, serão universais, significando muito para todos quantos integrarem sua população – republicanos, monarquistas, católicos, muçulmanos, comunistas, ateus, pretos, brancos, amarelos, índios. Há maior símbolo ou mais legí-timo e comovente herói da nacionalidade brasileira do que o Protomártir da Inde-pendência, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes? (dois apontamentos nas páginas 44)

O patriotismo como marca de caráter nacional tem um estímulo espontâneo nos desafios aceitos e enfrentados, das vitórias, mesmo das derrotas, mas sempre de-corre da vontade coletiva de assegurar a existência e o fortalecimento do Estado soberano ao longo da formação da nacionalidade. O orgulho nacional surge do êxito dessa busca pertinaz. É, assim, muito importante para uma nação o culto da glória. Isso pode soar estranho ou alienado a muitos brasileiros neste princípio de século que esqueceram seus heróis e seus mártires porque, de alguma forma, estão desa-tentos nos valores pelos quais esses compatriotas de sacrificaram. O esquecimento de valores que deixam de ser professados ou a desatenção pela sua prática como exemplo a ser seguido aponta o enfraquecimento do caráter nacional.

Glória é o reconhecimento e o sentimento que decorrem de feitos considerados heroicos, cujos protagonistas arrostaram o extremo sacrifício em nome de alguma coisa de transcendente importância, na defesa de uma situação ou de algum valor que se supõe fundamental. Os heróis existem pelas suas extraordinárias façanhas, guerreiras ou não, e podem ser regionais, nacionais ou universais e eternos se o sacrifício for consumado por algo prevalecente para a humanidade através dos tem-pos. Quem discute o heroísmo de Leônidas nas Termópilas no verão de 480 a. C.? O rei espartano com apenas trezentos guerreiros decidiu lutar até a morte na defesa de uma faixa de terra de quinze metros entre a montanha e o mar, para permitir a retirada de sua força principal, após bloquear a pressão invasora de 250 mil persas de Xerxes –

“Viandante, vai dizer a Esparta que morremos aqui em obediência a su-as leis!” 76.

Quem questiona o feito pioneiro e heroico dos astronautas da nave “Apollo XI”? desembarcaram no solo estéril da lua - inspiração de poetas e enlevo de amantes,

74 “Memórias de guerra” – Volume I – Charles De Gaulle - Biblioteca do Exército Editora. 75 Trataremos do moral nacional no próximo capítulo – consulte o “Glossário de apoio”, Anexo I, pági-na 170. 76 Inscrição gravada nos rochedos das Termópilas, após o feito de Leônidas e seus espartanos.

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por milênios, como uma deusa intangível, que pairava, isenta e serena, sobre nos-sas paixões - e cravaram ali, como um emblema da audácia humana, a bandeira dos Estados Unidos:

“Este é um pequeno passo para um homem, um salto gigante para a Humanidade!” 77.

O herói sente a glória de seu feito. A glória, entretanto, pode ser um sentimento coletivo caracterizado pela consciência grupal de disposição para o sacrifício confir-mada por feitos heroicos realizados pelo grupo ou por seus representantes e orgu-lhosamente reconhecidos como passíveis de serem repetidos no futuro. O patriotis-mo está ligado ao sentimento de glória de um povo ou de uma nação. Os gregos ainda sentem a glória das Termópilas e o heroísmo de Leônidas é admirado pelo Ocidente há 2.480 anos. Em agosto de 1942, Bernard Law Montgomery, ao assumir o comando do Oitavo Exército no norte da África aludiu ao feito de Leônidas, para mudar a atitude dos britânicos em relação ao inimigo e asseverar sua disposição de não ceder o terreno ocupado: “Go, tell the Spartans, thou that passeth by, that here, obedient to their laws, we lie.” 78. Os americanos sentirão sempre a glória da aventu-ra espacial da “Apollo XI” e o feito de seus astronautas espantou, embeveceu e or-gulhou todos os habitantes do nosso planeta.

Um povo nacional precisa sentir a glória de sua pátria. Nenhuma nação prescinde disso. Esse sentimento deve ser alimentado, sem embustes, exageros ou qualquer tipo de deformação. Os heróis nacionais, pelos seus atos de sacrifício e dedicação obstinada, representam, ao longo do processo histórico da formação da nacionalida-de, a defesa de valores que a sustentaram e consolidaram e que devem ser profes-sados pelos cidadãos porque prevalecem. Não é difícil, portanto, identificá-los no curso da história como soldados, políticos, líderes, simples cidadãos, homens ou mulheres, cujos gestos ou atos, de alguma forma e em determinado momento, os transformaram em gigantes da nacionalidade. O patriotismo provém desse senti-mento e lhe é diretamente proporcional, correspondendo a uma disposição incondi-cional para o sacrifício, para o empenho desinteressado, para o acato da lei e da ordem.

Entre nós, entretanto, apresenta um mau indício de desbote que vem perdurando ao longo de quatorze anos (1994) de vida da nova moeda brasileira. A fauna sul-americana permanece com uma simbologia inadequada em nosso dinheiro cujas cédulas ainda ostentam como marcas nacionais beija-flores, garças, araras, onças pintadas e peixes... Que nação gigante é essa que se apresenta sem seus símbolos de nacionalidade e sem os heróis que a consolidaram em quinhentos anos de lutas e de pertinácia para sobreviver unificada? Perdeu sua alma? Esqueceu sua história? Não vê seu povo? Só patéticos animais, alguns em extinção, como nos selos cha-mativos de alguns países de mentira? Que diabo de símbolo universal da república, assexuado, enigmático e vazio nos representa no frontispício das notas de nosso dinheiro? - existem onze milhões de brasileiros que votaram pela restauração de monarquia e é provável, mesmo dentro das características da consulta popular, que a maioria permaneça com essa opinião. O tal símbolo os exclui?

77 Palavras do astronauta da “Apollo XI” Neil Armstrong, em 20 de julho de 1969, ao imprimir o dese-nho da sola de suas botas espaciais no poeirento solo lunar do “Mare Tranquillitatis”. 78 “Memórias do Marechal Montgomery” – Biblioteca do Exército Editora, volume 2 (há outra referência a esse episódio no segundo apontamento da página 80).

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Esses fatos, na verdade, mostram uma consequência mais do que uma causa. Se uma nação existe como Estado soberano sua história está marcada pela presença de heróis nacionais. Por isso esses seres excepcionais devem ser trazidos para o presente, aflorando nas vidas problemáticas dos cidadãos para iluminá-las – subli-mados em seu heroísmo e perdoados de seus próprios erros e humanas fraquezas -, apresentados aos brasileiros que sofrem, trabalham e lutam por uma Pátria melhor e mais sólida, estimulando-os e dando-lhes esperança. Os heróis de uma nação são seres humanos, nunca colibris, garças, araras, onças e peixes... Negar ou eclipsar os heróis de uma nacionalidade é asfixiar à morte a nação que os gerou, apagando-lhe o passado que, mesmo eivado de equívocos, marchas e contramarchas, alegrias e frustrações, vitórias e derrotas, representa sua história de luta pela consolidação da pátria. Os heróis não podem povoar somente a imaginação receptiva e inocente das crianças nas escolas de primeiro e segundo grau. Se não forem encontrados nas universidades e na vida de relação - na família, no trabalho - ficam reduzidos a fantasmas inúteis do passado, dos alfarrábios e das maçantes preleções escolares.

Há quem admita, por exemplo, que a globalização, ao promover uma consciência planetária, está suprimindo lindes físicas e linguísticas criando um novo sentimento coletivo onde a competência técnico-profissional necessária alhures ou o talento re-conhecido, como moeda de troca, são mobilizados por vantagens, salários ou com-pensações financeiras, asfixiando o velho gênio da Pátria.

O sentimento de patriotismo é um traço importante do caráter nacional que deve ser acompanhado e mantido em nível adequado porque seu declínio abala a pujan-ça da nação. Estamos permitindo que uma série de fatores histórico-circunstanciais (fator HC, Quadro 1, página 49) e atuais (fator A, Quadro 1, página 49), neutralizáveis e re-movíveis, promovam esse declínio.

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CCCaaapppííítttuuulllooo 222::: AAA “““EEENNNEEERRRGGGIIIAAA PPPOOOTTTEEENNNCCCIIIAAALLL””” DDDOOO MMMOOORRRAAALLL

OOO eeessstttaaadddooo dddeee eeessspppííírrriiitttooo dddaaasss pppeeessssssoooaaasss eee dddooosss aaagggrrruuupppaaammmeeennntttooosss::: dddiiissspppooosssiii---çççãããooo pppaaarrraaa ooo t ttrrraaabbbaaalllhhhooo eee pppaaarrraaa aaa vvviiidddaaa... MMMooorrraaalll nnnaaaccciiiooonnnaaalll ... EEExxxeeemmmppplllooosss...

DDiissppoossiiççããoo ppaarraa aa vviiddaa.. “EEnneerrggiiaa ppootteenncciiaall?” Antes de examiná-la, tomo emprestado da física essa qualifi-

cação metafórica para a energia anímica do moral pela sua existência, à feição de mola comprimida, pronta para distender-se dando impulsão à vontade.

As considerações sobre o caráter - particularmente como um fenômeno coletivo dentro dos agrupamentos humanos -, na continuidade de nossas reflexões, nos permitem o exame de outro prodígio importante entre os seres humanos congrega-dos em torno de interesses essenciais comuns: o moral (substantivo masculino). Trata-se de outro efeito psicológico que desafia a sensibilidade e competência dos líderes para senti-lo, acompanhá-lo, dirigi-lo e mantê-lo como poderosa energia aní-mica quando se manifesta coletivamente. Limitemo-nos, entretanto, inicialmente, a considerá-lo em cada pessoa chamando-o de moral individual.

Como poderíamos defini-lo? O estado de espírito de uma pessoa, resultante de sua disposição física, de seu sentimento de dignidade, de sua confiança nos chefes e líderes sob os quais está sujeita, de seus pensamentos, opiniões e ideias, capazes de influenciar positiva ou, ao revelar privação de tudo isso, negativamente sua dis-posição para assumir responsabilidades, para cumprir deveres e para cooperar com os agrupamentos humanos nos quais está integrada. Precisamos, entretanto, dedi-car um pouco mais de atenção a esse notável estado de espírito. O sentimento indi-vidual de dignidade está ligado à consciência do próprio valor, ao brio, à auto-estima e pundonor que transformam o cidadão em um ser social atuante e disposto. O oti-mismo e a confiança acima de eventuais percalços, não especificamente direciona-dos, mas como uma atitude perante responsabilidades e atividades profissionais ou, mais genericamente, face à vida e a suas vicissitudes, podem ser uma decorrência desse amor-próprio ou de pensamentos e ideias que o sustentam. O bom estado de higidez, gerando disposição vital, será, certamente, uma base forte nesse processo psicológico que impulsiona um ser humano para a aproximação compreensiva, tole-rante e cooperativa com os seus semelhantes, criando-lhe uma postura construtiva e confiante em relação à solução de problemas.

O reconhecimento espontâneo, sem esforço, de seus superiores, líderes e chefes fá-lo-á identificar e respeitar, liminarmente, a autoridade (**) dentro do grupo, da so-ciedade, e do Estado; a integração na atividade sua profissional desenvolve o orgu-lho pelo grupo a que pertence e a disposição para o trabalho. O bom humor e a sa-tisfação consigo mesmo, com seus familiares, com seus amigos, colegas e concida-dãos caracterizam, de um modo geral, um comportamento participativo para o seu relacionamento junto à família, no trabalho e dentro da sociedade regional ou nacio-nal em que está e se sente inserido. Ânimo, coragem e entusiasmo são sentimentos correlatos a esse estado de espírito de uma pessoa - sem ingenuidade ou alienação da realidade que a cerca -, capazes de transformá-la em um cidadão de boa quali-dade social que, embora identificando seus problemas e dificuldades individuais e de

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seu grupo, se dispõe firmemente a enfrentá-los. Caracteriza uma disposição pessoal para a vida, que a valoriza para ser vivida com intensidade.

OO mmoorraall iinnddiivviidduuaall eelleevvaaddoo éé uummaa eexxpprreessssããoo qquuee ddeeffiinnee eessssaa eenneerrggiiaa ppssiiccoollóóggiiccaa ppoossiittiivvaa,, uummaa eessppéécciiee ddee rreesseerrvvaa ppootteenncciiaall ddiissppoonníívveell,, eemm ddeetteerrmmiinnaaddoo sseerr hhuummaannoo..

Os traços psicofisiológicos que conformam o temperamento de uma pessoa, mais ou menos permanentes, determinam resistências ou facilidades para a oscilação de seu moral. OO mmoorraall iinnddiivviidduuaall éé,, eennttrreettaannttoo,, ccoommoo rreeggrraa,, uumm eessttaaddoo ddee eessppíírriittoo bbaass--ttaannttee vvuullnneerráávveell ee vvoollááttiill qquuee pprreecciissaa ddee eessttíímmuullooss ee ssuuppoorrtteess ppeerrmmaanneenntteess ppaarraa sseerr eessttaabbiilliizzaaddoo eemm bboomm nníívveell

.. A perda da saúde depaupera o ânimo. O colapso da con-fiança nos chefes e líderes desarvora. O advento de uma situação nova ou de um fato deprimente altera o humor e a confiança das pessoas; o sumiço do humor é ca-paz de dificultar-lhes a vida de relação em todos os seus aspectos. Dificuldades reni-tentes ou recorrentes são capazes de minar e destruir a disposição ativa e confiante de um cidadão. O sentimento de perda da dignidade induz o ser humano à mesqui-nhez. O moral individual, então, tresanda para baixos níveis, invertendo aquela pro-digiosa potencialidade positiva do cidadão afetado, criando-lhe uma indisposição

enfermiça para si próprio, para seu trabalho, em relação a seu grupo e, na maior amplitude, a sua pátria.

O moral individual baixo, assim, identifica um ser indiferente, abúlico, negativo e, portanto, nesse estado, de baixo valor social. Percebemos que sempre haverá a possibilidade de situações intermediárias entre esses dois pontos extremos de uma escala vertical imaginada para definir o moral de um indivíduo humano. A velocidade dessa transformação e o nível em que se instala ou se mantém, dependem da intensidade e importância dos estímulos

negativos ou positivos, além do próprio temperamento de quem os recebe. Pessoas sensíveis e impressionáveis estão sujeitas a maiores e mais constantes variações no nível de seu moral individual pela influência da intensidade e permanência des-ses estímulos. Os temperamentos frios e pouco perturbáveis podem resistir melhor a essa escala de variações verticais, tanto positiva como negativamente. A instabilida-de dessa sensibilidade, dentro de nossas considerações, caracteriza a ciclotimia79, como padrão de personalidade.

79 “Padrão de personalidade, caracterizado por períodos de excitação, euforia ou hiperatividade, que alternam com outros de depressão, tristeza ou inatividade, e que, normalmente, não configura traços psicóticos” – Houaiss Eletrônico.

CARÁTER INDIVIDUAL

CARCARCARÁÁÁTER COLETIVOTER COLETIVOTER COLETIVO

Confiança no chefe

ou no líderSentimento de dignidade

Entusiasmo

Otimismo

Humor

Higidez

Outros

Ilustração 6 - O moral individual é influenciado pelo ní-vel e intensidade de diversos fatores que determinam, em cada indivíduo, o estado de espírito que o caracteriza. O caráter individual e o caráter coletivo, entretanto, são sua importante base de sustentação mais.

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Além desses fatores, o moral elevado, para ser mantido, pressupõe alguns su-portes conhecidos: consciência de valores e outras condições positivas do caráter individual e coletivo. O moral é a plataforma para a vontade que, como veremos80, implica fundamentalmente disposição para a ação. Sem moral elevado não haverá vontade forte. Do moral baixo decorrerá o colapso da vontade.

Há um belo exemplo de moral individual elevado entre nós; infelizmente pouco conhecido fora do culto dos heróis militares do Exército Brasileiro mesmo que tenha sido perpetuado no Monumento aos Heróis de Dourados e Laguna (Praia Vermelha, Rio). O episódio em que se insere foi abordado pelo General Tasso Fragoso ao des-crever em seu clássico “História da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai” as primeiras ações bélicas paraguaias para a invasão da província do Mato Grosso em dezembro de 1864. Transcrevo-o.

“Cumpre agora relatar o que se passou com a coluna de Resquín81, que invadiu pela fronteira terrestre. A Divisão do Norte saiu de Concepción, à beira do rio Paraguai, caminhou no rumo geral de nordeste e penetrou em Mato Grosso atravessando o Apa em Bela Vista. Enquanto o grosso se di-rigia à fronteira, uma flancoguarda, sob o comando do capitão Martín Urbi-eta (cerca de 200 homens de cavalaria), avançava pela direita, passava em Cerro Corá e encaminhava-se pelo Chiriguelo à colônia militar de Dou-rados. Alcançou o território mato-grossense em Ponta Porã, cerca de doze léguas82 ao sul dessa colônia, que estava então guarnecida por um pe-queno destacamento de 15 homens, sob o comando do tenente de cavala-ria Antônio João Ribeiro. No dia 28 de dezembro de 1864, teve este oficial notícia da aproximação dos paraguaios; em vista disso ordenou que os poucos habitantes da colônia, velhos, mulheres e crianças, a abandonas-sem, declarando-lhes que ali ficava para morrer no seu posto. Enviou a no-tícia da invasão ao comandante da Colônia de Miranda e ao tenente-coronel Dias da Silva, que se encontrava em Nioaque com seu corpo de cavalaria. A este último escreveu a lápis o seguinte bilhete: “SSeeii qquuee mmoorrrroo,, mmaass oo mmeeuu ssaanngguuee ee ddee mmeeuuss ccoommppaannhheeiirrooss sseerrvviirráá ddee pprrootteessttoo ssoolleennee ccoonnttrraa aa iinnvvaassããoo ddoo ssoolloo ddee mmiinnhhaa ppááttrriiaa

”. No dia 29 de dezembro, Urbieta aproximou-se de Dourados, ao que ele afirma, sem ser pressentido. Logo que o foi, ouviu um ‘curto toque de chamada’; o comandante, tenente An-tônio João ‘adiantou-se com alguns homens’, todos armados, prontos a re-sistir. O tenente Manuel Martinez, incumbido de levar o ataque, intimou-o a render-se, porém, o comandante brasileiro respondeu que, se lhe apresen-tassem ordem do governo imperial, se renderia, mas sem ela não o faria de modo algum. Com essa resposta travou-se logo o combate, sendo mor-tos aos primeiros tiros o comandante de Dourados, tenente Antônio João Ribeiro ‘e mais dois indivíduos’. Os restantes fugiram para o mato do arroi-o, de onde foram retirados 12, inclusive um cabo e um soldado feridos; os demais da guarnição escaparam com o 2º comandante’”. (Tal é a curta narrativa de Urbieta...) 83

80 A vontade individual e vontade coletiva serão abordadas no capítulo 3 deste ensaio (página 89). 81 Coronel de Cavalaria do Exército Paraguaio Isidoro Resquín, comandante da Divisão Norte que invadiu por terra a província de Mato Grosso. 82 Cerca de oitenta quilômetros. 83 “História da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai” – General Tasso Fragoso – I volume – Biblioteca do Exército Editora/1965.

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

Os doze presos internados no Paraguai como prisioneiros de guerra morreriam no cativeiro antes do término do conflito. Não, certamente, por bons tratos. Jamais soubemos deles. Somente o moral elevado de Antônio João, fundamentado no sen-timento de patriotismo de seu caráter individual poderia respaldar a inabalável de-terminação para o que vislumbrou como um sacrifício, aparentemente inútil, mas de forte simbolismo para a Pátria e para seus inimigos naquele momento e naquelas circunstâncias. Com o mesmo espírito de Leônidas nas Termópilas. Em ambos – dois guerreiros, um simples tenente e um rei - se poderia assinalar a energia positiva do caráter profissional, o moral elevado e a bravura que é uma heróica manifestação de vontade indômita.

Caráter, moral e vontade: o leitor militar já pode sentir a inter-relação e a sequên-cia lógica desses fenômenos que examinaremos mais objetivamente na Segunda Parte deste ensaio, nos capítulos 4 e 5 (páginas 110 e 124, respectivamente).

Cândido, na fantasia filosófica de Voltaire, um homem otimista dentro de uma so-ciedade perversa, discriminativa e insensível, foi o grande instrumento de sua crítica social que influenciou o pensamento intelectual do século XVIII e ajudou a modificar o mundo para os seres humanos excluídos da aristocracia dirigente, considerados então, individualmente, instrumentos passivos e vítimas permanentes das estruturas de poder, da ganância e das ambições desses mais fortes e poderosos que as ma-nipulam. “Tudo é pelo melhor no melhor dos mundos possíveis”, proclamava a filoso-fia de Leibnitz em grande moda na época e, no entanto, um terremoto arruinara as principais cidades do Marrocos e destruíra Lisboa84; além desse cataclismo junta-ram-se as calamidades da Guerra dos Sete Anos na Europa (1756-1763) e de todas as partes do mundo conhecido pela Europa se identificava insatisfação e angústia.

O momento, portanto, estava bem escolhido para atacar o otimismo. Cândido o matou pelo ridículo. O personagem de Voltaire não era um homem de boa qualidade social porque seu estado de espírito, alienado da realidade que o envolvia, ao con-trário do moral individual elevado que examinamos, dava consistência às mazelas, desigualdades, discriminações e injustiças da sociedade europeia, na época em que a trama está posta. O alegre num contexto trágico é um idiota. Essa foi a crítica do filósofo e seu apelo às grandes transformações que, afinal, foram propostas na se-gunda metade do século XVIII85, na França e na América.

Uma característica relevante do moral é, justamente, a importância desse estado de espírito na sua relação prática com o agrupamento humano ou, no sentido mais amplo, com a sociedade. Um bandido com “moral elevado” para suas atividades cri-minosas aponta uma caricatura desse estado de espírito por subverter a escala de valores em relação ao par conceitual de bem/mal; o moral de um revolucionário, no entanto, por causas empolgantes, legítimas ou, de qualquer forma, mobilizadoras da opinião pública e da vontade das pessoas, representa o fenômeno em seu aspecto sociologicamente positivo e importante. Embora, muitas vezes, seja enganadora a separação conceptual de “legalidade” e “moralidade”.

A disposição para a vida pode levar alguém ao sacrifício máximo, numa aparente incongruência, quando sublimada e projetada para a permanência de algo essencial.

84 Na manhã de 1º de novembro de 1755, um dos maiores terremotos de que se tem notícia, matou cerca de 30.000 pessoas e destruiu 9.000 edifícios da cidade de Lisboa, encerrando o ciclo de opu-lência de Portugal 85 Voltaire escreveu e publicou seu “Candide” em 1758.

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

Morre-se pela liberdade, pela pátria, pela família. Um ser humano especial, com es-sa percepção em determinado momento crítico de ameaça, deixa-se imolar pelo de-ver ou pela consciência de valores transcendentais. O moral de um soldado, alicer-çado em crença na causa pela qual luta, na confiança em seus comandantes ou nos compromissos de honra com seus companheiros, não permitirá que sua vontade enfraqueça e o faça titubear ao aproximar-se do perigo. A coragem sob o fogo, a valentia e o destemor, em princípio e além de uma tendência de temperamento, de-correm ou são reforçados por convicções e determinação86 estimuladas por um mo-ral elevado.

Essas observações salientam a importância determinante do caráter individual e do caráter coletivo para a manutenção do moral em alto nível. Os valores aceitos e incorporados por um indivíduo ou pela maioria de seu grupo podem sustentar nele, a atitude de defesa intransigente, levando-o à renúncia de tudo o que perturbe a conti-nuidade desses valores. Já examinamos, ao longo desse ensaio, alguns exemplos desse fenômeno. O tenente Antônio João é um deles.

Vejamos outro clássico. A obstinada defesa do Alcázar de Toledo durante a guer-ra civil espanhola, com certeza o mais dramático de seus episódios, foi palco de uma impressionante demonstração de determinação, desprendimento e bravura com base no moral do coronel José Moscardó, comandante da velha fortaleza ressusci-tada pela pressão das milícias republicanas comunistas. Foram setenta dias de feroz assédio – 1.760 pessoas no interior da fortaleza resistiram a uma dezena de milhar de milicianos, de 21 de julho a 28 de setembro de 1936. O alicerce dessa disposição inabalável que transformou a perseverança do velho coronel em defender o Alcázar em um símbolo de resistência contra o governo republicano, foi a solidez de seu ca-ráter profissional, embora se tratasse de um sexagenário no declínio de sua vida militar. Relembremos um momento crucial dessa epopeia.

“Às sete da manhã do dia 23 de julho, os milicianos, procurando o Te-nente Guadalupe, encontraram os Moscardó no apartamento, mas a iden-tidade deles não foi descoberta porque haviam destruído todos os papéis. A senhora Moscardó e Carmelo não causaram preocupação enquanto Lu-ís, um robusto rapaz de 24 anos, foi trazido para interrogatório na “Diputa-ción”, edifício dos delegados provinciais, onde uma “cheka” de anarquistas e socialistas tinha sido instalada por um advogado local, Cândido Cabello. Cabello mal podia acreditar no que via quando reconheceu o filho do Co-ronel Moscardó. Não convencido inteiramente de sua sorte, enviou um de seus homens ao apartamento dos Guadalupe para confirmação que logo chegou. Cabello, um homem obeso com enormes e grossos óculos, sorriu amavelmente para Luís. Tinha encontrado a chave para abrir o Alcázar. Eram três horas. Apanhou o telefone e chamou a Academia87. O Capitão José Carvajal, um instrutor da Escola Central e ajudante-de-ordens do Co-ronel Moscardó, atendeu o telefone e passou-o ao seu superior. Depois de se identificar, Cabello disse: ‘O senhor é o responsável por todos os crimes e por tudo que está acontecendo em Toledo. Dou-lhe dez minutos para se render. Do contrário, fuzilarei seu filho Luis, que está aqui junto de mim.” O rosto de Moscardó não traiu seus sentimentos. ‘Acredito no senhor’, disse ele. ‘E para que saiba a verdade’ – Cabello continuou -, ‘ele vai falar.’ Deu

86 Essa é uma discussão para o Livro 2, “O caráter dos Soldados”, da trilogia “O espírito combaten-te”. 87 Na época, designação da velha fortaleza pela ocupação funcional de sua área.

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o telefone a Luis. ‘Papai!’, gritou ele. ‘O que há meu rapaz?’ ‘Nada’ – res-pondeu Luis – ‘Eles dizem que me matarão se o Alcázar não se render. Não se preocupe comigo. ’ ‘Se for verdade’ - replicou Moscardó – ‘enco-mende sua alma a Deus, grite Viva a Espanha! E morra como herói. Adeus meu filho, um beijo. ‘Adeus, pai, um beijo. ’ Quando Cabello voltou ao tele-fone, Moscardó disse: ‘- O senhor pode também esquecer o prazo que me concedeu. O Alcázar nunca se renderá!”88

AA qquueeddaa ddoo mmoorraall iinnddiivviidduuaall,, eemm ccoonnttrraappaarrttiiddaa,, ooccaassiioonnaa oo ddeessmmoorroonnaammeennttoo ddaa vvoonnttaaddee ddee uummaa ppeessssooaa.. EEssssee ddeeccaaiimmeennttoo,, ccoomm mmaaiioorr oouu mmeennoorr iinntteennssiiddaaddee oouu aamm--pplliittuuddee,, éé pprroovvooccaaddoo ppeellaa iinncciiddêênncciiaa ddee uumm ccoonnjjuunnttoo ddee ppeerrddaass::

-- oo eessffaacceelloo ddee ffaattoorreess ccaappaazzeess ddee mmaannttêê--lloo eelleevvaaddoo ((IIlluussttrraaççããoo 66,, página 73)),, -- aa ffrraaggiilliiddaaddeess nnoo ccaarráátteerr iinnddiivviidduuaall ddaa ppeessssooaa ccoonnssiiddeerraaddaa ee -- aa iinnccoonnssiissttêênncciiaa ddoo ccaarráátteerr ccoolleettiivvoo nnoo aaggrruuppaammeennttoo hhuummaannoo aaoo qquuaall eellaa ppeerrtteenn--

ccee oouu ddeevvaa sseerr ccoonnssiiddeerraaddaa ((oouu mmaaiiss ddee uumm)) -- ffaammiilliiaall,, rreelliiggiioossoo,, pprrooffiissssiioonnaall,, rreeggiioo--nnaall oouu nnaacciioonnaall..

AA mmoorrbbiiddeezz ddaa vvoonnttaaddee iinnddiivviidduuaall ddeeffiinnhhaa oo sseerr hhuummaannoo ee oo ffaazz ppeerrddeerr vvaalloorr ssooccii--aall..

É possível, nesse processo contínuo de perda, que o estado de espírito para a vida se transmude em desapego, fuga e desestímulo para vivê-la. Uma inversão pe-rigosa cuja ocorrência não deve ser explicada pela caracterização de alguma pato-logia psíquica isolada. Com o moral elevado pode-se morrer em nome da vida e de seus valores mais nobres; com o moral baixo pode-se desprezar a vida por conside-rá-la pior que a morte (o suicídio estaria, em princípio, neste quadro psicológico).

Voltemos ao Alcázar de Toledo e atentemos para a situação individual dos defen-sores mencionados nos trechos que selecionei:

“No dia 11 de setembro, dia da visita de Camarasa, explodiram no Alcá-zar 74 pesadas bombas; no dia 12 foram 159, e 100 no dia 13. (...) Durante esses dias, enquanto a imprensa mundial proclamava a iminente explosão de minas, o corpo diplomático de Madri tentava evitar a tragédia. (...) ‘A-tenção! O embaixador da República do Chile deseja falar-vos. Nossas for-ças vão suspender fogo. Se concordarem, levantem uma bandeira branca na torre mais próxima. ’(...) O Coronel Moscardó sentia que as conferên-cias com os republicanos estavam desanimando a guarnição. Alguns co-meçavam a exigir paz a qualquer preço. Anunciou, portanto, à junta, que não seriam mais toleradas discussões com o inimigo. Daí por diante as portas do Alcázar estariam hermeticamente fechadas e só se abririam de novo para a coluna libertadora de Franco. Os nervos estavam tão desgas-tados que foi necessário afixar uma ordem proibindo a qualquer pessoa espalhar boatos considerados alarmantes. Dizia-se à população que confi-asse em Deus e nos seus oficiais. Para melhorar o estado de ânimo, Mos-cardó instruiu o Capitão Cuartero para distribuir rações extras de trigo, mas isso pouco adiantou. O pavor das minas parecia ter eliminado o interesse na comida. Ocorreram diversos suicídios. No dia da visita de Camarsa, um soldado de meia-idade subiu à torre sudoeste dizendo às sentinelas que desejava contemplar o entardecer sobre a cidade. Quando o deixaram passar, caminhou calmamente para a janela e atirou-se do terceiro andar sem soltar um ai. No dia seguinte um guarda civil estourou os miolos com um tiro. Entre as mulheres o medo ocultava-se furtivamente. Se as bombas não as matassem o que lhes faria a milícia? A esposa de Eustásio Gómez,

88 “O cerco do Alcázar de Toledo” – Cecil D. Eby – Editora Nova Fronteira.

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um guarda civil, disse ao marido: ‘Se você vir os vermelhos entrarem, des-ça ao porão, mate-me e a seu filho e retorne ao parapeito até que eles o matem.’ Uma nova onda de deserções varreu toda a guarnição. No dia se-guinte ao esforço infrutífero do embaixador Morgado como mediador, qua-tro guardas civis escaparam pela encosta norte e renderam-se. Sabiam que podiam ser executados como criminosos de guerra, mas talvez o es-quadrão de fogo fosse menos terrível para eles do que a ideia do que po-deria acontecer quando as minas explodissem.” 89

MMoorraall ccoolleettiivvoo -- oo ppaappeell ddoo llííddeerr ppaarraa oobbttêê--lloo ee mmaannttêê--lloo Confiança nos chefes, alimentação, Deus e pátria, esperança, temor, com a ren-

dição, das represálias e humilhações fora da fortaleza, esses foram, dentro do Alcá-zar, os fatores mais importantes para a manutenção do moral elevado em cada um de seus defensores. Moscardó não era um líder envolvente, carismático. Apenas um chefe militar determinado pelo que entendia ser seu dever de honra. Muitas vezes não soube manter o moral - ou teve dificuldade para fazê-lo - entre aqueles que o acompanhavam formando um grupo bastante heterogêneo, em termos de caráter coletivo, reunidos por circunstâncias especiais como protagonistas de um drama que viveram juntos. Agiu, nos momentos críticos, instintiva e sensatamente e apresen-tou-se como um exemplo de determinação inquebrantável. Essa foi sua força dentro daqueles dramáticos setenta dias no interior dos muros e nos sombrios porões da fortaleza assediada.

Grupos homogêneos, com caráter coletivo bem definido por força de atividade profissional, por exemplo, são mais fáceis de serem mantidos com moral adequado, embora possam entrar em colapso mais rapidamente pela omissão de seus líderes. Não era o caso entre os defensores do Alcázar - 1.205 defensores militares ou mili-tarizados de várias origens, abrigando 555 civis, incluindo cinco freiras, 22 motoris-tas de viaturas requisitadas e 211 crianças. Compunham um grupo variado e desuni-forme de 1.760 pessoas dentro da fortaleza que resistiu ao cerco feroz de aproxima-damente 10.000 milicianos.

O desenvolvimento e o acompanhamento do estado moral dentro de um agrupa-mento humano, dessa forma, nos remete a outro problema. Se esse estado de espí-rito positivo ou negativo de uma pessoa puder, de algum modo, caracterizar uma disposição ou indisposição dominante dentro de um agrupamento humano, estare-mos em face de algo muito importante como fenômeno psicossocial a ser examina-do. O que poderia ser o moral coletivo? Estado de espírito, apreciado coletivamente no âmbito de um agrupamento humano, resultante do moral individual de cada um de seus componentes, dando a esse agrupamento uma energia potencial positiva ou negativa que interferirá de forma determinante no desenvolvimento da vontade cole-tiva? Não somente isso.

O moral coletivo não pode ser considerado – como na fórmula técnica para a ava-liação da opinião pública – um simples cálculo aritmético que indique o número pre-ponderante de integrantes identificados com moral individual elevado ou com o mo-ral individual baixo, caso essa identificação pudesse ser feita com algum tipo de

89 Op. cit

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pesquisa. Em relação ao estado moral haverá, dentro do grupo observado, um pro-cesso interativo que contamina psicologicamente seus integrantes, criando uma e-nergia nova (Ilustração 8, no próximo capítulo, página 90). Essa disposição psicológica gru-pal, como um fator especial em interação contínua, surge do domínio positivo ou ne-gativo do moral individual de seus componentes e passa a ser, ela própria, um ele-mento dominante no seguimento que será capaz de acabrunhar ou reanimar o grupo como um todo. Pessoas reunidas sob uma liderança capaz criam essa energia posi-tiva nova; o grupo energizado contagia seus integrantes e pressiona o ânimo de to-dos para níveis mais elevados do moral.

Li em jornal, há alguns anos, a chamada de primeira página para uma matéria in-teressante que ilustra o processo de abatimento do moral de um grupo:

“Servidores depressivos. Criticados pelos serviços deficientes, sem perspectivas de promoção profissional e ganhando salários cada vez mais baixos, o funcionalismo público entrou em crise. Resultado: auto-estima em baixa, depressão em alta. Tão em alta que o número de servidores de-pressivos afastados do trabalho assusta o Ministério da Saúde. A doença é grave e pode até levar ao suicídio.” 90

Nesse quadro específico dos servidores públicos brasileiros em agosto de 1997, o lento e difícil processo de modernização e racionalização da estrutura pesada do Estado nos seus níveis federal, regional e municipal e – é preciso reconhecer – a má administração dessa metamorfose, foram responsáveis pelo fenômeno noticiado. O que ocorreu, em consequência, foi uma queda contínua no moral dos servidores. Seus chefes diretos, servidores públicos em sua maioria, apresentavam-se com o mesmo acabrunhamento e aprofundavam o desânimo. Havia, portanto, além da “do-ença” individual inicial, uma “epidemia” instalada que se sustentava e, ao mesmo tempo, nutria a depressão que era, no nível individual e como manifestação extrema, o estado patológico que preocuparia o Ministro da Saúde. Exacerbados líderes de organizações corporativas, com evidente má fé e ajudados pela impopularidade do Ministro da Administração e da Reforma do Estado - do então MARE - junto aos fun-cionários públicos federais, aventavam até a possibilidade maquiavélica de um aba-timento conduzido do moral dos servidores como manobra psicológica que impediria a capacidade coletiva de reação e de mobilização. Algo digno de Joseph Goebbels, o sinistro ministro da propaganda de Hitler no Terceiro Reich... Uma falsidade, pare-ce claro, mas uma absurdez que transcrevo neste texto para mostrar a importância do fenômeno pelos seus efeitos coletivos positivos ou negativos.

Por que seis milhões de judeus, ao longo de doze anos de perseguições e des-moralizações extremas (de 1933 a 1945) foram imolados na Europa nazista e só mani-festaram uma reação notável em 22/04/1943, sob circunstâncias especiais, no le-vante do Gueto de Varsóvia?

“Revoltamos-nos sem esperança alguma, mas com a firme intenção de humilhar os nazistas e recuperar assim a nossa própria dignidade.” (sic) 91

Um soldado com o moral deteriorado não luta, está pronto para render-se, aco-varda-se sob fogo e contamina seus companheiros. Esse é o verbo chave: contami-nar. Um grupo constituído de combatentes com o moral baixo gera uma força interna 90 Correio Braziliense de 14 de agosto de 1997. 91 Marek Edelman, último líder vivo do levante. O gueto de Varsóvia foi organizado em 16/10/1940 com uma população inicial de 380 mil judeus reduzida, sistematicamente, pelos campos de extermí-nio (Treblinka), para 70 mil no momento da revolta.

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destruidora do moral de seus integrantes mais resistentes. Um comandante com o moral baixo comandará, na verdade, o colapso de sua unidade de combate contagi-ada por seu estado. Os exemplos militares, porque enfocam o estado de espírito de grupos em situações muito claras e extremas de tensão e de perigo sem outras im-plicações, são muito didáticos para compreensão da depressão dos servidores pú-blicos abordados pela citada notícia de jornal. Ou dos judeus face ao Holocausto, durante doze anos de humilhações e desesperança.

O líder é essencial na direção desse processo de soerguimento do moral entre os membros de um grupo acabrunhado, criando um estado de ânimo coletivo positivo, homogêneo e estável; uma espécie de clima incitante e estimulante entre os inte-grantes sob sua liderança. Uma espécie de contra-contágio. Seu próprio moral é de importância basilar, pela poderosa capacidade de sugestão, seja pela posição de chefe de um grupo institucional, seja pela situação espontânea de cabeça de um movimento ou de simples treinador de um grupo esportivo. Entre os componentes, é preciso atentar, as personalidades mais fortes exercem maior influência. O moral baixo de alguém, como uma doença infecciosa, tem o condão de deprimir e expandir para outros o sentimento enfermiço de desânimo. O moral elevado, ao contrário, tem um efeito de cura, de reabilitação. A rápida percepção do estado moral dentro de um agrupamento, a reversão de uma má tendência ou a velocidade de recuperação do ânimo grupal, atestam a qualidade do líder.

O Marechal de Campo Visconde Montgomery de Alamein, K. G.,definiu em su-as memórias, como uma só palavra, a doutrina de comando que praticou como che-fe militar: liderança. Em 13 de agosto de 1942, ao se antecipar dois dias, de moto próprio, na assunção do comando do Oitavo Exército Britânico procurava reverter um perigoso quadro, segundo sua constatação, de resignação geral das tropas bri-tânicas no norte da África com a superioridade de Rommel. Sentiu o mau reflexo da atitude passiva, sem compensações psicológicas por parte do comando das opera-ções (abordo este assunto no ensaio complementar “A fascinante gestão de um espírito”, procure o Link neste site), que o planejamento operacional vigente materializava com a alternati-va de retirada para o delta do Nilo ou para o sul, subindo no curso do grande rio ou, ainda, admitindo sucessivos fracassos, para a Palestina, face à possibilidade de um ataque potente do inimigo que se mantinha com a vantagem da iniciativa. Esses planos haviam sido elaborados por determinação do general Auchinlek, cansado e frustrado com os últimos insucessos de várias tentativas para interromper o novo fluxo alemão no deserto. Sem a sensibilidade de um líder para perceber o fenômeno que gerava, apesar de ser bom chefe militar, Auchinleck vinha transmitindo desalen-to aos soldados e reforçando, dentro de suas tropas, o mito do inimigo valente, ca-paz, esperto, rápido, surpreendente e, dessa forma, imbatível.

Uma vitória no nor-te da África era absolutamente necessária aos ingleses para compensar a “vergonha de Cingapura” que ocorrera em fevereiro daquele ano (faremos referência a esse episódio no segundo apontamento da página 116) e, também, para causar efeito sobre a timidez da participação dos seus aliados americanos. No prefácio do livro biográfico “Rommel” de Desmond Young92, o Marechal Sir Claude J. E. Auchinleck demonstra esse res-peito ao mito que, de alguma forma, contribuiu para criar. Montgomery propagou, de imediato, sua determinação de permanecer nas posições - fazendo alusão direta à famosa defesa dos espartanos nas Termópilas - e de ali morrer se fosse preciso. Em

92 “Rommel” - Bibliex e Editora Artenova S. A.

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dois dias de ação e agitação, reverteu, de forma surpreendente, o quadro do moral das tropas britânicas.

“Assim, a 15 de agosto, data marcada por Auchinleck para eu assumir o comando do Oitavo Exército, já completara quarenta e oito horas nas no-vas funções e pusera as coisas no rumo certo. Acima de tudo, pelo simples controle da situação, já obtivéramos uma sensível elevação do moral. Isto era importante, pois o moral do combatente é o maior fator da guerra.” 93

As etapas do processo psicológico interativo que ocorreu naquele curto espaço de tempo, cumpridas com a velocidade de um relâmpago, foram, em primeiro lugar, o efeito da determinação do novo comandante sobre o moral dos comandantes subor-dinados, em seguida, por intermédio desses, a transformação do ânimo da tropa e, finalmente, como uma energia nova e poderosa, a realimentação do todo e a insta-lação de um novo moral de combate no Oitavo Exército (vis-à-vis de combate, recorra ao Glossário, página 172).

