João Guimarães Rosa, Juan Rulfo e a crítica...
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João Guimarães Rosa, Juan Rulfo e a crítica latinoamericana
Maria Virgínia Oliveira Maciel (USP)
Oralidade na narrativa: a questão da narração
O conto “Luvina” apresenta algumas questões curiosas quando em
comparação com o conto “Corpo fechado”, pois ambos são construídos por viajantes
que “estiveram lá”.
O conto de Guimarães Rosa é centrado na história de um doutor que vai ao
interior de Minas Gerais para trabalhar. Lá conhece o povoado e um morador
chamado Manuel Fulô que lhe conta variadas histórias nas quais sempre se sai como
herói. Ao longo do relato, o leitor vai se dando conta de que o tom de exagero de tudo
o que conta Fulô e quanto sua valentia é posta à prova para defender sua noiva de um
valentão foge e revela sua real personalidade.
Como em “Corpo fechado”, o narrador de “Luvina” é um narrador-viajante
que chega a viver em um determinado local, conhece-o e, ao retornar, reconstrói no
relato sua experiência de vida.
A estrutura do conto “Corpo fechado” é análoga à do romance Grande
sertão: veredas. Em ambos temos a presença de um “doutor” (letrado) que escuta e
transcreve as histórias do povo do sertão. Mas se no romance o “diálogo” entre o
doutor e o homem do campo desaparece, transformando-o em um monólogo, em
“Corpo fechado”, esse diálogo permanece na constituição do conto e vale para marcar
a influência que a voz do homem rural desempenha sobre o doutor-narrador.
Walter Benjamin, em seu ensaio “O narrador”, faz uma análise sobre as
particularidades dos narradores orais. Muitas das características por ele levantadas
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podem ser identificadas tanto na obra de Guimarães Rosa como na de Juan Rulfo. “E
entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das
histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos” (BENJAMIN, 1987, p.
198). As obras desses dois autores possuem um ritmo narrativo que muito se
assemelha às prosas caipiras contadas à beira do fogão ou às portas dos casebres.
O que podemos perceber no conto de Guimarães Rosa é que, de tanto
ouvir as histórias desse povo, o doutor assimila a seu relato a forma de narrar que
aprendeu desse mesmo povo (incluindo na sua narrativa até mesmo o exagero e a
enganação do discurso de Fulô).
Trazer para a literatura as características do discurso oral foi uma técnica
empregada por diversos autores. O que o texto de Benjamin apresenta como
questionamento fundamental é justamente a falência do narrador oral nas narrativas
impressas. Transformar em literatura, incorporar o discurso oral ao romance impresso
é uma forma de destruir, ou pelo menos, marcar o óbito dessa forma de produção, nas
palavras de Benjamin: “O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da
narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno” (BENJAMIN,
1987, p. 201). O livro, a produção impressa, dispensa a presença do contador de
histórias. Congela em um texto a interação entre os falantes no momento do relato
oral. Além de reduzi-lo a uma única experiência, enquanto as narrativas orais são
sempre diferentes quando contadas.
Para Benjamin, a narrativa tem origens remotas e corresponde a um tipo de
experiência que só se realiza com dificuldade no mundo atual. Sua perspectiva não é
a da cobrança de uma revalorização da narrativa no interior do romance. De fato, o
nascimento do romance moderno, como gênero, coincide com o declínio da narrativa,
independentemente da postura assumida pelos escritores, romancistas.
Os contos em questão trazem em si a ilusão da presença do contador de
histórias. Essa ilusão nos faz acreditar que dessa forma o relato oral estaria
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preservado, fora de perigo de extinção. Mas as ferramentas usadas para a escritura da
narrativa não são as mesmas usadas para as produções orais (a começar pelo veículo
de comunicação). O movimento antropológico dos dois autores de preservar a fala
autóctone dos moradores de suas regiões torna-se Phármakon1 — veneno e remédio
— para essas mesmas produções. A tentativa transculturadora de “resgatar” uma
cultura em “ruína”, movimento percebido tanto na obra de Juan Rulfo como na de
Guimarães Rosa, imortalizando, pelo relato, a cultura do sertão e as histórias de seu
povo, é também, ironicamente, uma forma de noticiar sua morte.
A voz e a letra na narrativa latino-americana: questões sobre a transculturação
narrativa
Guimarães Rosa foi tomado pelos críticos como intérprete da realidade
brasileira. Os personagens criados pelo mineiro foram tomados como representações
da população do interior de Minas Gerais.
O fato de Guimarães Rosa ser tomado como um “intérprete do Brasil”
revela um problema sociocultural. É preciso um representante “qualificado”, um
homem das letras, para dar voz a esse “outro”, que habita o interior