O Exército Imperial Brasileiro em operações no território paraguaio, vitorioso em 24 de maio de 1866, entrara em um período de estagnação no acampamento de Tuyuty, após o revés de Curupayty – e de desentendimentos e suscetibilidades entre os altos chefes militares envolvendo o General Manoel Marques de Sousa, Barão de Porto Alegre e o Almirante Joaquim Marques Lisboa, Barão de Tamandaré. As uni-dades militares transformaram-se em uma espécie de horda dispersa. Sem ordem, sem disciplina, desorganizadas, sofrendo, ainda, o assédio do “colera-morbus” e, o que apresentava muita gravidade, haviam perdido seu espírito ofensivo. Tinham, entretanto, uma guerra pela frente e um inimigo valoroso e pertinaz para dobrar. Na ociosidade, imediatamente surgiram deformações viciosas. Os valores morais entra-ram rapidamente em declínio e os valores profissionais caíram no esquecimento. Sem essa base o moral tresandou. Um grande comércio à retaguarda completava o desvirtuamento vendendo de tudo e se inter-relacionando com a prostituição e com a velhacaria. Os soldados estavam descalços e seminus e a cavalaria a pé. O nível de deterioração do Exército Imperial impressionou o Marechal de Exército Marquês de Caxias que chegara ao acampamento em 18 de novembro daquele ano, para assumir o comando das forças brasileiras, inclusive a Esquadra. Deu início, de ime-diato, a uma fase de intensa atividade disciplinadora, recuperadora da mística militar eclipsada e restauradora do poder de combate perdido (vis-à-vis de combate).

“O Marquês multiplica-se em atividade. Marca revistas. Intensifica a ins-trução. Fiscaliza pessoalmente todos os exercícios. Três horas a cavalo, pelo menos, percorre todos os acampamentos, examinando-lhes a higiene, o asseio e a disciplina, e dirige, em pessoa, a instrução de vários corpos. Verifica-se do Diário de Operações que Caxias, num dia, pela manhã, diri-ge o exercício de um batalhão; à tarde, o de uma brigada formada por três batalhões. No dia seguinte, passa em revista toda a cavalaria do Exército. E no terceiro dia assiste ao exercício geral da artilharia! (...) Organizador tudo vê e prevê. Não descansa. É rigoroso nas suas observações. Tanto se faz enérgico nas punições como generoso nas recompensas.” 94

O rompimento da inércia de um repouso ignóbil para uma fase de brilhantes ope-rações e sucessivas vitórias, como uma espécie de rolo compressor de combate e-

93 “Memórias do Marechal Montgomery” – Biblioteca do Exército Editora – 1976 (Outra tradução: IBRASA - Instituição Brasileira de Difusão Cultural S. A. - São Pulo – 1960). 94 “Caxias” – Affonso de Carvalho – Biblioteca do Exército, Editora.

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xigiu sete meses de intensa preparação. Na retomada da iniciativa o Marquês evi-denciou, ora o estratego de gênio que era, ora o líder de combate capaz de arrostar o perigo para assegurar a conquista de importante posição, arrebatando seus co-mandados como na ponte de Ytororó. Naquelas longínquas paragens, longe da Pá-tria, há cento e quarenta e dois anos, não havia um Rommel entre os chefes inimi-gos, mas o Generalíssimo sabia que poderíamos ter um grande adversário no seio mesmo de nossas forças em operação, ou, ali, entre os soldados imperiais, um so-berbo aliado: o moral de combate da tropa a partir da confiança no chefe que as conduziria. A propósito disso, referindo-se a uma visita de Caxias à posição de Anday em maio de 1868, após um ano e meio no comando da guerra, o jovem alfe-res Dionísio Cerqueira servindo no Dezesseis do tenente-coronel Tiburcio aí esta-cionado, faz uma referência ao Marechal que traduz muito bem o sentimento da tro-pa em relação a seu Generalíssimo – de forte caráter e sólida confiabilidade - e o benéfico efeito desse fato sobre o moral dos combatentes:

“Para nós, soldados do seu exército, o Marquês de Caxias não era um homem como os outros. Tal prestígio envolvia-o que ninguém podia vê-lo senão de uma auréola de glória. Quem não acreditava em sua onipotên-cia? Quando passava no seu uniforme de marechal do exército, ereto e e-legante, apesar da idade, todos nós perfilávamos reverentes e cheios de fé.” 95

MMoorraall nnaacciioonnaall -- iinngglleesseess eemm 11994400//4411 ee bbrraassiilleeiirrooss nnoo ffiimm ddoo ssééccuulloo XXXX A disposição coletiva da população de uma nação, seu estado de espírito para

enfrentar tragédias, crises, sofrimento, dificuldades, derrotas ou a expectativa delas, a desesperança e o desespero crescente, criam para os líderes nacionais momentos históricos desafiantes para a reversão do pessimismo e de esforço para o ressurgi-mento da capacidade de resistência e de luta. É preciso que percebam o estado de-pressivo coletivo e sintam sua responsabilidade de ação imediata. Acreditar no futu-ro é essencial para a saúde psicológica de uma nação. Senti-lo sombrio, impreciso ou ignominioso afeta a família, como célula social, porque enfraquece seu principal fundamento que é a dedicação aos filhos e a certeza de lhes legar um desenvolvi-mento harmonioso e seguro. O moral nacional em níveis perigosos abate a vontade e quebra o ímpeto de um povo para reagir a suas desventuras.

Todo o planeta acompanhou o drama e a abnegação do povo inglês durante os anos de 1940 e 1941. Tristes anos de isolamento e sofrimento. A análise de um hóspede ilustre observando os ilhéus no final de 1940, mesmo quando já haviam vencido a pior fase daquele calvário contendo o furor germânico na batalha aérea, revela de uma forma vívida os percalços no moral nacional inglês naqueles meses sombrosos. Os destaques em itálico apontarão os fatores que deprimiam os ingleses na época do escrito.

“Em Londres, nesse princípio de inverno, a incerteza envolvia as almas. Encontrei os ingleses preocupados e melancólicos. Sem dúvida pensavam, com orgulho, que acabavam de ganhar a batalha aérea e que os riscos de invasão estavam consideravelmente afastados. Mas enquanto desentulha-vam suas ruínas, outras angústias caíam sobre eles e sobre os seus po-

95 “Reminiscências da Campanha do Paraguai” – Biblioteca do Exército, Editora

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bres aliados. A guerra submarina causava grandes estragos. O povo inglês via, com crescente ansiedade, os submersíveis, os aviões e os “raiders” alemães procederem à destruição dos navios, dos quais dependia o curso da guerra e até os níveis das rações. Para os ministros e para os serviços apenas contava a questão do “shipping”. A tonelagem tornava-se uma ob-sessão, um tirano que tudo dominava. A vida e a glória da Inglaterra joga-vam-se diariamente no mar. No Oriente começavam as operações ativas. Ora o Mediterrâneo, em seguida à defecção de Vichy, tornara-se inacessí-vel aos lentos comboios britânicos. As tropas e o material que Londres en-viava para o Egito deviam passar pelo Cabo, seguindo uma rota marítima cuja extensão era igual à da metade da terra. O que era expedido para a Inglaterra – das Índias, da Austrália ou da Nova Zelândia - também não chagava senão depois de intermináveis travessias. Por outro lado, a mas-sa das matérias-primas, do armamento e do abastecimento – 60 milhões de toneladas em 1941 – que a Inglaterra importava para sua indústria, os seus exércitos e a sua população só lhe podia vir dos confins da América, da África ou da Ásia. Para isso, era necessário uma tonelagem colossal, navegando em ziguezague ao longo de distâncias imensas, até os portos do Mersey e do Clyde, e exigindo consideráveis meios de escolta. A in-quietação britânica era tanto maior quanto de lado algum se abriam pers-pectivas animadoras. Ao contrário do que muitos ingleses haviam espera-do, o bombardeio de suas cidades e a vitória da “Royal Air Force” de forma alguma decidiam a América a entrar na guerra. Nos Estados Unidos, a o-pinião pública era, sem dúvida, hostil a Hitler e a Mussolini. Por outro lado, o Presidente Roosevelt, assim que foi reeleito, no dia 5 de novembro, a-centuava, pelas suas diligências diplomáticas e pelas suas declarações públicas, o seu esforço para arrastar a América à intervenção. Mas a atitu-de oficial de Washington continuava ser a neutralidade, aliás, imposta pela lei. Por isso, durante esse sombrio inverno, os ingleses tinham de pagar em ouro e em divisas as suas compras nos Estados Unidos. E até toda a colaboração indireta que a habilidade casuística do Presidente conseguis-se fornecer-lhes era objeto de uma austera reprovação no Congresso e na imprensa. Em suma, os ingleses, perante o ritmo intenso de pagamentos de impostos pelas suas necessidades, viam aproximar-se rapidamente o momento em que, à falta de disponibilidades, deixariam de poder receber o que lhes era necessário para combater. Do lado da Rússia Soviética não se via qualquer fenda nos acordos eco-nômicos que a ligavam ao Reich. Pelo contrário, depois de duas viagens de Molotov a Berlim, um acordo comercial germano-russo, concluído no mês de janeiro, ia auxiliar poderosamente a Alemanha no que se refere a abastecimento de víveres. Por outro lado, em outubro de 1940 o Japão as-sinara o Pacto Tripartite, proclamando a sua ameaçadora solidariedade com Berlim e com Roma. Ao mesmo tempo, a unidade da Europa, sob a hegemonia alemã, parecia realizar-se. A Hungria, a Romênia e a Eslová-quia aderiram ao eixo em novembro. Franco avistava-se com Hitler em San Sebastian e com Mussolini em Bordighera. Finalmente, Vichy, sem qualquer possibilidade de manter, ao menos, a ficção de independência que lhe concedia o armistício, entrava no caminho da colaboração efetiva com o invasor. Se no exterior o horizonte estava carregado, no interior o povo britânico so-fria pesados encargos. A mobilização enviava para os exércitos, para as fábricas, para os campos, para o funcionamento público, para a defesa ci-

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vil, 20 milhões de homens e mulheres. Os consumos eram, para todos, ri-gorosamente limitados e a extrema severidade dos tribunais ia ajustando contas com o mercado negro. Por outro lado a ação aérea do inimigo, em-bora já não aspirasse a resultados decisivos, nem por isso era menor: fla-gelando, com seus ataques constantes, os portos, a indústria e as vias fér-reas; destruindo repentinamente Coventry, City, Portsmouth, Southampton, Liverpool, Glasgow. Swansea, Hill, etc.; mantendo em alerta as populações durante noites consecutivas; esgotando o pessoal de proteção e de defe-sa; obrigando uma multidão de pobres diabos a saírem da cama para se refugiarem nas caves, nos abrigos e até mesmo, em Londres, nas esta-ções do metropolitano. Neste fim de 1940, os ingleses, cercados nas suas ilhas, sentiam-se no ponto mais escuro do túnel.” 96

A depressão do moral nacional inglês naquele final de 1940 - pelos motivos assi-nalados com o destaque em azul no texto de De Gaulle -, ressalta o tamanho do pro-blema enfrentado por Churchill e sua notável atuação como líder político para, den-tro de um quadro de isolamento, abandono e solapamento da esperança, manter o espírito de luta e a confiança do povo em sua capacidade para conduzir a nação despedaçada à reação para a vitória que, naquela quadra deprimente, só era efeti-vamente vislumbrada e propagada por ele. Podemos imaginar o grande esforço e as preocupações do grande “Lorde da Guerra” para manter o moral dos ingleses e dos britânicos dentro de uma ilha cercada, sem aliados explícitos, como o último bastião de resistência à avalanche nazista (primeiro apontamento da página 116). Roosevelt luta-va conta o isolacionismo americano.

Cada um de nós agasalha, no íntimo, a esperança de que nosso gigantesco País

venha a cumprir um destino de projeção internacional e importância mundial. Temos alguns bons motivos para acreditar que estamos nos encaminhando, com uma eco-nomia diversificada e de importância mundial pelas suas dimensões - o único oci-dental, atlântico e verde entre os BRICs -, para uma situação de natural liderança via Pré-sal e MERCOSUL dentro da América Latina e em relação a outros blocos eco-nômicos do planeta globalizado. Mas, a despeito desse sentimento que sempre nos envolveu com a expectativa do futuro, como andava o nosso moral nacional no final de século XX? (uummaa iinnddaaggaaççããoo qquuee ffoorrmmuulleeii eemm mmaarrççoo ddee 119999

88). Seria essencial que os líderes políticos nacionais e regionais acompanhassem

continuamente a relação de causa e efeito entre fatores depressivos ou estimulantes e o moral coletivo para que incorporassem, entre suas preocupações de liderança, o cuidado com essa base sem a qual não poderia haver vontade coletiva para suplan-tar dificuldades.

O afluxo de fatores e circunstâncias que assinalarei com destaque em itálico, o deprimiam ou, ao contrário, mantinham ou elevavam o seu nível?

Os brasileiros estavam envolvidos, desde março de 1985, em um confli-to continuado de ideias e opiniões para o entendimento e absorção dos princípios, das práticas e rotinas democráticas. A tragédia social de um terço da nossa população e o distanciamento entre essas camadas desva-lidas e a riqueza nacional, pela formidável dimensão do problema, criava um poderoso fator de dissociação. A falência do Estado e o longo processo recessivo na economia acrescentavam outros elementos de desagregação

96 “Memórias de guerra” - Volume I “O apelo” - Charles De Gaulle – Biblioteca do Exército, Editora.

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entre nós. Por outro lado, era indiscutível a crescente consciência de cida-dania entre os brasileiros, surgida com o esforço democratizador, com um marco muito forte no processo constituinte, estimulada pelos órgãos de comunicação de massa, em particular o rádio e a televisão, na divulgação e na crítica de incongruências e escândalos nacionais. Tudo isso provoca-va o questionamento de valores e instituições, desnudando todas as nos-sas mazelas, defeitos, omissões, deformações e iniquidades, escamotea-dos pelas elites dirigentes desde que nos transformamos de uma socieda-de rural simples para uma sociedade urbana complexa. Sem dúvida o efei-to dessa avalanche sobre brasileiros de baixo nível cultural e econômico, envolvidos, também, com a sequela mais cruel da recessão que assolava a economia - inflação, aviltamento salarial, desemprego - desestruturava-os, gerando uma pressão ou, de certa forma, uma instigação ao compor-tamento marginal. Não é difícil imaginar-se o drama vivido por um chefe de família lançado no desemprego, na miséria e no desamparo, acompa-nhando as peripécias do “esquema PC”, as aventuras dos “anões do Con-gresso”, os escândalos no sistema bancário e, naquela época, o caso dos precatórios com a ciranda embusteira dos títulos públicos de estados e municípios.

O efeito de toda essa pressão deteriorante de valores sobre o caráter nacional brasileiro foi, certamente, muito grave porque desapoiou nosso moral nacional e criou um problema adicional para os líderes, desde o che-fe de uma repartição pública com seu pequeno grupo de funcionários, até o Chefe do Estado voltado para toda a Nação. Gerou-se, com isso, uma crise de valores que ia marcando com sua sequela, entre nós, o final do século XX. Em contraposição a esses fatores dissolutivos do moral coleti-vo, havia uma inquestionável evolução positiva na administração do Plano Real e, como referimos, uma crescente consolidação promissora do Mer-cosul como bloco econômico no contexto regional e mundial. Eram alguns sintomas de cura para uma doença considerada incurável, com vitórias im-portantes e naturais percalços para a manutenção do vigor da moeda bra-sileira e a erradicação da inflação como vetor da desagregação econômica e, sobretudo, esta última, como uma cultura que determinou graves vícios na administração pública, privada e doméstica dos recursos financeiros.

Foi, entretanto, dolorosa para a classe média que tem boa influência na formação da opinião pública e na dinâmica interativa que debilita ou exalta o moral coletivo, a realidade de juros escorchadores, asfixia do crédito e uma permanente insegurança, percebida por seus sofridos integrantes, em relação ao futuro, criando aflições provenientes de um novo tipo de amea-ça aos Estados nacionais soberanos – a volubilidade do chamado capital especulativo contra o que ainda não existiam antídotos. Quantos brasilei-ros dessa mesma classe média foram direta ou indiretamente atingidos pe-lo colapso de construtoras e incorporadoras com criminosa administração do velho e decantado “sonho da casa própria” utilizado no “marketing” de sua safadeza? A mitificação desse objetivo de vida e, de certa forma, o seu abalo com os escombros do “Palace II” suscitaram uma indagação acabru-nhante entre os brasileiros que amimavam a ideia de ter apartamento pró-prio: em quem acreditar? 97

97 Duas grandes empresas de construção e incorporação de imóveis infestaram o noticiário de todo o País com desmandos, falcatruas e dirigentes irresponsáveis, criando vítimas e mártires (a tragédia do desmoronamento do edifício “Palace II ” no Domingo de carnaval de 1998 e a agonia de seus mora-

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A globalização vinha provocando, também, alguns estragos ao agravar o desemprego criado pelo pequeno crescimento da economia e afligir as classes produtoras no esforço de adaptação e busca de competitividade. Paralelamente, cada vez mais percebíamos que era ruim nosso conceito internacional em decorrência da nossa incapacidade e, de certo modo, nossa estranha acomodação como “campeões mundiais” de desigualda-des sociais e convivência desenvolta, sem remorsos, com trinta milhões - um número discutível, mas difundido pela mídia - de excluídos de justa partilha da riqueza nacional. O cidadão urbano das grandes cidades se sentia inseguro e agredido pelo aumento inexorável da violência e da mar-ginalidade, decorrentes, em grande parte, da falta de capacidade de pre-venção e de repressão do Estado: incongruências e falta de harmonia no sistema criminal brasileiro - polícia, Ministério Público, justiça criminal e subsistema penitenciário -, legislação desatualizada, estruturas arcaicas, má formação profissional e corporativismo dominante, provocador de dis-córdia e deformações.

Saúde pública precária, previdência social escandalosa e ineficiente, privilégios postos a lume, pressão para a reforma agrária com manifesta-ções e ações toleradas à margem da lei e um longo, muito longo, processo de reforma constitucional, criavam e mantinham uma estranha situação de anomia e desassossego social. A Nação não confiava em seus políticos. A síndrome do “berço esplêndido” e o enfraquecimento do sentimento de pa-triotismo a que nos referimos anteriormente colaboravam na perda da dis-posição coletiva para o enfrentamento das dificuldades98.

Dentro deste quadro, a mídia brasileira, demonstrava, no final de século XX, um gosto exagerado e renitente pela má notícia, ao exarcebar a inter-pretação de um provérbio cínico de imprensa: “a boa notícia jornalística é a má notícia...”

Havia, entretanto, o velho argumento da alegria do carnaval e suas crescentes e impressionantes recidivas ao longo do ano99. A festa popular há muito deixara de ser uma manifestação de autêntico e espontâneo divertimento coletivo e se transformara em espetáculo duvidoso para impressionar e atrair turistas ou em orgia licenciosa para estimular um consumo especializado, quase compulsivo, de bebidas alcoólicas e refrigerantes – e hiato consciente e oficializado da nossa moralidade. O carnaval brasileiro, no fim do século XX, com uma participação direta de cerca dez a doze milhões de pessoas (0,6% da população) representava um período de relaxidão co-letiva justamente para a parcela mais ansiosa da sociedade: jovens de todas as classes sociais, carentes de valores, sem estímulos profissionais e perspectivas de emprego. Dentro dessas circunstâncias, o entendimento da fuga carnavalesca, quanto maior fosse a festança, mais extensa suas manifestações e longos seus pe-ríodos, seria mais adequada como desgosto coletivo com a vida. Uma interpretação de depressão do moral coletivo pelo desencanto com as coisas chamadas de sérias – o inverso, portanto, da sua aparência. O nosso tropicalismo e a grande contribui-

dores e vizinhos na Barra da Tijuca, Rio/RJ, foram exibidas à exaustão pela televisão comercial, apro-fundadas e expandidas pelos canais de notícias por assinatura, estes últimos com audiência maciça da classe média). 98 Uma abordagem que fiz, no último tópico do capítulo 1, sobre esse defeito e essa tendência do caráter nacional brasileiro, apontamento da página 68. 99 É impressionante o crescimento das micaretas e similares ao longo dos últimos anos e em todo o Território Nacional.

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ção dos negros, de qualquer forma, nos fizeram um povo alegre e predisposto ao otimismo; mesmo assim sempre vulnerável ao cerco depressor.

Churchill deu esperança aos britânicos no quadro de uma tragédia nacional. Os líderes políticos brasileiros deveriam se sensibilizar com a necessidade histórica de reverter o processo depressivo do moral nacional no final do século, para que en-frentássemos melhor nossas grandes dificuldades e as transformações de nossa sociedade. Em março de 1998 as pesquisas atestavam a situação dominante de ati-tude pessimista, reveladora de moral depressivo entre a população brasileira. Em maio do mesmo ano, os números recolhidos pelo Instituto GERP e Banco de Dados do IBRE (Instituto Brasileiro de Economia/FGV), autorizavam as seguintes assertivas para a medida da confiança dos brasileiros: aauussêênncciiaa ddee eennttuussiiaassmmoo nnoo ffuuttuurroo,, ccaauu--tteellaa eemm rreellaaççããoo aaoo pprreesseennttee ee ffaallttaa ddee ccrreeddiibbiilliiddaaddee nnooss ppoollííttiiccooss.

Alguns ingênuos esperam que o fute-bol vitorioso em Copa do Mundo opere esse milagre como ópio amortecedor de angús-tias e insatisfações sociais... É a paixão brasileira por esse esporte, entretanto, que tem importância sociológica permanente. Ao fortalecer o sentimento de orgulho nacional (caráter), o sucesso desportivo nesse nível pode contribuir com o afluxo de energia po-sitiva para o nosso moral durante um curto período de euforia que de quatro em quatro anos está coincidindo com eleições gerais; em contrapartida, o insucesso, com a frus-tração nacional, também contribui positiva-mente por provocar reações a esse orgulho ferido e só afeta negativamente o moral co-letivo como uma breve ressaca.

POLÍTICOSDESACREDITADOS

ESCÂNDALOS

NACIONAISDESEMPREGO

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ISE DE

Ilustração 7 – A depressão do moral na-cional brasileiro em 03/1998 (e hoje, como estamos?).

Dentro de uma democracia representativa, a preocupação de um prefeito, gover-

nador regional ou chefe de Estado, com o estado moral de seus concidadãos não deve ser fruto exclusivo de interesse eleitoral, mas representar, com uma dimensão patriótica, o zelo permanente pela disposição de todos para a vida como base para a vontade coletiva; o que efetivamente tornará possível a anulação de estorvos na rea-lização de transformações. Os líderes políticos que governam cidades, estados ou toda uma nação, devem atentar para o fenômeno de queda do moral coletivo e para a importância sociológica disso. A reversão estará diretamente ligada ao grau de confiabilidade que conquistarem junto àqueles que os elegeram.

Alguns fatores que interferiam no moral nacional brasileiro no final do século XX, dentre outros, acarretavam sua depressão. Esta situação poderia e deveria ser re-vertida pelos líderes políticos de maior representatividade e nível, com ações con-vergentes e coordenadas dos diversos setores de governo. Alguns efeitos seriam imediatos. Outros, para que se caracterize, de fato, a reversão, demandariam prazos mais longos. A fórmula simples do sucesso é a atenção permanente e a pertinácia que resultam da devoção do líder à qual aludi na introdução deste ensaio. Não são necessárias obras físicas e soluções de problemas para levantar o moral nacional:

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basta que se acredite no futuro e se confie nos líderes para encarar quaisquer ad-versidades com disposição.

Aí estava o desafio no final do século XX. Bem menor daquele enfrentado por Churchill em 1940. Quais os líderes políticos brasileiros que o perceberam? Ou se julgaram, de alguma forma, responsáveis pela reversão? Como está nosso moral nacional hoje? Estamos entre os BRICs e lutamos contra os efeitos de uma crise financeira global. Os visinhos “hermanos” com seus líderes populistas estão inquie-tos e agitados. São outros problemas, portanto, mas devemos saber que nunca será fácil manter o moral nacional em bom nível.

Qual é a preocupação dos nossos líderes políticos em relação e esse fenômeno psicossocial incontestado e avaliável?

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Capítulo 3 – A “ENERGIA CINÉTICA” DA VONTADE A força e a debilidade da vontade coletiva. Exemplos.

VVoonnttaaddee iimmppllaaccáávveell “EEnneerrggiiaa cciinnééttiiccaa?” Antes de examiná-la, tomo emprestado da física essa qualifi-

cação metafórica para a energia anímica da vontade pelo seu relacionamento direto com a dinâmica da ação.

A força da vontade coletiva revelada em ocasiões importantes da história de um povo distingue as grandes nações. Recolhemos um exemplo dramático no hemisfé-rio sul por julgá-lo bastante sugestivo para os brasileiros. Em 1914 o conflito europeu representava algo muito distante para a Austrália. Os australianos estavam no outro lado daquele mundo em ebulição e, conquanto integrantes do Império Britânico, ti-nham obtido sua independência política havia treze anos. Esforçavam-se, ainda, pa-ra unificar um vasto e misterioso continente na federação de seis antigas colônias mais ou menos despovoadas e isoladas. Enfrentavam seus próprios problemas e tinham condições e argumentos para delongar sua participação direta naquelas dis-putas e desentendimentos entre imperadores, reis, czares, sultões e quejandos. Pe-lo menos naquele ano, ou no seguinte, enquanto a guerra não assumisse propor-ções globais.

Transcrevo um texto que narra com simplicidade o fato histórico da Primeira Guerra Mundial que construiu o principal alicerce da nacionalidade australiana, com o elevado moral e a férrea vontade de sua juventude:

“Em 1914, em uma população de quase cinco milhões, mais de no-venta e cinco por cento eram de ascendência britânica. Em todo caso, o vínculo da Austrália com o Império Britânico não era, absolutamente, ape-nas sentimental. O continente quase não tinha defesas. Sem a proteção da Marinha Real, nada, (foi o que afirmaram, durante uma geração, alguns a-larmados australianos) nada o livraria dos desígnios rapaces das potências da Europa, sem falar do transbordante território asiático logo acima do e-quador. Em troca da égide imperial, a maioria dos australianos dispunha-se a cumprir seus deveres imperiais - com lealdade, contribuições financei-ras e, se preciso, sangue.

O deflagrar da Primeira Guerra Mundial pegou a Austrália de surpresa, mas seu povo apoiou a Grã-Bretanha corajosamente e sem queixas. Em-bora não houvesse ameaça direta ao país, milhares de jovens ofereceram-se para lutar pelo Império do outro lado do mundo. Para começar, os ingle-ses duvidavam da capacidade daqueles que os oficiais mais velhos consi-deravam rudes colonos; mas o teste de fogo provou que os homens do ANZAC (“Australian and New Zeland Army Corps”) estavam entre os mais combativos soldados da guerra. Sem recrutamento (vetado por um plebis-cito nacional), a Austrália reuniu mais de quatrocentos mil homens - 11,2 por cento de sua população.

Eles formavam um exército incomum, descontraído e igualitário, muitas vezes insubordinado e quase nunca em trajes apropriados. Em ação, po-rém, eram uma força devastadora e tinham muitos admiradores. Um deles,

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a filha do primeiro-ministro inglês Asquith, escreveu: ‘Sua disposição e seu élan vital não conhecem limites; sua constituição física e sua aparência são magníficas. Homens como jovens deuses, nus até a cintura, bronzea-dos de sol...’ Mas os jovens deuses não eram imortais. Mais da metade re-cebeu ferimentos em combate e cerca de sessenta mil não voltaram a ver a Austrália.

Ficaram em quase todos os campos de batalha da França, da Palestina, da Síria e, sobretudo, nas rochas da peninsulazinha turca de Gallipoli. Foi lá, em 1915, que o ANZAC derramou seu sangue pela primeira vez, em uma ousada invasão cujo objetivo era tomar Constantinopla e afastar a Turquia da guerra. Na verdade, foi um desastre. Apesar das terríveis bai-xas, os invasores não conseguiram ocupar mais que poucos quilômetros de terreno; por fim, toda a força foi evacuada.

Para os australianos, todavia, o heroísmo do ANZAC transformou essa única derrota durante toda a guerra em uma grande vitória moral. O sacri-fício pareceu conferir uma nova mística de nacionalidade a todo o povo australiano, sua maioridade. O dia 25 de abril, aniversário do desembar-que, é a data nacional da Austrália (‘Anzac Day’), e mesmo hoje, a despei-to da distância no tempo e da irreverência da juventude, ainda ostenta grande significado.” 100

Na verdade, 25 de abril tornou-se a grande data de reverência nacional para aus-tralianos e neozelandeses.

OOppiinniiããoo ee vvoonnttaaddee

A vontade individual representa a mentalização de uma ação que pode ou não ser praticada em obediência a um impulso ou a motivos ditados pela razão (ou respal-dado no caráter individual e estimu-lado pelo moral individual). A vontade de uma pessoa é, também, o sentimento surgido da certeza que a incita à busca do fim proposto pela faculdade de mentalizar e pode ser identificado dentro de uma escala de gradação de intensidade - desde sua quase ausência, uma fraca vontade, até sua manifestação mais exaltada de ânimo, firmeza, coragem e deci-são.

Essa conceituação101 prevalece se projetada para um grupo. Mostrará, então, mais do que uma espécie de média aferida da vontade de seus membros em relação a um fim proposto que adquire, (pelo moral coletivo), pelo debate ou pela inci-

Ilustração 8 - Como na dinâmica do moral coletivo, o processo interativo da vontade coletiva gera, também, uma nova energia capaz de puxar para cima os níveis individu-ais e mantê-los mais elevados.

100 “Nações do mundo - Austrália - Herança de um passado colonial” - Time-Life. 101 Variações baseadas no verbete do Dicionário Aurélio Eletrônico.

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dência de razões persuasoras, traumáticas ou não, a consciência grupal e um grau de consenso para ser procurado e atingido. “Eu, João, quero!”, “Eu, José, também quero!”, “Sou o Antônio: quero!”, “Quero também – sou o Alberto!”, pode ser mais do que, simplesmente, quatro pessoas querendo algo; se estiverem reunidas e conhe-cerem suas disposições mútuas, representa o surgimento da energia nova do “Nós queremos!” que se acrescentará ao processo interativo como um novo fenômeno (Ilustração 8, anterior).

A vontade coletiva pode se caracterizar genericamente como vontade popular ou, com melhor indicação do universo abrangido, como vontade de um determinado grupo, vontade comunitária, vontade regional ou, no nível mais elevado e importan-te, como vontade nacional. Expressa-se, também, com gradação na sua intensida-de. Estará relacionada, de qualquer forma, aos interesses do agrupamento humano (**) em que se manifesta.

Já a opinião de alguém em relação a determinado assunto ou questão é passiva quanto à participação nas decisões ou providências que realizem o objeto que abor-da; não se identifica aí a incitação à ação, pois a opinião carece de certeza e, por isso, é objetiva e subjetivamente insuficiente. Uma pesquisa de intenção de voto, para não confundir a ideia, na verdade é a antecipação da manifestação da vontade do eleitorado, nas circunstâncias do momento em que é elaborada, que poderá ser concretizada pelo futuro voto caracteristicamente participativo. Melhor seria chamá-la de pesquisa da vontade do eleitor. As manifestações pré-eleitorais que reúnem eleitores em comícios e demonstrações de presença, descontados os recursos e artificialidades de “marketing”, devem ser vistas da mesma forma como revelações de vontade coletiva. O voto obrigatório estimula e força a manifestação de vontade no eleitor; não obrigatório, embora o processo eleitoral possa suscitar opiniões, a manifestação de vontade só se caracterizará como o comparecimento às urnas para a votação. Outras demonstrações de presença para protesto ou para apoio, pelo empenho e atividade física dos participantes, são indícios importantes de vontade popular. No Brasil contemporâneo, as manifestações do queremismo, durante a campanha presidencial de 1950, marcaram o retorno democrático de Getúlio Var-gas, a “Marcha da família com Deus, pela liberdade”, em 1963 na Avenida Rio Bran-co (Rio), estimulou os líderes do movimento que depôs Jango Goulart, a “Passeata dos cem mil”, na mesma avenida em 1968, preocupou os detentores do poder e ori-ginou a reação do AI-5, e as concentrações entusiásticas pelas “Diretas, já!”, em 1984, assinalaram o fim do ciclo autoritário de 64. São bons exemplos de expressão da vontade popular com variação de amplitude e significado.

A opinião, como a queremos definir, apesar de mostrar um posicionamento com referência a um problema ou situação, é inerte e, de forma implícita, atribui a outros o esforço e a responsabilidade pelas ações e soluções que fortuitamente estejam envolvidas; exclui-se delas. Assim deve ser entendida uma opinião individual: não aponta uma disposição volitiva, ativa e, sobretudo, participativa na superação de di-ficuldades para afirmá-la ou mantê-la. Individualmente a opinião pode ser exteriori-zada, mas conservará, sempre, essas características de introversão e passividade - “Tenho a minha opinião: eu penso, eu acho, eu imagino, eu suponho. Você tem a sua: podemos conviver desse modo”. A mudança de opinião corresponde a um pro-cesso pacífico, introspectivo, entre pessoas que conversam, discutem, leem, veem ou escutam para aceitarem novos argumentos ou novos dados.

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A avaliação da opinião individual dominante dentro de um grupo, da comunidade, da sociedade, do país, define o que se chama, com bastante impropriedade, de opi-nião pública. Um grupo, segundo o conceito que estamos firmando, não poderia ter opinião como um sentimento coletivo dominante e consciente como ocorre com a vontade. A opinião individual que eventualmente prepondere e seja designada por opinião pública não será capaz de exercer pressão social pela impossibilidade de manifestar-se espontaneamente. A opinião pública, mesmo dentro dessa concepção de amplitude coletiva artificial, pode ser periodicamente avaliada pelo levantamento das opiniões individuais, por ser um bom indicativo e uma boa orientação como uma espécie de termômetro de tendências de aprovação ou repúdio de questões em pau-ta, ou de base para a medrança da vontade ainda não instalada. Se houver, dentro de um grupo, alguma expressão coletiva perceptível ou, de alguma forma, mensurá-vel, já estará sendo definida, com a intensidade dessa manifestação, a vontade cole-tiva e, com ela, estará se caracterizando a pressão social.

A partir de uma opinião individual e da avaliação da opinião pública, mesmo antes delas, parece lógico, pode ganhar consistência paulatina ou rapidamente como per-cebemos, a vontade do indivíduo ou do grupo caso sobrevenham razões e motiva-ções para o assentimento, objetiva e subjetivamente suficiente. A certeza e a incita-ção à ação, inexistentes na opinião, são os elementos fundamentais da vontade que apresenta essa necessidade espontânea de expressar-se - “Essa é a minha vonta-de! Vou mudar (pretendo mudar) para azul a cor daquela parede.” A vontade só e-xiste com essa disposição para a ação, mas pode ser, apenas, uma intenção não concretizada por algum empecilho mais forte do que, no exemplo, a decisão de pin-tura: falta de dinheiro, de tinta, de pintor, de tempo, etc. “Vimos aqui - quarenta mo-radores da Rua do Sabão - manifestar o nosso repúdio pela declaração de V. S., contrária às regras que protegem o nosso meio ambiente.” A expressão coletiva da vontade é mais forte, menos reversível, porque já transcende as dificuldades indivi-duais. No exemplo, a manifestação tem valor e intensidade com quarenta manifes-tantes, mesmo que cinco, entre os quarenta e cinco moradores, tenham se negado ao protesto.

A vontade individual é extroversa e ativa. A projeção coletiva da vontade individu-al cria a vontade do grupo como um sentimento consciente novo, consensual e que se manifesta com espontaneidade, sendo igualmente ativo: representa força e gera prosélitos, adeptos, sectários, partidários ou a disposição para a ação. A opinião in-dividual é introversa e passiva. A opinião pública não representa uma projeção cole-tiva da opinião individual, mas uma simples avaliação técnica e artificial das posi-ções dominantes entre as pessoas, sem a constatação ou insinuação de qualquer tipo de consciência grupal. Opiniões individuais contraditórias coexistem. Vontades contraditórias - no sentido individual ou coletivo - entram em oposição ativa.

A vontade coletiva existe como fenômeno social importante e de manifestação espontânea, tese básica desse ensaio.

OO cciicclloo hhiissttóórriiccoo ddaa vvoonnttaaddee ddooss ppoovvooss Nos dias atuais, desde as últimas décadas do segundo milênio, uma vigorosa

vontade nacional manifesta é capaz de mobilizar nações e compelir governos demo-cráticos ou não, legitimando seus atos com a disposição da maioria dos cidadãos

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para participar na consecução de um objetivo de sacrifício pela nacionalidade que esteja posto ou em debate. Nesse caso, a compreensão e a avaliação coletiva do sacrifício é dominada pela forte consciência dos valores em jogo e de sua importân-cia para a sobrevivência, dignidade ou progresso nacionais. Ou, ao inverso, a vonta-de nacional se torna notória contra alguma ideia, proposição, política ou decisão, para paralisar e desacreditar os governantes.

Nem sempre foi assim. As comunidades foram se afastando da participação natu-ral e espontânea nas disputas de seus líderes, a partir de quando seus membros deixaram de entendê-las claramente. Percebiam, é certo, desde tempos imemoriais, a ameaça direta a seus pertences, a suas mulheres, a sua família, a suas lavouras e rebanhos e a seu trabalho - essa certeza do perigo era capaz de incitá-los e lançá-los na reação de defesa, seguindo seus chefes naturais. A vontade popular, tal como a estamos compreendendo, tornou-se dispensável, por exemplo, para uma disputa política de ambição pessoal ou dinástica no século XVI ou XVII, onde as Armas, mo-bilizadas para vencê-la, amoldavam-se à vassalagem direta, de conveniência ou de contrato.

O curso da história pode ser balizado por perturbações e conflitos importantes ge-rados pela vontade humana coletivizada nos limites da necessidade. Os bons líderes foram capazes de projetar suas vontades individuais para uma dimensão plural, mo-bilizando as pessoas necessárias para seus propósitos. Dando-lhes razões para a ação. Líderes políticos deveriam convencer e conseguir prosélitos entre seus pares e, caso fosse imprescindível, entre outros líderes. Um comandante militar, na guerra, mesmo impulsionado por motivações profissionais de disciplina e de honra, tinha como problema exclusivamente seu, o empenho, nem sempre fácil, para desenvol-ver a vontade de seus combatentes para a luta armada naquele momento histórico e dentro das circunstâncias vividas.

A sociedade não se envolvia ou pouco se envolvia em questões muito afastadas de seus interesses imediatos. Jane Austen, citada por Eric Hobsbawm, provavel-mente impressionado com a série transmitida pela BBC de “Pride and prejudice”, escreveu seus romances durante as Guerras Napoleônicas, mas não deixa transpa-recer em suas tramas e nos ditos de seus personagens esses grandes eventos eu-ropeus, embora refletisse o cotidiano na sede de um imenso império articulado pelo mundo. Em seus textos apenas o humor e as maneiras da classe média inglesa no princípio do século XIX para tratar numa prosa suave e elegante, com alienação em relação às graves questões políticas da Inglaterra, dos pequenos dramas de família, do amor e do relacionamento entre as pessoas. Em 1810 e 1811, enquanto escrevia e editava seu romance “Sense and sensibility”, que ficou bastante conhecido entre nós pelo filme do diretor taiwanês Ang Lee, Napoleão atingira o auge de seu suces-so, tendo construído em torno de si um anel de Estados vassalos governados por seus parentes e prepostos. Os romances seguintes de Austen foram escritos e pu-blicados entre 1813 e 1816, período em que a Inglaterra, liderando a Sexta Coalizão de nações, empenhara-se ao extremo para rechaçar o Grande Corso já ferido em 1812.

“É inadmissível que qualquer romancista pudesse escrever assim sobre a Grã-Bretanha nas guerras do século XX”. 102

102 “Era dos extremos - O breve século XX - 1014/1991” - Eric Hobsbawm - Companhia Das Letras.

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

Os primeiros sinais de modificação do comportamento social, entretanto, já come-çavam a aparecer na França e na América no fim do século XVIII. A tomada da Bas-tilha é considerada por muitos estudiosos uma das mais importantes manifestações de vontade popular pelo seu significado e consequências. O povo de Paris sentia a impulsão do que protagonizava diretamente da miséria de suas vidas sem futuro. Thomas Carlyle descreve a véspera do grande evento:

“Na segunda-feira (13 de julho de 1789), a enorme cidade acorda, não para o seu trabalho normal; mas para que diferente atividade! O operário tornou-se em combatente; tem apenas uma necessidade: a de armas. O trabalho de todas as profissões parou - exceto o do serralheiro, afanosa-mente martelando chuços; e, em menor grau, o do cozinheiro, improvisan-do vitualhas, porque ‘la bouche va toujours’. As mulheres também estão costurando topes; - já não verdes, que sendo a cor de D’Artois, provoca a intervenção do Hôtel-de-Ville; mas de vermelho e azul, as nossas antigas cores de Paris: estas, uma vez colocadas sobre um fundo do branco cons-titucional, são a famosa tricolor - que (se a profecia não errar) dará a volta ao mundo.” 103

O quadro continuou mudando extraordinariamente por força de alguns fatores surgidos e em evolução no século XX, particularmente no Ocidente. Os mais impor-tantes, talvez, sejam a realidade dos Estados democráticos modernos com a cres-cente globalização e a interdependência de suas economias; a consciência da cida-dania que vai modificando o comportamento das pessoas dentro da sociedade na-cional; a universalização dos direitos humanos que as coloca, a mais e mais, em um patamar de consciente importância; o voto individual e universal como instrumento para a composição e manutenção do poder; as forças armadas nacionais transfor-madas em instrumentos exclusivos do Estado-nação; e, mais recente, mas com transformações tecnológicas vertiginosas, a fascinação da divulgação instantânea, via satélite, dos fatos e imagens pela mídia eletrônica e a grande revolução da inter-net e de seus fantásticos recursos. O rádio e a televisão continuam a ter papeis pre-ponderantes.

Cria-se, com a interação desses fatores, um clima aliciador que impossibilita, ca-da vez mais, a alienação dos seres humanos face aos problemas de suas cidades, de seus países e do mundo. Viramos, todos, pelo menos, ubíquas testemunhas de tudo, dos fatos, dos dramas, das tragédias, das injustiças e das desigualdades. Iden-tificamos as vítimas e seus algozes onde quer que estejam ou se manifestem. O su-cesso de uma escocesa gordinha e pouco engonçada em determinado programa na televisão inglesa provoca uma espantosa e imediata audiência que a vê, a escuta e a julga no mundo inteiro...

Entre as remotas comunidades de aldeias isoladas e a “aldeia global” 104 em que vivemos, portanto, as sociedades humanas se desenvolveram no bojo de um pro-cesso de participação, de alheamento e de retorno à participação em relação às questões que atazanaram seus líderes. Os grupos ancestrais sentiam os problemas na pele, literalmente. Hoje, novamente, as questões do Estado, preposto da socie-dade, têm a ver com o conjunto de hábitos das pessoas e, muitas vezes, com a so-brevivência delas. Estamos, outra vez, compelidos à participação. Formamos, pelo menos, opinião sobre o que vemos e ouvimos. O conhecimento das opiniões domi- 103 “História da Revolução Francesa” - Thomas Carlyle - Edições Melhoramentos. 104 Na acepção empregada por McLuhan.

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nantes passou a ser um elemento importante para a avaliação de tendências e, co-mo consequência, a opinião pública entrou no rol de preocupações dos líderes, diri-gentes e publicitários.

RRaazzõõeess ee mmoottiivvaaççõõeess -- oo llííddeerr ee aa mmííddiiaa A integração das lideranças atuantes com a mídia, discutindo razões e provocan-

do motivações, pode proporcionar o desenvolvimento da vontade nacional a partir do conhecimento da opinião pública, capacitando uma nação moderna, só assim, a en-volvimentos conflituosos, difíceis ou de sacrifício. Há, embutido nesse processo, o problema da ética jornalística com o perigo do falseamento da verdade, das meias verdades, da mentira, da manipulação das emoções e todas as mazelas que envol-vem, hoje, o emprego dos meios de comunicação de massa; mais importante, ainda: o permanente conflito entre valores jornalísticos, valores publicitários e valores do espetáculo, muito agudo na televisão comercial, menos marcante no rádio, mas de menor intensidade na imprensa escrita e eletrônica. A TV convive com a pressão permanente do “show” que lhe dá audiência e do suporte de publicidade que lhe dá exequibilidade financeira. No jornalismo escrito podem predominar os valores clássi-cos da notícia - verdade e oportunidade. O que já é, por si, uma boa compensação. Esse entrosamento do líder com a mídia – e com a lógica de cada meio de comuni-cação de massa -, que pode regenerar as deformações apontadas, tem evoluído paralelamente com a tecnologia. Há, hoje, dentro das sociedades modernas, um consenso sobre a importância da mídia no exercício do poder. Nos Estados Unidos, foi o rádio utilizado pelo presidente Franklin Delano Roosevelt entre 1933 e 1945, desde seu primeiro mandato até sua morte, que recuperou a confiança dos america-nos em seu futuro (moral nacional) e fortaleceu sua vontade nacional para vencer as dificuldades da grande depressão e da guerra.

O rádio, em agosto de 1961, durante a crise política que se seguiu à renúncia de Jânio Quadros foi, também, o meio de comunicação por intermédio do qual Leo-nel Brizola, na época Governador do Rio Grande do Sul, quebrou a disposição do general comandante da área Sul (III Exército), para enfrentá-lo. Com uma arenga contínua e insidiosa provocou com a “cadeia radiofônica da legalidade”, mais rápido do que a ação de comando para o fortalecimento da liderança militar em todos os níveis, a mobilização da vontade dos gaúchos sempre sensíveis a apelos que os metem em brios com valores rio-grandenses - uma marca bastante forte do caráter regional -, definiu um sólido posicionamento de apoio da Brigada Militar (PMRS) com argumentos semelhantes de tradição farroupilha e subverteu a disciplina entre gra-duados e subalternos das unidades do Exército. Criou um envolvimento psicológico de tal intensidade sobre os comandos militares que não deixou alternativa ao sur-preso general: ou cedia, como cedeu, ou não cedia e ficaria só como um melancóli-co comandante de comandantes sem tropa. O governador fez prevalecer a proposi-ção da “legalidade” e dividiu as Forças Armadas, criando, com vantagem para sua tese, o grande fator determinante das manobras e conchavos políticos subsequen-tes. O episódio ainda não foi suficientemente estudado pelos militares, como uma importante experiência que demonstrou a fragilidade da liderança moderna incapaz de anular o enfraquecimento da vontade dirigido por um meio de comunicação de massa. Ou de provocar o seu fortalecimento por esse meio.

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Na época o “radinho-de-pilha” era uma espécie de coqueluche. Todos, particular-mente os jovens, possuíam uma daquelas pequenas novidades transistorizadas e as mantinham permanentemente junto ao ouvido para escutar o governador, que se tornara fonte direta de notícias importantes e gerara em torno de si uma expectativa pela evolução do movimento que dirigia. Nos quartéis, aquelas caixinhas infernais permaneceram junto às orelhas dos sargentos, dando-lhes razões e estímulos, com referências diretas aos graduados, para a resistência ou reação a qualquer ordem fora da “legalidade”. O argucioso Brizola sabia que ao trazer o comandante do III Exército para o seu lado, criaria uma situação irreversível. Por força de um condicio-namento de formação, os militares profissionais, particularmente os oficiais em co-mando, não quebram a cadeia de subordinação - a não ser por grave omissão supe-rior. O general, entretanto, era um ex-integrante da FEB e não suportaria ver-se pos-tergado por uma situação de dissolução no seu comando, provavelmente o último de sua carreira. Essa foi a alternativa que lhe foi oferecida. Preferiu ceder e, com isso, manter a aparência de chefe corajoso e independente. Transformou-se, na verdade, no triste vulto de um homem profundamente envergonhado de sua sina, deixando de fazer o que seus superiores esperavam que fizesse, quando lhe deram o comando. Sua decisão de apoio à “legalidade” dispensou os comandantes subordinados, na-quele momento, do esforço, tornado impossível, de reversão da sólida vontade regi-onal despertada pelo caudilho com suas razões e motivações, que engolfou a tropa federal. Ocorreram apenas algumas defecções; sem tropa porém. A maioria foi, afi-nal, envolvida naquela onda avassaladora.

Intuitivamente o Governador atuara sobre o caráter regional fortalecendo al-guns de seus valores e corrompera valores profissionais militares substituindo-os por outros. A partir desse novo quadro psicológico coletivo, manteve elevado o moral regional o que contribuiu, numa reação em cadeia, para as adesões e defecções. Essa ação intuitiva do líder da “legalidade” aponta uma sequência que examinare-mos na Segunda Parte deste ensaio. Brizola venceu, com um simples “radinho-de-pilha” sem a necessidade de um só tiro, a mais importante concentração de forças militares terrestres no Brasil... Vivenciei, como capitão servindo em unidade do Rio Grande do Sul na época, todo aquele patético episódio até o momento da sujeição do Comandante do III Exército à lábia do governador.

Tem havido uma notável evolução técnica nos meios de comunicação de massa que vai trazendo facilidades e ampliando a abrangência na ação de lideranças políti-cas.

“Os únicos incidentes nas duas guerras mundiais, os quais a posterida-de poderia talvez ser capaz de encarar sem se envergonhar com o espetá-culo da fraqueza e da loucura humanas foram a resistência do povo turco, em 1919-22, aos recentes vencedores da Primeira Guerra Mundial e a re-sistência do povo inglês, em 1940-41, a uma Alemanha temporariamente vitoriosa. Esses dois povos tiveram moral para resistir, embora estivessem enfrentando terríveis desvantagens e embora não tivessem perspectivas aparentes de escapar à derrota e destruição. Os dois povos foram felizes em encontrar líderes - Kemal Atatürk e Winston Churchill - que os inspira-ram a enfrentar a situação.” 105

O líder turco, que surgiu na denodada defesa de Galipolli, e o líder inglês, cerca de vinte após aquela desastrada ação na península turca da qual fora mentor, arros-

105 “A Humanidade e a Mãe-Terra” - Arnold Toybee - Zahar Editores.

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taram dificuldades diferentes no esforço de mobilização e de busca do assentimento popular em função da tecnologia de comunicação disponível para cada um (1919/1922 e 1940/1945, respectivamente).

CCoonnfflliittooss bbéélliiccooss ee vvoonnttaaddee nnaacciioonnaall Como um fenômeno do século XX, a tragicidade das guerras mundiais nos pro-

porciona exemplos marcantes de vontade coletiva. Os civis leigos, não profissionais, passaram a se envolver na frente de combate e na retaguarda, nas cidades bom-bardeadas ou asfixiadas por carências e perigos, sem dispensas possíveis ou tole-radas.

No curso da Segunda Guerra Mundial dois líderes já citados tiveram de encarar, de forma diversa, a importância e a necessidade do respaldo da vontade nacional. Um, Winston Churchill, em um esforço pessoal de obstinação, dedicação sem par e liderança carismática, para despertá-la e transformá-la no sustentáculo extraordiná-rio da capacidade de resistência dos britânicos. Outro, Franklin D. Roosevelt, apro-veitando a iniciativa de Hitler ao afrontar os brios americanos com uma declaração de guerra alguns dias após a agressão japonesa; ficou fácil, então, para o Presiden-te lançar seu país no conflito europeu, cujo inimigo nazista julgava mais concreta-mente ameaçador ao “american way of life”, revigorado pela fala radiofônica de seu “New Deal”. Esse episódio, despertando a vontade nacional para a guerra contra o Eixo, venceu resistências internas que, talvez, não fossem facilmente dominadas mesmo com o trauma do ataque a Pearl Harbor. Roosevelt fora reeleito pela segun-da vez em 1940 (terceiro mandato) com um discurso de paz a qualquer preço.

“O mistério é: por que Hitler, já inteiramente esgotado na Rússia, decla-rou gratuitamente guerra aos EUA, dando assim ao governo de Roosevelt a oportunidade de entrar no conflito europeu ao lado da Grã-Bretanha, sem enfrentar esmagadora resistência política em casa?” 106.

Ditadores personalistas estão livres para cometer grandes erros. Mais do que a limitação política para objetivos e meios militares, o fracasso ame-

ricano no Vietnã, consumado com o pacto de 1973, foi precipitado pela consistência da vontade nacional, obtida com apoio da mídia, em relação ao encerramento da-quele conflito. A manutenção de forças armadas altamente profissionalizadas, com base no voluntariado, foi uma consequência daquele revés. O recrutamento obriga-tório, como regra corrente, foi abandonado com a extinção do “draft” em 1973 pelo governo Nixon107. Ao convocar os jovens para o serviço de guerra, como ocorreu de 1962 até 1973 - como decorrência de um sistema que funcionara na Segunda Guer-ra Mundial -, o governo provocava, não, apenas, uma manifestação da opinião públi-ca, mas a consolidação da vontade nacional em relação à intervenção armada. A princípio, até, podendo ser incitadora da participação. Dificuldades sobrevindas, en-tretanto, aumentavam o risco do desenvolvimento de hostilidades sobre o emprego de forças militares em contextos de difícil percepção para o cidadão comum - como

106 Eric Hobsbawm - obra citada. 107 “Draft” era o sistema de recrutamento obrigatório que, embora tradicional, gerara problemas na Guerra da Coreia – uma guerra localizada e limitada – e interferira definitivamente para o fracasso da Guerra do Vietnã.

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era e ainda é necessário para uma potência mundial com um papel importante no equilíbrio da paz e obstinada com a preservação de seus valores e satisfação de suas necessidades.

O emprego de soldados profissionais por opção, mesmo sem sucesso, pode consternar, abater, mas não será capaz de provocar o drama que as famílias ameri-canas viveram durante a guerra do Vietnã. Assistiam, diariamente, instigadas por movimentos de reação ao conflito, na tela das televisões de seus lares, parentes, amigos, conhecidos ou simples compatriotas, todos quase meninos, recrutados compulsoriamente, a maioria das vezes sem vontade e sem motivação, sofrerem e morrerem em regiões remotas do planeta – segundo o ponto de vista ocidental, é claro - por argumentos políticos polêmicos e cada vez mais contestados. A vontade nacional, então, como força irresistível, consolidou-se contra aquela situação dramá-tica, injusta e incompreensível. E, naturalmente, como uma imposição interna irresis-tível, manifestou-se com indignação, muitas vezes com ferocidade. A glória só existe se houver sentido no sacrifício. Sem sentido, o sacrifício é inglório, obscuro. Não há vontade nacional para algo que não se explique com razões e motivações. Perde-se a certeza da aprovação e adquire-se a certeza da contestação. Hoje um muro de mármore negro no “West Potomac Park”, em Washigton D. C. – em frente ao Cemi-tério Nacional de Arlington, na outra margem do rio (Virginia) - registra esse holo-causto com 58.226 nomes, reunindo-os para a lembrança de um grande erro e, por lembrá-lo, tentando abrandar a consciência da inutilidade do sacrifício. Não foi esse o quadro na estreita praia de Gallipolli em 1915, na Turquia em 1919-22, na Inglater-ra em 1940-41 e nem mesmo nos Estados Unidos em 1941-45.

A preocupação, o respeito e as dificuldades possíveis com a vontade nacional americana em guerras longínquas e obscuras - mas necessárias -, podemos dizer, determinaram a estratégia da Guerra do Golfo em janeiro de 1991: forças voluntá-rias, profissionalizadas, ações fulminantes, objetivos limitados perfeitamente defini-dos e surpresa. Quando as televisões, as rádios, a telefonia, os fac-símiles, os saté-lites concluíam suas articulações eletrônicas e a formidável audiência dos cinco con-tinentes se preparava para o espetáculo, as operações “Tempestade” e “Sabre” 108, como um “shamal” soprando na direção inversa, tinha passado... Restou-lhes, ape-nas, o consolo de transmitir as imagens e as notícias da vitória acachapante e da glória, aí sim, para o acalento do orgulho americano, despeito de adversários e ve-xame dos inimigos.

A lição do Vietnã foi amargamente recolhida. O desastre ou as dificuldades de uma força organizada pelo recrutamento universal desnecessário envolvem a nação no drama e nas suas consequências, estimulando a consolidação da vontade nacio-nal em torno dos acontecimentos. A derrota ou os transtornos de uma ação militar caracteristicamente profissional, executada por profissionais voluntários, poderá ser encarada como um sinistro assistido pela televisão que choca as pessoas mas não as envolve instantânea e diretamente, provocando, em princípio, apenas, os estímu-los para o surgimento de opiniões e de avaliações da opinião pública109.

108 “Operation Desert Shield” (formação da coalizão), “Operation Desert Storm” (maciço bombardeio em 16 e 17 de fevereiro de 1991) e “Operation Desert Sabre” (desencadeamento da ofensiva terres-tre sobre o Iraque, em 24 de fevereiro de 1991). 109 As atuais manifestações em favor da retirada dos soldados americanos do Iraque, não são, em essência, promovidas por pessoas emocionalmente envolvidas com a guerra – as forças americanas

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Ao examinarmos esses exemplos fica mais fácil percebermos que a vontade - in-dividual ou coletiva - embora possa esmorecer e, até, extinguir-se, é menos fluida e instável, portanto menos manipulável, que a simples opinião. A vontade surge de razões e argumentos aceitos e incorporados como certeza que instigam o indivíduo ou a coletividade, nas gradações proporcionais à importância e à emoção dessa ins-tigação, a manifestar força, disposição e energia.

AA vvoonnttaaddee nnaacciioonnaall bbrraassiilleeiirraa

nnaa SSeegguunnddaa GGuueerrrraa MMuunnddiiaall É preciso fazer uma autocrítica histórica. Só assim perceberemos que a instala-

ção da vontade nacional em relação a determinado empreendimento de vulto – que exigirá renúncia, sacrifício e tenacidade da sociedade -, não pode ser um fato instan-tâneo e mágico que surge no momento das ações como uma manifestação efêmera de multidão (leia o primeiro apontamento da página 17), mas um complexo processo que deve ser iniciado, conduzido e acompanhado com continuidade, coerência de objeti-vos e com a intensidade que o tempo disponível exigir. São os líderes políticos – os governantes – os responsáveis pelo sucesso ou fracasso desse esforço.

O exemplo australiano/neozelandês em 1915 e as ccoonnssiiddeerraaççõõeess ssoobbrree aa eessssêênn--cciiaa,, ggrraaddaaççããoo ee mmaanniiffeessttaaççããoo ddaa vvoonnttaaddee ccoolleettiivvaa nnooss ppeerrmmiitteemm,, ccoommoo uumm bboomm ee--xxeerrccíícciioo ddaa tteessee,, oo eexxaammee ddaa vvoonnttaaddee nnaacciioonnaall bbrraassiilleeiirraa nnaa SSeegguunnddaa GGuueerrrraa MMuunnddii--aall

. Historiadores de nomeada, na visão global daquele gigantesco conflito de na-ções, revelam falta de disposição para destacar, mesmo no contexto latino-americano, a participação brasileira. Volto a citar Hobsbowm:

“É quase desnecessário demonstrar que a Segunda Guerra Mundial foi global. Praticamente todos os Estados independentes do mundo se envol-veram, quisessem ou não, embora as repúblicas da América Latina só par-ticipassem de forma mais ou menos nominal.” 110

A Enciclopédia Britânica, com sua correção e isenção de enfoque, faz referências muito genéricas à participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial:

“A história da América Latina - Segunda Guerra Mundial - (...) Como na Primeira Guerra Mundial, a contribuição da América Latina para a causa A-liada foi principalmente em forma de gêneros alimentícios e materiais es-tratégicos. O Brasil, no entanto, enviou uma força expedicionária ao Medi-terrâneo e um grupo aéreo mexicano lutou no teatro de operações do Pací-fico. (...)” 111

A assertiva de Hobsbowm e as referências da “Britannica” não destacam o envol-vimento brasileiro nas ações navais e aéreas no Atlântico Sul e a presença, na Eu-ropa, de uma força expedicionária do Exército com o valor inicial de uma divisão de infantaria (25.334 combatentes em solo italiano) e a ideia de expandi-lo, uma esquadrilha de ligação e observação com aviões de reconhecimento para apoio à artilharia ter-restre e um grupo de aviões de caça, ambas unidades da Força Aérea. Foi justa-

são profissionais e a ação materializou uma decisão de “Estado em Armas” (uma matéria abordada no Livro 3 desta Trilogia, “A imitação do combate”). Esses movimentos representarão, cada vez mais, uma pressão política sobre o Presidente em exercício a quem incumbe definir a conveniência estratégica de mantê-las, ampliá-las, reduzi-las ou retirá-las. 110 Eric Hobsbawm - Obra citada. 111 “EncyclopŒdia Britannica – DE LUXE edition. CD 2000”.

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mente a vontade nacional brasileira naquele conflito que não nos deu maior mereci-mento. Por que?

O Brasil mantinha um governo totalitário de quem só a pressão crescente dos a-contecimentos mundiais foi, a pouco e pouco, exigindo uma definição. A reticência e a ambiguidade do comportamento oficial em relação à opção histórica que deveria ser assumida e uma atitude germanófila, nem sempre discreta, dos líderes civis e militares do Estado Novo durante o processo de ascensão do nazismo, transmitiram à Nação certo distanciamento do conflito que, parecia, jamais nos envolveria. A opi-nião pública, formada com essa sugestão de marota neutralidade, dividiu-se em simpatias pelas potências democráticas ou pelo nacional-socialismo muito mais pró-ximo da nossa realidade política decantada e protegida pelo Departamento de Im-prensa e Propaganda (DIP)... Em princípio, nos conflitos globais, toda a neutralidade é fraudulenta. Na segunda Guerra Mundial a neutralidade sueca permaneceu con-descendente e útil, com seu minério de ferro, à causa germânica; Portugal e Espa-nha mantiveram posições neutrais distintas e tendenciosas; a tradicional neutralida-de helvécia sempre foi do interesse de todos os beligerantes e proporcionou grandes negócios aos bancos do país; a evolução dos sucessos alemães na Rússia, todos sabiam, romperia a neutralidade turca em favor dos nazistas, como acontecera na Primeira Guerra Mundial.

O senso de isolamento manteve os Estados Unidos afastados do conflito até abril de 1941, quando, de fato, foi iniciado o apoio material à Inglaterra ameaçada de co-lapso. Até então as empresas norte-americanas, com estranha flexibilidade, negoci-avam com o governo de Vichy, aceitando a farsa de encará-lo como representante da parcela livre da França, e sabendo - ou podemos acreditar que não soubessem? - que uma cota de 80% dos alimentos e materiais que fornecia àquele “protetorado”, driblando o bloqueio continental, se destinaria a uma espécie de confisco alemão para alimentar a “wehrmacht” e manter a indústria de guerra nazista!112 Nunca hou-ve dúvida sobre a posição do governo americano contra o nazismo, entretanto. A ação política de aproximação e busca de alianças importantes dentro das Américas, além do planejamento militar paralelo, estiveram dirigidos para a defesa contra a possibilidade de agressão do Eixo. Esse sentimento isolacionista do povo americano na década de trinta era uma ilusão remanente e extemporânea, logo descoberta pe-los grandes industriais como um mau negócio. Os Estados Unidos foram a única potência beligerante não afetada economicamente pela guerra. Saíram dela melho-res e mais fortes do que quando nela se envolveram - afora suas perdas humanas relativamente modestas em comparação com os números europeus. O combatente americano sobrevivente que retornou ao seu lar ao término da Segunda Guerra Mundial encontrou sua família e seu país mais prósperos. Uma notável compensa-ção ao herói que volta, mas que acaba trazendo a lume sua participação em um grande e macabro negócio.

Na América do Sul, por estarem excluídos do espaço estrategicamente importante para a guerra, a Argentina e o Chile puderam manter, até o limite de suas conveni-ências, neutralidade que favorecia a causa nazista. O governo argentino, de orienta-ção fascista, cedendo à pressão Aliada, rompeu relações diplomáticas com o Eixo

112 “A verdade sobre Pétain” - Francis Martel - Irmãos Giorgio & Cia.

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em 26/01/1944 e em 27/03/1945 declarou guerra à Alemanha, em tempo de ter direi-to a uma poltrona nas Nações Unidas...113

Em março de 1940, três meses antes da capitulação da França, convidado pelo General Estevão Leitão de Carvalho, Comandante da 3a. Região Militar (RS), o Pre-sidente Getúlio Vargas acompanhou o encerramento de grandes manobras do Exér-cito na região de Saican, no município de Rosário (RS). Leitão de Carvalho havia integrado uma turma de treze tenentes brasileiros que realizaram estágio no exército imperial alemão no período de 1910 a 1912. No regresso esses moços desenvolve-ram intensa atividade de proselitismo junto à tropa e fundaram a revista “A Defesa Nacional”. Ficaram conhecidos como os Jovens Turcos, pelo entusiasmo com seus antigos mestres e atividades inspiradas nos ensinamentos recebidos. O apelido era uma alusão sarcástica ao movimento reformador do Império Otomano que se aliara ao Keiser Guilherme II. Os integrantes daquele grupo de antigos estagiários, en-quanto estiveram no serviço ativo do Exército Brasileiro permaneceram identificados pela antiga alcunha. Um pequeno episódio durante aquele encerramento festivo dos exercícios militares, relatado pelo General Paulo de Queiroz Duarte, mostra a franca divisão de opiniões que existia entre os chefes militares da época, ou, pelo menos, a desobrigação de tê-las.

“Na ocasião, o Presidente querendo testemunhar seu contentamento por aqueles dias de intenso e proveitoso trabalho, ofereceu ao Diretor de Manobras um pequeno sabre-punhal, tendo gravado a cruz suástica na cruzeta. Ao perceber tão extemporânea lembrança, o Comandante da 3a. Região Militar achou por bem advertir114 que, com aquela insígnia, não se-ria para ele e, sim, para o General Góis Monteiro - ao que o Chefe do Es-tado-Maior, em tom galhofeiro, retrucou: para mim, não, deve ser para o General Dutra.”115

Eurico Gaspar Dutra, então Ministro da Guerra, seria, a partir de 1º de janeiro de 1946, o 15o. Presidente da República.

Outro fato, já, agora, em 11 de junho do mesmo ano (1940), poucos dias antes da debacle francesa e, portanto, nas vésperas do que iria parecer o encerramento defi-nitivo da guerra na Europa, demonstra a verdadeira preferência do Governo em re-lação ao conflito e aos valores envolvidos, além de uma ousada disposição para ins-talá-la entre os militares, sempre preocupados, atentos e respeitosos da intenção do chefe. A contrapartida vingativa do “Dictat” de 10 de novembro de 1919 seria assi-nada a 22 de junho de 1940, em Réthondes, no mesmo “wagon-lit” retirado de um museu. Naquele dia, como um ato comemorativo da Batalha Naval do Riachuelo, o Ministro da Marinha, Aristides Guilhem, oferecia um almoço ao Presidente da Repú-blica a bordo do encouraçado Minas Gerais, então capitânia da Esquadra. Apesar de a neutralidade ser a tônica do discurso eleitoral vitorioso de Roosevelt em 39 e 40 (3º mandato), as palavras do Chefe da Nação Brasileira, dirigidas aos oficiais gene-rais das Forças Armadas presentes, provocaram grande celeuma junto à represen-

113 A convocação pelos Estados Unidos da Conferência Pan-Americana do Rio de Janeiro, em março de 1942, teve o propósito de buscar o firme alinhamento dos países sul-americanos à causa Aliada (“chegou-se a utilizar a ameaça de invasão militar contra os renitentes Argentina e Chile” – O sentido histórico da Segunda Guerra Mundial – Osvaldo Coggiola/ Professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo). 114 Provavelmente como gracejo, e só entre seus pares... 115 “O Nordeste na Segunda Guerra Mundial” - General Paulo de Queiroz Duarte - Record.

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tação diplomática dos EUA. Getúlio parecia definir uma posição que ameaçava peri-gosamente o amplo esquema de defesa que incluía o Brasil como um imprescindível aliado. Foram ouvidas, assim, como uma interpretação oficial do que estava aconte-cendo no mundo:

“Atravessamos nós, a Humanidade inteira transpõe, um momento histó-rico de graves repercussões, resultante da rápida e violenta mutação de valores. Marchamos para um futuro diverso de quanto conhecíamos de matéria econômica, social e política, e sentimos que os velhos sistemas e fórmulas antiquadas se encontram em declínio. Não é, porém, como pre-tendem os pessimistas e os conservadores empedernidos, o fim da civili-zação, mas o início, tumultuoso e fecundo, de uma nova era. Os povos vi-gorosos, aptos à vida, necessitam seguir o rumo de suas aspirações, em vez de se deterem na contemplação do que se desmorona e tomba em ru-ínas. É preciso, portanto, compreender nossa época e remover o entulho das ideias mortas e das ideias estéreis.” 116

Seguiram-se, no dia seguinte, os desmentidos de praxe e a interpretação conve-niente das palavras do Presidente pelo DIP. O discurso, na data e nas circunstân-cias em que foi pronunciado, além de revelar entusiasmo e confiança no sucesso nazista, definia, com os elementos disponíveis, esperta avaliação da evolução dos acontecimentos. Só a conjunção de três eventos um ano e meio depois - não per-ceptíveis naquele momento - alteraria o quadro do conflito em favor dos Aliados: o insucesso nazista na frente russa, o ataque a Pearl Harbor e a declaração de guerra da Alemanha aos EUA.

Os estudos e as preocupações americanas com o nosso País e a importância de tê-lo como aliado participativo e participante em esforço conjunto contra o que já se prenunciava na Europa, datam de 1939 - portanto no auge da febre neutralista. Em junho daquele ano, recebemos a visita do General George Marshall, então Subchefe do Estado-Maior do Exército dos Estados Unidos, viajando em missão especial, a bordo do encouraçado “Nashville”. Sobre a essência de seus propósitos no Brasil, escreveu o General Paulo Q. Duarte:

“Quando o General Marshall partiu para o Brasil, a 10 de maio, estava plenamente ciente do resultado dos estudos, a que mandara proceder na Escola Superior de Guerra (EUA), visando à ‘proteção do Brasil’ e, certa-mente, tinha bem presente os fundamentos básicos e essenciais de que se servira o Estado-Maior do Exército de seu país para montar a série de pla-nos sob a designação de ‘Arco-íris’, em alguns dos quais se considerava a situação do nosso País. Sabia, pelas conferências mantidas com Cordell Hull, dos problemas dos núcleos coloniais de origens teuta e italiana exis-tentes no Brasil, tinha conhecimento da fraqueza orgânica da nossa estru-tura econômico-financeira e, consequentemente, da debilidade do nosso aparelhamento militar, bem assim dos entraves, que por certo iria encon-trar, em parte inerentes à forma política e as suas mutações, instalada a partir de 1930, e, em parte, à propalada tendência germanófila, que se di-zia, era palpável na cúpula do nosso Exército.” 117

O envolvimento direto dos Estados Unidos com a guerra no Pacífico e na Europa, a partir da agressão a Pearl Harbor - o ataque foi no dia 7 de dezembro de 1941 e a declaração de guerra da Alemanha e da Itália foi recebida no dia 11 de dezembro -, 116 Citação do General Paulo de Queiroz Duarte – Op. cit... 117 Paulo de Queiroz Duarte - obra citada.

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forçou a necessidade de maior interação política com alguns países latino-americanos dentro do seu espaço estratégico. Até 1939 a “política de boa vizinhan-ça” do governo Roosevelt significara um esforço para não intervir nos problemas in-ternos de cada pais. Por força dos acontecimentos europeus, entretanto, a boa vizi-nhança voltou-se, pragmaticamente, para os problemas de segurança coletiva e mú-tua defesa dos EUA com a América Latina. Os interesses daquela grande potência em relação à logística dos teatros de operações europeus - que, na verdade, tiveram início em abril daquele ano - tornaram agudas suas necessidades e precipitaram a mudança do comportamento tendencioso de nossos chefes políticos pelo cerco di-plomático a que foram submetidos. Os americanos pretendiam que o Brasil, clara-mente, expressasse uma definição pró-Aliados e garantisse a concessão de bases de apoio no norte/nordeste.

A ocupação americana do Nordeste, que se seguiu a essa pressão, com a insta-lação da “Base Aérea de Natal” e do “Comando do Atlântico Sul”, em Recife - na verdade uma importante base naval - chegou a articular cerca de 20.000 militares americanos em Território Brasileiro118 (Ilustração 9, abaixo). Ao transigir, mesmo hesi-tante e ambíguo, o governo de Getúlio deu aos alemães os motivos para que inici-assem a agressão de nossa frota mercante. O estado de beligerância com o Eixo, entretanto, só foi reconhecido e declarado por um decreto de 22 de agosto de 1942, após a agressão e naufrágio de dezoito embarcações oceânicas que navegavam sem qualquer proteção.

Permita-me o leitor um comentário. O primeiro navio brasileiro torpedeado foi o Cabedelo do Loide Brasilei-

ro, em 14 de fevereiro de 1942. O ato que reconheceu o estado de guerra com o agressor só foi assinado seis meses depois, ao que parece, pela ocorrência de tragédias no mar concentradas no mês de agosto, com o acometimento provável de um só submarino alemão sobre barcos absolutamente vulneráveis e desprotegidos: o Baependi e o Araraquara, no dia 15 e o Aníbal Benévolo no dia 16, todos do Loide; o Itagiba da Companhia Costeira e o Acará também do Loide, no dia 17; a barcaça Jacira no dia 19. As agressões desses seis dias desencadearam uma onda de impressionantes manifestações de revolta popular que exigiam do Presi-dente, particularmente no Rio em torno do Palácio do Catete, desde a praia do Flamengo, a declaração de guerra aos alemães. A Nação se sen-sibilizara, também, com os apelos organizados dos marítimos pedindo proteção em suas rotas oceânicas. Fo-ram necessárias, portanto, as 751 mortes desses dezoito naufrágios, 396

Ilustração 9 - Vindo de Casa-blanca (Marrocos) a Washington, ao passar pela Base Norte-americana em Natal, Roosevelt é recebido por Getúlio, em 29 de janeiro de 1943.

118 O jornalista Ari Cunha, cearense notório, escreveu, no dia 4 de julho de 1997, em sua coluna diária do “Correio Braziliense” do Distrito Federal – “Visto, lido e ouvido” - em um comentário sobre o “Inde-pendence Day”: “Ao tempo da guerra, no Nordeste, era feriado o dia de hoje.”

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passageiros e 355 tripulantes, além da pressão popular direta (uma mani-festação significativa da vontade nacional que se consolidara espontanea-mente como um multidão revoltada) - sobretudo da coação norte-americana com esses novos e fortes argumentos - para arrancar o Gover-no brasileiro da letargia que paralisava sua capacidade de decisão. Mais treze navios seriam postos a pique até 23 de outubro de 1943, elevando a perda para 134.000 toneladas de nossa frota mercante. Esse número colo-cou o Brasil em décimo quinto lugar em tonelagem mercante afundada na Segunda Guerra Mundial na batalha do mar (Reino Unido, Japão, USA, Alemanha, Itália, Noruega, França, Holanda, Grécia, Suécia, Dinamarca, Iugoslávia, URSS, Bélgica e Brasil, nesta ordem). Nenhuma república lati-no-americana teve perdas e sacrifício maiores ou, sequer, próximos dos nossos. A organização e o embarque da Força Expedicionária Brasileira (FEB), com efetivos de conscrição, inicialmente concebida como um corpo de exército (três divisões e demais elementos de apoio e comando), tam-bém refletiram esse estupor do Governo e, como consequência, dos che-fes militares que o integravam.

A consolidação política da referida “ocupação” americana no Nordeste só ocorreu em 29 de janeiro de 1943, com o encontro, “de passagem”, de Getúlio e Roosevelt em Natal (RN), onde foram decididos acordos relacionados com a implantação da siderurgia no Brasil (CSN) e com a participação militar brasileira na guerra119. Mesmo assim, a falta de entusiasmo e de convicção na causa aliada acabou arrastando pe-nosamente todas as decisões exigidas para a criação e preparação dos efetivos mili-tares que comporiam a Força Expedicionária que participaria do conflito. Os fatos nesse sentido só ocorriam pelo confrangimento natural dos acontecimentos da guer-ra. O Governo de Vargas parecia querer dar tempo ao tempo para ver no que resul-taria aquela grande disputa armada. Essa atitude esboroava o desenvolvimento da vontade nacional ou, pelo menos, não lhe dava razões ou motivações suficientes.

“Decidida a participação do Brasil, em 18 de abril de 1943, passou-se rapidamente a dar vida à ideia. Não houve a manifestação do Parlamento para, em nome do povo, agitar a opinião pública, estabelecer a motivação, provocar o choque emocional e levar a Nação à barra do sacrifício, se ne-cessário fosse. As coisas se passaram pela forma simplista dos regimes totalitários. Conciliábulos e mais conciliábulos. Decisões de alcovas políti-cas em assuntos de tamanha transcendência!” 120

Os critérios e os procedimentos para a organização da força de combate foram militarmente ineptos e o moral de seus integrantes revelava, em algumas unidades, ausência de motivação e rejeição à missão de guerra. As observações do Marechal Lima Brayner, Chefe do Estado-maior da 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária, não deixam dúvidas:

119 A foto da Ilustração 9 ficou para a História. Mesmo concedendo cuidados especiais às pernas doentes de Roosevelt, o Presidente dos Estados Unidos, “em casa”, ocupando o lugar principal de uma pequena viatura de ¼ Ton, da Base Norte-americana de Natal dirigida por um militar norte-americano e o Presidente brasileiro “sentado”, de carona, em cima da lata (essa era a “comodidade” oferecida por esse tipo de “jeep” militar, em 1943). O livro de Doris Kearns Goodwin, “Tempos muito estranhos”, Editora Nova Fronteira (Op. Cit.), uma espécie de crônica político privada do casal Roo-sevelt, estranhamente não faz referência alguma sobre o Brasil ou sobre essa “passagem” do presi-dente americano em Natal. 120 “A verdade sobre a FEB – memória de um chefe de estado-maior na campanha da Itália” – Mare-chal Lima Brayner, Civilização Brasileira.

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(...) “O outro aspecto foi a transferência de elementos, por exemplo, do 12º e do 10º. Regimentos de Infantaria (Belo Horizonte e Juiz de Fora) pa-ra o 11º Regimento de Infantaria de São João Del Rei, submetido a crité-rios diferentes de seleção e sem a menor preparação psicológica. A coope-ração dos quadros não foi perfeita. Não havia qualquer estímulo ou sentido heroico, exaltado, para neutralizar o sacrifício que se impunha aos menos cultos. Registraram-se atos de indisciplina do 11º Regimento de Infantari-a.”121

Mais adiante, interpretando um mea-culpa do Exército em relação às falhas na preparação militar de defesa da costa:

“A ditadura personalista de Vargas, que já durava doze anos, nos dei-xava meio insensíveis e descontrolados.” 122

Afinal a FEB desencantou de uma longa gestação e de um enervante e inócuo vai não vai, partindo para a Europa em 2 de julho de 1944 com seu primeiro escalão, mesmo assim despreparada para a guerra e completamente desequipada para o combate da época. Uma assertiva do Chefe de Estado-Maior da força brasileira de-nuncia seu próprio ânimo:

“Partíramos sem portar qualquer instrumento de guerra, e chegávamos ao Teatro de Operações da Itália de saco às costas, de mãos abanando e de fisionomia assustada, como alguma coisa que não era mais do que ‘chair à cannon’. ”123

No anedotário desse tempo, que sempre reflete o espírito observador e crítico do povo, uma piada mostra bem essa indecisão brasileira. Dizia o deboche popular que ao ser recebido em Nápoles pelo Comandante das forças americanas no teatro de operações do Mediterrâneo, General Devers, em 16 de julho de 1944124, um ano e três meses após a decisão do governo brasileiro de participação na guerra, o nosso Comandante da FEB General Mascarenhas de Moraes ouvira do americano, enro-lando a língua para pronunciar seu nome e, inconscientemente, manifestando impa-ciência com o retardamento dos brasileiros: “Welcome to the Italy my dear General ‘Mas Como Demorastes’...!”. Ouvi esse dito mordaz em Porto Alegre (RS), 1944, e o assiná-lo pela importância psicossociológica militar às minhas teses. Registro, entre-tanto, para a preservação da memória do grande chefe militar Mal Mascarenhas de Morais, minha irrestrita admiração pelo Comandante da 1a DIE, homem de caráter e cônscio de suas responsabilidades de guerra.

A novela para a partida dos demais escalões com o grosso da divisão e a base logística de recompletamento, foi igualmente penosa; os segundo e terceiro esca-lões que completariam a força de combate - dos cinco em que se articulou a FEB -, desembarcaram no porto de Livorno em 11 de outubro de 1944, três meses após a chegada do primeiro. Certamente por essas dificuldades de disposição e vontade projetadas do Brasil, a FEB recebeu, integrada ao V Exército Aliado e a seu IV Cor-po, em frente que se tornara secundária na guerra da Europa, encargos operacio-nais de apoio às ações principais naquele teatro. A Nação não estava cobrando

121 Marechal Lima Brayner - obra citada. 122 Marechal Lima Brayner - obra citada. 123 Marechal Lima Brayner - obra citada 124 A invasão da Normandia e a libertação de Roma haviam ocorrido no mês anterior. Com a abertura de uma segunda frente europeia o esforço aliado foi transferido para a França e, naturalmente, a frente italiana foi relegada a um papel secundário na guerra.

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desvelo e honrarias para seus soldados. Demonstrara que, talvez, nem os quisesse naquele conflito. Cumpria um dever imposto. É possível que nem acreditasse muito neles - permitia que o Exército, em época de forte tabagismo, burocrata empederni-do, enviasse os piores e mais baratos mata-ratos nacionais a seus pracinhas, obri-gando-os a conviver com suaves e perfumadas baforadas de soldados americanos fumando os mais finos cigarros de seu país...

Acompanhou o desempenho de todos, seus sucessos e suas desventuras - 470 mortos, sendo 364 em combate, mais 2.064 feridos e acidentados em ação -, com o mesmo interesse com que se voltava para um campeonato de futebol da Série B. Nada vital ou transcendente parecia estar em jogo para o Brasil. A mídia permane-ceu atenta ao esforço principal dos Aliados direcionado para a Normandia, “Opera-ção Overlord”, e todos observavam a evolução dessa batalha na Europa e os com-bates na frente oriental, onde a guerra estava sendo decidida. Era evidente que a-quele grupo sul-americano, único representante da América Latina, recém chegado para a arrancada final de uma guerra que já durava cinco anos, sem preparo sufici-ente, sem equipamentos, sem o respaldo da vontade nacional definida, não poderia ser lançado no fogo das grandes decisões ciosamente reservadas e disputadas pe-los contendores mais antigos e soberbos, donos da guerra porque sentiam suas pá-trias profundamente envolvidas no drama que vinham vivendo havia bastante tempo.

A presença de militares brasileiros na Itália, de qualquer forma, arrumara muito devagar e compusera tardiamente um gesto político de participação, de atuação e, por esperta conveniência do relacionamento futuro com os quase vitoriosos, de compromisso com as democracias. Em termos castrenses houve grandes esforços para superar as deficiências, ocorreram atos de puro heroísmo, registraram-se per-das de preciosas vidas humanas em combate, desaparecidos, feridos, prisioneiros de guerra, além de bravura, denodo e bom desempenho de nossos soldados e avia-dores. A FEB, em abril de 1945, provocando ciumadas em seu comandante direto do IV Corpo, o prepotente e presunçoso General USA Crittenberger, forçou, com uma atuação brilhante, a rendição da 148º Divisão de Infantaria alemã à tropa brasi-leira, fazendo 15.079 prisioneiros com todo o seu equipamento de guerra! O general achava natural que os pracinhas morressem em combate, mas desejava que as gló-rias militares fossem recolhidas somente pelas armas americanas que dirigiam e dominavam as operações...

O comandante do V Exército Aliado na Itália, General Mark W. Clark, fez uma re-ferência à chegada das tropas brasileiras em seu livro “Risco calculado”, editado pe-la Biblioteca do Exército. Mark Clark mantinha prestígio e evidência em julho de 1944, pois vinha participando da guerra desde o norte da África e, em um belo lance de “marketing” de campanha para os americanos, havia libertado Roma no mês an-terior, obtendo, assim, a queda da primeira capital do Eixo. Pelos méritos políticos demonstrados face aos seus problemas com os franceses do Almirante Darlan na África e na administração de um complicado comando multinacional na Itália, foi le-vado, no final da guerra, à Áustria ocupada como um dos quatro Altos Comissários Aliados125. Definiu, com cuidadosa elegância, lógicas apreensões com os sul-americanos. Sabia que seria lido por nós. É seu o prefácio da edição brasileira:

125 Diplomado em 1917 por West Point, serviu na Europa no final da Primeira Guerra Mundial e foi o comandante das forças da ONU na Guerra da Coreia, a partir de 1952.

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(...) “No fim da primeira semana de agosto, chegaram à Itália os primei-ros elementos da Força Expedicionária Brasileira, forte de 25.000 ho-mens126. Fizemos planos para integrá-los paulatinamente no Quinto Exér-cito. Sem dúvida, o desempenho dos brasileiros era de importância tanto política, quanto militar. O Brasil foi o único país da América Latina a enviar uma força expedicionária para tomar parte na guerra europeia, e, natural-mente, estávamos ansiosos por oferecer-lhes todas as oportunidades de se saírem bem127. Ao mesmo tempo, havia considerável diferença no trei-namento deles, e achamos importante fazê-los entrar em ação aos poucos. Tínhamos sempre em mente que um revés daquelas tropas acarretaria de-sagradável reação política nas Américas. Os alemães pensavam de igual modo e, conforme se mostrará, envidaram esforços para tirar proveito da inexperiência dos sul-americanos.” 128

Dentro de um contexto político-militar, como reconheceu o autor do livro citado, nossas tropas estiveram entregues, sem restrições, à sensibilidade de um coman-dante estrangeiro. Uma triste forma de abandono por desinteresse ou por inépcia.

Com o término da guerra alguns generais americanos, talvez para consolidar uma aproximação política com base na experiência de guerra entre os combatentes das duas nações, provavelmente, entretanto, para a satisfação de seus egos, incluíram o Brasil nos seus longos trajetos de retorno glorioso, todos recepcionados como he-róis. Conheci o General Mark Clark em Porto Alegre (julho de 1945), antes da queda de Getúlio, em visita à Escola Preparatória de Cadetes, onde eu, com dezessete anos, estava terminando o curso. Em agosto de 1946 participei, já como cadete da Academia Militar das Agulhas Negras (naquela época, Escola Militar de Resende, no Estado do Rio de Janeiro), de entusiástica recepção ao General Eisenhower, então Chefe do Estado-Maior americano129 e, em inglês, cantamos o Hino Norte-americano... O General Willis D. Crittenberger, a convite do Governo Brasileiro, visi-tou o Brasil nos festejos do primeiro Dia da Vitória após o término da guerra, em 8 de maio de 1946.

Nada disso, apesar de tudo, pôde impressionar os historiadores isentos do confli-to, porque, na verdade e desafortunadamente, a presença das Forças Armadas bra-sileiras na Itália e no Atlântico Sul não decorreu da vontade nacional, desenvolvida pelos líderes políticos, motivada pelos valores em jogo e marcada pela consciência da necessidade de participação em uma guerra mundial - o que é absolutamente necessário em uma força de conscritos130. Foi tangida, forçada, retardada, tardia e, por isso, não deixou impressão profunda no panteão dos heróis eternos e de grande feito consolidador da Nação. Só o desvelo militar, pertinaz, procura mantê-las e res-gatá-lo. Mesmo assim, politicamente, entretanto, aquela participação viria transfor-mar o País e corrigir a incongruência de nosso regime no pós-guerra.

126 Na verdade o primeiro escalão da FEB chegou em 16 de julho, como vimos. 127 Essa, certamente, não era uma preocupação do General Crittemberger, comandante direto da FEB com o IV Corpo.... 128 “Risco calculado” - General Mark W. Clark - Biblioteca do Exército/Editora. 129 O general norte-americano, em visita à Assembleia Constituinte, recebeu do Presidente da UDN, Deputado Otávio Mangabeira, encarregado de saudá-lo, um polêmico beijo nas mãos “como home-nagem da Nação Brasileira ao Comandante dos exércitos que esmagaram a tirania”... 130 Estudarei os problemas relacionados com uma “nação em armas” e o moderno “Estado em armas” no Livro 3 esta trilogia, “A imitação do combate” (Parte I. subitem b “Criação e manutenção do braço armado do Estado”.

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À observação do mundo, a FEB representou quase só uma participação técnico-militar crioula a expensas dos norte-americanos no além-mar, sem muita expressão: nunca uma orgulhosa e consistente manifestação da vontade nacional dentro de um grande conflito mundial de valores, ideias e interesses. Da mesma forma é encarada a presença do 1º Grupo de Aviação de Caça da FAB, embora essa unidade aérea tenha integrado com brilhantismo o 350th Fighter Group - USAF e sua atuação ter sido de importância capital para consolidar a aviação de caça brasileira. Seus pilo-tos, preparados nos Estados Unidos, chegaram a Livorno, Itália, a seis de setembro de 1944, para, no mês seguinte na Base Aérea da Tarquínia, receberem dos Aliados um céu com domínio aéreo e dos americanos os caça-bombardeiros P-47, “Thun-derbolt”, com os quais voariam na guerra cumprindo 2.546 missões de combate. A Marinha de Guerra que participou, desde agosto de 1942, de comboios no Atlântico Sul, em ações independentes ou integrando operações mistas com americanos ou ingleses, teve seu esforço desconhecido ou esquecido (perdeu três barcos: o NA Vital de Oliveira, a corveta Camaquã e o cruzador Bahia). Nesse mister de proteção, foi muito importante a dedicação e o heroísmo das tripulações dos caça-submarinos da classe J e G, os pequenos “caça-paus” sob o comando de jovens capitães-tenentes.

Internamente os brasileiros continuam valorizando e mitificando a tradição da so-

brevivência política marota a qualquer custo. Getúlio era admirado pela capacidade de encobrir seus propósitos até o limite da “segurança política” de sobrevivência. “Nem seu chapéu sabe o que tem por baixo...” diziam seus áulicos com sorrisos de admiração. Esse é um traço no caráter profissional de nossa classe política que se reflete, muitas vezes, no relacionamento externo. Sob o manto da independência de comportamento, temos sido partidários da indefinição, do não engajamento, da pro-crastinação de decisões quando o problema nos diz respeito, está próximo de nós, nos envolve e temos a obrigação, para sermos respeitados, de definir posição e ar-rostar consequências131.

Ideias e valores são importantes para as pessoas e para as nações. Temos que compreender e aceitar, todavia, que não podemos sair ilesos, sempre, do engaja-mento com ideias e valores. O sofrimento, muitas vezes imanente e inevitável, o sa-crifício e as perdas humanas e materiais, têm sido, para as grandes nações do mun-do, ingredientes fundamentais para a mística de suas nacionalidades. Quando rece-bem o respaldo da vontade nacional. As homenagens subsequentes à participação do Brasil na guerra, ao longo dos anos, foram se transformando em solenidades mili-tares, cada vez mais restritas e introversas. A rigor, hoje, nenhum brasileiro conside-ra o Dia da Vitória como algo que lhe diga respeito. Hobsbawm e a Britânica estão corretos em suas referências discretas.

Nosso País tinha motivos sobejos para um maior envolvimento emocional e mate-rial com a guerra - e razões para valorizar sua participação. A vontade popular a despeito dos titubeios e fragilidades do Governo, já dera sinais significativos nos e-ventos e manifestações de agosto de 1942, embora subitânea como uma reação à 131 O posicionamento brasileiro no episódio terrorista na Embaixada do Japão em Lima, Peru, em janeiro de 1997, apenas para citar um exemplo recente que revela esse caráter, mostrou uma fuga, uma omissão, em face de um problema de cuja solução devemos participar ativamente no Continente e no mundo. Essa confusão de valores decorreu, certamente, da influência, dentro do Estado, de antigos militantes ou simpatizantes de grupos terroristas.

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agressão sem resposta. Perdeu-se, todavia, aquela boa motivação inicial. Faltaram líderes para conduzir a Nação com segurança e sem ambiguidades naquele momen-to histórico, capazes de consolidar uma forte vontade nacional e transformar esforço e sacrifício de participação na guerra, em episódio patriótico consolidador de valo-res. O que faz a diferença dos grandes líderes é a percepção que têm dos grandes momentos.

Desde 1939 e a partir de dezembro de 1941, o chamado saliente nordestino sobre o Atlântico representava um domínio militar essencial para os Estados Unidos. Tanto como base naval como aérea. As distâncias de apoio ficavam notavelmente mais curtas. Recife (PE) poderia sustentar a articulação do Atlântico Sul com o Atlântico Norte onde se travava uma ciclópica disputa naval para anular a campanha subma-rina dos alemães. A distância Natal-Dakar ficava bem mais à feição da autonomia das aeronaves da época. Essa clara necessidade não nos permitia ambiguidades. Ou oferecíamos aos Aliados o acesso ao trampolim imprescindível à sua causa para o salto sobre o oceano em direção à África com aviões de transporte e de combate, ou lhes negávamos esse trânsito vital proporcionando grande benefício a seus inimi-gos. A primeira atitude seria hostil ao Eixo. A segunda nos colocaria contra a causa das potências democráticas. A neutralidade era, portanto, impossível. Sem tergiver-sações.

Além disso, sofremos agressões diretas no mar, com quase um milhar e meio de mortos ou desaparecidos das tripulações, guarnições e passageiros civis dos nossos navios mercantes de longo curso, de cabotagem e da Marinha de Guerra (1.441 ao todo - 502 tripulantes, 466 marinheiros e 473 passageiros). Fomos, ainda, pela existência de ameaças concretas em determinado momento da guerra, compelidos a exercitar os “blackout” nas principais cidades, do sul ao norte/nordeste. O Nordeste estava mili-tarmente ocupado pelos americanos que operavam duas importantes bases militares de apoio à guerra no Atlântico e na Europa. Havia, ainda, dentro desse quadro, a alternativa dos alemães executarem as conhecidas operações de “proteção” das minorias germânicas domiciliadas no sul do País, já trabalhadas pela ação da “quin-ta coluna”, particularmente no vale do Itajaí, criando uma base para a ação na Amé-rica do Sul, face ao Nordeste. Contariam com o apoio argentino e chileno, simpati-zantes engajados. Essas intenções do inimigo, no outono europeu de 1942, estavam na dependência do sucesso - que parecia muito bem encaminhado - da “Operação Barbarossa” em execução sobre a Rússia.

Os Aliados estavam longe da capacidade operacional para a abertura de uma ter-ceira frente na Europa, o que só viria a ocorrer em junho de 1944. Convivemos, du-rante aquele período, com uma concreta possibilidade de agressão germânica ao nosso território. Quase nada faltou, portanto, para despertar os brios do povo e mo-bilizar a Nação, estimulando-lhe o sentimento de desagravo à honra nacional. Com isso modificaríamos o sentido de apoio às nossas forças de combate e, como con-sequência, de respeito e acato imediatos à presença brasileira na guerra aqui e na Europa, impressionando melhor os futuros historiadores.

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

SSEEGGUUNNDDAA PPAARRTTEE OO gguuaappoo AAllaaddiimm......

(“Napoleão no passo de São Bernardo”)132

132 Jacques Louis David, 1800, Berlim, Palácio de Charlottenburg.

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CCCaaapppííítttuuulllooo 444::: AAA AAATTTUUUAAAÇÇÇÃÃÃOOO DDDOOOSSS LLLÍÍÍDDDEEERRREEESSS...

AAA fffooorrrmmmaaaçççãããooo dddooo cccaaarrráááttteeerrr cccooollleeetttiiivvvooo ,,, aaa cccrrriiiaaaçççãããooo eee aaa mmmaaannnuuuttteeennnçççãããooo dddooo mmmooorrraaalll cccooollleeetttiiivvvooo ,,, aaa ooorrriiieeennntttaaaçççãããooo eee cccooonnnsssooollliiidddaaaçççãããooo dddaaa vvvooonnntttaaadddeee cccooollleeetttiiivvvaaa eeemmm aaagggrrruuupppaaammmeeennntttooosss eeessspppooonnntttââânnneeeooosss eee iiinnnssstttiiitttuuuííídddooosss ... PPPeeerrrccceeepppçççãããooo dddooo ppprrroooccceeessssssooo...

AA aattuuaaççããoo ddoo llííddeerr -- oo ccaarráátteerr,, oo mmoorraall ee aa vvoonnttaaddee ddee sseeuu aaggrruuppaammeennttoo Líder integrado é o membro de um agrupamento humano espontâneo (procure a I-

lustração 1, página 18), destacado no processo psicológico interativo interno como condutor natural ou imposto; nos agrupamentos humanos instituídos (Ilustração 1, página 18), o líder outorgado é definido nessa congregação social por decisão exter-na, para conduzi-la (Capítulo 5, página 124). O líder outorgado no bojo da nomeação de um comandante, dentro do sistema de conscrição militar, muitas vezes, pode prece-

der, no universo de seu comando, os recrutas conscritos que formarão a maioria de seus liderados. Mesmo assim não será um líder integrado porque os interesses co-muns, as características dos agrupamentos de combate e sua própria nomeação são definidos por regras administrativas preexisten-tes.

Ambos, líder integrado ou líder outorgado, devem devotar-se à exercitação geral dos valores apropriados ao universo de seus liderados como base para a consolidação do caráter coletivo, à melhora da disposição de todos para a vida e para as atividades profissionais mantendo em bom

nível o moral coletivo e ao estímulo e direcionamento da vontade coletiva para a a-ção conveniente e oportuna. OO bboomm llííddeerr ccrriiaa,, ddeessssaa ffoorrmmaa,, aass mmeellhhoorreess ccoonnddiiççõõeess ppssiiccoollóóggiiccaass ccoolleettiivvaass ppaarraa aa ccoonndduuççããoo ddoo aaggrruuppaammeennttoo qquuee lliiddeerraa aaooss pprrooppóóssiittooss qquuee jjuussttiiffiiccaamm ssuuaa eexxiissttêênncciiaa nnaattuurraall oouu qquuee ddeetteerrmmiinnaarraamm ssuuaa ccrriiaaççããoo.

Na verdade, essa conceituação de líder um pouco árida e fracionada, decorre precisamente das discussões deste ensaio. As definições de “líder” ou de “liderança” na opinião de chefes militares ou chefes políticos de sucesso, normalmente, são emotivas, literárias, poéticas, mas incompletas, refletindo experiências específicas, qualidades próprias e a visão pessoal dessa problemática, sem compromisso com a

Ilustração 10 - Classificação de líderes em função dos agrupamentos que lideram (convenien-te ao prosseguimento deste ensaio).

LÍDER)

INTEGRADO

OUTORGADO

IMPOSTO

NATURAL

SOLIDÁRIO

INTERFERENTE

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universalização prática da matéria. Sem contrariar o que discutimos, entretanto, me-lhor será tentar uma definição real para liderança – função do líder -, mais genérica para obter melhor desempenho semântico, como a capacidade de compreender seu grupo de liderados como uma entidade psicológica plural, com caráter, moral e von-tade próprios e de tratá-lo e conduzi-lo desse modo, interferindo nesse processo a-nímico, para obter os melhores resultados relacionados com suas razões de exis-tência e de permanência (recorra ao Glossário na página 162).

O processo psicológico interativo, como vimos anteriormente, é desencadeado pelos interesses essenciais comuns (**) que geram uma compulsão à agregação, à associação, à organização e à união dentro de um grupo de pessoas. O líder, nos agrupamentos espontâneos (Ilustração 1, página 18), poderá ser definido por procedi-mentos mais ou menos complexos ou, mesmo, traumáticos e aceito pela maioria como tal. O vencedor, o hábil negociador, o persuasor, o empático, o forte, o caris-mático, a conveniência de um momento, o representante de uma elite dominante, de uma dinastia protegida pela tradição e simbolismo, o herói que aparece nas crises. Serão líderes do otimismo e da prosperidade, do pessimismo e da depressão, das dificuldades e das crises, da abastança ou da miséria, da paz e da reconstrução, do conflito e da mobilização, todos, entretanto, de alguma forma, surgem no bojo da grande força centrípeta para a união e sobrevivência coletiva. A inexistência dessa força descaracterizará o agrupamento humano porque apontará interesses essenci-ais em conflito. Os interesses essenciais comuns que caracterizam um agrupa-mento humano espontâneo determinam, de modo inexorável, a definição de uma liderança. Não seriam capazes de existir sem essa representação e sem preservar-lhe a capacidade de condução. Quando os líderes despontam, o tempo os consoli-dará e a maior ou menor complexidade da congregação humana irá definindo o pro-cesso de continuidade ou sucessão.

A democracia representativa – para nos referirmos aos Estados nacionais sobe-ranos modernos, importantes agrupamentos humanos que examinamos no Capítulo 1 -, tal com foi implantada na América inglesa no final do século XVIII e vem sendo aprimorada pelos seus seguidores no mundo inteiro, tenta resolver esse desafio de-fendendo a importância fundamental do ser humano, o direito que ele tem de organi-zar o Estado em seu nome, segundo sua conveniência, resguardando os interesses comuns da nação – que são, afinal, os interesses de seus cidadãos -, limitando a ação desse Estado e alternando, com a mobilização periódica da vontade coletiva, os líderes no poder. Este regime de governo está, ainda, muito longe da perfeição que o permitirá absorver a oscilação pendular compulsiva dessa vontade coletiva - como já ocorre nas nações mais civilizadas do ocidente -, entre o liberal ou trans-formador e o autoritário ou conservador e vice-versa.

A existência de dois grandes partidos ou blocos definindo essas duas tendências fortalece a democracia representativa; a inexistência dessas opções naturais a en-fraquece. As imperfeições da prática democrática, muitas vezes, nos povos menos preparados, não impedem a má propensão à maior amplitude daquela oscilação, que se volta ora para o extremo da desorganização libertária e iconoclasta, atingindo o ponto de ruptura sócio-política, ora chegando novamente a esse ponto na opção pelo extremo oposto do arbítrio asfixiante e imobilista. Desequilíbrios sociais marcan-tes, com um número significativo de marginalizados da prosperidade nacional, esti-mulam a oscilação do pêndulo. Os procedimentos para a alternância do poder e a busca da própria representatividade, da mesma forma, terão de ser aprimorados pa-

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ra eliminar as deformações do “marketing” político e as mazelas que decorrem do relacionamento eleitor-candidato.

Os líderes de agrupamentos espontâneos permanentes - com a exceção do chefe de família cuja autoridade se origina em uma dependência natural orgânica -, geral-mente com longos processos psicológicos interativos, surgem e são definidos por sistemas de forças políticas e de poder ou de seleção e escolha, consolidados e a-primorados no curso do tempo (o cacique de uma tribo; o ditador de uma república sub-saariana; o chefe de Estado de uma democracia representativa; o representante de uma comunidade). A democracia representativa tem aprimorado a atuação de forças políticas com a pressão organizada de descontentes, demandantes, dissiden-tes, minorias, etc. Os líderes de agrupamentos espontâneos efêmeros, geralmente despontam rápida e sumariamente, predominando-lhes as qualidades diretamente relacionadas com as motivações que reuniram seus integrantes. Um grupo ameaça-do por algum perigo tende a reconhecer como líder quem demonstrar vontade de enfrentá-lo e está claramente capacitado para fazê-lo; um grupo reunido por fortes motivações comuns, tende a acolher como líder quem primeiro o sensibilizar como representante de seu entusiasmo, de sua dor, de sua depressão ou de sua alegria.

Líderes de agrupamentos privados ou institucionais são outorgados por decisão externa, fora do agrupamento considerado, dentro de critérios técnico-profissionais que muitas vezes descuram a capacidade de liderança e procuram apenas o chefe conhecedor das responsabilidades de sua chefia; veremos, mais adiante, alguns exemplos melancólicos desse grande equívoco. Podem ser escolhidos, também, com a preocupação inversa, com alguma participação dos integrantes.

Em todo esse variado quadro de agrupamentos humanos espontâneos ou institu-ídos percebemos com clareza que uma qualificação indiscutível para qualquer líder é justamente esse conhecimento do universo de sua liderança. Nosso conceito inici-al de líder, assim, serve ao presente estudo. Os bons líderes são essenciais nos momentos de aflição, expectativa geral, dúvida, angústia, medo, insegurança, pânico ou revolta do grupo para que se recupere adequadamente a vontade coletiva capaz de enfrentar as circunstâncias que dão origem a crises ou exigem decisões e apoio a elas, como resposta a insídias que depauperam o vigor do caráter coletivo, depri-mem o moral coletivo e, afinal, quebrantam a vontade coletiva dos agrupamentos humanos. Isso será seguramente verdadeiro tanto para o menos importante agru-pamento humano quanto para o mais numeroso e de maior significância social. A vontade instalada de forma natural ou a capacidade de obtê-la, mantê-la, consolidá-la ou ampliá-la em congregações sociais espontâneas ou instituídas indicam o epí-logo natural ou a meta de todo o processo de liderança. A chave que, afinal, cria ou pode criar essa energia, dará a esses agrupamentos, respectivamente, importância e solidez social ou institucional. Muitas vezes só os bons líderes, engastados em cada autoridade, percebem essa necessidade, são capazes de avaliá-la e vislum-bram o caminho a ser seguido.

O acesso de uma autoridade a seu cargo, por nomeação ou eleição, infelizmente, não passa necessariamente pelo teste de capacidade de liderança (identificação do líder preparado, não do líder inato): os critérios de nomeação para os líderes outor-gados, e os marqueteiros políticos para os líderes integrados, deformam o processo. O grau de capacidade e de empenho de cada líder, como o superego da coletivida-de que lidera, pode levar as pessoas sob sua influência a viverem momentos de gló-ria, de vulgaridade ou de ignomínia.

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A vontade coletiva, como procuramos demonstrar ao examinar alguns exemplos históricos, tem importância social definitiva por representar uma mobilização indis-pensável para a busca de metas de benefício geral, particularmente quando são exi-gidos sacrifício, renúncia, determinação e pertinácia. Muito mais do que a simples consciência de um problema, essa energia grupal assegura uma disposição de to-dos para determinado empreendimento que, de alguma forma, modificará a realida-de. Há, todavia, certa complexidade no processo para obtê-la, instalada e forte, den-tro de um grupo ou na população de uma nação inteira. Para esse propósito o líder deve atuar diretamente sobre o caráter e o moral de seus liderados, desenvolvendo-os, consolidando-os, recuperando-os e buscando a identificação das suas expres-sões coletivas no âmbito profissional, regional e nacional; essa atuação é particu-larmente significativa em relação ao moral, esse estado de espírito que resulta de pensamentos adequados, opiniões corretas e ideias, capazes de respaldar a vonta-de coletiva para a ação ou reação no momento em que forem necessárias, com a intensidade apropriada e pelo tempo que for preciso (Ilustração 11, ao lado). A preexis-tência de caráter e moral coletivos, portanto, é essencial para que se defina o quadro de dificuldades e a expectativa de resultados na liderança. Exemplifico.

No episódio da “legalidade” no Rio Grande do Sul em 1961 (apontamento na página 96), percebe-se que o Governador do Estado, para desenvolver a vontade re-gional em favor de sua causa, manipulou com habilidade o caráter regional e subverteu com precisão valores do caráter profissional militar da guarnição federal.

CARÁTERINDIVIDUAL

MORALINDIVIDUAL

CARÁTER COLETIVO

MORAL COLETIVO

AÇÃO DO LÍDER

Outro exemplo: observei, durante muito tempo, nas rotinas militares do Exército, um fenômeno interessante no exercício da liderança entre comandantes de unidades de uma mesma região (tenen-tes-coronéis, coronéis ou seus substitutos) ou, dentro de uma mesma unidade, entre capitães, seus substitutos e suas subuni-dades ou entre oficiais subalternos (aspirantes-a-oficial, segundos-tenentes, primeiros-tenentes ou seus substitutos) e suas frações. Esses líderes, trabalhando em diversos níveis com soldados conscri-tos da mesma região e origem cultural semelhante obtinham efeitos diversos sobre o moral de seus comandados como resultado de cuidados ou de descuidos na forma-ção do caráter profissional de seus liderados. O bom líder criava soldados arrojados, leais e dispostos ao trabalho e ao sacrifício. Um líder desatento à sua liderança, transformava seus subordinados em indolentes executantes, com a disciplina com-prometida, pouco dispostos à ação e ao trabalho.

Ilustração 11 - A vontade coletiva pode surgir, espontânea, com base no caráter coletivo e no moral coletivo preexistentes e estimulados por fatos e razões. O líder, no entanto, pode dirigi-la, estendê-la e aprofundá-la atuando sobre o caráter e o moral do grupo considerado e promovendo a discussão dos fatos e das razões que a fizeram surgir. Voltaremos ao exame desse processo.

É possível que um comandante militar se omita como líder e espere que seus su-bordinados o sigam tão somente pela disciplina e sentimento do dever fundamenta-dos no temor dos rigores da lei militar. O exercício do comando, tal como deve ser

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encarado, entretanto, não dispensa o líder133. Uma atividade executada sobre um universo humano semelhante, portanto - mesma gente, idêntica cultura, o mesmo sexo, igual idade e todos envolvidos por circunstâncias socioeconômicas análogas - resultava em notável variação no desenvolvimento do moral coletivo. Na verdade, é preciso assinalar, o fenômeno observado apontava uma integração deficiente do processo de liderança entre líderes que, daqui para diante, chamaremos de interfe-rentes (examine a Ilustração 10 na página 111). Na escala vertical de uma hierarquia os líderes interferentes são aqueles que intervêm, pela abrangência de suas funções e responsabilidades de direção, comando ou chefia, no processo que desenvolve e mantêm a energia coletiva positiva do caráter, do moral e da vontade nos agrupa-mentos correspondentes àquela escala. Voltaremos a eles e a seus problemas (apon-tamento na página 125; veja no Glossário, página 169: linhagem de líderes interferentes).

Em 1970, ouvi reveladora narrativa de um professor alemão em estágio que reali-zei na então República Federal da Alemanha134. Sem participação político-ideológica durante a guerra, integrara a “Wehrmacht”, combatera no “Afrika Korps”, prosseguira combatendo na Itália até o vale do Pó e, posteriormente, com o colapso alemão na-quela frente, tivera, também, algumas más notícias sobre a evolução das operações aliadas iniciadas nas praias da Normandia e das derrotas de seus compatriotas na Rússia. Na falta de uma orientação superior, indagara a si mesmo e aos seus vete-ranos companheiros de guerra “o que faremos?” e, sem muito esforço, concluíram “iremos para a Iugoslávia combater os Partisans comunistas de Tito!”. Ali, também ouvira dizer, as forças alemãs mantinham ordens para o prosseguimento da luta.

Os dois exemplos apontados - brasileiros nas rotinas de caserna e um grupo de alemães na Segunda Guerra Mundial (segundo o depoimento que recebi) -, mostram a importância do caráter nacional, do caráter regional, do caráter profissional e do caráter individual preexistentes como base cultural ou profissional, para sustentar o estado moral e definir o esforço de um líder no desenvolvimento da vontade coletiva. A densidade dessa base - que depende muito da família organizada e da escola a-tuante - poderá homogeneizar o resultado da liderança, facilitando o trabalho dos líderes interferentes ou isolados em sua liderança, diminuindo a diversidade de re-sultados face à dessemelhança de qualidade e empenho entre eles e impedindo desvios personalistas contrários aos valores interiorizados pelos cidadãos, como vigorosos traços psicológicos coletivos (examine o conceito de sistema de liderança militar, página 171).

O que se pode perceber, conclusivamente, é: 1º - O bom líder é imprescindível para nós brasileiros em todos os níveis de nossa

vida coletiva, nesta transição de séculos, vivendo uma crise de valores que debilita o caráter nacional e, por uma dinâmica de causalidade, com um moral individual que se projeta para o moral nacional, abalado pelas vicissitudes do nosso terceiro-mundismo e - é um círculo vicioso -, com líderes políticos fracos que pouco nos im-pressionam, nunca nos empolgam e nos quais pouco acreditamos.

133 Esse assunto é enfocado com objetividade e método pelo General Sérgio Coutinho em seu livro “O exercício do comando – A chefia e a liderança militares” – Biblioteca do Exército Editora – 1997. O general, como 2º. Tenente, foi meu subalterno na 4ª. Cia Fzo/18 RI, em 1955 e 1956. 134 BND (“Bundesnachrinstdienst”) - Serviço Federal de Informações (RFA), cuja sede em 1970, fica-va na cidade de Munique (München), na Baviera (Bayern).

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2º - a preexistência de caráter e de moral coletivos - particularmente em relação à profissão e à nação - desenvolvidos como uma marca profissional e de cultura, pode tornar menos imprescindível a boa atuação do líder.

O meu professor alemão, na sua narrativa de guerra, em nenhum momento, fez referência a seus lll ííídddeeerrreeesss dddeee cccooommmbbbaaattteee imediatos. De onde surgiram, então, as ra-zões que impulsionaram os integrantes do grupo de combatentes que citei, conser-vando-lhes o moral de combate como força geradora e consolidadora de sua vonta-de de lutar, a despeito do desmoronamento político e militar da Alemanha? Algo in-crível, no foro íntimo, para decisões tão graves.

Ação e omissão - alguns bons e maus líderes contemporâneos

“Que um fraco rei faz fraca a forte gente.” 135 O episódio da “Guerra das Malvinas”, de dois de abril a 14 de junho de 1982, nos

ofereceu, em seu desdobramento e desfecho, um belo exemplo de liderança enérgi-ca e sensível da Primeira Ministra Margaret Thatcher (llííddeerr ddoo ddeessaaffiioo ee ddaa rreeaaççããoo) ao comandar uma pronta reação naval em absoluta sintonia com o orgulho nacional, forte marca de caráter nos povos britânicos. Cometeria um erro histórico se protelas-se aquela resposta por quaisquer motivos. Um homem ou uma mulher, indiferente-mente, investidos de legítima autoridade serão bons líderes se demonstrarem devo-ção ao seu agrupamento humano e sensibilidade para perceber e conduzir os ele-mentos representados na Ilustração 12 (página 123). Em contrapartida, a decisão do governo argentino (llííddeerreess ddoo eeqquuíívvooccoo) para a execução de uma aventura militar com conscritos - falhos de adestramento e carentes de vontade para uma luta que se fez encarniçada - sem a mobilização da vontade nacional e sem considerar o ca-ráter do inimigo que fustigara, provocou uma derrota ignominiosa que, aí sim, o cará-ter portenho não pôde absorver e, afinal, acabou decretando o fim dos governos mili-tares, reservando-lhes um ódio que nos tem surpreendido pela virulência e perma-nência de suas sequelas.

O papel do líder, de qualquer forma, pode ser prodigioso, ou trágica a sua o-missão. O povo inglês, apontado como um exemplo de bravura, tenacidade e des-prendimento por seu desempenho na desolação dos anos de 1940 e 1941, deve a Winston Churchill, só a ele, o desempenho de sua vontade nacional (llííddeerr ddaa gguueerrrraa,, ddaa rreessiissttêênncciiaa ee ddaa vviittóórriiaa). Outro líder, mesmo se considerarmos o caráter dos bri-tânicos, teria levado o Reino Unido à negociação com Hitler que esperava ansiosa-mente por isso. Os argumentos seriam muito fortes à sensibilidade dos apreensivos ilhéus: preservar a integridade nacional britânica, evitando a destruição material e o sacrifício humano que se prenunciavam certos e, afinal, naquele momento, a fácil visão de derrota inevitável em face de uma Alemanha avassaladora e imbatível.

Em fevereiro de 1942, conhecedores da coragem e do sofrimento de seus pa-rentes na Grã-Bretanha ou sob a lembrança e responsabilidade histórica do “Anzac Day” (apontamento na página 89), as forças inglesas e australianas, mesmo assim, não se conduziram heroicamente na defesa da fortaleza de Cingapura. Estavam muito longe da influência direta do “Lorde da Guerra” e fisicamente fora do território pátrio.

135 “Os lusíadas”, Luís Vaz de Camões (Canto III, CXXXVIII, último verso), referindo-se a D. Fernando I “O formoso”, Rei de Portugal de1367 a 1383 e sua pusilânime política externa com Castela.

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A cidade era um bastião para conter os japoneses, bastante mais próximo da Aus-trália que Gallipoli e, por isso, mais concretamente motivador para sua defesa.

“A velocidade com que os japoneses tomaram a península da Málaca (Malásia Ocidental) surpreendeu os comandantes ingleses e australianos, que viam na cidade um inexpugnável baluarte do Império Britânico no Ex-tremo Oriente. Os triunfantes japoneses mal podiam crer em sua boa sorte, pois seus homens atingiram Cingapura exaustos pelo rápido avanço. Ti-nham menos alimentos, combustível e munições que seus defensores, cu-jos generais alegaram essa escassez para justificar a capitulação perante o enfurecido Primeiro Ministro Winston Churchill”136

“A defesa da ilha (de Cingapura) era dificultada pelo fato de sua base na-

val ter sido construída para resistir a ataques vindos do mar. Assim, quan-do os japoneses vieram pela porta dos fundos, desembarcando na ilha à força em 08/02/1942, foram rapidamente capazes de estabelecer uma ba-se de operações. Embora numericamente inferiores aos defensores, os ja-poneses estavam mais bem liderados, mais bem treinados e mais bem a-poiados pelo ar. Logo estavam empurrando os ingleses para o sul, e ape-sar das exortações de Churchill para que se lutasse até a morte pela honra do império, as forças britânicas, cerca de 60.000 homens no total, capitula-ram depois de uma semana, a 15/02/1942, com Cingapura em chamas a seu redor. Este foi um dos piores reveses jamais ocorridos na história mili-tar britânica.”137

O que faltou? Um bom líder militar que interpretasse a situação e a importância do que defendiam para manter elevado o moral de suas tropas e a vontade coletiva pa-ra não ceder ao invasor (llííddeerreess ddaa vveerrggoonnhhaa). Quinze mil australianos foram feitos prisioneiros de guerra e, em seguida, como consequência da capitulação de Cinga-pura, Darwin, no extremo norte do continente australiano, foi seriamente bombarde-ada: pela falta de um bom líder a guerra chegaria em casa...

São muito significativas as lembranças de William L. Shirer, uma testemunha dos acontecimentos mais incrivelmente deprimentes da história francesa, justamente pela falência e esgotamento da vontade nacional como disposição para a luta e re-sistência à invasão de seu território em 1940.

“Antes que os alemães tivessem tempo para responder ao pedido de armistício dos franceses, Pétain tomou uma medida precipitada [líder da de-sonra]. Às doze horas e trinta minutos de 17 de junho [o armistício seria assina-do em 22 de junho], em meio à súbita e violenta tempestade - a primeira na-quele longo período de sol da primavera e verão, desde o começo da der-rocada - o novo chefe do governo aproximou-se de um microfone instalado numa sala de aulas do Lycée Longchamps para falar pelo rádio a seus compatriotas. Depois de dizer-lhes que assumira o poder (‘dei minha pes-soa de presente à França’ - disse), anunciou que solicitara os termos para um armistício. ‘É com o coração amargurado’ - declarou - ‘que lhes digo ser necessário cessar a luta. ’” 138

136 “História em revista” – A sombra dos ditadores – Abril-Livros/Time-Life-Livros. 137 “A Segunda Guerra Mundial (Resumo)”. 138 Pétain tinha um temperamento com tendência ao pessimismo, o que já evidenciara em 1918 nas horas difíceis. A idade agravou sobremaneira essa tendência.

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Esse pronunciamento, interpretado convenientemente ao pé da letra, acabou de imediato com a disposição para o combate entre as forças terrestres francesas que já vinham batidas pelo inimigo impetuoso e determinado.

“Os alemães não perderam tempo e trataram de difundir a mensagem do Marechal. Suas palavras foram transmitidas por meio de alto-falantes aos soldados franceses. Aviões lançavam folhetos que diziam que a decla-ração de Pétain era esta: ‘A França deve abandonar a luta.’ ” (...) “Rommel, que se aproximava de Cherbourg com sua 7a. Divisão Panzer, espalhou a notícia por meio de folhetos alegremente distribuídos pelos prisioneiros franceses. Ele próprio atravessou aldeias num tanque, agitando uma ban-deira branca e gritando: ‘Guerre finie! Krieg fertig! War’s over!’ ” [llííddeerr ddee ccoommbbaattee]139.

A importante fortaleza de Cherbourg, dessa forma, defendida por cerca de 30.000 homens do exército e da marinha francesas, bem armados, bem municiados, bem alimentados e com garantia de abastecimento pelo mar, rendeu-se, sem luta, sem o menor espírito combativo, à aproximação de uma única divisão blindada, a 7 a. Divisão Panzer de Rommel chamada a “Divisão Fantasma”. Esse desmoronamen-to ocorreu apenas

“12 horas após seus primeiros elementos terem atingido o alcance dos formidáveis canhões da defesa” [llííddeerreess ddoo oopprróóbbrriioo]140.

Na verdade quem foram os fantasmas naquele episódio da guerra? Os vitoriosos quase sem fôlego no afã de correr, de cercar e de aproveitar a confusão lançada por um chefe de “governo” confuso? Ou aqueles melancólicos vencidos, meros vestígios de soldados, farrapos de cidadãos, sem consciência, sem ânimo, sem líder – com moral muito baixo, portanto - e sem vontade...?

A consequência de tudo foi um espetáculo deprimente testemunhado, em primeira mão, pelos membros da delegação francesa que se deslocavam rumo a Tours, ao norte, para tratar do armistício - uma torrente de soldados franceses, aos milhares, quase todos sem armas, desordenados, infestando as estradas, afastando-se célere e resolutamente da linha de frente... As populações das cidades e aldeias envol-vidas pela batalha, perdidas de liderança, voltaram-se para um espírito egoísta de sobrevivência a qualquer custo, perdendo a dignidade nacional e completando o quadro da débâcle.

“Os habitantes das cidades ameaçadas de batalha pareciam, então, mais decididos a oporem-se a suas próprias tropas que às do inimigo. Em Vienne, ao sul de Lião, o prefeito colocou várias centenas de pessoas em torno da única ponte que atravessa o Ródano para impedir que a destruís-sem. Quando o general Husson, que dirigia a defesa da cidade, começou a fazer preparativos para dinamitar a ponte, o prefeito ameaçou o general com um ataque a ser realizado pelas mulheres da comunidade. ‘Se o se-nhor persistir nisso’- preveniu - ‘tenho em torno de mim 1.000 mulheres de Vienne que o impedirão de levar efeito essa tolice.” (...) Alguns bravos ofi-ciais tentaram continuar a resistir aos alemães. Num caso, o general que assim procedeu foi censurado pelo general Weygand, e em dois outros um oficial foi morto pela população e o segundo por seus próprios soldados” [llííddeerreess ddaa iiggnnoommíínniiaa

]141.

139 W. L. Shirer - obra citada. 140 “Rommel” - Desmond Young - Biblioteca do Exército/Editora. 141 W. L. Shirer - obra citada.

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

Uma França, minada pela mediocridade e fragilidade de caráter dos seus líderes civis e militares da Terceira República, desaparece como Estado soberano. Sucum-be melancolicamente sem a mobilização da vontade nacional para a organização e resistência ao inimigo que se insinuara e se preparara de longo tempo, ouvindo, convenientemente, a voz enganosa de um falso herói sobrevivente da Primeira Guerra, colaboracionista envolvido por serôdia ambição. Consuma-se um espetáculo que não tem sido muito relembrado e discutido, pelo respeito que devotamos ao país berço da nossa cultura e vanguarda da inteligência humana e da civilização. É claro que a Nação Francesa reuniu energia – e foi muito ajudada - para ressurgir das cin-zas dessa hecatombe. A lição desses negros dias, entretanto, deve ser retida e re-lembrada para que nossos líderes compreendam suas graves e permanentes res-ponsabilidades. O caráter coletivo bem marcado, com valores sentidos e professa-dos por todos, consolida os povos. Só as grandes nações, com seus grandes líde-res, são capazes de manifestar forte vontade nacional para a busca de um propósito transcendental. Os líderes políticos brasileiros da atualidade ainda não compreende-ram a responsabilidade que têm nesse processo.

A Austrália, condômina como nós de um hemisfério de recente descolonização, um país jovem que teve origem como região de degredo, preparou a forte argamas-sa sobre a qual assentou sua maioridade como nação há noventa e cinco anos nu-ma longínqua praia rochosa da Turquia; a epopeia de uma vitória moral com o san-gue e a vida de 28.000 heróis representantes de sua juventude decidida - submetida durante oito meses à intensa e cruel fuzilaria do inimigo nas escarpas de Gallipoli, integrando uma manobra militar mal concebida pelos ingleses142, no inferno da “An-zac Cove” - justamente por sentir-se apoiada e vigiada pela envolvente vontade da pátria distante (llííddeerreess ddaa vviittóórriiaa mmoorraall ee ddaa ttrraaggééddii

aa). Os defensores de Cingapura em fevereiro de 1942, entretanto, com motivos mais palpáveis para a luta e com a pátria bem mais próxima, não sentiram isso. Por que? Os australianos decerto já examinaram o fenômeno.

Como teria evoluído a guerra na Europa, a partir de 1940, se a península de Cherbourg fosse mantida pelas forças francesas de defesa da fortaleza, com a mesma vontade férrea dos heróis de Verdun em 1916? Qual seria a evolução da guerra no sudeste asiático em 1942, se a vontade dos defensores da fortaleza de Cingapura resistisse ao assédio japonês com a mesma determinação dos russos em Stalingrado (hoje Volgogrado), no mesmo ano, ou de seus patrícios na Inglaterra nos dois anos anteriores? Qual seria o desdobramento da Segunda Guerra Mundial se a vontade dos defensores de Stalingrado, ainda em pleno verão de 1942, tivesse fra-quejado como ocorrera dois anos antes com franceses em Cherbourg ou em feverei-ro daquele ano com britânicos em Cingapura? Boas questões para especulações históricas contrafactuais: o passado estudado pelas alternativas plausíveis existen-tes em determinado momento histórico e suas consequências, para melhor compre-ensão do presente e caminhos para o futuro.

O que houve na França, vinte e quatro anos depois, que obscureceu a capacida-de da nação manifestar uma vontade sobre-humana como seus filhos o fizeram em julho de 1916, mesmo submetidos a um dos piores massacres humanos da história,

142 A operação foi imposta por Winston Churchill em 1915, como Lord do Almirantado, e iniciava com a conquista da península de Gallipoli que domina o acesso ao estreito de Dardanelos. Resultou em completo fracasso.

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

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fincando o pé, obstinadamente, na fortaleza de Verdun sobre o Mosa, obedecendo ao comando do general Pétain, que chegara com a obsessão da defesa “à outrance” e a determinação de quebrar o ímpeto alemão contra-atacando, contra-atacando, contra-atacando...? A idade provocara profundos estragos no caráter do patético Marechal, antigo herói, no seu moral e na sua vontade.

A vontade coletiva em relação a determinada questão, já o dissemos, não é uma manifestação necessariamente espontânea e obrigatória em qualquer situação. Nem, mesmo, em todo o tempo, uma tendência particular no caráter de um povo. As pessoas podem ser opiniáticas, teimosas, o que não significa que manifestem sua disposição para a ação e revelem, sempre, uma vontade coletiva para tal. Precisa ser acompanhada e estimulada dentro do conjunto de circunstâncias de cada mo-mento histórico por líderes políticos ou militares atentos à densidade do caráter e do moral coletivos preexistentes (moral profissional e moral nacional) e conscientes de suas responsabilidades e da importância do que fazem ou defendem. De qualquer forma a vontade nacional, respaldo e estímulo de todos os esforços de uma nação, deve ser o desvelo dos líderes políticos de governo.

NNNãããooo hhhááá mmmaaaiiiooorrr iiinnnfffeeelll iiiccciiidddaaadddeee pppaaarrraaa uuummm pppooovvvooo ooouuu pppaaarrraaa qqquuuaaalllqqquuueeerrr ooouuutttrrrooo aaagggrrruuupppaaammmeeennntttooo hhhuuu---

mmmaaannnooo eeemmm cccrrr iiissseee dddooo qqquuueee ttteeerrr,,, eeemmm pppooossstttooo ccchhhaaavvveee,,, ccciiivvviii lll ooouuu mmmiii lll iii tttaaarrr,,, uuummm lll ííídddeeerrr iiinnncccaaapppaaazzz ooouuu dddeeesssaaa---ttteeennntttooo àààsss sssuuuaaasss rrreeessspppooonnnsssaaabbbiii lll iiidddaaadddeeesss dddeee lll iiidddeeerrraaannnçççaaa ,,, tttaaalll cccooommmooo aaasss eeessstttaaammmooosss eeennnfffooocccaaannndddooo nnneeesssttteee eeennnsssaaaiiiooo:: ccoomm aatteennççããoo ppeerrmmaanneennttee ppaarraa ooss vvaalloorreess ddoo ccaarráátteerr ccoolleettiivvoo ddee sseeuu aaggrruuppaammeennttoo rreevveellaannddoo ddeessvveelloo tteennaazz ppaarraa mmaannttêê--lloo ccoomm oo mmoorraall ccoolleettiivvoo eemm nníívveell eelleevvaaddoo eessffoorrççaannddoo--ssee oobbsseessssiivvaammeennttee ppaarraa qquuee aa vvoonnttaaddee ccoolleettii--vvaa ddee sseeuuss lliiddeerraaddooss ssee vvoollttee ee ssee eennvvoollvvaa ccoomm aass ssoolluuççõõeess ddooss ppeerrccaallççooss qquuee ddeetteerrmmiinnaarraamm aa ccrriissee..

MMééttooddoo ppaarraa aa iinnssttaallaaççããoo ddaa eenneerrggiiaa aanníímmiiccaa nnooss aaggrruuppaammeennttooss hhuummaannooss:: sseegguuiimmeennttoo nnaattuurraall O seguimento natural dessa interação psicológica nos agrupamentos humanos

espontâneos mantém, como em um ciclo, uma lógica de prioridade e importância. O caráter coletivo, quando existe estabilizado dentro de um agrupamento humano pelo caminho interativo que examinei, representa uma base de valores/atitudes comuns (e suas decorrências), principal sustentação do moral coletivo, que reconhecemos como uma disposição potencial para o trabalho e para a vida. O bom estado moral, por seu turno, permite que toda essa energia seja direcionada para uma manifesta-ção de vontade coletiva e, com ela, a determinação do agrupamento para a ação. Todos os exemplos que apresentei ao longo deste ensaio confirmam essa dinâmica ou apresentam desvios e falhas que a justificam (Ilustração 12, na página 123).

Nos agrupamentos humanos instituídos o ciclo fica mais nítido e, de certa forma, a condução dos processos será mais impositiva. O líder, pois, como uma preocupa-ção inicial e essencial de liderança, precisa avaliar e conduzir a formação do caráter de seu agrupamento. É fundamental que estimule o surgimento da adesão da maio-ria a esse esforço que caracteriza o fenômeno, para que se exerça, então, sobre cada integrante uma espécie de juízo crítico que irá promover o constante exercício dos genuínos valores indispensáveis à existência do agrupamento em questão e

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

distinga atitudes adequadas ou inadequadas, sentimentos corretos ou incorretos, comportamentos profissionais indicados ou contra-indicados, reações saudáveis ou inconvenientes. Aquele que estiver fora dessa harmonia deve sentir a pressão coati-va do grupo para deixar-se absorver ou reconhecer-se reprimido por ele. Eis a im-portância prática do envolvimento psicológico do caráter coletivo sobre os integran-tes de um agrupamento institucional. Quanto mais consolidado, maior a força desse amplexo vigilante - a consciência coletiva ativa (**). Também é o líder, com base nesse caráter grupal, quem provoca estímulos e cria suportes para a elevação e sustentação do moral coletivo. Com toda essa energia instalada e sob controle é o líder, finalmente, quem incita e direciona a vontade coletiva.

Essa sequência, entretanto, não deve ser encarada como uma verdade absoluta. Muitas vezes não haverá tempo disponível. É comum que um líder recentemente incorporado ao agrupamento por decisão administrativa externa, encontre-o em face de um problema, com o caráter profissional inconsistente, sem disposição para o trabalho e sem vontade de agir (há, adiante, apontado na página 145, mais ou menos nesse quadro, o relato de uma crise em um agrupamento institucional da antiga FAE/MEC). Sentimos que é extremamente difícil manter um grupo com o moral elevado, sem a sustenta-ção de valores aceitos pelos seus integrantes. Seria impossível dispor esse mesmo grupo para a ação se fosse mantido com o moral baixo. O líder, de qualquer forma, terá de administrar essa realidade e, certamente, improvisar; a faculdade de senti-la dentro do encadeamento valores/disposição/razões/motivações torná-lo-á capaz de encontrar soluções. É imprescindível, independente do nível de liderança, que se desenvolva a sensibilidade que compele o líder para as intervenções necessárias e oportunas no bojo desse processo (Ilustração 12, na página 123).

A história brasileira registra um exemplo edificante dessa sensibilidade de líder na atividade febril do General Manoel Luis Osório, durante a batalha de Tuyuty a 24 de maio de 1866. O velho cabo-de-guerra mantinha a percepção dos pontos nevrálgi-cos do combate que pareciam, apenas, ferozes entreveros, onde, para salvar a bata-lha, o moral não podia quebrantar-se nem esmorecer a vontade de luta dos comba-tentes: sentia essa necessidade e arrojava-se ao perigo para sustentá-la e, com is-so, salvar as armas do Império como um chefe conhecedor de seu “métier” e um líder capaz. Sua faina heróica durou o tempo da refrega, até a vitória ficar assegura-da:

“Durante a batalha Osório demonstrava mais uma vez seu valor como tático. Infunde coragem a todos pela sua atitude pessoal, pompeia a bravu-ra para estimular as energias” (...); “a galope sempre, chapéu-chile, de es-pada em punho, percorria a linha de fogo de ponta a ponta e a tudo aten-dia. Tinha o dom da ubiquidade.” (...); “Osório multiplicou-se; não houve soldado brasileiro, que combatesse nesse dia, que não o visse passar como um raio, entre os maiores perigos da batalha e que, no exemplo sublime que lhe dava o chefe, não sentisse o coração pulsar-lhe de entusi-asmo e de valor invencível...”143.

Um líder só conseguirá compensar a premência de tempo face à gravidade de uma crise com o sentimento coletivo de confiança na sua liderança. Pessoas em perigo ou sob tensão tendem a aceitar rapidamente o líder confiável. Assentirão aos seus valores sem muito discuti-los, estarão tocadas por suas razões e motivações e

143 Citações de J. B. Magalhães – “Osório – Síntese de seu perfil histórico” – Biblioteca do Exército - Editora.

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dispostas à ação que indicar. Essa é a magia secreta dos líderes natos, intuitivos: caráter forte e, como decorrência, confiabilidade indiscutível; percebemos isso quando estudamos o caráter individual no Capítulo 1, da Primeira Parte deste ensaio (apontamento da página 23). A confiança, dessa forma, é uma qualidade essencial para o exercício da liderança. O caráter individual do líder é absolutamente relevante para que esse sentimento se instale no agrupamento humano que lidera.

O Marechal Montgomery, em uma de suas palestras após o término da guerra na Associação de Engenheiros de Londres, março de 1947, definiu liderança como a capacidade de reunir homens e mulheres em torno de um propósito comum e o ca-ráter que inspira confiança144. O velho soldado, interpretado neste ponto do nosso ensaio, referia-se à capacidade de estimular e direcionar a vontade coletiva – epílo-go do método de criação da energia coletiva - e à confiabilidade do líder. Cinquenta anos de observação profissional me fazem concordar com a brilhante síntese do Visconde de Alamein. Osório, em uma frase de efeito na sua Ordem do Dia no Pas-so da Pátria, em quinze de abril de 1866, nas vésperas da batalha de Tuyuty, tam-bém aludiu implicitamente a essa confiabilidade que foi, com certeza, o segredo de seu brilhante desempenho como líder de combate:

“É fácil a missão de comandar homens livres: basta mostrar-lhes o cami-nho do dever!”.

Para os rudes e sofridos soldados do Exército Imperial Brasileiro, o dever e os valores que o inspiravam eram, naquele transe, tudo o que o intrépido General dese-jasse e demonstrasse. Caxias também despertou esse sentimento de confiança fun-damentado na sua competência profissional e no seu caráter (leia a observação teste-munhal de Dionísio Cerqueira no apontamento da página 82).

Os agrupamentos humanos instituídos, justamente por não serem espontâneos, necessitam de acompanhamento cuidadoso e atenta condução de todo o esforço psicológico que lhes cria e mantém a energia coletiva para a ação que, a partir da-qui, será denominado “EC” (“echo/charlie” - método de criação da energia coletiva), para simplificar a referência.

OO EECC ((““eecchhoo//cchhaarrlliiee””)) ddeeffiinnee,, ppaarraa eesssseess aaggrruuppaammeennttooss,, mmééttooddoo ppssiiccoollóóggiiccoo iinnttee--

rraattiivvoo eexxaammiinnaaddoo aaoo lloonnggoo ddeessttee eennssaaiioo qquuee ccoonnssoolliiddaa oo ccaarráátteerr ccoolleettiivvoo,, ddeesseennvvoollvvee ee mmaannttéémm eemm bboomm eessttaaddoo oo mmoorraall ccoolleettiivvoo ee eessttiimmuullaa ee pprrooppiicciiaa aa ffoorrmmaaççããoo ddaa vvoonn--ttaaddee ccoolleettiivvaa ppaarraa aa aaççããoo (Ilustração 12, adiante).

As ações e preocupações do líder devem ser orientadas para o seguimento na-

tural que a importância dos fenômenos impõe ao EC (“echo/charlie”). A sensibilidade e a prática da liderança, entretanto, permitirão o trabalho concomi-

tante nas três fontes de energia coletiva para o agrupamento considerado, desde que o líder não perca o sentimento de prioridade e de assistência ao processo que dirige, cuja síntese, como veremos no próximo capítulo será definida como espírito coletivo.

144 Esse conceito, registrado em suas memórias (obra citada), pode explicar as transformações no moral e na vontade do Oitavo Exército em apenas quarenta e oito horas de comando, às quais fiz referência na Primeira Parte deste ensaio (primeiro apontamento da página 80: norte da África, agosto de 1942).

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Ilustração 12 – Visão geral de um método para a liderança mili-tar e o seguimento natural para o processo psicológico interativo do EC.

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CCCaaapppííítttuuulllooo 555::: AAAGGGRRRUUUPPPAAAMMMEEENNNTTTOOOSSS IIINNNSSSTTTIIITTTUUUCCCIIIOOONNNAAAIIISSS HHHIIIEEERRRAAARRRQQQUUUIIIZZZAAADDDOOOSSS EEE NNNÃÃÃOOO HHHIIIEEERRRAAARRRQQQUUUIIIZZZAAADDDOOOSSS...

DDDeeessseeennnvvvooolllvvviiimmmeeennntttooo eee mmmaaannnuuuttteeennnçççãããooo dddaaa eeennneeerrrgggiiiaaa aaannnííímmmiiicccaaa nnnooosss a aagggrrruuu---pppaaammmeeennntttooosss iiinnnssstttiiitttuuuccciiiooonnnaaaiiisss::: eeessspppííírrriiitttooo cccooollleeetttiiivvvooo ... E EExxxaaammmeee d ddeee cccaaasssooosss...

LLííddeerreess iinntteerrffeerreenntteess ee llííddeerreess ssoolliiddáárriiooss –– uumm ssiisstteemmaa ddee lliiddeerraannççaa mmiilliittaarr?? A partir deste ponto tentarei dar mais consistência prática àquilo que se discutiu

genericamente neste ensaio com a amplitude de interesse que envolve com um mesmo fenômeno, desde o líder de um pequeno agrupamento humano até o líder político, chefe de Estado, devotado à nação. Procurei ilustrar essa análise com al-guns exemplos e episódios históricos.

Comandante/líder145 é uma expressão criada para esta Trilogia, aparentemente redundante, apenas para enfatizar a dupla função do Soldado de mais alto posto (mais antigo nesse posto) ou mais graduado (mais antigo nessa graduação) de uma organização de combate. Refere-se: pprriimmeeiirroo, aaoo cchheeffee mmiilliittaarr qquuee eellee ddeevvee sseerr, isto é, aquele que exerce a ação de comando (**) [cabo-de-guerra (**), na acepção conve-niente a este texto], dentro do processo dessa atividade no escalonamento hierár-quico que o enquadra, para dirigir o emprego do seu agrupamento como força de combate; sseegguunnddoo, aaoo llííddeerr ddee ccoommbbaattee ((**)) qquuee ttaammbbéémm ddeevvee sseerr, quero dizer, aque-le que exerce a liderança militar (**), dentro do sistema correspondente no mesmo escalonamento hierárquico que o enquadra, para desenvolver e manter a energia positiva do caráter profissional militar no seu agrupamento de combate, do moral e da vontade coletiva da força para a ação que irá empreender - o EC (“echo/charlie”), portanto.

SSããoo ddooiiss eessffoorrççooss ddiissttiinnttooss ee ccoonnccoommiittaanntteess,, ccoomm rreessppoonnssaabbiilliiddaaddeess ppeeccuulliiaarreess,, nnããoo--eexxcclluuddeenntteess ee nnããoo--ccoonnfflliittaanntteess. Um comandante militar (**

) precisa ser um bom líder de combate. Um bom líder de combate deve ser, também, um competente ca-bo-de-guerra. Esta trilogia, como já afirmei, trata principalmente das atividades de liderança militar sugerindo no presente texto um método, definindo no Livro 2 os va-lores em questão nos processos psicossociais correspondentes e analisando no Li-vro 3 as vicissitudes desses processos, que devem ser identificadas, anuladas ou revertidas.

O enfoque, neste capítulo, como propósito de prosseguimento, estará direcionado para a problemática da liderança em pequenos agrupamentos institucionais forte-mente hierarquizados (frações de combate) com uma limitada incursão ilustrativa naqueles onde não se identifica uma hierarquia. Estarei atento, particularmente, para os problemas de líderes de contato direto, outorgados por decisões externas, ou se-ja, fora do ambiente social desses grupos profissionais (Ilustração 10, página 111) 146.

145 Essa expressão, no singular ou no plural, está sendo empregada pela primeira vez neste texto, onde o leitor a encontrará 56 vezes. A empregarei nos demais textos desta Trilogia. 146 Os conceitos estão no Anexo I, Glossário de apoio, página 162.

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

Em princípio jovens comandantes/líderes que devem conquistar seu espaço nesse universo social militar. A ponta seca do compasso que definirá a amplitude dessa análise estará, pois, na cabeça de um tenente combatente e aí perscrutaremos seus sucessos e suas angústias no exercício de responsabilidades como comandan-te/líder de uma pequena organização de combate, na estrutura de sua arma. Deline-arei os elementos básicos dos processos correspondentes.

A hierarquia, como base de

uma organização, é a rígida escala de cargos definidora de funções e responsabilidades e criadora de uma ordem impessoal que estabelece níveis de autoridade e subordinação, capaz de dinamizar a organiza-ção em questão como um instrumento coeso, dentro do pressuposto da disciplina (voltarei a essa matéria no Livro 2 desta Trilogia, “O caráter dos Soldados”). A hierarquização de um a-grupamento humano institucional, por conseguinte, decorre da necessidade de se criar, por esse artifício administrativo, um amálgama que lhe dê densidade e resis-tência em decorrência de sua destinação social para atividades de risco ou de sacrifício, ação física conjunta e convergente. As Forças Armadas e as polícias militares brasileiras, por exemplo, são instituições hierarquizadas por definição legal onde o caráter profissional militar ou o caráter profissional policial, com seus valores emblemáticos, quaisquer que sejam suas atividades, tensões e privações, devem dar suporte psicológico contínuo a ca-da integrante e ao agrupamento no nível em que estiver sendo considerado147. A dispensa de hierarquia para agrupamentos institucionais decorre da desnecessidade desse artifício em razão de outro tipo de destinação, sem emprego físico conjunto, sem riscos ou sacrifícios notáveis e sem a necessidade de acendrada e ininterrupta dedicação.

Na escala vertical de uma hierarquia militar, os líderes interferentes, como já vimos, são aqueles que intervêm, pela abrangência de suas funções e responsabili-dades de direção, comando ou chefia, no processo que desenvolve e mantém a e-nergia positiva do caráter, do moral e da vontade nos agrupamentos corresponden-tes àquela escala. A destinação social que impõe a um agrupamento humano insti-tucional uma hierarquia (Ilustração 13, acima), evidencia, também, a necessidade de uma singular interação de lideranças escalonadas verticalmente onde a atuação de

147 Embora, também, seja essa a referência legal brasileira, as polícias civis, a rigor, não são organi-zadas à base da hierarquia e da disciplina, tal como as compreendemos para as forças armadas e polícias militares.

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Ilustração 13 - Desenho esquematizado do can-delabro de posicionamento dos líderes interferentes dentro de uma estrutura fortemente hierarquizada, como uma importante função dos cargos de co-mando, chefia ou direção (compare-a com a Ilustra-ção 15, página 127, referente aos agrupamentos institucionais, não hierarquizados).

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todos se orienta para objetivos comuns, convergentes e concretos em relação à busca e manutenção da energia anímica coletiva. A atividade desses comandan-tes/líderes, portanto, deve ser espontânea, concorrente, interativa e cooperativa (Ilus-tração 14, abaixo). Além disso, cada comandante/líder, no seu nível hierárquico, deve ter, em relação aos líderes interferentes sob seu controle de comando e para os propósitos da liderança militar, uma preocupação permanentemente abrangente, com cuidados diretores e supervisores da homogeneidade na formação do caráter profissional militar, na manutenção do moral da tropa e obtenção da vontade da for-ça, ou seja, desvelos permanentes com o EC (**). Ideamos, assim, a partir de deter-minado nível, feixes sucessivos de linhas divergentes que apontam para o universo dos líderes interferentes abrangidos por esse nível, significando ação contínua para dirigir, supervisionar e verificar os efeitos da liderança, além de buscar nos níveis superiores a orientação necessária e encaminhar a esses níveis os bons e maus efeitos do processo em curso.

CCCooommm eeessssssaaa iiinnnttteeegggrrraaaçççãããooo dddeee rrreeessspppooonnnsssaaabbbiii lll iiidddaaadddeeesss,,, pppooorrr cccooonnnssseeeggguuuiiinnnttteee,,, pppooodddeeemmmooosss cccaaarrraaacccttteeerrr iii---zzzaaarrr uuummm aaauuutttêêênnnttt iiicccooo sssiiisssttteeemmmaaa dddeee lll iiidddeeerrraaannnçççaaa mmmiii lll iii tttaaarrr (((***))) pppaaarrraaa aaapppoooiiiaaarrr ooo cccooommmaaannndddaaannnttteee/// lll ííídddeeerrr ...

EExxeemmpplloo:: lliiddeerraannççaa mmiilliittaarr nnoo nníívveell ddee uumm bbaattaallhhããoo ddee iinnffaannttaarriiaa VViissuuaalliizzeemmooss eesssseess ffeeiixxeess

ssuubbjjaacceenntteess ddee lliinnhhaass ddiivveerrggeenntteess aatteennttaannddoo ((veja linhagem de líderes interferentes, Glossário, página 168)),, iinniicciiaallmmeennttee,, ppaarraa aass aattiivviiddaaddeess ee pprreeooccuuppaaççõõeess ddee uumm ccoommaannddaannttee ddee bbaattaallhhããoo ee sseeuuss ccoommaannddaanntteess ddee ssuubbuunniiddaaddeess;; eemm sseegguuiiddaa,, ddee ccaaddaa uumm ddeesssseess ccoommaannddaanntteess ddee ssuubbuunniiddaaddee ee sseeuuss ccoommaannddaanntteess ddee ffrraaççããoo;; aaiinnddaa,, ddee ccaaddaa uumm ddeesssseess ccoommaannddaanntteess ddee ffrraaççããoo ee sseeuuss ccoommaannddaanntteess ddee ggrruuppoo;; mmaaiiss,, ddee ccaaddaa uumm ddeesssseess ccoommaannddaanntteess ddee ggrruuppoo ee sseeuuss ccoommaannddaanntteess ddee eessqquuaaddrraa;; eennffiimm,, ddee ccaaddaa uumm ddeesssseess ccoommaannddaanntteess ddee eessqquuaaddrraa ee sseeuuss hhoommeennss.. OO pprróópprriioo bbaattaallhhããoo –– qquuee ddeeffiinnee uumm ssuubbssiisstteemmaa -- ccoomm vviissããoo mmaaiiss aammppllaa ee aa ppaarrttiirr ddoo nníívveell hhiieerráárrqquuiiccoo ssuuppeerriioorr,, eessttaarráá

iinncclluuííddoo eemm ssuubbssiisstteemmaass eessppeeccííffiiccooss ddee bbrriiggaaddaa,, ddee ddiivviissããoo,, eettcc.... OO ccoommaannddoo ddaa ffoorr--ççaa tteerrrreessttrree ccoommppoorráá,, ccoomm aa mmááxxiimmaa aammpplliittuuddee,, oo ggrraannddee ssiisstteemmaa ddee lliiddeerraannççaa mmii--lliittaarr ddiirreettoorr.. AA iinntteeggrraaççããoo ddeesssseess ssuubbssiisstteemmaass ggaarraannttiirráá aa hhoommooggeenneeiiddaaddee ddoo pprroo--cceessssoo ee ddee sseeuuss rreessuullttaaddooss ssoobbrree oo eessppíírriittoo ccoommbbaatteennttee ddaa ffoorrççaa tteerrrreessttrree.. (( EEnnssaaiioo ccoommpplleemmeennttaarr ““AA ffaasscciinnaannttee ggeessttããoo ddee uumm eessppíírriittoo””,, pprrooccuurree oo LLiinnkk,, nneessttee ssiittee))..

Agrupamentos institucionais não hierarquizados, em geral fisicamente articulados

em espaço determinado e imutável, têm suas atividades desenvolvidas dentro de um fluxo orientado por rotinas fixas, sem fortes tensões permanentes ou admitidas como

Ilustração 14 – O subsistema de liderança mili-tar em um batalhão de infantaria (simplificação terná-ria até os comandantes/líderes interferentes de fração): aten-te para a linhagem de líderes e a mão dupla con-firmada pela Ilustração 16, na página 129.

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parte delas, com a descontinuidade prevista dos horários, dos expedientes diários, dos afastamentos administrativos, desempenhadas por pessoal não homogêneo e não sujeito a enquadramento (Ilustração 15, abaixo). As autoridades responsáveis por esses agrupamentos (diretores, chefes, coordenadores, etc.) e aquelas que se situ-am em nível superior são líderes solidários (Ilustração 10, página 111 e os conceitos do Anexo I, “Glossário de apoio”, página 162), isto é, exercem sua liderança sem a obrigação de interferência direta contínua para a consecução dos objetivos do agrupamento, mas devem permanecer atentas à coerência do desenvolvimento da energia psicológica positiva no seu âmbito.

Cada líder solidário deve conhecer os valores fundamentais do caráter coletivo de seu agrupamento que, muitas vezes, terá especificidades em relação a outros agrupamentos dentro de um mesmo nível administrativo (uma divisão de servidores para o atendimento ao público, servidores de uma divisão de contabilidade e servidores motoristas de uma frota de veículos, com atividades não necessariamente interdependentes). O moral coletivo nesses agrupamentos institucionais não hierarquizados precisa ser mantido para respaldar, em princípio, a vontade para o trabalho e para os esforços normais desse trabalho.

Ilustração 15 - Uma rosácea indica me-lhor o relacionamento dos líderes solidários dentro de um agrupamento institucional não hierarquizado.

Vimos que a hierarquia, pelas razões de sua existência na estrutura organizacio-nal de determinado agrupamento e interdependência de atividades, portanto, define uma obrigação de interferência dos líderes da escala hierárquica para que os agru-pamentos subordinados atinjam plenamente seus objetivos. Combatentes com o moral baixo se encaminham para o desastre que comprometerá toda a estrutura em operações. A ausência de hierarquia, em contrapartida, apesar de exigir ação solidá-ria dos líderes, dispensa a interferência sistemática como condição para o funciona-mento das atividades profissionais que promovem. Não a impede, todavia Servido-res públicos com o moral elevado terão melhor desempenho profissional.

AAggrruuppaammeennttooss iinnssttiittuucciioonnaaiiss mmiilliittaarreess –– eeexxxaaammmeee dddeee uuummm cccaaasssooo Dentro de uma força armada terrestre os agrupamentos institucionais organizados

como elementos de combate são chamados de operacionais - agrupamento de combate (**) ou agrupamentos de guerra, neste texto - e, pelas peculiaridades de seu mister, são identificados por algumas características.

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Características dos agrupamentos de combate

(força armada terrestre) 1 – Os comandantes de todos os níveis são os líderes interferentes que devem conduzir o

EC (“echo/charlie”) dentro de seus agrupamentos e, por dever de ofício, vivem essas respon-sabilidades de forma ininterrupta atuando concorrentemente por interação e cooperação(Ilustrações 13 e 16, páginas 125 e 129, respectivamente).

2 – Por exercitarem valores especiais e atuarem com um sistema especial de substitui-ção, essas lideranças permanecem ininterruptamente ativas 24 horas dia a dia.

3 – Os agrupamentos de combate são fortemente hierarquizados e homogêneos nos seus diversos níveis.

4 – São organizados com fundamento no distintivo especial da disciplina militar (uma ma-téria que será estudada nos Livros 2 e 3 desta Trilogia).

5 – Suas atividades pressupõem risco, pois empregam, manipulam e podem enfrentar instrumentos e técnicas letais ou de destruição.

6 – Essas atividades, entretanto, devem ser conduzidas mesmo sob crise, em face de um inimigo letal e sob condições de grande pressão desagregadora.

7 – Seus integrantes trabalham, em princípio, sob ativo e vigoroso enquadramento. 8 – Suas tarefas coletivas, podendo ser de vida e de morte, exigem o perfeito entrosa-

mento e a rigorosa concorrência das atividades individuais de seus integrantes. 9 – Nos níveis subjacentes de lideranças interferentes, os comandantes/líderes, porque

estão fisicamente cada vez mais próximos da massa de seus liderados, estão cada vez maisenvolvidos com eles. Os escalões mais baixos, desse modo, com seus comandantes/líderesde contato direto (comandantes de frações) conformam ou tendem a conformar mais nitida-mente “grupos psicológicos” (**).

Quadro 3 - O EC (“echo/charlie”) deve ser conduzido pelos líderes interferentes

(comandantes) como um sistema de liderança militar, de forma concorrente, dentro de seus respectivos agrupamentos de combate (Ilustração 16, adiante).

O comandante ferido é a breve narrativa de um acidente, dentro da rotina cas-

trense, que colocou em colapso os homens de um agrupamento de combate (um pelotão de fuzileiros integrante da 4ª. Companhia de Fuzileiros, fração e subunidade, respectivamente, do 2º. Batalhão do 18º. Regimento de Infantaria, na organização do Exército Brasileiro em 1955). O fato foi registrado no início deste ensaio para marcar, com um exemplo simples, a fragilidade no vigor anímico coletivo instalado.

Será importante, para a compreensão do EC (“echo/charlie”) nesses agrupamen-tos humanos institucionais, que o retomemos para exame.

antes de prosseguir a leitura releia a historinha dddaaa pppááágggiiinnnaaa 111222

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

L ID E R A N Ç A L ID E R A N Ç A

A Ç Ã O D E C O M A N D O

O U T R O S L ÍD E R E S IN T E R F E R E N T E S

Para iniciar a análise das ações e omissões dos personagens da historinha da página 12, interpreto, com aferro recapitulativo, as indicações da Ilustração 16 (aci-ma). A ação de comando, para o propósito de emprego de um agrupamento de com-bate, exige o respeito rígido e imediato à prevalência hierárquica militar e à disciplina militar como instrumento desse processo e o desvelo do comandante no preparo físico, técnico e coletivo (tático) de seus combatentes. O líder, como outra habilita-ção desse comandante dentro do mesmo agrupamento de combate, para os propó-sitos da atividade de liderança militar, age, com o mesmo desvelo, espontânea e concorrentemente por interação e cooperação para a identificação e consolidação dos valores que moldam o caráter profissional militar, para a manutenção da dispo-sição dos combatentes nas suas fainas e responsabilidades (moral coletivo ou moral da tropa) e criar forte vontade coletiva para a ação, sustentando a irreversibilidade de tudo sob quaisquer circunstâncias (Ilustração 14, página 126).

-- OO ccaarráátteerr pprrooffiissssiioonnaall mmiilliittaarr ((ccaarráátteerr ccoolleettiivvoo)):: CCoommoo ppooddeerriiaa

tteerr ssee ddeesseennvvoollvviiddoo aa ffoorrmmaaççããoo ee aa ccoonnssoolliiddaaççããoo ddoo ccaarráátteerr pprrooffiissssiioo--nnaall nnaaqquueellee ppeelloottããoo ddaa hhiissttoorriinnhhaa ee nnoo uunniivveerrssoo mmaaiiss aammpplloo ddaa ccoomm--ppaannhhiiaa,, ddoo bbaattaallhhããoo ee ddoo rreeggiimmeennttoo qquuee oo eennqquuaaddrraavvaamm??

O leitor militar deve atentar para a necessidade de uma orientação sistêmica abrangente.

Ilustração 16 - Desvelo de um comandante na dinâmica do acionamento da força con-tando com as avaliações de liderança (interprete com paciência a integração desse duplo papel) .

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Os integrantes de um agrupamento de combate devem, em primeiro lugar, assen-tir nos valores protegidos e defendidos pela lei, pelos regulamentos militares, pelas ordens superiores e pelas determinações e orientações administrativas e operativas que, afinal, serão capazes de preparar ou aprestar o grupo para a atividade profis-sional. A identificação e aclaração desses valores deve ser a meta inicial e dominan-te para a formação do caráter profissional militar. O esforço para atingi-la tem início nas escolas de formação, especialização, aperfeiçoamento e nos cursos que funcio-nam dentro das unidades militares para o pessoal integrante desses agrupamentos. O sistema de ensino militar precisa atentar para a coerência de objetivos afetivos no processo ensino-aprendisagem tendo em vista a homogeneidade do caráter profis-sional militar de toda a força, ou seja, as motivações, os valores/atitudes, os senti-mentos, os comportamentos e as reações adequados. Esses sistemas, nas três For-ças Armadas, têm essa possibilidade porque visualizam e abrangem toda a deman-da de qualificação para seu pessoal. O que facilita sobremaneira o exercício da lide-rança militar (“A fascinante gestão de um espírito”, ensaio complementar, procure o link). Uma vez conformado o agrupamento de combate, o comandante/líder, na prática de sua liderança e na realidade diuturna de suas rotinas profissionais rediscuti-los-á com seus liderados como uma rotina de liderança militar – [Vis-à-vis de combate (**)].

Todas as oportunidades são importantes; particularmente quando um membro do agrupamento, por alguma razão clara ou, mesmo, sem razão aparente, infringir pre-ceitos e, com isso, descurar algum valor que deva ser professado. A disciplina militar encerra valores fundamentais para a existência de uma força armada como instru-mento de guerra. Esses valores devem ser compreendidos, aceitos e praticados dentro de um processo psicológico específico (processo de disciplinamento148) exi-gido pelo próprio conceito de disciplina militar: “Situação rigorosa de ordem e obedi-ência voluntária e inteligente que se estabelece entre militares, como decorrência da necessidade de eficácia em ações que exigem emprego enquadrado, estão sujeitas a pressões desagregadoras, a risco de vida e promovem a destruição e a violência organizada em nome do Estado”.

A verdade, a lealdade, a honra, a probidade, a camaradagem, o dever, a dedica-ção ao dever, o espírito de sacrifício, a responsabilidade, a assiduidade, a pontuali-dade, a higiene individual, o apreço pela higiene coletiva, o relacionamento com su-periores, subordinados ou companheiros, etc. São valores militares abrangentes, alguns, ou menos abrangentes, outros (morais, éticos e profissionais), que devem ser compreendidos, aceitos e praticados com espontaneidade. A pontualidade, por exemplo, sempre uma boa regra ética para as atividades humanas no âmbito da so-ciedade, tem sido, entre militares, um valor profissional a ser cultuado. Hoje, com maiores razões, uma operação bélica, dentro de uma complexa preparação e exe-cução de atividades de risco, exige a pontualidade, além de um costume civilizado, como uma preocupação dominante exigida com o máximo rigor e atenção para a importância dos segundos e das frações de segundos. É nas rotinas de paz que es-se valor pode ser inculcado entre militares de todos os níveis.

A formação de uma consciência coletiva ativa (**

), entretanto, dentro de uma orga-nização militar e em qualquer organização hierarquizada, deve ter esforços concor-

148 Abordarei a disciplina militar e seus valores e o disciplinamento militar como um processo nos Livros 2 e 3, respectivamente, da trilogia “O espírito combatente” (“O caráter dos Soldados” e “A imi-tação do combate”).

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rentes em cada nível de comando ou de direção. A atuação dos diversos líderes in-terferentes nessa escala deve diferençar-se, apenas, pelo grau de engajamento dire-to e acuidade funcional de cada um para perceber desvios e, consequentemente, para intervir por intermédio dos escalões de comando, chefia ou direção. Os coman-dantes/líderes da base, pela proximidade física e envolvimento com o dia a dia dos liderados e por conhecê-los individualmente, podem acompanhar e perceber melhor os desvios dos padrões do caráter profissional militar que se busca com a orientação e supervisão da cúpula de comando ou direção.

Na historinha citada, a aplicação diligente do coronel comandante do regimento (líder interferente de maior nível hierárquico) na formação do caráter profissional mili-tar de sua unidade deveria ter preocupações diretoras, orientadoras e supervisoras, particularmente sobre o comportamento e atuação de seus líderes subordinados149. O desempenho do comandante da companhia de fuzileiros em questão (líder interfe-rente intermediário), por estar mais próximo dos homens que a integravam, além de refletir a orientação superior, precisaria acrescentar e intensificar observações sobre desvios, antecipando-se à ocorrência deles sempre que isso fosse possível. O co-mandante efetivo do pelotão (líder interferente de contato direto) – não aquele sar-gento monitor que apenas o conduziu e feriu-se no dia do exercício -, teria se envol-vido com seus comandados e, pela constante proximidade física com o agrupamen-to, conhecê-los-ia melhor, caracterizando suas intervenções pelo exemplo direto ofe-recido, pelo conhecimento do temperamento de cada um e pelo aproveitamento das oportunidades que, nesse nível, ocorreriam em maior número e seriam mais percep-tíveis. Na organização militar dessa época havia, abaixo do comandante de pelotão, outro líder interferente de grande importância: o 3º sargento comandante do grupo de combate. Não os considerei, entretanto, pelo fato de viver-se, então, uma carên-cia muito grande de quadros. A maioria dos sargentos ocupava cargos superiores.

Haveria preocupação, dessa forma, nos três níveis de lideranças interferentes, para que quaisquer tipos de punições ou elogios individuais produzissem um efeito de convencimento sobre os agrupamentos. O ato de punir ou premiar, assim, seria transformado sempre em uma oportunidade singular para a consolidação do caráter profissional militar. A maior ou menor abrangência do valor relegado ou exaltado, envolveria a necessidade de participação direta dos três níveis de lideranças interfe-rentes, até o próprio comandante do regimento. A maioria dominante dos integran-tes, por ter aceitado os valores violados com as eventuais infrações, sentiria a justiça da aplicação de uma punição e manifestaria, pela atmosfera criada dentro dos agru-pamentos, a reprovação da consciência coletiva ativa (**

) sobre o infrator. As premia-ções estariam no mesmo contexto.

Alguns valores essenciais indicados pela Instituição, emblemáticos como funda-mento do caráter profissional militar, seriam zelosamente protegidos150. As demais preocupações com a formação do caráter profissional militar, obedecendo, em prin-cípio, à mesma dinâmica, estariam voltadas para as atitudes, os sentimentos, o comportamento e as reações individuais adequadas e convenientes, procurando transformá-las em consciência grupal. Os elementos trazidos e já consolidados do

149 Na época da historinha, o Coronel de Infantaria QEMA Jeovah Mota, um homem culto, inteligente e muito dedicado a seu comando e à formação do caráter profissional de seus comandados; ele pró-prio um bom líder pelo seu caráter firme e indiscutível confiabilidade (leia o apontamento da página 122). 150 Leia a observação apontada na página 157 e recorra ao Anexo I, “Glossário de apoio”. Esse é, pela importância, o tema básico do Livro 2 - “O caráter dos Soldados”.

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caráter individual, do caráter regional e do caráter nacional, serviriam de base para um trabalho intenso de interação psicológica, consolidação e homogeneização den-tro daquela companhia de fuzileiros e de seus quatro pelotões. Um esforço ingente e uma faina contínua que seria destaque na construção do alicerce para as outras ati-vidades de formação (examine com cuidado o exemplo gráfico da Ilustração 17, página 133; qual seria a sequência lógica das falas de cada balão, para que indicassem, da melhor maneira, o processo?).

OO lleeiittoorr sseennttiiuu,, ddee ffaattoo,, eessssaa nneecceessssiiddaaddee ddaa oorriieennttaaççããoo iinniicciiaall ee ddaa ppeerrmmaa--nneennttee ssuuppeerrvviissããoo ddiirriiggiiddaa ppoorr aallggoo ccoommoo uumm ssiisstteemmaa ddee lliiddeerraannççaa mmiilliittaarr?? Ordenemos genericamente esses procedimentos simples, embora a execução e-

xija atenção permanente e atuação oportuna do comandante/líder considerado e dos demais líderes interferentes no processo:

Consolidação do caráter profissional militar dentro de um agrupamento

operacional de uma força terrestre (principais elementos do processo)

1 – Esforço inicial e permanente dos líderes interferentes, particularmente do líder de contato direto (comandantes de frações), para a caracterização e fortalecimento dos valoresprotegidos ou defendidos pela lei, pelos regulamentos, pelas rotinas e pelas determinações administrativas e operativas. Criar um consenso de aceitação desses valores - a consciênciacoletiva ativa (**).

2 – Esforço interativo dos líderes interferentes para persuadir o conjunto do agrupamentoaos elementos do caráter profissional militar conveniente, definido pelos escalões superio-res (os valores morais, éticos e profissionais militares de um Soldado, as atitudes, os senti-mentos, os comportamentos e as reações decorrentes).

3 – Aproveitamento, consolidação e integração pelos líderes interferentes dos elementos importantes de caráter individual, regional ou nacional preexistentes (a verdade, a pontuali-dade, o respeito ao semelhante, etc.).

4 – Exigência permanente pelos líderes interferentes do desempenho de cada comandan-te/líder subordinado (ou ocupantes de cargos importantes) e, no caso dos comandan-tes/líderes de contato direto, de cada integrante do agrupamento em relação aos elementos desse caráter profissional militar.

5 – Acompanhamento pelos líderes interferentes de cada comandante/líder subordinado (ou ocupantes de cargos importantes) e, no caso dos líderes de contato direto, de cada inte-grante do agrupamento, sobre desvios ou destaques relacionados com o caráter profissio-nal militar em processo de consolidação.

6 – Busca, particularmente pelos líderes de contato direto, de apoio na consciência gru-pal em formação ou já consolidada (consciência coletiva ativa), para o repúdio a esses des-vios ou à exaltação dos destaques (Ilustração 17, adiante).

7 – Os líderes interferentes, cada um no seu nível, devem improvisar, exercitando a sen-sibilidade para agirem sobre quaisquer dos tópicos anteriores, sem perderem a visão do processo que dirigem.

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

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...sei não...!

Ele errou!Faltou com a verdade!

Errou!

Fiquei mal commeus companheiros...

Você mentiu?Errou !

Eu já sabia que não se deve

mentir!

Eu também...

Quadro 4 – A formação do caráter coletivo é um processo fundamental cujo sucesso cria um agrupamento confiável, sobre o qual será possível desenvolver e manter em bom nível o moral e de provocar a manifestação, com as qualificações técnicas e psicomotoras adquiridas, quando necessário, de uma vigorosa vontade da força, transformando-o em eficaz e respeitável instrumento de emprego.

-- OO mmoorraall ddaa ttrrooppaa ((mmoorraall ccoolleettiivvoo)):: QQuuee ffaattoorreess,, aanntteess ddoo aacciiddeennttee

rreellaattaaddoo nnaa hhiissttoorriinnhhaa,, ppooddeerriiaamm tteerr eessttiimmuullaaddoo ee mmaannttiiddoo oo mmoorraall ccoolleettii--vvoo nnoo ââmmbbiittoo ddoo ppeelloottããoo,, ddaa ccoommppaannhhiiaa,, ddoo bbaattaallhhããoo ee ddoo rreeggiimmeennttoo?? PPoorr qquuee ttrreessaannddoouu?? OO qquuee oo ffeezz rreeccuuppeerraarr--ssee aappóóss oo ffaattoo ttrraauummááttiiccoo??

OO lleeiittoorr mmiilliittaarr ddeevvee aatteennttaarr ppaarraa aa nneecceessssiiddaaddee ddee uummaa oorriieennttaaççããoo ssiissttêêmmiiccaa aabbrraannggeennttee..

Dentro de um agrupamento institucional (lembro os problemas do Exército Imperial Brasi-

leiro após o desastre de Curupayty, apontados na página 81), obrigado à atividades profissio-nais diárias, o moral coletivo precisa ser mantido em bom estado. Será o melhor in-dicador da saúde psicológica do grupo. Essa é a energia da disposição para o traba-lho cujo grau de intensidade deve ser sentido e acompanhado como uma responsa-bilidade, por excelência, do comandante/líder de ação e contato diretos – na nossa historinha, o comandante efetivo do pelotão. Só ele será capaz de avaliá-lo, com abrangência total sobre os integrantes, pelo conhecimento próximo que tem de cada um. Precisa de orientação e de supervisão, é claro.

Quais são os homens cujos temperamentos sensíveis e com tendência negativis-ta podem influenciar o conjunto? Quais são aqueles que apresentam temperamentos fortes e positivos? Quem são os esteios de disposição e otimismo? Quem está do-

Ilustração 17 - A dinâmica para a consolidação do caráter profis-sional militar nos agrupamentos de combate é simples, mas exige atenção permanente e atuação oportuna dos líderes interferentes (um pequeno exercício: qual deve ser a sequência das falas nos balões para que fique indicado, da melhor maneira, o pro-cesso? Falas do líder, fala do integrante que errou, manifestação de consenso do grupo, falas de outros integrantes fora desse consenso ou sob a influência de caráter preexistente).

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ente? Quem, neste momento, tem problemas pessoais? Quem é, dentro do agrupa-mento, a figura mais negativa e, portanto, mais perigosa para influenciar uma baixa na disposição para a atividade profissional? Que fatores externos, hoje, agora, neste momento, podem influenciar a perda do moral? Que fatores fora do ambiente de tra-balho, trazidos para conhecimento ou discussão, poderiam, ao contrário, estimular o ânimo coletivo? Quais são os problemas de relacionamento interpessoal que pode-rão afetar a disposição dos combatentes? [um vis-à-vis de combate (**)?]

Todas são importantes questões para serem formuladas e respondidas diaria-mente, proporcionando ao comandante/líder elementos de ação para proteção do moral coletivo militar (moral de sua tropa) e de neutralização do cerco e investidas das más influências pelos pontos e caminhos de maior vulnerabilidade representa-dos pelas mentes de alguns integrantes, por algum motivo, tornadas frágeis e des-protegidas. Além disso, o próprio comandante/líder deve demonstrar sua disposição, sua postura física, sua atitude e seu humor, consciente do efeito benéfico, como um fator definitivo, que sua figura, sua personalidade, sua presença e, sobretudo, seu interesse, acarretará para a criação do bom clima coletivo de moral (vis-à-vis de comba-te, Glossário de apoio, página 172).

A característica de “grupo psicológico” (**

) nos pequenos escalões operacionais, por afetar o processo de interação social, torna muito importante o relacionamento interpessoal que provoca amizades que podem ajudar ou inimizades que provocam distúrbios no bom nível do moral individual que se refletem sobre o moral coletivo. Em princípio, a proximidade física tende a estabelecer um relacionamento positivo entre os integrantes de um pequeno agrupamento de combate. O comandante/líder, entretanto, deve estar atento para interferir com oportunidade, assegurando e forta-lecendo essa boa tendência. Nos escalões mais elevados, da mesma forma, o fácil ou difícil relacionamento entre comandantes ou pessoal chave, interfere no processo de liderança e na disposição dos envolvidos com reflexos mais graves sobre o moral da tropa151 (vis-à-vis de combate?).

A vigilância sobre os sinais de perda do moral individual precisa preocupar conti-nuamente todos os comandantes/líderes interferentes dentro das rotinas de trabalho de seus respectivos agrupamentos, com a acuidade permitida nos seus níveis de liderança. Os comandantes dos escalões mais elevados, assim, devem ter suas preocupações voltadas, com maior realce, para o moral individual de seus profissio-nais de expressão em postos ou graduações, particularmente aqueles nos cargos de chefia ou de comandos subordinados (líderes interferentes). No exemplo que relem-bramos, o comandante da companhia sobre seus comandantes de frações e seus graduados de maior nível; os comandantes dos batalhões e do Regimento, na orga-nização da época, sobre seus oficiais superiores e capitães.

Recordo, vinte anos depois dos fatos da historinha, como comandante de um ba-talhão de infantaria, o meu esforço diligente diário, cedo, para identificar no café da manhã no refeitório dos oficiais aqueles que se apresentavam com algum tipo de perda no ânimo para a atividade profissional de rotina ou, com maior atenção em determinadas ocasiões, quando estávamos voltados para alguma tarefa especial. O conhecimento que tinha, ou procurava ter, de seus temperamentos me proporciona-va essa sensibilidade, pois me alertavam e apontavam para o perigo de contágio sobre seus subordinados. Muitas vezes uma constatação de queda no moral indivi-

151 Lembro os problemas do Exército Imperial Brasileiro após o desastre de Curupayty, página 81.

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dual de um oficial comandante subordinado dava origem a uma visita minha ao local de trabalho do observado, junto a seus liderados, para compensar com a presença do comandante do batalhão, com algumas palavras e a demonstração pessoal de disposição e interesse, qualquer tipo de perturbação no clima coletivo.

A atmosfera criada pelo moral de um agrupamento de combate fica fortemente dependente do comandante/líder e da confiança nele depositada. O exame anterior da importância dos valores/atitudes, no Capítulo 1 da Primeira Parte deste ensaio, nos fez compreender que um líder, mesmo dentro de agrupamentos de combate, só será confiável se tiver caráter fortemente consolidado. Essa é uma regra geral. A confiança em um líder é o sentimento que se estabelece com a constatação clara e evidente de seu bom caráter, de seu legítimo interesse na formação profissional dos subordinados (não pode ser demonstrada ou teatralizada), sua correta administra-ção da justiça (o processo de consolidação do caráter coletivo é fundamental), seu conhecimento de cada um e dos problemas pessoais e profissionais dos liderados e seu esforço para solucioná-los, além da evidência, sem afetação, de sua competên-cia e capacidade profissional.

Nos escalões mais elevados, o comandante/líder buscará essa confiança, particu-larmente, junto a seus comandantes subordinados, líderes interferentes. Um bom comandante/líder que confie em seu chefe transferirá esse sentimento a seus lidera-dos. Os integrantes de um agrupamento institucional militar devem ter, individual-mente, a consciência do próprio valor dentro da organização na qual estão inseridos; só o valor profissional dos Soldados – claramente sentido por cada um deles -, pode gerar a percepção do valor coletivo essencial para a organização militar. Esse sen-timento de dignidade militar é básico para o estado moral da tropa. Nos níveis de liderança direta a atividade física permanente, a competição esportiva ou, mesmo, a saudável emulação entre algumas ações profissionais dentro de agrupamentos insti-tucionais militares, são recursos importantes para manter o moral em bom estado. O descanso concedido a tempo é essencial, mas a ociosidade é danosa (retorne, mais uma vez, à página 81 para sentir os efeitos da ociosidade sobre o Exército Imperial Brasileiro após Curupayty). A saúde física de cada componente é capaz de afetar a saúde psicológica caracterizada por esse estado moral do agrupamento. A preocupação com a manu-tenção da higidez do grupo, dessa forma, tem muita importância. Doentes devem ser tratados adequadamente e afastados do grupo durante seus tratamentos. O retorno de um integrante recuperado de enfermidade deve ser saudado pelo carinhoso aco-lhimento de seus companheiros; o bom nível do moral da tropa certamente ajudará a consolidar sua cura. Em combate ou situações de risco, os recompletamentos de-vem merecer atenção especial, seja para se adaptarem psicologicamente a um a-grupamento de combate em ação, seja para eles próprios não interferirem negati-vamente no estado moral da tropa (um assunto que abordarei no Livro 3 desta Trilogia – “A imitação do combate”).

A vulnerabilidade desse estado psicológico coletivo, todavia, deve merecer muita atenção. O moral elevado é capaz de descair, de forma desastrada, para uma pro-funda depressão e abulia geral ou, ao contrário, para uma situação de exaltação en-tusiástica em relação ao trabalho - como um salto olímpico para frente e para o alto. Sendo uma peça chave do processo, a omissão ou a ausência do comandante/líder, por qualquer motivo, pode ser catastrófica se situações depressivas ou fatos inespe-rados ocorrerem sem uma ação imediata para compensá-los ou anular seus efeitos sobre o agrupamento (onde estava o líder do grupo de atletas brasileiros – o nosso

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estimado “head coach” - quando ocorreram fatos desagregadores na madrugada de 12 de julho, horas antes da grande final Brasil/França no Campeonato Mundial de Futebol de 1998?). A instituição militar trata essa possibilidade como um fato normal em combate, por baixa, e, por esse motivo, institucionaliza uma providência dentro de suas organizações operacionais, como um valor a ser preservado: nnoo ccoommbbaattee nniinngguuéémm ppooddee sseerr iinnssuubbssttiittuuíívveell ee oo ssuubbssttiittuuttoo ddeevvee eessttaarr sseemmpprree ddeeffiinniiddoo ee pprreeppaarraa--ddoo ppaarraa aa ssuubbssttiittuuiiççããoo

152. O substituto de um comandante de pelotão de fuzileiros está definido na organi-

zação dessa fração em uma escala funcional decrescente. A partir daí, as substitui-ções são feitas por um critério de graduações e antiguidade, ininterruptamente. A cada baixa ou afastamento do serviço, alguém se sente claramente compelido à substituição imediata; antes dessa ocorrência o substituto deve se sentir potencial-mente capaz, permanecendo atento à dinâmica do comando para chamar a si, sem solução de continuidade, todas as responsabilidades do comandante/líder em exer-cício.

O colapso do moral no pelotão de nossa historinha deveu-se, justamente, à desa-tenção a esse valor e de providências para mantê-lo vivo e institucionalizado. O sol-da/aluno José Sardão não sentiu essa responsabilidade como um reflexo imediato à baixa do sargento comandante. Os integrantes do pelotão, com a omissão do substi-tuto e afastados do seu comandante efetivo – um segundo tenente que trabalhava na arbitragem do exercício -, sentiram-se acéfalos e perderam o sentido de ação coletiva por não se reconheceram ali, naquele momento, como integrantes de sua autêntica fração. Sentiam-se emprestados a um exercício do Curso de Cabos... Com um sargento monitor estranho no comando e graduados substituídos por soldados-alunos... De alguma forma foi transferido para o “inimigo” integrado por oficiais e graduados dos quadros efetivos, involuntariamente, a energia positiva da companhia de fuzileiros transformada em tropa “amiga” atacante. Por que?

Ao trocar o oficial comandante e os graduados do pelotão por monitores e solda-dos-alunos do curso, deixou-se de caracterizar aos homens que permaneceriam, com o necessário empenho e veemência, sua participação no exercício como inte-grantes da fração original de trabalho, com todas as responsabilidades funcionais que mantinham dentro da companhia e do regimento. Mesmo sem seus quadros levariam essa preocupação consigo. Não estariam emprestados a ninguém. A sus-tentação desse sentimento poderia redobrar a responsabilidade de cada um, man-tendo incólumes os outros sentimentos de mística militar e de espírito de corpo. A influência do comandante/líder afastado para outra atividade e dos valores do cará-ter coletivo consolidado, então, teriam prevalecido como base para a manutenção do moral da tropa. O exemplo da 4ª Companhia de Fuzileiros mostra a importância des-sa prevalência (apontado na página 30).

A vulnerabilidade do estado moral coletivo (moral da tropa) para ser deprimido ou a simplicidade demonstrada para sua recuperação, justificam a presença e a interfe-rência do comandante da companhia. O comandante da subunidade é um líder im-portante para um soldado fuzileiro. Com presença sempre próxima, sua influência

152 Esse valor, como tal, só tem sentido nas organizações operacionais, de combate; nas organiza-ções administrativas ou de direção geral, mesmo dentro das Forças Armadas, as substituições podem gerar interrupções perigosas pelo valor intrínseco dos responsáveis substituídos, muitas vezes, por isso, insubstituíveis enquanto tiverem capacidade ou não concluírem seus trabalhos ou seus estudos.

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para a consolidação do caráter da companhia é essencial. Todos os soldados, gra-duados e oficiais subalternos o conhecem bem. Suas ordens, na historinha, restabe-leceram a lembrança dos valores professados, da mística militar do pelotão e do es-pírito de corpo da companhia. A pertinência dessas ordens dentro de uma situação de colapso fez-lhes sentirem a supremacia do comandante/líder sobre a crise. De-preenderam que estavam dentro, novamente, de um exercício de combate e ficaram exaltados para dar-lhe prosseguimento.

Sem a existência de suportes psicológicos coletivos (conceito em seguida), torna-se muito difícil a recuperação do moral dentro de um agrupamento operacional ou a recomposição da vontade da força sob crise. Se desejarmos conter essas perdas bruscas ou criar uma base para poder recuperá-las, além de todas as considerações que tenho feito, será preciso atentar para alguns desses suportes no caráter coletivo capazes de impedir o desmoronamento em face de situações extremamente graves e trágicas no combate ou na atividade profissional. Uma espécie de arrimo seguro para momentos extremos ou uma muleta que possa compensar, muitas vezes, a má qualidade do líder. O suporte psicológico coletivo, neste ensaio, deve ser entendido como um complexo de influências psicológicas que se revela por certa unidade e similitude de motivação, capaz de sustentar a energia anímica positiva no âmbito de um agrupamento de combate (Livro 2 desta Trilogia – “O caráter dos Soldados” ).

O primeiro deles seria o culto da glória dentro do Exército Brasileiro, como um to-do e entre os Soldados do regimento da historinha, no âmbito mais restrito da com-panhia de fuzileiros e do pelotão do exercício. Devemos defini-lo como o esforço pa-ra a consolidação de um sentimento coletivo que se caracteriza pela consciência grupal de disposição para o sacrifício em nome dos valores do Exército Brasileiro como instituição permanente, confirmada por feitos heroicos concretizados por suas unidades operacionais ou por seus integrantes e orgulhosamente reconhecidos co-mo passíveis de serem repetidos no futuro. Esse sentimento, quando bem sedimen-tado e mantido inspirador e influente no dia a dia dos militares, será capaz de sus-tentar o moral individual e o coletivo. A lembrança de heróis ou do heroísmo de uni-dades militares é, portanto, fortalecedora.

O comandante do regimento da historinha a cultuaria nas formaturas diárias, nas solenidades específicas e, constantemente estaria lembrando a seus subordinados os exemplos edificantes a serem seguidos como uma tradição de hhoonnrraa mmiilliittaarr ((uumm aassssuunnttoo qquuee aabboorrddaarreeii nnooss LLiivvrrooss 22 ee 33 ddeessttaa TTrriillooggiiaa)). O comandante da companhia de fuzi-leiros procuraria aprofundar esse sentimento dentro de seus pelotões. Os coman-dantes de pelotão sempre estariam dispostos a coadjuvar nesse esforço. Os Solda-dos precisam sentir a glória de sua organização em todos os níveis, nas pequenas unidades, nas subunidades, nas unidades, nas grandes unidades e na força armada como um todo. Não prescindem disso. Devem alimentá-la com cantos e hinos, cul-tuá-la com a lembrança e o relato permanente dos feitos e dos heróis que os torna-ram reais, transferindo para todos a fruição de seus efeitos (vis-à-vis de combate para orientação?).

O espírito de corpo é mais um suporte importante do moral da tropa. Representa a consciência do valor grupal existente entre militares de agrupamentos de combate em todos os níveis, que é capaz de ligá-los à própria instituição militar, à sua unida-de operacional e aos agrupamentos institucionais subjacentes, constituindo-se em importante força aglutinante que sustenta a disciplina e o moral profissional.

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Outro suporte é a mística militar: um sentimento arraigado de devotamento ao pa-pel da instituição militar em geral, do Exército Brasileiro e de suas unidades opera-cionais de todos os níveis, cumprido e demonstrado orgulhosamente em todas as atividades profissionais. O efeito psicológico de tudo sobre cada integrante do agru-pamento é que acabem valorizando mais do que a própria sobrevivência a reputa-ção como homem e como Soldado entre seus companheiros. Essa consequência define a regra geral. As exceções a confirmam.

No emprego original e histórico da tropa paraquedista, por exemplo, logo após o salto e a aterragem dos homens e equipamentos, durante um período crítico de re-organização, as unidades perdiam seu enquadramento e cada combatente perma-necia, solitário, a procura de seu comandante/líder e de seus companheiros: um gra-ve momento, portanto, para o colapso do moral. Como a força paraquedista era lan-çada em pontos de grande importância no campo de batalha e a reação a esse lan-çamento passava a ser vital para o inimigo, o tempo de reorganização oferecia a vulnerabilidade desejada e era nesse instante, quando o paraquedista procurava seu companheiro para o combate, que o adversário o pressionava ao máximo. O que todos os exércitos do mundo fizeram? Envolveram seus paraquedistas em uma forte mística militar, um elevado espírito de corpo, que se refletia em seus vistosos uni-formes. Consideravam-se super-homens e sentiam um orgulho arrebatador por suas unidades paraquedistas e foram estimulados a isso. Eram compensações necessá-rias pela perda, mesmo que não permanente, do sentimento de vigor coletivo e coe-são que os comandantes e os companheiros conhecidos, presentes e próximos, são capazes de dar a um grupo continuamente enquadrado.

O culto da glória dentro de um agrupamento institucional militar oferece um sólido embasamento para o desenvolvimento da mística militar e do espírito de corpo que podem constituir, assim, um conjunto de suportes coletivos capaz de criar resistência em cada integrante contra as pressões desagregadoras na atividade profissional, sustentando o bom estado moral. É preciso que esses sentimentos prevaleçam para que os integrantes do agrupamento em situação de crise nunca abandonem a cons-ciência de que representam e integram. Corre-se, sempre, o risco de transformar esses suportes em poderosa e deformadora ferramenta do corporativismo. Por isso os conceitos precisam ser bem firmados e desenvolvidos com cuidado, sem desvios para esse mau apelo, com a prevalência do sentido de defesa da instituição sobre todos os demais interesses (um assunto ao qual retornarei no Livro 3 desta trilogia “A imitação do combate”).

A mística militar do pelotão de fuzileiros da historinha, que poderia manter flâmu-las e distintivos para concretizá-la, o espírito de corpo do regimento que buscaria apelidos históricos em seu passado guerreiro e da companhia, orgulhosa de seu conceito dentro do regimento, não foram suficientes para suplantar a crise vivida com o ferimento do comandante interino. Já vimos que os soldados, pela ausência de seus quadros permanentes, se sentiram fora daquele enquadramento. Empresta-dos, apenas. O acidente surpreendeu-os e a falta do líder os confundiu. Quase uma bobagem, mas que abriu a porta para o colapso entorpecente.

OO lleeiittoorr sseennttiiuu,, ddee ffaattoo,, aa nneecceessssiiddaaddee ddaa oorriieennttaaççããoo iinniicciiaall ee ddaa ppeerrmmaa--

nneennttee ssuuppeerrvviissããoo ddiirriiggiiddaa ppoorr aallggoo ccoommoo uumm ssiisstteemmaa ddee lliiddeerraannççaa mmiilliittaarr??

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Desenvolvimento e manutenção do bom estado moral da tropa

dentro de um agrupamento operacional da Força Terrestre (principais elementos do processo)

1 - O alicerce do moral coletivo (moral da tropa) é o caráter profissional militar bem for-

mado e consolidado. 2 – Medrança da confiança entre comandantes (entre os comandantes subordinados em relação

ao comandante superior, líderes interferentes, e entre os integrantes do agrupamento em relação ao líder de conta-to direto).

3 - Acompanhamento do moral individual de cada comandante/líder subordinado, ou ocupantes de cargos importantes e, no caso dos comandantes de frações, de cada integran-te do agrupamento.

4 - Atenção permanente com o estado de higidez do agrupamento, com a saúde física e psicológica de cada comandante/líder subordinado ou ocupantes de cargos importantes e, no caso dos comandantes de frações, de cada integrante do agrupamento.

5 - Desenvolvimento do sentimento de dignidade militar, como um acréscimo especial ao caráter profissional militar.

6 - Manutenção do bom humor dentro do agrupamento e do otimismo face à atividade militar e à vida, como uma emblemática atitude do caráter profissional militar.

7 – Busca do entusiasmo na atividade profissional e no relacionamento institucional do agrupamento, como uma boa reação, característica do caráter profissional militar.

8 - Culto da glória militar brasileira com o propósito de desenvolver, dentro do caráterprofissional militar, o sentimento de hhoonnrraa mmiilliittaarr em cada integrante e no agrupamento co-mo um todo.

9 - Desenvolvimento de mística militar dentro do agrupamento, inserindo-a na mística militar dos escalões operacionais superiores, como um sentimento característico do caráterprofissional militar.

10 - Desenvolvimento do espírito de corpo dentro de uma visão conveniente à instituição militar, outro sentimento característico do caráter profissional militar.

Quadro 5 – Os elementos indicados sugerem ações permanentes dos líderes in-terferentes, preocupações e providências para a neutralização de más tendências ou recomposição imediata de perda no moral coletivo (moral da tropa). Há uma sensibilidade especial a ser desenvolvida pelos líderes interferentes – não é um instinto, inato, de predestinados -, uns ajudando, orientando ou compensando a a-tividade de liderança dos outros (como um sistema de liderança militar). O bom moral da tropa de um agrupamento operacional militar é essencial para a sua ope-racionalidade, eficiência operacional ou poder de combate153 (Ilustração 16, página 129).

153 Examine a inter-relação dessas expressões no Anexo I, página 163.

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

MÍSTICA MILITAR

ESPÍRITO DE CORPO

CULTODA

GLÓRIA

Ilustração 18 - Os supor-tes psicológicos coletivos são muito importantes para sustentar o bom estado mo-ral da tropa em situações de crise.

-- AA vvoonnttaaddee ddaa ffoorrççaa ((vvoonnttaaddee ccoolleettiivvaa)):: CCoommoo tteerriiaa ssee ddeesseennvvoollvviiddoo

aa vvoonnttaaddee ddaa ffoorrççaa ppaarraa oo eexxeerrccíícciioo ddee aattaaqquuee ddeennttrroo ddoo ppeelloottããoo ddaa hhiiss--ttoorriinnhhaa?? PPoorr qquuee ooccoorrrreeuu aa ppeerrddaa ddeessssaa ddeetteerrmmiinnaaççããoo ppaarraa aa aaççããoo?? PPoorr qquuee ffooii rraappiiddaammeennttee rreeccuuppeerraaddaa??

OO lleeiittoorr mmiilliittaarr ddeevvee aatteennttaarr ppaarraa aa nneecceessssiiddaaddee ddee uummaa oorriieennttaaççããoo ssiissttêêmmiiccaa aabbrraannggeennttee..

A um homem disposto, com o moral elevado, basta dar-lhe boas razões e discutir

com correção fatores que o motivem e o teremos voltado para a ação, cheio de von-tade. Para que ocorra esse impulso, em princípio, será preciso utilizar com proprie-dade os elementos do caráter individual consolidado (reveja o significado disso na Ilustra-ção 2, página 24). A energia produzida será tanto mais significativa quanto mais den-sos e persuasores forem esses elementos envolvidos na discussão.

Quando a discussão de razões específicas e a criação de motivações convenien-tes é promovida dentro de um agrupamento de combate que ostente um bom estado moral, disporá a maioria de seus integrantes para a manifestação da vontade coleti-va (encontro de liderança militar, vis-à-vis de combate, Glossário de apoio, página 172). Essa dis-posição volitiva se manifestará como um simples impulso, um estado, ou será ex-pressa de forma mais concreta com gestos ou discussões correlatas e, até, a partici-pação resoluta em ações e o enfrentamento de dificuldades e riscos, quando neces-sário. O processo coletivo é semelhante ao individual na sua essência. Já examina-mos isso. A força da vontade grupal será proporcional à densidade e ao grau de consolidação dos elementos do caráter coletivo abarcados nas razões arguidas e nos fatores que poderão motivar seus integrantes (a Ilustração 11, página 114, ilustra esse processo). Nos agrupamentos de combate a vontade coletiva é o clímax do EC (“e-

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cho/charlie”). Dentro desses agrupamentos, como manifestação extroversa e ativa, uma sólida vontade da força será capaz de aperfeiçoar a ação.

A concitação para uma ação de esforço limitado, entretanto, merece algumas considerações. A vontade/ímpeto pode surgir vigorosa, espontânea ou estimulada, de fatos traumáticos, agressões ou motivos fortes que mexem com sentimentos con-solidados do caráter individual, gerando um rompante, um ímpeto de ação como manifestação de uma só pessoa, ou do caráter coletivo, gerando manifestações im-petuosas de grupos ou de multidões dependendo da abrangência e da intensidade da motivação. Muitas vezes, entretanto, um agrupamento de combate precisa mani-festar a vontade/ímpeto para arrostar um forte desafio que encerre perigo, grande esforço e desgaste físico dentro de nítida limitação no tempo e no espaço. A busca da vontade/ímpeto, dessa forma, é bastante apropriada para esses agrupamentos, antes de esforços específicos de combate. Há, todavia, sempre, a possibilidade, no curso do esforço que será expendido, de mudanças nas circunstâncias iniciais que concitaram o grupo a esse tipo de ação. O líder deve manter-se atento, acompa-nhando-a para sentir ou pressentir essas alterações.

Um agrupamento motivado para um esforço limitado tende a quebrantar seu es-tado moral com a consequente perda da vontade coletiva, caso ocorram incidentes não esperados e, quando ocorrerem, seus integrantes se sentirem desassistidos. Na ação militar de combate muitos percalços graves poderão dificultar, interromper ou, mesmo, impedir a consecução do empreendimento. Quanto mais impetuosa for a manifestação da vontade maiores serão as possibilidades de desvios, no caso de uma multidão154, ou de uma perda grave, no caso do esforço dramático de um gru-po.

Os “atacantes” da nossa historinha foram concitados a um esforço perfeitamente limitado no tempo e no espaço. O exercício seria encerrado com a “conquista” do objetivo e os participantes enfrentariam as dificuldades do terreno da zona de ação do pelotão. Durante essa progressão estariam atentos para os incidentes criados pela arbitragem do exercício e para a figuração do fogo de apoio e da resistência do “inimigo”. O comandante da companhia e seus comandantes de pelotões, ao promo-verem essa concitação, evocaram valores profissionais do caráter coletivo consoli-dado e aguçaram os sentimentos de dignidade e de hhhooonnnrrraaa mmmiii lll iii tttaaarrr

, a mística militar da companhia e dos pelotões e o espírito de corpo. Os líderes interferentes souberam colocar tudo sob a forma de um desafio.

Aquele sargento do Curso de Cabos, entretanto, não pôde prever a fatalidade do acidente com ferimento que o prostraria e anularia sua ação de comando e seu pa-pel de monitor dentro de um exercício de imitação de combate. Muito mais desavi-sado para esse traumático percalço esteve o soldado/aluno José Sardão, colocado na função de auxiliar do pelotão e substituto eventual do comandante ferido... O co-lapso do líder, então, como um fato insólito quebrou instantaneamente o moral do grupo. O soldado/aluno Sardão não percebeu que passara a viver a oportunidade operacional para a substituição, embora criada por um ferimento verdadeiro – mas que no seu subconsciente estava fora do faz de conta do exercício... O sangue au-têntico modificou a realidade do exercício e o desarvorou. Com isso a vontade da força debilitou-se e, sem ela, a ação foi paralisada. Esse colapso teve alguns ele-

154 Uma característica importante para frustrar ou direcionar, quando necessário, o ímpeto inconveni-ente das multidões nas ações de defesa pública.

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mentos que o facilitaram: o pelotão não estava conduzido por seus quadros efetivos e, além disso, o sargento-monitor e os soldados alunos do Curso de Cabos que os substituíram, não viviam na ambiência profissional, anterior ao exercício, que conso-lidara o caráter coletivo e o estado moral naquela fração, pelo trabalho dos quadros efetivos (mística militar do pelotão, culto da glória promovido por seu líder de contato direto e espírito de corpo do pelotão em relação às demais frações da subunidade e da própria subunidade).

Após o acidente, a intervenção do comandante da companhia voltou-se, imediata e fundamentalmente, para a recuperação do moral coletivo como forma de restaurar a vontade de prosseguir na ação. Sem esse cuidado seu esforço teria sido inócuo. Além disso, como vimos, foi preciso que o capitão demonstrasse claramente que agia acima da crise para dominá-la e, com isso, obtivesse o imediato reconhecimen-to de sua capacidade profissional e, por via de consequência, de comando. O moral do ferido precisou ser restaurado e o efeito disso foi benéfico para o grupo: o sar-gento prostrado e em choque transformara-se em fator de depressão do moral da tropa.

OO lleeiittoorr sseennttiiuu,, ddee ffaattoo,, aa nneecceessssiiddaaddee ddaa oorriieennttaaççããoo iinniicciiaall ee ddaa ppeerrmmaa--

nneennttee ssuuppeerrvviissããoo ddiirriiggiiddaa ppoorr aallggoo ccoommoo uumm ssiisstteemmaa ddee lliiddeerraannççaa mmiilliittaarr??

Desenvolvimento e manutenção da vontade da força dentro de um agru-

pamento operacional da Força Terrestre (principais elementos do processo)

1 – Obtenção do bom estado moral da tropa, como condição inicial indispensável ou, quando for o caso, recuperação imediata do moral da tropa abalado.

2 – Apresentação e discussão, no âmbito do agrupamento, de razões e argumentos moti-vadores e persuasores para a ação, relacionados com os elementos consolidados do caráterprofissional militar - valores/atitudes, comportamentos, sentimentos e reações. No caso de restabelecimento do moral da tropa deprimido por colapso, as razões e motivações devem ser apresentadas sob a forma de apelo155.

3 – Acompanhamento pari passu da ação empreendida, com a preocupação da antecipa-ção e interferência tempestiva sobre circunstâncias e fatores imprevistos, capazes de afetar o moral da tropa e quebrantar o vigor da vontade do agrupamento em atividade.

Quadro 6 - A obtenção da vontade da força de um agrupamento operacional e-

xige, como preocupação inicial, a busca ou a recuperação do moral da tropa (Ilus-tração 19, adiante).

155 A confiança no líder é fundamental – leia o apontamento da página 117.

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Ilustração 19 – A vontade da força re-presenta, sobretudo, a predisposição ou a exultação da ação.

EEssppíírriittoo ccoolleettiivvoo ee uunniivveerrssaalliizzaaççããoo ddooss ccoonncceeiittooss ee pprroocceeddiimmeennttooss Os grupos institucionais fortemente hierarquizados (um agrupamento de combate,

no caso examinado) são exemplos interessantes e didáticos para a compreensão do EC (“echo/charlie”) e generalização de conceitos e procedimentos para outros agru-pamentos humanos. Uma unidade operacional militar deve ser preparada para a-ções que exigem grande intensidade energética positiva. No curso desses cometi-mentos é normal a expectativa de que o grupo militar seja envolvido por circunstân-cias que submeterão seus integrantes a um alto risco de vida e destruição fazendo-os suportar pressões e constrangimentos extraordinários. Esses agrupamentos, as-sim, podem apresentar ao líder dificuldades extremas para o desenvolvimento do EC (“echo/charlie”) mas, em contrapartida, suas características (Quadro 3, página 128) faci-litarão a análise do processo e a percepção dos resultados pela perfeita distinção de seus elementos. Em relação a eles, a expressão poder de combate resume a poten-cialidade final de aprestamento para emprego como instrumento de guerra, onde a vontade instalada para enfrentar esses desmedidos desafios, na forma de determi-nação e coragem grupal manifestas, está fundamentada em sólido caráter profissio-nal militar e em moral elevado. O poder de combate pressupõe a existência de dois vetores para esse processo, um deles é a capacidade e o valor do comandante/líder para o exercício da liderança militar (**), o outro é a existência instalada de um espíri-to coletivo que resulta dele e ao qual já nos referiremos com denominação específi-ca.

Os fenômenos psicossociais interativos entre os homens agrupados para o com-bate - ou para essa possibilidade - ocorrem muito nitidamente, transformando-se em ensinamentos universais, mesmo quando procuramos fatos e opiniões em épocas remotas. Se em lugar da historinha do “comandante ferido” tivéssemos estudado algum incidente de rotina militar no treinamento de uma legião romana na África, com o empenho de um centurião – apenas um detalhe insignificante que não seria retido pela memória da história - ao preparar os rudes legionários de sua centúria para o assédio final a Cartago em 147 a. C., ou mais no fundo dos séculos, os pro-

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blemas de um anônimo sintagmatarca ao adestrar os guerreiros hoplitas de seu sin-tagma, integrando uma falange grega do século IV a. C., certamente teríamos assi-nalado os mesmos fenômenos e recolhido as mesmas observações sobre o sentido da liderança militar. Apenas com outros valores, razões diferentes e motivações que, por certo, não despertariam o entusiasmo e a vontade de combatentes modernos a serviço de sua pátria comum, um Estado nacional soberano tal como o distinguimos na Primeira Parte, capítulo 1, deste ensaio.

A percepção dessa problemática é, também, muito antiga. Atentemos, por exem-plo, para as observações de Xenofonte, o soldado e historiador grego do século IV a. C., no pequeno trecho do registro de um longo diálogo entre o rei persa Cambises e seu filho Ciro, durante uma marcha para a fronteira da Média, quando o preparava para sua primeira experiência guerreira156:

“- Lembras-te, meu filho, das outras coisas que nos parecia de grave importância não perder de vista? Ciro respondeu neste teor: - Muito bem me recordo. Um dia em que eu vos fui pedir dinheiro para pagar ao mestre, que dizia ter-me instruído na ciência do general, vós mo destes, e comigo tivestes este diálogo: - ‘Teu mestre deu-te alguma lição de economia do-méstica, visto que os soldados em um exército não têm menos necessida-de do que os domésticos em sua casa? ’ – Não. – ‘Deu-te alguma lição a-cerca do modo de conservar a saúde e o vigor dos soldados, pedindo isto a atenção do general tanto como a estratégia propriamente dita? ’ – Não – ‘Ensinou-te a maneira de adestrar os soldados nos exercícios bélicos?’ – Não – ‘Ensinou-te a infundir coragem às tropas, sendo a coragem o que constitui a principal diferença dos exércitos?’ – Não – ‘Fez-te algum discur-so a respeito do método de conter os soldados nos limites da obediência?’ – Não – ‘Então em que te instruiu teu mestre, para dizer que te ensinou a ciência de um general?’ – Ensinou-me a tática militar – ‘A tática é um pe-queno ramo da ciência de um general.’”

Xenofonte resumiu essas observações em outra incisiva asserção: “O exército que for para a luta com o espírito fortalecido, em geral não

será derrotado pelo inimigo.” O que melhor poderia sintetizar o EC (“echo/charlie”) do que, afinal, o esforço

para fortalecer o espírito coletivo de um agrupamento humano? Seja ele qual for, para qualquer empreendimento e em qualquer tempo? Essa referência ao espírito fortalecido dos exércitos feita, há 2.400 anos, pelo arguto soldado historiador grego representa para nós, na generalização do conceito, a síntese e o equilíbrio da ener-gia positiva que se instala nos agrupamentos humanos, pela inter-relação psicológi-ca do caráter coletivo, do moral coletivo e da vontade coletiva para qualquer empre-endimento. O estado do espírito coletivo (**) é o resultado da apreciação e avaliação desses elementos em determinado momento, nas circunstâncias que envolvem o agrupamento humano apreciado e avaliado.

Em relação especificamente às organizações de combate, entretanto, essas con-siderações resumem a tese básica deste ensaio e a Ilustração 12 (página 123) a re-presenta graficamente. Faltava, apenas, a esse fenômeno psicossocial militar um sugestivo nome que o designasse: espírito combatente.

A expressão escolhida, acredito, tem o dom de alentar o leitor para o que estou tratando neste ensaio – um método para identificar e obter esse espírito - e o que

156 “Ciropedia” – Xenofonte – W. M. Jackson Inc Editores

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abordo, como desdobramento natural, no Livro 2, “O caráter dos Soldados” – um estudo dos valores coletivos que devem sustentá-lo - e no Livro 3, “A imitação do combate” – uma análise das vicissitudes que deverão ser identificadas e anuladas para restaurá-lo. Essa é uma boa razão para o título geral que a trilogia recebeu. Há, como já assinalei, uma cronologia preponderante na sequência desses elementos e uma lógica evidente na importância relativa de cada um, o que pode orientar a atua-ção e as interferências dos comandantes/líderes na condução do processo que cria o estado de espírito combatente (**) no nível adequado a seus agrupamentos de combate.

AAggrruuppaammeennttooss iinnssttiittuucciioonnaaiiss nnããoo hhiieerraarrqquuiizzaaddooss –– eeexxxaaammmeee dddeee uuummmaaa cccrrriiissseee e outro exemplo. Entre o cerrado controle de agrupamentos militares operacionais, homogêneos,

enquadrados, sob a pressão do combate e o abrandamento do acompanhamento operativo de outros grupos sociais privados ou institucionais (Ilustração 01, página 18), na medida do desvanecimento da estrutura hierárquica e do rígido enquadramento dos integrantes, surgirão maiores dificuldades para a identificação dos fenômenos anímicos referentes a esse espírito coletivo, mas, uma vez identificados, a atuação dos líderes solidários deverá ser direcionada, de forma coerente, para o controle da mesma energia.

É interessante, assim, levar a análise para esse extremo oposto de uma organi-zação militar operacional. Minha intenção, entretanto, será de ampliá-la apenas para que os jovens leitores militares sedimentem as ideias reunidas e discutidas neste ensaio, percebendo-as válidas, também, fora de seu âmbito de trabalho. Universais, portanto.

Em 1983, a Fundação Nacional do Material Escolar (FENAME/MEC) foi transfor-

mada e suas atividades absorvidas pela nova Fundação de Assistência ao Estudan-te (FAE/MEC, hoje também extinta) com responsabilidades de apoio mais amplas, cuja sede era Brasília. A FENAME tinha sede no Rio (RJ), no bairro Maria da Graça (Mei-er), onde ocupava um labirinto de velhas edificações imbricadas, resultado de contí-nuas modificações de estrutura organizacional, adaptações, ampliações, modismos administrativos e reformas. Ostentava, desse passado, cicatrizes de antigas portas e janelas por todo o lado, vetustos compartimentos ruinosos e bolorentos convivendo com setores moderninhos recendendo a caliça ou a tinta fresca. A divisão de recur-sos humanos ocupava uns galpões sumários e úmidos sujeitos à invasão das repen-tinas e indisciplinadas enxurradas do verão carioca; suas portas, como uma incômo-da e perigosa armadilha para o visitante desavisado, eram bloqueadas por muretas que impediam a ousadia das águas, mas, certamente, calçariam e derrubariam quem entrasse sem olhar para o chão.

As disputas de prestígio e a emulação funcional entre servidores deram origem à característica principal na organização física de tudo aquilo: salas minúsculas pela subdivisão dos espaços e mobiliário amontoado. Uma fábrica de cadernos com ma-quinaria barulhenta acrescentava àquele ambiente um movimento de carga e des-carga pesada e muitos decibéis além da tolerância de um ouvido normal. Surpreen-dente jardim interno testemunhava certo espírito, um cuidado, um carinho de alguns

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tenazes servidores com a aprazibilidade de seu calorento local de trabalho. A grande amendoeira dominante nesse pequeno parque servia de dormitório para centenas de pardais que faziam, ao entardecer, enorme algazarra até encerrarem todas as disputas por bom ramo e seguro abrigo.

Conservando, inicialmente, sua organização a ex-FENAME foi incorporada à FAE como Diretoria de Apoio Didático e Pedagógico (DADP). Seus servidores imediata-mente se sentiram ameaçados pela possibilidade de serem transferidos para Brasí-lia. Esse fato gerou um quase pânico institucional junto com os boatos de enxuga-mento da máquina administrativa e de modernização. O processo, como sempre no serviço público, foi mal administrado. A ameaça mais direta estava sobre a fábrica de cadernos, considerada obsoleta, de operação cara e dispensável como uma res-ponsabilidade da União. O Diretor tinha quatorze setores subordinados diretamente, abrigando um quadro de pessoal muito heterogêneo. Na editoração de títulos, por exemplo, estavam lotadas pessoas qualificadas, de reconhecida competência técni-ca e grande prestígio como pedagogos, didatas, artistas gráficos, revisores, etc.; a gerência da fábrica de cadernos reunia um grupo de técnicos que impulsionava as diversas fases da preparação, embalagem e expedição de material, além dos operá-rios das máquinas organizados em três turnos. Todos os serviços da ex-FENAME eram orgânicos - a manutenção, a segurança, a faxina, cozinha e refeitório, etc.

A instituição era o fruto da autonomia de uma fundação, paternalista, empreguista e corporativa, com uma estrutura organizacional esdrúxula e excesso de servidores em todos os setores, amontoados para o trabalho no que muito se assemelhava a uma cabeça de porco. Apesar da ideia que representava e dos grandes serviços que já prestara à educação157. Os servidores, mesmo abatidos, tinham consciência dis-so.

Em março de 1985, após a posse do Presidente José Sarney com mudança de Ministro da Educação e ao aguardo de modificações na administração da FAE, fui nomeado Diretor da DADP. O drama dos servidores já durava quase dois anos. En-contrei-os humilhados, inseguros e desesperados com o afastamento de um velho protetor assumido e até então vitorioso sobre as pressões de cúpula para racionali-zar e modernizar aquela emaranhada estrutura organizacional - o Diretor anterior158. Permaneciam preocupados com o fantasma do desemprego ou com a grande atra-palhação familiar de uma transferência compulsória para Brasília. Esse estado de ânimo se estendia às famílias e retornava com eles, agravado, para o trabalho. Com o encerramento do ciclo militar, uma das primeiras providências daquele grupo aflito foi a eleição de um candidato radical de esquerda para a até então bem comportada organização corporativa. A virulência dessa representação aumentava dia a dia e agitava o caldeirão.

157 Grandes e importantes títulos editoriais escolares eram de propriedade da FENAME (dicionários, atlas de todo o tipo, livros didáticos de autores famosos, etc). 158 Durante esse período a FAE nomeou um Diretor para a DADP, viúvo, idoso professor, velho amigo paulista da Ministra da Educação e indicado por ela para um cargo de direção; os servidores mais categorizados daquela Diretoria, de imediato, promoveram o envolvimento afetivo do chefe para ob-ter, dessa forma, pelo menos, uma procrastinação do que parecia ser um destino inexorável. Foi tão intenso, caloroso e eficaz esse cerco que, afinal, a própria gerente executiva, abandonando sua hon-rada e conformada viuvez, deixou-se sucumbir pelos surpreendentes encantos do entusiasmado pro-fessor, também honrado e viúvo, casando com ele...

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O meu desafio era restaurar o espírito coletivo, aludido por Xenofonte, daquele grupo não hierarquizado, disperso, com atividades díspares, onde conviviam traba-lhadores braçais quase sem instrução, servidores com o primeiro grau e algum co-nhecimento técnico especializado, outros de nível médio lotados em setores de ati-vidades diferençadas e independentes, professores, mestres e doutores com qualifi-cações distintas e não necessariamente concorrentes. Todos qualificados, formados, diplomados em cursos, escolas, faculdades e universidades de todo o canto. Face àquele caleidoscópio humano em ebulição que se sentia assediado, me senti, um pouco, como Moscardó dentro do Alcázar de Toledo...

Havia, naquele momento de ventos liberais e democráticos, entretanto, uma ex-pectativa de novos critérios no processo que vinham vivendo.

Seria possível a identificação dos valores básicos do caráter profissional naquele agrupamento institucional de naturezas e origens tão diferentes? O moral coletivo, não havia dúvida, estava em nível baixíssimo dilacerado pela dúvida em relação ao destino da Diretoria, à vida de cada servidor e pela angústia que aquelas circunstân-cias geravam. Como despertar a vontade do grupo para suas tarefas? O que fazer?

O descuido no serviço público brasileiro com a problemática do EC (“e-

cho/charlie”) deformava responsabilidades e criava uma situação de quase abando-no; os fenômenos anímicos coletivos surgiam naturalmente, sempre no sentido ne-gativo, como erva daninha, sem cuidados diretores e orientadores. Esse era um tris-te fato, embora existisse muita erudição inócua sobre “recursos humanos”, “chefia”, “liderança”, sem que se institucionalizasse, de forma efetiva e prática, procedimen-tos, rotinas de ação e de fiscalização em relação à matéria.

A organização da ex-FENAME como, de resto, de qualquer estrutura não hierar-quizada, definia apenas níveis de chefia para a condução e supervisão das ativida-des, sem enquadramento. Não apresentava homogeneidade no pessoal que a inte-grava. Esse pessoal desempenhava atividades sem risco e sem a expectativa de pressões físicas desagregadoras. A interdependência dessas atividades ou seu en-trosamento eram relativos e fortuitos, sem corresponderem a uma regra dominante. Os níveis mais baixos de chefia, onde podia haver um acompanhamento direto das atividades, representavam postos chaves para o EC (“echo/charlie”). Todo o pessoal estava filiado à organização dos servidores e, na sua maioria, ao sindicato da clas-se. A dinâmica do processo administrativo teria de resultar do respeito e da obediên-cia ao dever de trabalho e de ordem, algo muito dependente de valores/atitudes pouco identificados e professados pelos servidores.

É razoável a pressuposição de que o servidor civil, ao ser integrado em determi-nado agrupamento institucional não hierarquizado, na época desses fatos, tivesse uma formação profissional ou fosse iniciá-la. Essa preparação para o ofício público seria o resultado de um esforço em três áreas fundamentais do processo ensino-aprendizagem: na área afetiva, com motivações, valores profissionais e éticos, atitu-des, comportamentos, sentimentos e reações e nas áreas cognitiva e psicomotora, com os conhecimentos e destrezas indispensáveis ao exercício das funções de seus cargos. Essas sempre foram atribuições irretorquíveis de qualquer escola, curso pro-fissional ou profissionalizante. Os agrupamentos institucionais não hierarquizados, entretanto, eram compostos, essencialmente, de cidadãos recrutados, selecionados, concursados e formados ou habilitados profissionalmente em cursos especializados

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fora de um sistema de ensino centralizado e dirigido para os interesses específicos do serviço público159. Ou, nas organizações fundacionais, simplesmente nomeados por decisão administrativa interna. O caráter profissional como alicerce do espírito coletivo, dessa forma, não tinha expressão ou era de extrema fragilidade.

“Servir”, apenas para fazer referência a um exemplo simbólico para a atividade pública em qualquer parte do mundo, não existia como um valor coletivo de sentido universal, preponderante, que impusesse renúncias, dedicação, responsabilidades como atitudes adequadas, comportamentos convenientes, sentimentos apropriados e reações consentâneas com a profissão exercida. Os líderes solidários eram des-preparados ou permaneciam desatentos aos problemas de liderança por falta de uma compulsão institucional que relacionasse essa preocupação com a eficácia de suas ações de chefia ou de direção. Os servidores que integravam esses agrupa-mentos instituídos por lei, com responsabilidades e obrigações definidas em toda a legislação que lhe decorria, não sentiam ou não percebiam os valores que sustenta-vam essa base de suas atividades profissionais. A convivência e os interesses co-muns mais fortes de sobrevivência, particularmente relacionados com as dificulda-des de vida, de salário ou, mesmo, do próprio trabalho, por um processo espontâneo – que acabava assumindo as características de uma espécie de vício ou compulsão coletiva -, enredava-os todos na obsessão por vantagens, ganhos pessoais, preocu-pação exagerada com a aposentadoria e atenção aos apelos corporativistas. O grande problema no serviço público brasileiro era, assim, justamente, a indefinição ou o pouco valor “energético” do caráter profissional entre seus servidores em ativi-dade.

A crise que examinamos na ex-FENAME, pelos elementos traumáticos adicionais – expectativa de transferência, possibilidade concreta de perda do emprego, abalo na convicção da importância do trabalho executado – lançou aquele grupo em pro-funda depressão coletiva e na feroz luta corporativa pela sobrevivência.

Três preocupações me ocorreram para criar, sem delongas, uma base mínima de apoio ao esforço de recuperação do vigor coletivo que teria de empreender:

-- Primeira: conquistar a confiança dos servidores em crise; Primeira: conquistar a confiança dos servidores em crise;-- Segunda: identificar e consolidar os valores profissionais mais importantes; Segunda: identificar e consolidar os profissionais mais importantes;valores-- Terceira: despertar e orientar os líderes de contato direto para cooperarem

no esforço de recuperação do espírito coletivo da Diretoria. e orientar os es de contato direto para coopeTerceira: despertar raremlíder

no esforço de recuperação do da Diretoriaespírito coletivo .

Dentro dessa intenção nomeei o representante da Associação dos Servidores pa-ra um cargo administrativo de importância para tê-lo – um líder natural - com respon-sabilidades dentro do processo que seria iniciado e determinei, para esse propósito, reuniões periódicas do que chamei o “grupo dos quatorze”, isto é, dos chefes diretos dos quatorze setores de trabalho da organização vigente (volte a examinar o exemplo apontado em destaque na página 126: o que seria, para o comandante do batalhão da Ilustração 14, “um vis-à-vis de combate”?). As reuniões eram bissemanais, na primeira hora de cada segunda-feira e quinta-feira, duravam cerca de cinquenta minutos e nelas eu tinha a consciência de que estava exposto à análise crítica de confiabilidade por parte dos chefes reunidos – procuravam por um impulso intuitivo de defesa o desacerto do que diria com o que faria. Nesses encontros me viam e ouviam discutir os valores profis-sionais aproveitando exemplos práticos recolhidos dentro do próprio agrupamento

159 Mesmo com a Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) de então, esse papel não era cumprido.

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ou identificados dentro da legislação do serviço público, do Ministério da Educação e do próprio órgão; criava responsabilidades e, aos poucos, fui incorporando aquele grupo ao processo de recuperação do caráter profissional. As reuniões passaram a ser o fulcro de minha ação de liderança.

O líder deve se expor com determinação quando, dentro de circunstâncias críticas e prazos exíguos, desejar criar entre seus liderados o sentimento coletivo de confi-ança em relação a si. Só o oferecimento de elementos e argumentos de análise para o julgamento crítico coletivo de meu comportamento e de minhas ações seria capaz de abreviar a instalação, dentro do agrupamento, do essencial consenso de “chefe confiável”. Um líder outorgado não seria capaz de reverter uma crise sem essa con-fiabilidade. Esse empenho, no entanto, não teria sentido como trama ardilosa, pois qualquer chefe não confiável, implacavelmente, é identificado pela análise e desa-creditado pelo julgamento coletivo de seu caráter. Sob crise é impossível para um chefe, líder outorgado, escamotear de seu pessoal o próprio caráter.

A recuperação do moral coletivo teve início, dessa forma, com a mudança da dis-posição dos “quatorze” que foi ocorrendo concomitantemente à definição e discus-são de valores/atitudes e, naturalmente, com a confiabilidade que fui conquistando. A atuação desigual daqueles quatorze chefes – homens e mulheres - junto a seus liderados obrigava-me a uma ação complementar de presença junto ao pessoal en-volvido para homogeneizar os resultados que, também, ampliava a minha exposição ao julgamento crítico de confiabilidade. Esses setores de atividades que correspon-diam aos quatorze chefes eram, além de tudo, muito diferençados pelo nível de es-colaridade e de cultura de seus integrantes. A consciência individual do próprio va-lor, como ser humano e como profissional, deveria ser restaurada entre os servido-res abatidos, quaisquer que fossem suas qualificações, responsabilidades ou tare-fas.

Percebi que dispunha naquele transe de, apenas, dois suportes psicológicos cole-tivos para ajudar nessa restauração da disposição individual e grupal: primeiro, o forte sentimento de sobrevivência que havia sido despertado naquelas circunstân-cias e que poderia se transformar em orgulho pela organização ameaçada a quem se devia um passado de bons serviços prestados à educação; segundo, o desvelo pelo jardim interno e a possibilidade de transferir para esse sentimento de uns, uma fixação geral no que seria a materialização desse orgulho, do espírito, da alma da Diretoria. Uma manobra aparentemente complexa, mas que foi muito bem sucedida, com resultados imediatos e compensatórios. O jardim, com seus canteiros, folha-gens, amendoeira acolhedora da passarada, suas sombras aprazíveis que abranda-vam os calorões cariocas e bancos acolhedores para o descanso ou meditação após o almoço no refeitório160, passou a ser o símbolo de permanência do espírito da an-tiga FENAME. Estimulei essa transferência. O esporte praticado dentro de uma qua-dra coberta também foi restabelecido com competições internas. Identifiquei os ser-vidores mais otimistas, mais estimados por todos, mais dedicados ao trabalho – a maioria mulheres - e os estimulei pessoalmente à recuperarem o moral coletivo co-mo uma medida concreta de sobrevivência. Acompanhei, por outro lado, aquelas figuras deletérias e infensas aos apelos e argumentos de recuperação do espírito

160 Outro setor ameaçado pela tendência de terceirização era a cozinha com suas gordas e simpáti-cas cozinheiras de cardápios familiares e conversas de comadre.

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coletivo, anulando ou limitando os efeitos de seu pessimismo ou de intenção política para manter o statu quo crítico.

Com os primeiros resultados dessa ação, procurei desenvolver a vontade coletiva para o simples trabalho de cada setor e para o rendimento e qualidade desse traba-lho – cadernos fabricados, títulos didáticos em processo de editoração, controles administrativos de pessoal, de finanças e de material, preparação de licitações para compra de material didático, empenho na limpeza e manutenção das edificações e de suas áreas de trabalho, fiscalização de toda a ordem e, certamente, os cuidados com o jardim/símbolo. Com grande esforço físico, estive presente e atuante em to-dos os setores de trabalho e pessoalmente “visitante itinerante inopinado” nos mais recônditos desvãos existentes nas edificações, com seus respectivos responsáveis. Afastei, com isso, a ideia de uma administração desinteressada e de um órgão rele-gado ao abandono ou simplesmente condenado à morte institucional.

Em três meses de envolvimento com essas preocupações, o espírito coletivo es-tava razoavelmente saneado e o pessoal da Diretoria mais preparado para mudan-ças e melhor disposto às modernidades161.

A criação do espírito coletivo de competição é mais um pequeno exemplo da uni-

versalidade do EC (“echo/charlie”) como preocupação dos líderes e orientação para quaisquer agrupamentos humanos. O apronto de uma equipe de esporte coletivo (trabalho de treinamento) dirigido pelo seu líder outorgado - claramente encarregado da tarefa, sem indefinições ou duplicidade de responsáveis, como treinador ou técni-co de futebol, de basquete, de voleibol, etc. (“head coach” 162) -, deve compreender, em princípio, três esforços concorrentes e, tanto quanto possível, concomitantes:

11 -- AA pprreeppaarraaççããoo ffííssiiccaa iinnddiivviidduuaall para obter e manter o vigor ideal de cada atleta dentro do calendário definido para a competição (homogeneidade de performance atlética e resistibilidade física de todos para toda a disputa);

22 -- aa pprreeppaarraaççããoo ttééccnniiccoo--ttááttiiccaa (aprimoramento técnico individual e adestramento tático da equipe);

33 -- oo ddeesseennvvoollvviimmeennttoo ee aa ccoonnssoolliiddaaççããoo ddoo eessppíírriittoo ccoolleettiivvoo ddee ccoommppeettiiççãã

oo, como uma preocupação básica inicial e permanente durante o período de preparação e de todo o calendário de jogos.

A formação do caráter desportivo de equipe para a competição (caráter coletivo) deve envolver-se com valores/atitudes específicos e suas manifestações concretas: sentimento grupal de confiança no treinador/líder, comportamento disciplinado em relação ao treinador/líder e suas determinações, atitude coletiva de cooperação e de receptividade no tempo de preparação, reações e comportamentos decorrentes do assentimento coletivo aos valores desportivos adequados e aos valores envolvidos na competição, comportamento coletivo de dedicação aos trabalhos da equipe, sen-timento coletivo de responsabilidade com o grupo e seu sucesso, sentimento coleti-vo de responsabilidade para com a torcida, sentimento coletivo de orgulho do grupo sobrepujando vaidade, egoísmo e ambição pessoal, sentimentos de lealdade e de

161 Esse foi o tempo de minha permanência como Diretor da DADP/FAE/MEC. 162 A expressão “head coach” está indicada para esclarecer o que no Brasil se complica com indefini-ções de responsabilidades, duplicidade de encargos e diluição de funções entre comissões técnicas, psicólogos auxiliares e quejandos, provavelmente pelo despreparo dos treinadores de equipes des-portivas para o EC, em particular no futebol de seleção.

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camaradagem entre os atletas, atitude coletiva de determinação para a vitória (de fixação no gol, por exemplo, no caso particular do futebol, para que se evite a antijo-go), reação coletiva que evidencie o “fair-play” imprescindível a uma competição, comportamento coletivo adequado face à imprensa, reação coletiva de tolerância em face de críticas internas e externas, reação coletiva equilibrada face às pressões e tensões, etc.163.

O moral desportivo de equipe para a competição (moral coletivo), como uma pre-caução essencial e permanente, deve ser mantido elevado durante a fase de trei-namento e o treinador/líder atentará para sua manutenção após cada disputa quais-quer que sejam os resultados obtidos. Durante as disputas, a energia de uma torcida favorável presente e vibrante é um grande fator de fortalecimento desse moral do time em campo (leia uma referência a essa energia no apontamento da página 15). A mística da equipe ou do clube, a densidade da tradição esportiva existente, as glórias preté-ritas, o espírito de equipe, são suportes coletivos importantes que devem ser traba-lhados e desenvolvidos como respaldo do moral coletivo. Dentro desse quadro, para cada jogo programado, a vontade desportiva de equipe (vontade coletiva) deve ser estimulada como vontade/ímpeto, com razões e motivações capazes de criar a forte determinação de disputa e de busca da vitória. Ao término da fase de apronto, antes do início da competição, o time deverá apresentar-se com todos os seus atletas, efe-tivos e reservas, fisicamente capacitados, com adequado padrão técnico individual, flexibilidade tática de conjunto e com forte espírito coletivo para a competição (cará-ter desportivo de equipe, moral desportivo de equipe e vontade desportiva de equi-pe).

Esse espírito dominante deve ser acompanhado com rigor, mantido ou recupe-rado com oportunidade como uma espécie de alma sempre perigosamente morredi-ça do grupo. Sem ele, mesmo que o treinador/líder disponha de um elenco que in-clua jogadores de nomeada, estrelas e celebridades, a expectativa de bom desem-penho, com certeza, ficará frustrada. Se houver equilíbrio técnico entre os contendo-res, o time assim, falto de espírito, frágil e vulnerável, restará pelo caminho sem na-da demonstrar a não ser sua própria fragilidade e vulnerabilidade...164

163 Todo o esforço obedecendo a uma dinâmica semelhante àquela indicada no esquema da Ilustra-ção 16, página 129. 164 A Copa do Mundo de futebol, de quatro em quatro anos, é uma competição curta onde, caracteris-ticamente, se põe em relevo o embate do espírito coletivo desenvolvido pelas equipes participantes. Há, hoje, uma imensa expectativa criada em torno de determinados times pela formidável mídia inter-nacional, com o envolvimento emocional das torcidas nacionais, com a desmedida pressão de patro-cinadores, de contratos de promoção e de vultosos interesses econômicos em jogo. Muitas vezes tudo isso incide sobre jogadores jovens, talentosos, mas psicologicamente despreparados ou mal preparados para suportar o assédio ininterrupto e sufocante, o que pode provocar o colapso individual ou, como reação em cadeia, de todo o grupo. Esses fatos, pela dimensão atual de suas causas e efeitos, são novos e devem merecer cuidados especiais no processo de preparação. Entre nós, a CBF precisa reavaliar a organização de sua “comissão técnica” e o programa de preparação da sele-ção “canarinho”, vítima de incompetência em relação à percepção, acompanhamento e controle dos fenômenos anímicos coletivos. O ocorrido com a equipe brasileira no dia 12 de julho de 1998, apre-sentando-se apática e incapaz de reação para uma final de campeonato mundial, deve ser analisado como uma decorrência dessa incapacidade de perceber e de anular as pressões desagregadoras que se desencadeiam sobre os jogadores – um agrupamento humano como todos os que temos estuda-do, mais próximo, justamente pelos fatores indicados, do que seria um “grupo psicológico” (**).

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

Qualquer tipo de emulação entre agrupamentos humanos que se equiva-

lham é, sobremodo, uumm ccoonnffrroonnttoo ddee eessppíírriittooss ccoolleettiivvooss – dos valores em dis-cussão ou em conflito e da disposição e vontade de cada agrupamento (cará-ter, moral e vontade coletivos).

AAss qquuaalliiffiiccaaççõõeess ffííssiiccaass ee hhaabbiilliiddaaddeess ttééccnniiccaass ee ppssiiccoommoottoorraass ddooss SSoollddaaddooss.. Pretendo concluir. As teses até aqui apresentadas e os exemplos que as ilustraram, portanto,

abordam processos psicossociais fundamentais e, para o propósito específico deste ensaio, tratam do envolvimento afetivo dos comandantes/líderes e de

seus comandados/liderados nesses processos. O que desejo que se perceba nos exemplos que examinei em suas linhas mais

importantes – o militar (“exame de um caso”, a partir da página 127) e o civil (“exame de uma crise”, a partir da página 145) - envolvendo um agrupamento de guerra em seu treina-mento e um agrupamento institucional não hierarquizado sob ameaça de extinção e em determinada época, é o valimento absoluto do seguimento representado pela Ilustração 12 (página 123: interprete-a como uma síntese das teses formuladas). Em ambos os casos as ações e preocupações dos líderes (um comandante/líder profissional da Arma de infantaria com 27 anos e um diretor de organização administrativa civil com 57 anos) foram orientadas para a sequência natural que a importância dos fenôme-nos impõe ao que chamo de EC (**) – “echo/charlie”. A sensibilidade e a prática da liderança, entretanto, permitirão o trabalho concomitante nas três fontes de energia coletiva para o agrupamento considerado (caráter coletivo, moral coletivo e vontade coletiva), desde que os líderes não percam o sentimento de prioridade e de assis-tência aos objetos de sua liderança – a singular liderança militar (*) no caso das Ar-mas. Com certeza, para tal propósito, não precisam ser predestinados ou possuir qualidades excepcionais. Basta-lhes a devoção a que aludi no início deste ensaio e reafirmarei conclusivamente mais adiante (apontamentos nas páginas 11 e 158).

Sabemos, porém, que sem técnicas individuais e coletivas, para uma força arma-da, de nada valeriam as considerações e preocupações que venho registrando. Mesmo porque é justamente o nível de excelência executora dessas técnicas que provocará as sequelas positivas no processo psicossocial dos agrupamentos de combate como atitudes, reações e sentimentos coletivos. Há, por essa razão, um alerta específico aos comandantes/líderes de forças de combate que merece algu-mas considerações (uma matéria que tratarei com mais afinco e profundidade no Livro 3 desta trilogia, “A imitação do combate” mas que se relaciona com três distintivos militares que serão abor-dados no Livro 2, “O caráter dos Soldados”: a solidez, a confiabilidade e a indissociabilidade como três importantes características para uma força de guerra).

Acompanhamos – como um fato notável e uma boa sugestão motivadora -, uma extraordinária compulsão dos atletas do mundo inteiro para desafiar e exceder os limites humanos e buscar a perfeição técnica. Essa é uma tônica que se observa

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hoje nas atividades do atletismo e dos esportes coletivos - no basquete, no voleibol e no futsal (precisão e velocidade), entre outros -, e nas recreações físicas de aven-tura e de risco. Algo que o circo já conhecia e exigia de seus artistas, prestidigitado-res e saltimbancos. O futebol de campo, é bom dizê-lo, se apresenta como uma ex-ceção. Não sentiu ainda a provocação. Os aficionados (a galera aqui e a “hinchada” acolá), além da mídia mundial especializada, os primeiros dependentes das emo-ções que o esporte gera e os demais, aproveitando as multidões envolvidas e as audiências espetaculares que o fenômeno garante, encantados com o incrível volu-me de dinheiro e de empregos que os sustenta, permanecem tolerantes com o des-curamento dessa preocupação com novos padrões técnicos individuais na prepara-ção de equipes e seleções futebolísticas. Em consequência somos obrigados a atu-rar craques – assim considerados e badalados nas manchetes -, aqui e alhures, im-precisos nos passes, aplicando mal a chuteira na bola para um chute, errando seus dribles, cabeceando mal, dominando mal seu instrumento de trabalho, chutando de forma canhestra uma bola parada em tiro direto ou indireto, além de goleiros “cer-cando frangos”... Tudo isso ocorre malgrado o categórico exemplo dos novos espor-tes radicais onde, com esforços extremos e incríveis habilidades (sobre patins, com bicicletas, motocicletas, “skates”, etc.), uma meninada disposta mostra como se de-safia a gravidade e se adquire excelência técnica no mais alto grau para a execução de complexas manobras - no ar e no átimo de um salto – que, para um espectador não iniciado, só podem ser devidamente apreciadas se, mais tarde, quando exibidas na televisão, reapresentarem em câmara lenta os prodígios e peripécias realizadas. Coerente com essa nova atitude – sem seguir o exemplo acomodado e desatualiza-do do futebol de campo - as forças armadas do planeta devem envolver seus com-batentes e suas organizações de guerra nessa busca de novos limites e de perfei-ção na execução de suas técnicas e táticas individuais e coletivas. Até porque, no caso de agrupamentos de combate há sempre embutida uma questão de vida e de morte, de sobrevivência e de colapso, de vitória ou de derrota.

Esse é outro desafio dos tempos atuais que merece a meditação e a determina-ção dos profissionais das Armas.

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“““EEEiiiaaa,,, aaavvvaaannnttteee!!!””” OOO dddiiigggnnnooo mmmeeennneeeiiiooo dddaaa lllâââmmmpppaaadddaaa.........

(Barroso na Batalha de Riachuelo – 1865 – Victor Meirelles)

““EEiiaa,, aavvaannttee!!”” éé uummaa eexxpprreessssããoo iinntteerrjjeettiivvaa ddee ccoonncciittaa--

ççããoo,, ddee eessttíímmuulloo àà vvoonnttaaddee,, ddee oottiimmiissmmoo eemm rreellaaççããoo aaoo eess--ffoorrççoo qquuee,, ddee aallgguummaa ffoorrmmaa,, iimmaaggiinnaa--ssee qquuee eesstteejjaa sseennddoo eemmpprreeeennddiiddoo.. SSiimmbboolliizzaa oo iinncciittaammeennttoo ddee uumm aaggrruuppaammeennttoo hhuummaannoo àà aaççããoo ((aaggrruuppaammeennttoo ddee ccoommbbaattee)).. OO bbrraaddoo –– eessttáá pprróóxxiimmaa ddee uumm bbrraaddoo –– eessttáá ddiirriiggiiddoo,, nnããoo aa uumm iinnddiivvíídduuoo,, mmaass ààqquueellaa eennttiiddaaddee ppssiiccoollóóggiiccaa ccoolleettiivvaa qquuee ddeevvee sseerr ee--nneerrggiizzaaddaa ppoossiittiivvaammeennttee ppeelloo llííddeerr ((ccoommaannddaannttee//llííddeerr))..

PPaarraa ooss SSoollddaaddooss,, ppoorrttaannttoo,, iiddeennttiiffiiccaa--ssee nneellaa oo vviiggoorr aanníímmiiccoo ccoolleettiivvoo ddee vvaalloorreess aasssseennttiiddooss ((ccaarráátteerr pprrooffiissssiioo--nnaall mmiilliittaarr)),, ddee mmoorraall eelleevvaaddoo ((mmoorraall ddaa ttrrooppaa)) ee ddee vvoonnttaaddee ddeetteerrmmiinnaaddaa ((vvoonnttaaddee ddaa ffoorrççaa)).. ÉÉ uummaa llooccuuççããoo ddaa lliinngguuaa--ggeemm lliitteerráárriiaa ppooééttiiccaa ee ééppiiccaa ppaarraa aa ddeessccrriiççããoo ddee ffaattooss hhee--rrooiiccooss ee lleettrraass ddee hhiinnooss..

BBuussqquueeii--aa ppaarraa ttííttuulloo ee ssóó aa eexxpplliiccoo aaqquuii,, aappóóss tteerrmmooss eexxaammiinnaaddoo aass tteesseess ddeessttee eennssaaiioo ddeeddiiccaaddoo aa jjoovveennss mmiilliittaa--rreess pprrooffiissssiioonnaaiiss bbrraassiilleeiirrooss..

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CCaappííttuulloo 66:: SSSEEEIIISSS DDDEEESSSTTTAAAQQQUUUEEESSS PPPAAARRRAAA AAA MMMEEEDDDIIITTTAAAÇÇÇÃÃÃOOO DDDOOO JJJOOOVVVEEEMMM CCCOOOMMMAAANNNDDDAAANNNTTTEEE///LLLÍÍÍDDDEEERRR

EEEnnnfffoooqqquuueee dddooo ppprrrooobbbllleeemmmaaa dddeee lll iiidddeeerrraaannnçççaaa ... O OO eeessspppííírrriiitttooo cccooommmbbbaaattteeennnttteee ... IIInnnttteee---rrreeesssssseeesss eeesssssseeennnccciiiaaaiiisss cccooommmuuunnnsss eee vvvaaalllooorrreeesss sssooobbbrrreeellleeevvvaaannnttteeesss... CCCooonnnfffiiiaaannnçççaaa nnnooo lllííídddeeerrr ... AAAssssssiiissstttêêênnnccciiiaaa aaaooo ppprrroooccceeessssssooo... ZZZeeelllooo pppeeelllooo eeessspppííírrriiitttooo nnnaaaccciiiooonnnaaalll...

OO eennffooqquuee Dentro da dinâmica de um agrupamento humano, onde o líder é uma decorrência

necessária (leia na página 111 no apontamento da página 112), o fenômeno fundamental é o surgimento do vigor anímico dentro de um processo psicológico interativo que se desenvolve com lógica e “timing” específicos. Para tal propósito cria-se o que cha-mamos com expressões figuradas, a “energia radiante” do caráter coletivo, a “ener-gia potencial” do moral coletivo e a “energia cinética” da vontade coletiva. Aí está, portanto, o objeto da problemática de liderança, sua clara justificativa e o enfoque adequado para todo o esforço do líder.

A questão se resume, simplesmente, na identificação dessa energia anímica dis-ponível nos agrupamentos humanos e na capacidade de dominá-la. Sempre com a preocupação de uma avaliação coletiva o líder deve iniciar procedimentos para esti-mulá-la, dirigi-la, controlá-la, mantê-la, recuperá-la, acompanhá-la, protegê-la para que não se deforme ou se perca por desatenção ou desconhecimento. A preocupa-ção com o caráter profissional militar, em primeiro lugar, dará valores ao agrupamen-to operacional porque, como em um ser virtual plural, o fará sentir, comportar-se e reagir de uma mesma forma. Criar e proteger o caráter coletivo de seus homens, por isso, deve ser a preocupação dominante do comandante/líder militar. Sem esse fun-damento anímico não existirá o agrupamento humano tal como o compreendemos neste ensaio - algo consistente e socialmente significativo, muito além de um singelo grupo de combatentes, se tratamos de militares de uma unidade operacional, mes-mo que estejam bem organizados, bem equipados e com um chefe competente.

Uma vez gerado o caráter grupal, será preciso dar vivacidade, ânimo e entusias-mo ao agrupamento para as razões sociais de sua existência como força de comba-te e, quando necessário, as motivações para agir como tal. Esse empenho deve ser conduzido compreendendo-o como uma entidade psicológica coletiva sensível às pressões depressoras, mas, também, aos apelos motivadores.

- O líder de combate (**) deve compreender sua unidade operacional como

um combatente virtual plural, com caráter, moral e vontade próprios, para tra-tá-la e conduzi-la assim.

OO eessppíírriittoo ccoommbbaatteennttee No capítulo anterior fizemos uma alusão à referência de Xenofonte ao que o sol-

dado historiador grego chamou de espírito fortalecido dos exércitos. Pudemos indu-

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zir dali, na conveniência deste ensaio, uma conceituação genérica para espírito cole-tivo (apontamento da página 145).

No caso específico de uma força militar terrestre, os valores/atitudes do caráter profissional militar, professados e influentes, com realce para os valores fundamen-tais apontados no próximo destaque , são a base autêntica e incontestável do seu espírito coletivo ou, como melhor expressão que conserva a referência ao grande objeto de sua existência, do seu espírito combatente; o estado do moral da tropa, no momento da avaliação, indica a potencialidade disponível para definir o vigor desse espírito; a vontade da força165, instalada para a ação, completa o quadro psicológico coletivo para a expressá-lo como estado do espírito combatente da organização o-peracional considerada (examine o ensaio complementar “A fascinante gestão de um espírito”, procure o link neste site).

O processo administrativo que institui e mantém uma unidade militar operacional poderá lhe dar um corpo sadio: boa organização, modernos equipamentos, arma-mento eficaz, táticas confiáveis, pessoal instruído com as habilidades e os conheci-mentos necessários, além de bem adestrados para emprego coletivo. A alma de um agrupamento de combate – seu espírito combatente -, entretanto, frágil e perigosa-mente finita, só poderá ser criada e mantida fulgurante pelo comandante/líder. Sem uma alma forte terá pouco valor como um instrumento de guerra.

- O espírito combatente representa a alma de um agrupamento de comba-

te e pressupõe a inter-relação de valores professados (caráter profissional mi-litar), disposição para a atividade profissional (moral da tropa) e vontade da força para a ação, tudo como efeito da ação de liderança militar.

Essa é uma verdade universal relacionada ao “espírito coletivo” de qualquer agru-

pamento humano; em uma unidade militar operacional, todavia, a existência e o vi-gor dessa alma poderá ser a causa de fracassos humilhantes, de desastres, de per-das ou de sucessos e glória. O assunto é de tal importância que retornarei a ele nos dois textos que completarão a trilogia aqui iniciada (“O caráter dos Soldados” e “A imitação do combate”).

OOss vvaalloorreess eemmbblleemmááttiiccooss O aparecimento ou a instituição de interesses essenciais comuns entre as pesso-

as de um grupo cria compulsão à convivência e um incitamento à aglutinação e à união que dá início, entre elas, ao processo psicológico interativo capaz de consoli-dar o agrupamento humano (Ilustração 1, página 18). Esse processo define a linha mestra da problemática de liderança. O líder, já o dissemos, é uma necessidade dessa dinâmica porque conduz o agrupamento para a preservação de seus interes-ses, podendo surgir dela ou ser a ela incorporado. Percebemos no curso deste en-saio, também, que o início dessa interação psicológica coletiva – paulatina (uma na-ção), súbita (uma multidão), administrativa (um pelotão de fuzileiros) - tanto nos gru-pos espontâneos como nos instituídos, é justamente a existência e a identificação de interesses essenciais comuns; sem a força deles os grupos não se congregam com 165 É, como já vimos, a “vontade coletiva” instalada em determinada unidade militar operacional.

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importância social e os agrupamentos humanos já formados perdem a condição de existência. O esvaecimento desses interesses, por conflito ou mudanças nos valo-res/atitudes, desalenta a união e os condena ao esfacelo. Uma nação entra em de-clínio, uma multidão se desintegra, um time de futebol perde a determinação e o empenho, um ppeelloottããoo ddee ffuuzziilleeiirrooss ddeeiixxaa ddee sseerr uumm iinnssttrruummeennttoo ccoonnffiiáávveell ddee gguueerrrraa.

Os interesses essenciais comuns expressam uma relação de reciprocidade entre pessoas e o agrupamento humano de que são integrantes, correspondendo à impo-sição de preservar o que passa a ser para todos a necessária ou conveniente exis-tência dessa congregação. A consciência coletiva de interesses essenciais comuns provoca uma atitude de defesa e um sentimento de zelo. Somente valores interiori-zados manifestam-se na forma de interesses, permanentes ou circunstanciais, que dominam a existência de uma pessoa, como sentimento, como atitude intransigente, consistente e insistente, ou como uma reação para defendê-los ou buscá-los. Se essa situação se repetir com um grupo de pessoas que, de algum modo, percebe-ram essa identidade coletiva, estará corporificado ou terá início a corporificação de um agrupamento humano. O interesse provoca, portanto, a identificação e o assen-timento de valores coletivos. Interesses essenciais geram valores essenciais para a sobrevivência do grupo ou da atividade profissional.

- Todo o processo psicológico interativo dentro de um agrupamento de

combate está, assim, dependente da identificação e da plena consciência gru-pal desses valores essenciais. Identificá-los e instalá-los como emblemas na consciência coletiva deve ser uma preocupação contínua e perseverante do líder para formar a base do caráter profissional militar de seu agrupamento166.

Os valores essenciais que respaldam e inspiram o juramento do soldado, por exemplo – uma imposição administrativa que decorre de interesses essenciais para uma força armada, - emprestam importância sublimada e sentido peculiar à Pátria, à hhoonnrraa mmiilliittaarr (**), ao ânimo de sacrifício (**), à disciplina militar, à camaradagem militar (**), ao culto da glória militar (**), à mística militar (**), entre outros. Devem ser, por is-so, emblemas do caráter do soldado – o espírito militar (**) - e do caráter profissional militar (**).

AA ccoonnffiiaabbiilliiddaaddee ddoo ccoommaannddaannttee//llííddeerr Recordo uma assertiva importante deste ensaio: a confiança em um líder militar é

o sentimento coletivo que se estabelece com a constatação clara e evidente de seu caráter, de sua competência profissional e de seu legítimo interesse pela problemá-tica que relaciona seus liderados ao agrupamento de combate que integram (o apon-tamento da página 121 definiu essa confiança). O líder integrado (Ilustração 10, página 111 e Anexo I, página 162), em princípio, detém a confiança de seus liderados e quando a

166 Assunto que está desenvolvido no Livro 2 da trilogia “O espírito combatente”, “O caráter dos Sol-dados”; o desvirtuamento desses valores e suas consequências para a perda do espírito combatente, serão abordados no Livro 3 de mesma trilogia, “A imitação do combate”.

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perde ou se inicia um curso de perda, na medida dessa debilitação (maior e mais fácil nos líderes impostos), põe-se em declínio sua capacidade de liderança.

- O líder outorgado no bojo da nomeação do comandante militar, por ou-

tro lado, entrando no processo psicológico interativo grupal sem ter dele parti-cipado - a unidade, em princípio, preexiste ao ato administrativo que o nomeou –, deve desenvolver e consolidar esse sentimento de confiança entre seus li-derados, diligentemente, como uma preocupação dominante, básica e impres-cindível de sua liderança militar.

O tempo de instalação desse sentimento coletivo, portanto, deve ser abreviado.

Quando há crise no agrupamento humano em questão, com maiores razões, a con-fiança deve ser o fulcro da ação do novo líder. Um comandante/líder só conseguirá compensar a premência de tempo face à gravidade de uma crise com o sentimento coletivo de confiança na sua liderança. Homens em perigo ou sob tensão tendem a aceitar rapidamente o líder confiável. Assentirão aos seus valores sem muito discuti-los, estarão tocados por suas razões e motivações e dispostos à ação que indicar. Por essa razão soldados no combate precisam de um bom comandante/líder.

A consolidação do sentimento coletivo de confiança no comandante/líder está na dependência direta da intensidade e da ostensibilidade com que se expõe à análise crítica de seus liderados. Nos níveis de contato direto, embora a exibição física seja obrigatória e contínua – em grau mais elevado nos “grupos psicológicos” -, é preciso que o líder desnude sua alma sem acanhamento. Só o conhecimento de seu estado de consciência e o acompanhamento de suas ações fornecerão os elementos de análise e de julgamento de seu comportamento. Líderes confiáveis, quaisquer que sejam seus temperamentos, não podem ser figuras enigmáticas, imperscrutáveis. Os “silêncios” do coronel Bramble (referência à nota de rodapé 23, página 32) eram interpreta-dos e compreendidos pelos seus subordinados que conheciam sua alma e aceita-vam seu temperamento. Nos níveis mais elevados de lideranças interferentes, a confiança deve se propagar desse sentimento entre líderes subordinados e pessoal chave. Mesmo assim a exposição precisa ser exercitada nas oportunidades que se apresentarem ou forem criadas para esse propósito, sem falsidades ou manobras suspeitas167.

AA ddeevvooççããoo

O processo de liderança militar exige dedicação continuada, atenção permanente e sensibilidade aguçada do comandante/líder. Sem hiatos ou momentos de desaten-ção. Essa devoção característica e orientada pelas teses deste ensaio, obsessiva, será capaz de ungir o comandante transmutando-o em líder de combate.

“Minha tropa!”, “Meus homens!”, “Minha companhia!”, “Meu batalhão!”, “Minha brigada!”, “Minha divisão!”, são expressões, embora aparentemente possessivas e 167 As rápidas modificações no moral do Oitavo Exército no norte da África, em agosto de 1942, exigi-ram um esforço especial do Marechal Montgomery, recém empossado, para se expor à análise crítica de seus chefes subordinados como condição inicial para que se desenvolvesse o sentimento de con-fiança na nova orientação de comando, sem o que não conseguiria transformar, como líder, o espírito combatente que encontrou (apontamento na página 80).

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presunçosas, que bem refletem essa atitude do líder em relação ao combatente vir-tual plural com alma, disposição e vontade definidas que, de certa forma, criou e transformou em instrumento de combate. Sem esse sentimento especial de fruição, não há líder. Um bom comandante/líder de pelotão de fuzileiros – essa célula fun-damental de qualquer força militar terrestre, autêntico “grupo psicológico” – dirá com absoluta propriedade e domínio de seu universo de liderança: “Meus homens sen-tem...”; “Meus homens reagirão...”; “Meus homens, com certeza, estarão com dispo-sição...”; “Meus homens querem...” ou, então, dirigindo-se ao agrupamento que lide-ra, “O pelotão não pode...”, “O pelotão não deve...”, “É preciso que o pelotão faça...”.

No relacionamento psicológico interativo entre líder e liderados, entretanto, não pode haver terceira pessoa: - “Eu” e meu colocutor, o “agrupamento”, a “unidade operacional” de meu comando; “nós”, “eu” e o “agrupamento”, a “unidade operacio-nal”, os “combatentes” de quem sou comandante/líder (embora a ação de comando exija o acionamento direto de comandantes subordinados, supervisão do desempe-nho individual, fiscalização, coordenação, controle, etc.). Um quadro que resume a tese principal deste ensaio: para a obtenção e manutenção do espírito combatente, a unidade operacional deve ser sentida como uma entidade psicológica grupal para que o líder possa agir como seu superego (**) – qualificação figurada que o distingue para o agrupamento humano que lidera, como uma instância do que seria a perso-nalidade coletiva indutora desse vigor anímico.

– Se o processo de liderança for capaz de presumir a unidade operacional

como um combatente virtual plural, o líder de combate, pela devoção a essa entidade psicológica coletiva, deve se comportar como seu superego.

AA ppeerreenniiddaaddee ddaa ppááttrriiaa ee oo eessppíírriittoo nnaacciioonnaall Os líderes brasileiros devem inquietar-se com o quadro de perplexidades do mun-

do atual. Muitas transformações estão em curso pela pressão arrasadora do proces-so de globalização das economias nacionais; há, como decorrência disso, mudanças no relacionamento político entre os Estados nacionais soberanos e, de suma impor-tância, na ética desse relacionamento pelo domínio crescente, sem controles à vista, da economia especulativa que despreza o sentido social da riqueza no plano inter-nacional168.

Afirmamos, também, que o ideal de “pátria eterna”, como o amor imorredouro dos apaixonados, deve ser reconquistado a cada dificuldade surgida e a cada desafio identificado (apontamento na página 36).

- Somente o vigor anímico de um povo – o seu espírito nacional, sua alma

-, pela solidez do caráter nacional, pela forte e determinada disposição do mo-

168 A crise mundial iniciada com o colapso das chamadas hipotecas de risco – “sub prime” – é o resul-tado desse destempero. No relacionamento entre nações existem sérios problemas e os abordare-mos nos dois outros Livros desta trilogia: “O caráter dos Soldados” e “A imitação do combate”.

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ral nacional e pelo firme direcionamento da vontade nacional para a perenida-de da pátria, será capaz de preservá-la intata para o futuro169.

Brasília, janeiro de 2010 170

E-mail: [email protected] [email protected]

► Examine o ensaio complementar “AAA fffaaasssccciiinnnaaannnttteee gggeeessstttãããooo dddeee uuummm eeessspppííírrr iii tttooo” (ppprrrooocccuuurrreee ooo LLLiiinnnkkk nnneeesssttteee sssiii ttteee)

169 A pppeeerrreeennniiidddaaadddeee dddaaa pppááátttrrr iiiaaa, como um dogma sociopolítico e fundamento do monopólio da violência organizada atribuída aos Estados soberanos, será discutida no Livro 3 da trilogia “O espírito comba-tente” (“A imitação do combate”). 170 A data de conclusão deste ensaio para sua publicação pela BIBLIEX foi junho de 1999.

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

LLiissttaaggeemm ddaass iilluussttrraaççõõeess

Ilustração 01 (“Agrupamentos humanos”).........................................................................018 Ilustração 02 (“Importância dos valores e atitudes”).........................................................024 Ilustração 03 (“Classificação dos valores”)........................................................................025 Ilustração 04 (“Visão gráfica da formação de uma nacionalidade”)..................................050 Ilustração 05 (“Formação do caráter nacional”).................................................................060 Ilustração 06 (“Moral individual”)........................................................................................073 Ilustração 07 (“Depressão do moral nacional brasileiro”)..................................................087 Ilustração 08 (“Moral coletivo e vontade coletiva”)............................................................090 Ilustração 09 (“Roosevelt em Natal”).................................................................................103 Ilustração 10 (“Classificação dos líderes”).........................................................................111 Ilustração 11 (“Formação da vontade coletiva”)................................................................114 Ilustração 12 (“Segmento natural do echo/charlie”)..........................................................123 Ilustração 13 (“Líderes interferentes”)...............................................................................125 Ilustração 14 (“Sistema de liderança militar e linhagem de líderes interferentes”)...........126 Ilustração 15 (“Líderes solidários”)....................................................................................127 Ilustração 16 (“Liderança militar e ação de comando”)......................................................129 Ilustração 17 (“Dinâmica da formação e consolidação do caráter coletivo”).....................133 Ilustração 18 (“Suportes psicológicos coletivos”)..............................................................140 Ilustração 19 (“Vontade da tropa”)....................................................................................143

LLiissttaaggeemm ddooss qquuaaddrrooss

Quadro 01 (“Formação e consolidação do caráter nacional I”)................................049 Quadro 02 (“Formação e consolidação do caráter nacional II”)...............................054 Quadro 03 (“Características dos agrupamentos operacionais de uma força terrestre”).........................................................................128 Quadro 04 (“Consolidação do caráter profissional militar”)......................................133 Quadro 05 (“Desenvolvimento e manutenção do estado moral da tropa”)..............139 Quadro 06 (“Desenvolvimento e manutenção da vontade da força”)......................142

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AAANNNEEEXXXOOO

GGLLOOSSSSÁÁRRIIOO DDEE AAPPOOIIOO:: DDEEFFIINNIIÇÇÕÕEESS EE CCOONNCCEEIITTOOSS

EEMMPPRREEGGAADDOOSS NNEESSTTEE EESSTTUUDDOO

O texto básico deste ensaio faz uso de diver-

sas expressões cujos conceitos são importantes para o acompanhamento da tese que desenvolve. Cento e doze delas - as principais -, estão aqui reunidas, em ordem alfabética, sendo que os ter-mos destacados com itálico no interior de cada verbete formam, eles também, verbete à parte. Espero assim facilitar a compreensão do sentido global que quis dar à matéria em exame.

Este glossário serve, fundamentalmente, o tex-to deste livro. Os demais textos da trilogia pos-suem glossários que, da mesma forma e em princípio, servem os respectivos textos. O glos-sário do Livro 3 (“A imitação do combate”), me parece compreensível, é o mais genérico e mais completo em relação à trilogia propriamente dita.

“““RRReeeccceeebbbooo ooo sssaaabbbrrreee dddeee CCCaaaxxxiiiaaasss,,, cccooommmooo ooo ppprrróóóppprrriiiooo sssííímmmbbbooolllooo dddaaa HHHooonnnrrraaa MMMiiillliiitttaaarrr”””

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

AAççããoo ddee ccoommaannddoo é o conjunto de atividades executivas do comandante militar de um

agrupamento de combate que abarca suas responsabilidades desde a preparação até o emprego dessa força (o chefe, o cabo-de-guerra), prevalecentes com ânimo adequado sob quaisquer circunstâncias (o líder), com respaldo na autoridade militar de sua investidura, na dinamização da hierarquia militar que o enquadra e no pressuposto do bom estado discipli-nar (disciplina militar).

Agrupamento de combate (ou agrupamento de guerra) é uma expressão que designa qualquer unidade constituída, dentro das forças armadas, destinada ao combate terrestre direto (por extensão, naval ou aéreo).

Agrupamento de guerra (procure agrupamento de combate) Agrupamento humano (agrupamento social ou, neste texto, simplesmente agrupamen-

to) é a conjugação de seres humanos, espontânea ou determinada por conveniência exter-na, estimulada pelo instinto gregário dos homens, despertada por fatores e circunstâncias que geram interesses essenciais comuns e promovem um processo de interação psicológica entre seus integrantes, dando-lhes consistência social.

Agrupamento humano espontâneo é o agrupamento humano formado pela congrega-ção natural de seres humanos estimulados pelo instinto gregário e por outros fatores e cir-cunstâncias que, de alguma forma, revelam afinidades, atividades e interesses essenciais comuns.

Agrupamento humano espontâneo, efêmero é o agrupamento humano espontâneo que tem existência previsivelmente limitada dentro do processo social em que surgiu.

Agrupamento humano espontâneo, permanente é o agrupamento humano espontâ-neo que tem existência contínua e não permite que se vislumbre sua extinção no processo social em que está envolvido.

Agrupamento humano institucional é o agrupamento humano instituído dentro das es-truturas administrativas do serviço público.

Agrupamento humano instituído é o agrupamento humano que surge como decorrên-cia de estruturas administrativas ou de atividades profissionais especializadas e tem sua existência definida por interesses essenciais comuns criados, regulada por responsabilida-des e tarefas tornadas igualmente comuns.

Agrupamento humano privado é o agrupamento humano instituído em estruturas ad-ministrativas fora do serviço público.

Ânimo de sacrifício (um dos treze ddiissttiinnttiivvooss mmiilliittaarreess que estudarei no Livro 2 da Trilo-gia “O espírito combatente”) é a forte disposição vocacional dos Soldados que fundamenta o caráter coletivo dos agrupamentos de combate, e os dispõe a renúncias voluntárias e a pri-vações extremas para o cumprimento do dever militar.

Atitudes (1) Como traços psicológicos de uma pessoa, são disposições individuais previ-síveis, favoráveis ou desfavoráveis em face de objetos sociais ou situações sociais de confli-to; (2) Como traços psicológicos grupais, caracterizam disposições coletivas previsíveis em um agrupamento humano, favoráveis ou desfavoráveis em face de objetos sociais ou situa-ções sociais de conflito.

Autoridade é a prerrogativa natural ou o direito outorgado de um chefe ou líder (ou de seus delegados) para praticar atos e conduzir-se perante seus chefiados ou liderados se-gundo os interesses do grupo que chefia ou do agrupamento humano que lidera. Essa prer-rogativa ou esse direito só serão efetivos e ativos na dinâmica de um grupo ou de agrupa-mento humano se estiverem definidos dentro de uma adequada relação com o poder. A au-toridade, assim, é imanente à sociabilidade humana e prevalecentemente coerciva. O res-peito à autoridade é o efeito de sua relação com o poder, cujo resultado prático dentro de

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um conjunto social é a obediência (a autoridade de um Estado é exercitada pelo seu chefe, o chefe-de-Estado).171

Autoridade militar (um dos treze ddiissttiinnttiivvooss mmiilliittaarreess que estudarei no Livro 2 da Trilogia “O espírito combatente”) é a autoridade legalmente outorgada a um Soldado em decorrência de sua posição dentro da hierarquia militar e de suas responsabilidades como comandante militar, chefe e líder.

Cabo-de-guerra é uma expressão com acepção específica nesta Trilogia172, particular-mente nos escalões de batalha, que se refere ao exercício de uma das funções do coman-dante militar que o volta para o emprego de seu agrupamento como força de combate criada por efetivos armados, equipados, qualificados e adestrados para tal, dentro dos escalões de comando em que se insere (procure líder de combate).

Camaradagem militar (uumm ddooss ttrreezzee ddiissttiinnttiivvooss mmiilliittaarreess qquuee eessttuuddaarreeii nnoo LLiivvrroo 22 ddaa TTrrii--llooggiiaa ““OO eessppíírriittoo ccoommbbaatteennttee

””) é o suporte psicológico coletivo que se cria entre Soldados pelo relacionamento solidário decorrente das atividades profissionais que exigem sacrifício para todos, risco comum e esforço integrado.

Camarada de Armas é uma expressão de referência genérica a militar pertencente a uma força singular em relação aos restantes militares da mesma força, como indivíduos ou coletividade, independente de posicionamento hierárquico, ou seja, os superiores, os subor-dinados e os companheiros de idêntico patamar hierárquico.

Capacitação operacional é a situação de uma força de combate definida pelo seu valor como agrupamento de guerra, desde o nível básico de operacionalidade até a existência efetiva do poder de combate.

Caráter coletivo é definido pelo conjunto de valores aceitos e professados pela maioria dos integrantes de um agrupamento humano, base para a conformação de atitudes, senti-mentos, comportamentos e reações comuns, capazes de conferir a esse agrupamento como um todo, um peculiar perfil psicológico.

Caráter familiar é o caráter coletivo desenvolvido no âmbito de uma família, em princí-pio, na interação com os grupos de influição que a envolvem diretamente e com o caráter regional e com o caráter nacional.

Caráter individual é o conjunto de valores aceitos e professados por uma pessoa que serve de base para o desenvolvimento de suas atitudes, seus sentimentos, seus comporta-mentos e suas reações, com todos os procedimentos que lhes decorrem, capaz de conferir a essa pessoa um perfil psicológico próprio.

171 Segundo Roger Mucchielli, “Autoridade é uma qualidade da estrutura do grupo, o que quer dizer que o próprio fato de um grupo se estruturar, se organizar, estabelecer seus objetivos, passar a existir como grupo, faz nascer a autoridade, sendo esta um aspecto inevitável e normal da própria estrutu-ra.” e acrescenta “Isto não quer dizer que a autoridade se personalize necessariamente, não quer dizer que alguém se apodere da autoridade e se torne chefe... quer dizer,simplesmente, e antes de tudo, que desde que se inicia o processo de estruturação espontânea de um grupo, aparece uma função coletiva que é um poder de regular e controlar as condutas.” “Psicologia da relação de autori-dade”, “4 – Definição de autoridade”, página 35 – Livraria Martins Fontes Editora LTDA/1979. Voltarei à análise do fenômeno da autoridade no Ensaio Complementar “A fascinante gestão de um espírito”, procure o link neste site. 172 Examine o Ensaio Complementar “A fascinante gestão de um espírito”, procure o link nes-te site.

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“EIA, AVANTE!” a energia dos agrupamentos humanos (o método)

Caráter nacional (1) é o perfil psicológico do povo de uma nação como Estado nacional soberano que surge, espontâneo, no espírito dos cidadãos conciliados em torno do desejo de união e em decorrência de outras circunstâncias envolvedoras, criando forte consenso dos valores que daí decorrem, base para assemelhar, entre eles, atitudes, sentimentos, comportamentos e reações comuns; (2) é o caráter coletivo do povo de uma nação como Estado nacional soberano.

Caráter profissional militar (enfoque principal do Livro 2 da trilogia “O espírito comba-tente”) é o caráter coletivo dos Soldados conformado pelo conjunto de valores que susten-tam os distintivos militares, ou seja, o ânimo de sacrifício como uma forte disposição voca-cional; a coesão militar da qual decorrem o espírito de corpo, a camaradagem militar, o culto da glória militar e a mística militar; a sustentação das três características da força militar de combate: solidez, confiabilidade e indissociabilidade ativadas pelos fatores autoridade, hie-rarquia e disciplina militares (um suporte que permite o desenvolvimento da autoconfiança coletiva); finalmente, como uma moldura de tudo, o envolvimento de cada Soldado com o sentimento individual de honra (procure hhoonnrraa mmiilliittaarr).

Coesão militar (uumm ddooss ttrreezzee ddiissttiinnttiivvooss mmiilliittaarreess qquuee eessttuuddaarreeii nnoo LLiivvrroo 22 ddaa TTrriillooggiiaa ““OO eessppíírriittoo ccoommbbaatteennttee””), como uma forte e primitiva sugestão aglutinante – impulso de conjun-ção -, é a situação de harmonia que se cria no âmbito das organizações militares de comba-te decorrente da aceitação, por parte de seus integrantes, dos propósitos e das responsabi-lidades que representam, com os riscos, sacrifícios e servidões que lhes correspondem, gerando uma vigorosa integração social entre os Soldados.

Coletividade (procure coletivo) Coletivo (coletividade) é uma referência à maioria dos membros de um agrupamento

humano. Comandante/líder é uma expressão empregada neste ensaio, a partir da página 124, no

contexto em que estiver inserida, como uma espécie de reforço didático para acentuar a imprescindibilidade dessa qualificação para o comandante militar de uma força de combate – condutor e consolidador do processo anímico coletivo no universo de seu comando.

Comandante/líder interferente (procure líder interferente). Comandante militar é o militar mais antigo, mais graduado ou de mais alto posto de um

agrupamento de combate, como unidade constituída, ao qual foi outorgada legal ou adminis-trativamente, a autoridade militar para empregar seu agrupamento como força de combate e conduzi-lo, nas melhores condições físicas e psicológicas, à vitória militar ou a superação da crise em que está envolvido e cujas responsabilidades como líder de combate abrangem, ainda, para esses propósitos, a preparação técnica individual de seus combatentes, o ades-tramento tático da força sob seu comando, a consolidação dos valores coletivos do caráter profissional militar, a manutenção em alto nível do moral coletivo de sua tropa e da forte vontade coletiva da força lidera para as ações que empreende.

Comportamentos (1) como traços psicológicos de uma pessoa, são atividades individu-ais que determinam procedimentos repetitivos nessa pessoa; (2) como traços psicológicos grupais, caracterizam atividades com padrões comuns que geram procedimentos coletivos repetitivos em um agrupamento humano.

Confiabilidade da força de combate (uumm ddooss ttrreezzee ddiissttiinnttiivvooss mmiilliittaarreess qquuee eessttuuddaarreeii nnoo LLiivvrroo 22 ddaa TTrriillooggiiaa ““OO eessppíírriittoo ccoommbbaatteennttee””) é uma das três características que essa força detém, capaz de gerar um sentimento coletivo positivo entre seus integrantes - ou em rela-ção a ela -, referente à qualidade de sua doutrina de emprego e ao nível de capacitação operacional para empregá-la (procure solidez e indissociabilidade).

Consciência coletiva ativa é a percepção dos valores que conformam o caráter coletivo de um agrupamento humano, instalada no âmbito desse agrupamento como uma faculdade grupal e que, por estímulo de liderança, passa a exercer supervisão constrangedora - pela vigilância, pela permanência e pela continuidade -, sobre eventuais desvios desses valores

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em atitudes incorretas, comportamentos inadequados, sentimentos impróprios ou reações indesejáveis por parte de cada um de seus integrantes.

Culto da glória militar (uumm ddooss ttrreezzee ddiissttiinnttiivvooss mmiilliittaarreess qquuee eessttuuddaarreeii nnoo LLiivvrroo 22 ddaa TTrrii--llooggiiaa ““OO eessppíírriittoo ccoommbbaatteennttee””) é o suporte psicológico coletivo criado pelo sentimento coleti-vo de emulação com o passado militar de uma força armada, que deriva da consciência grupal para o sacrifício em nome dos valores da organização militar, confirmada por feitos heroicos praticados pelas suas Armas ou, individualmente, por seus integrantes, orgulhosa-mente reconhecidos como passíveis de serem repetidos.

Disciplina militar (uumm ddooss ttrreezzee ddiissttiinnttiivvooss mmiilliittaarreess qquuee eessttuuddaarreeii nnoo LLiivvrroo 22 ddaa TTrriillooggiiaa ““OO eessppíírriittoo ccoommbbaatteennttee””) é a situação rigorosa de ordem e obediência voluntária e inteligente que se estabelece entre militares, como decorrência da necessidade de eficácia em ações que exigem emprego enquadrado, estão sujeitas a pressões desagregadoras, a risco de vida e promovem a destruição e a violência organizada em nome do Estado.

Distintivos militares (matéria tratada no Livro 2 da Trilogia “O espírito combatente”) são destaques para treze fenômenos que identificam a base do caráter profissional militar das organizações de combate e revelam os valores profissionais que os sustentam: (1) o ânimo de sacrifício como uma forte disposição vocacional; (2) a coesão militar da qual decorrem o (3) espírito de corpo, a (4) camaradagem militar, o (5) culto da glória militar e a (6) mística militar; a sustentação das três características da força militar de combate: (7) solidez, (8) confiabilidade e (9) indissociabilidade ativadas pelos fatores (10) autoridade, (11) hierarquia e (12) disciplina militares (criando e desenvolvendo a autoconfiança coletiva); finalmente, como uma moldura de tudo, a sensibilidade de cada Soldado para o sentimento de (13) hhoonn--rraa mmiilliittaarr.

EC (“echo/charlie”, método de criação da energia coletiva do espírito combatente), esta sigla, somente para simplificar a referência, define a ordenação metodológica de todos os processos psicossociais conduzidos pelo comandante/líder e pelos seus líderes interferen-tes nos agrupamentos de combate para consolidar os valores do caráter profissional militar, desenvolver e manter em bom estado moral da tropa, estimular e propiciar a formação da forte vontade da força para a ação conveniente e oportuna.

“echo-charlie”, identificação das letras da sigla EC (procure-a neste glossário) pelo alfa-beto padrão internacional em uso no Exército Brasileiro (Organização de Aviação Civil Interna-cional e Organização do Tratado do Atlântico Norte).

Enquadramento é a situação administrativa permanente e característica dos agrupa-mentos hierarquizados que facilita o controle cerrado e a proximidade física dos integrantes como regra dominante, o que estimula o processo psicológico interativo que desenvolve o caráter profissional, mantém o moral coletivo e fortalece a vontade do grupo.

Entidade psicológica coletiva (como referência a um agrupamento humano) define a visão do agrupamento como um ser humano plural, capaz de desenvolver um espírito coleti-vo com o equilíbrio das qualidades coletivas de caráter, de moral e de vontade, dando ao líder clara orientação para ação correta e tempestiva na condução do EC (“echo/charlie”).

Espírito coletivo representa a síntese e o equilíbrio da energia que se instala nos agru-pamentos humanos, pela inter-relação psicológica do caráter coletivo, do moral coletivo e da vontade coletiva para qualquer empreendimento (veja espírito combatente).

Espírito combatente é o espírito coletivo de uma organização militar de combate que representa a síntese e o equilíbrio da energia que se instala nessas organizações, pela in-ter-relação psicológica do caráter profissional militar, do moral da tropa e da vontade da for-ça.

Espírito de corpo (uumm ddooss ttrreezzee ddiissttiinnttiivvooss mmiilliittaarreess qquuee eessttuuddaarreeii nnoo LLiivvrroo 22 ddaa TTrriillooggiiaa ““OO eessppíírriittoo ccoommbbaatteennttee””), como um suporte psicológico coletivo, é a disposição especial que sustenta uma pequena fração, uma subunidade, uma unidade, uma grande unidade, um grande comando ou toda uma força singular (a força terrestre, a força naval ou a força aé-

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rea) como agrupamentos de guerra, revelando uma consciência coletiva entre seus comba-tentes, que os liga ao próprio corpo em qualquer escalão considerado, ao seu passado e presente institucionais, à crença otimista arraigada em seu futuro e, a despeito de tudo, em sua permanência como força de combate capaz e respeitada.

Espírito militar revela o espírito profissional de cada militar, visto e avaliado fora do con-texto coletivo, e decorre de virtudes militares professadas e incorporadas ao seu caráter individual, o que influencia o relacionamento ético – ética militar – entre camaradas de Ar-mas e entre cada um deles e a própria Instituição singular que integram.

Espírito nacional é o espírito coletivo do povo de uma nação como Estado nacional so-berano.

Estado do espírito coletivo (nacional, regional, profissional, combatente, etc.) define uma apreciação e avaliação do espírito coletivo em determinado momento, nas circunstân-cias que envolvem o agrupamento humano apreciado e avaliado.

Estado do espírito combatente define uma apreciação e avaliação do espírito comba-tente em determinado momento, nas circunstâncias que envolvem a organização militar o-peracional apreciada e avaliada.

Estado do moral (estado do moral individual, coletivo, nacional, regional, profissional, etc.) define uma apreciação e avaliação do nível do moral individual ou do moral coletivo em determinado momento, nas circunstâncias que envolvem a pessoa ou o agrupamento hu-mano apreciado e avaliado.

Estado nacional soberano é a nação politicamente organizada e reconhecida univer-salmente como grande instituição humana permanente.

Ética militar, no âmbito das relações com o conhecimento científico (ciências humanas aplicadas ao agrupamento militar), é a parte da sociologia militar que investiga a definição e o rigor dos princípios que motivam, distorcem, disciplinam ou orientam o comportamento dos Soldados considerados individualmente no relacionamento entre camaradas de Armas e entre cada um deles e – em visão abrangente -, a grande organização de combate que inte-gram.

Fator histórico-primitivo (fator HP) (de influência na formação do caráter nacional) é o elemento de influência histórica na formação do caráter nacional que, ao gerar traços coleti-vos profundos e de grande estabilidade, cria forte sugestão para a consolidação de um a-grupamento humano no início do processo de sua aglutinação e prossegue ao longo do tempo, sem interrupção, com essa marcante influência.

Fator histórico-decorrente (fator HD) (de influência na formação do caráter nacional) é o elemento de influência histórica na formação do caráter nacional que gera traços coletivos fortes capazes de modificar as influências primitivas e com estabilidade tanto mais resistente ao tempo quanto maior seu período de atuação.

Fator histórico-circunstancial (fator HC) (de influência na formação do caráter nacio-nal) é o elemento de influência histórica na formação do caráter nacional que, por circuns-tâncias políticas, econômicas, sociais, gera traços coletivos importantes, tanto menos está-veis quanto mais recentes estiver atuante.

Fator atual (fator A) (de influência na formação do caráter nacional) é o elemento recen-te de influência no caráter nacional capaz de modificar, restaurar ou criar valores, atitudes, sentimentos, comportamentos e reações coletivos no seio de um povo nacional.

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“Grupo psicológico”, na acepção que se dá a essa expressão em psicologia social (Krech, Crutchfield e Ballachie – “Individual in Society”- New York – 1962), em relação a uma fração de combate, particularmente das armas básicas, é o agrupamento institucional integrado por pessoas sujeitas a grandes pressões, que se conhecem, que procuram objeti-vos comuns, possuem interesses essenciais comuns e a mesma ideologia, lutam pela pró-pria sobrevivência e interagem com frequência sob circunstâncias dramáticas.

Hierarquia, como base para uma organização, é a rígida escala de cargos definidora de funções e responsabilidades, e criadora de uma ordem impessoal que estabelece níveis de autoridade e de subordinação, capaz de dinamizar a organização em questão como um ins-trumento coeso, dentro do pressuposto da disciplina.

Hierarquia militar (um dos treze ddiissttiinnttiivvooss mmiilliittaarreess que estudarei no Livro 2 da Trilogia “O espírito combatente”), é uma rígida escala de postos e graduações definidora de funções e responsabilidades que cria uma ordem impessoal dentro das organizações de guerra com escalões de autoridade e de subordinação, ativados como um todo e, ao mesmo tempo, tornados aptos a avigorar a impulsão para a vitória militar dentro do combate segundo a vontade matriz do comandante/líder do escalão mais elevado.

HHoonnrraa mmiilliittaarr (uumm ddooss ttrreezzee ddiissttiinnttiivvooss mmiilliittaarreess qquuee eessttuuddaarreeii nnoo LLiivvrroo 22 ddaa TTrriillooggiiaa ““OO eessppíírriittoo ccoommbbaatteennttee””) é a expressão emocional de um Soldado que se manifesta em relação a valores de hhoonnrraa mmiilliittaarr, de forma permanente, destacada e mística, como qualidade de seu caráter (um assunto que abordarei nos Livros 2 e 3 desta Trilogia).

Identidade institucional, nesta Trilogia, é o claro reconhecimento público da importância e do sentido social de forças armadas como instituições permanentes ligadas à preservação dos valores eternos da pátria e base do sistema social de coerção do Estado.

Inimigo (no singular ou no plural), nesta Trilogia, é o antagonista externo ou interno de um Estado nacional soberano, política e fisicamente identificado, com o qual existem desa-venças incontornáveis e - com o reconhecimento de ambos - sem solução possível por mei-os não traumáticos, que dizem respeito a valores vitais, inegociáveis por sua relação direta ou indireta com a perenidade da pátria e com o bem estar de sua sociedade nacional.

Interesses essenciais comuns são fortes interesses surgidos entre as pessoas de um grupo que, ao criarem uma consciência coletiva dessa identidade de atitudes ou de senti-mentos, tornam-se capazes de gerar o incitamento à aglutinação, à união e à convivência, dando origem ao agrupamento humano.

Indissociabilidade da força de combate (uumm ddooss ttrreezzee ddiissttiinnttiivvooss mmiilliittaarreess qquuee eessttuuddaa--rreeii nnoo LLiivvrroo 22 ddaa TTrriillooggiiaa ““OO eessppíírriittoo ccoommbbaatteennttee””) é uma das três características que essa força detém, capaz de gerar um sentimento coletivo positivo entre seus integrantes - ou em relação a ela -, que decorre da presciência de que, afinal, a organização militar à qual per-tencem permanecerá integrada, sem esfacelo, pelo permanente entendimento entre seus componentes estruturais de execução e de comando e pela agilidade na ligação entre esses dois instrumentos da ação (procure confiabilidade e solidez).

Liderança, função do líder, compreende um conjunto de atividades voltadas para o agru-pamento humano de liderados, destinadas a identificar, manter e consolidar os valores do caráter coletivo desse agrupamento, sustentando-lhe o moral coletivo em níveis adequados e desenvolvendo-lhe a vontade coletiva para as ações necessárias, além de acompanhar esse processo anímico e interferir, sempre que necessário, em sua dinâmica para assegurar os melhores resultados relacionados com as razões de existência e de permanência do dito agrupamento.

Liderança militar, sob fogo ou nas atividades de preparação da força terrestre, é a fun-ção do comandante militar que o define como líder de combate no sistema de liderança mili-tar.

Líder é o integrante de um agrupamento humano espontâneo, destacado no processo psicológico interativo interno como condutor natural ou imposto; nos agrupamentos huma-

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nos instituídos, é o integrante inserido nessa congregação social por decisão externa, para conduzi-la. Ambos, líder integrado ou líder outorgado, devem devotar-se à exercitação geral dos valores apropriados ao universo de seus liderados como base para a consolidação do caráter coletivo, à melhora da disposição de todos para a vida e para as atividades profis-sionais mantendo em bom nível o moral coletivo e ao estímulo e direcionamento da vontade coletiva para a ação conveniente e oportuna. O bom líder cria, dessa forma, as melhores condições psicológicas coletivas para a condução do agrupamento que lidera aos propósitos que justificam sua existência natural ou que determinaram sua criação.

Líder de combate é o comandante militar que lidera o agrupamento de combate de seu comando, devotando-se ininterruptamente (1) à exercitação geral dos valores que susten-tam os distintivos militareess e conformam o caráter profissional militar desse agrupamento, (2) à melhora da disposição de seus combatentes para suportar todo o tipo de pressão desa-gregadora mantendo em bom nível o moral da tropa e (3) ao estímulo e direcionamento cor-reto e tempestivo da vontade da força para a ação militarr que lhe for atribuída - na prepara-ção ou no combate sob pressão do inimigo -, a qualquer tempo e sob quaisquer circunstân-cias. O bom líder de combate cria, dessa forma e dentro do contexto militar dos escalões de comando onde se insere, as melhores condições psicológicas coletivas para a condução do seu agrupamento aos propósitos que justificam a existência de uma força de guerra como braço armado do Estado (procure cabo-de-guerra).

Líder integrado é o líder que se destaca naturalmente ou é imposto dentro do processo psicológico interativo de um agrupamento humano espontâneo.

Líderes interferentes (ou comandantes/líderes interferentes) na escala vertical de uma hierarquia, os líderes interferentes são aqueles que intervêm, pela abrangência de suas fun-ções e responsabilidades de direção, comando ou chefia, no processo que desenvolve e mantém a energia coletiva do caráter, do moral e da vontade nos agrupamentos humanos instituídos, correspondentes àquela escala.

Líder natural é o líder integrado que surge naturalmente dentro do processo interativo de agrupamentos humanos espontâneos.

Líder outorgado é o líder designado para conduzir agrupamentos humanos instituídos. Líder imposto é o líder integrado que assume responsabilidades de liderança dentro de

um agrupamento humano espontâneo, impondo, de alguma forma, sua vontade para esse fim.

Líderes solidários, como autoridades de agrupamentos instituídos não hierarquizados, os líderes solidários podem exercer liderança sobre agrupamentos sujeitos à sua direção, coordenação, chefia, sem a obrigação de interferência direta contínua, mas devem perma-necer alertas à coerência do desenvolvimento da energia psicológica positiva do caráter coletivo, do moral coletivo e da vontade coletiva para o cabal desempenho das atividades profissionais desses agrupamentos.

Linhagem de líderes interferentes (ascendente ou descendente), neste texto, é uma expressão que se refere ao conjunto dos líderes interferentes considerados em seu desdo-bramento sequencial para a função/liderança, sobreposto à cadeia de comando de uma for-ça terrestre para a função/comando, desde o comandante-em-chefe (sistema de liderança diretor) no maior escalão da força terrestre até o líder interferente (comandante militar) do escalão considerado (ou no sentido inverso)173.

Mística militar (um dos treze ddiissttiinnttiivvooss mmiilliittaarreess

que estudarei no Livro 2 da Trilogia “O espírito combatente”), como suporte psicológico coletivo, é a densa atitude coletiva de alti-vez, defesa e devotamento aos valores emblemáticos da organização militar e ao seu papel

173 Criei essa expressão porque precisei tê-la para desenvolver um texto específico sobre o sistema de liderança militar (Ensaio Complementar “A fascinante gestão de um espírito”, procure o link neste site).

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institucional, manifestada e demonstrada por cada um de seus integrantes em todas as suas atividades profissionais.

Moral individual é o estado de espírito de uma pessoa, resultante de sua disposição físi-ca, de seu sentimento de dignidade, de sua confiança nos chefes e líderes sob os quais está sujeita, dos seus pensamentos, opiniões e ideias, capazes de influenciar positiva ou negati-vamente sua disposição para assumir responsabilidades, para cumprir deveres e para coo-perar com os grupos familial, profissional e social nos quais está inserida.

Moral coletivo é o estado de espírito, apreciado coletivamente no âmbito de um agru-pamento humano, resultante do moral individual de cada um de seus integrantes, criando nesse agrupamento uma energia positiva ou negativa, que interferirá, de forma determinan-te, no desenvolvimento da vontade coletiva; inicia-se, assim, um processo interativo que contamina psicologicamente os integrantes do agrupamento considerado, caracterizando um novo envolvimento e um novo fenômeno.

Moral da tropa é o estado de espírito, apreciado coletivamente no âmbito de um agru-pamento de combate, resultante do moral individual de cada um de seus combatentes, cri-ando, nesse agrupamento, uma energia positiva ou negativa, que interferirá, de forma de-terminante, no desenvolvimento da vontade da força; inicia-se, assim, um processo interati-vo que contamina psicologicamente os integrantes do agrupamento considerado, caracteri-zando um novo envolvimento e um novo fenômeno.

Moral nacional é o moral coletivo do povo de uma nação como Estado nacional sobera-no.

Multidão é o agrupamento humano, efêmero, circunstancial, que reúne seres humanos dissímeis pela manifestação inicial da vontade de cada um, gerando, com a reunião, vigoro-sa vontade coletiva.

Nação (como Estado nacional soberano) é a instituição universal reconhecida como um agrupamento humano orgulhoso de sua unidade e soberania, surgido da aspiração coletiva dentro de um processo histórico específico, pela perseverante e manifesta vontade de seus membros, fixados em um território e ligados por laços culturais, econômicos e, muitas vezes, étnicos e linguísticos.

Opinião individual é a manifestação introversa e passiva de posicionamento individual em relação a um objeto (problema ou situação) que, por carecer de certeza, revela-se obje-tiva e subjetivamente insuficiente para a incitação à ação ou à busca de soluções que fortui-tamente estejam envolvidas; a opinião não aponta disposição volitiva, ativa e, sobretudo, participativa na superação de dificuldades para afirmá-la e mantê-la.

Opinião pública é a média aferida das opiniões individuais entre os integrantes de um agrupamento humano, relacionada a determinado objeto (problema ou situação), sem que isso represente sentimento coletivo dominante e consciente como ocorre com a vontade coletiva.

Organicidade operacional da força de combate é uma expressão que define uma quali-dade dessa força por manter assegurado o funcionamento de seus sistemas orgânicos es-senciais.

Pátria é uma ideia que reflete, de forma sublimada, o envolvimento afetivo do indivíduo humano com a nação que lhe acolhe como cidadão e com a formação dessa nacionalidade.

Patriotismo é um sentimento nobre no caráter individual do cidadão ou um traço coletivo no caráter nacional que exprime um envolvimento afetivo positivo com sua pátria e com a formação da nacionalidade, expressando-se por uma atitude otimista em relação ao futuro da nação.

Psicologia militar é o estudo dos estados e processos mentais dos Soldados considera-dos individualmente em seus agrupamento de combate.

Psicossociologia militar é o estudo da interinfluência entre a natureza da organização militar de guerra (uma questão da sociologia militar) e os fenômenos psicológicos individuais

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e grupais (uma questão da psicologia militar) determinados pela singularidade dessa nature-za.

Reações (1) como traços psicológicos de uma pessoa, são respostas emocionais indivi-duais a estímulos intensos que se apresentem de inopino; (2) como traços psicológicos gru-pais, caracterizam respostas emocionais coletivas, em um agrupamento humano, a estímu-los intensos que se apresentem de inopino.

Responsabilidade militar é o sentimento ético-profissional que se gera na consciência de um Soldado - fundamental para dar efetividade operacional à hierarquia militar -, quando reconhece para si determinada incumbência, identifica o superior hierárquico ou o dispositi-vo legal que a definiu, aceita sua realização como sendo um encargo pessoal funcional, sen-te-se com capacidade de realizá-la e determinado a concluí-la tempestivamente com suces-so.

Sentimentos (1) como traços psicológicos de uma pessoa, são disposições individuais que se manifestam, de uma mesma forma, como qualidades permanentes nessa pessoa; (2) como traços psicológicos grupais, caracterizam expressões emocionais em um agrupamen-to humano que se manifestam, de uma mesma forma, como qualidades coletivas permanen-tes.

Sistema “pode ser definido como um conjunto de elementos inter-relacionados que inte-ragem no desempenho de uma função.” 174

Sistema de informações é o sistema automatizado ou manual que abrange pessoas, máquinas e/ou métodos organizados para coletar, processar, transmitir e disseminar dados que representam informações para o usuário175.

Sistema de liderança militar, neste texto e na sua maior amplitude, é o sistema de in-formações que abrange o conjunto das lideranças militares interferentes que dirige, supervi-siona e promove a homogeneidade nos resultados da liderança militar relacionados com a obtenção e manutenção do espírito combatente no âmbito da força terrestre (EC – “e-cho/charlie”). Cada nível hierárquico militar, entretanto poderá definir um subsistema, coe-rente e integrante desse grande sistema de liderança militar diretor (veja, também, líderes interferentes, liderança militar, sistema e sistema de informações).

Sociologia militar é o estudo objetivo das relações humanas peculiares que se estabe-lecem entre Soldados (indivíduo indivíduo, indivíduo agrupamento, agrupamen-to agrupamento), consciente e inconscientemente, em todas as atividades no âmbito da organização militar de guerra, em diferentes situações, desde sua preparação até sua apli-cação traumática no combate, no limite extremo de pressões desagregadoras.

Solidez da força de combate (um dos treze ddiissttiinnttiivvooss mmiilliittaarreess

que estudarei no Livro 2 da Trilogia “O espírito combatente”) é uma das três características que essa força detém, capaz de gerar um sentimento coletivo positivo entre seus integrantes - ou em relação a ela -, decorrente da convicção geral de que está apta para a ação, reação e subsistência sob pressões desagregadoras como uma qualificação grupal segura, firme e estável (procure confiabilidade e indissociabilidade).

Superego (como qualificação do líder), neste texto, é a qualificação do líder que o distin-gue para o agrupamento humano que lidera, como uma instância do que seria a personali-dade coletiva indutora do espírito coletivo.

Suporte psicológico coletivo é uma expressão empregada para definir um complexo de influências psicológicas que se revela por certa unidade e similitude de motivação, capaz de sustentar o moral coletivo em nível adequado no âmbito de um agrupamento humano.

Unidade constituída é uma expressão que se refere aos diversos agrupamentos opera-cionais com quadro de organização definido e com a designação do comandante e demais

174 Professor Jorge Henrique C. Fernandes. 175 Google, Wikipédia.

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homens em suas respectivas funções, com equipamentos e armamentos distribuídos (dentro de uma organização de combate de infantaria, por exemplo, a seção, a esquadra, o grupo, o pelotão, a compa-nhia, o batalhão, etc).

Valores (em relação ao assentimento coletivo ou individual) (1) como assentimento in-corporado ao caráter individual, os valores definem a importância que uma pessoa atribui a fundamentos filosóficos, relacionados com a compreensão da realidade, que definem quali-dades morais, éticas, espirituais, profissionais e existenciais por ela professadas; (2) como assentimento incorporado ao caráter grupal, os valores caracterizam a importância atribuída por um agrupamento humano a fundamentos filosóficos, relacionados com a compreensão da realidade, que definem qualidades morais, éticas, espirituais, profissionais e existenciais professadas pela coletividade.

Valores espirituais são valores que se relacionam com o assentimento incorporado ao caráter individual ou coletivo, em orientações e poderes subjetivos, intemporais e sobrenatu-rais sob os quais os seres humanos devem pautar suas vidas.

Valores essenciais (valores sobrelevantes ou valores emblemáticos) são valores do ca-ráter coletivo que geram os interesses essenciais comuns estimulantes e sustentadores da convivência e da união nos agrupamentos humanos.

Valores éticos são valores que se relacionam com o assentimento incorporado ao cará-ter individual ou coletivo, na importância do aprimoramento da vida de relação e que, para isso, os seres humanos devem ter sua conduta social qualificada segundo determinados juízos de apreciação, como adequada ou inadequada.

Valores existenciais são valores que se relacionam com o assentimento incorporado ao caráter individual ou coletivo, provindo de instintos que dominam a consciência profunda dos seres humanos em relação à preservação da própria vida, da busca permanente do menor sacrifício para vivê-la e da permanência de sua espécie.

Valores morais são valores que se relacionam com o assentimento incorporado ao cará-ter individual ou coletivo, no sentido absoluto, na importância e na necessidade do ser hu-mano preservar sua dignidade e a dignidade de seus semelhantes (as variações culturais e a evolução do conceito de dignidade humana têm sido capazes, ao longo da história, de definir valores morais diferençados).

Valores profissionais são valores que se relacionam com o assentimento incorporado ao caráter individual ou coletivo, nas qualidades objetivas e subjetivas que sustentam as profissões de uma sociedade humana e as atividades de seus respectivos profissionais (nas profissões, além desses valores específicos, devem ser considerados os valores éticos para o relacionamento institucional ou para o relacionamento de seus profissionais com os obje-tos de suas atividades).

Virtudes militares são disposições constantes do caráter individual dos Soldados, jus-tamente o que se entende ser, genericamente, o espírito militar de cada um - definido pelos valores que professam por inclinação pessoal ou sugestão afetiva -, capazes de induzi-los às práticas consentâneas com o espírito combatente dos exércitos, isto é, com o bem para essa disposição profissional coletiva.

Vis-à-vis de combate, na prática da liderança e na realidade das rotinas castrenses – sob quaisquer circunstâncias -, é a convocação presencial176 promovida por um comandan-te/líder com a participação dos comandantes/líderes interferentes, até o nível conveniente aos assuntos do EC (“echo/charlie”) que serão tratados, visando a orientação ou a reorien-tação da metodologia de liderança, a interpretação de situações, a homogeneização de pro-cedimentos, a definição de resultados, a avaliação de dificuldades e a discussão de solu-ções em relação ao estado do espírito combatente de um modo geral e, em particular, sobre

176 Indo ao encontro de seus líderes interferentes subordinados, trazendo-os ao encontro ou promo-vendo o encontro em local adequado. Em princípio, as motivações do ELM são críticas e urgentes.

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a condução do EC (“echo/charlie”), ou seja, sobre os valores coletivos do caráter profissional militar de seu agrupamento de combate, sobre o estado moral da tropa considerada e sobre a vontade da força para a ação em curso, ou que será empreendida ou que já foi concluída. Qualquer reunião presencial para o exercício do comando (ação de comando), entretanto, poderá abordar os assuntos de liderança militar.

Vocação militar é a vocação profissional voltada para as Armas que, pela espontaneida-de do próprio processo que a consolida entre Soldados, com seus elementos de tempera-mento individual, genéticos ou inatos, revela-se como uma exigência pulsional decorrente de uma dinâmica vocacional muito peculiar que impele o militar vocacionado, de forma arreba-tada, para as atividades e metas de sua profissão como forma de satisfazer o estado de paixão, de excitação, de entusiasmo, de exaltação nacionalista e, muitas vezes, de tensão, que cria.

Vontade coletiva é a manifestação extroversa e ativa dentro de um agrupamento huma-no, expressa com gradação na sua intensidade, de um consenso de ação coletiva para um fim proposto a ser procurado e atingido, surgido na consciência grupal por um processo inte-rativo dominado pelas razões persuasoras que formaram a vontade individual da maioria dos integrantes do agrupamento.

Vontade da força é a vontade coletiva instalada no âmbito de uma organização militar operacional.

Vontade/ímpeto é a vontade individual ou coletiva estimulada por motivações fortes e apelos emocionais intensos capazes de gerar manifestação impetuosa e rompante com vi-gorosa energia de ação o que, por isso mesmo, determina uma duração limitada para o im-pulso criado.

Vontade individual é a mentalização de uma ação que pode ou não ser praticada por uma pessoa em obediência a um impulso ou a motivos ditados pela sua razão; caracteriza-se, assim, um sentimento individual extroverso e ativo que advém da certeza e que incita a busca do fim proposto por essa faculdade de mentalizar, podendo ser identificado dentro de uma escala de gradação de intensidade.

Vontade nacional é a vontade coletiva do povo de uma nação como Estado nacional so-berano.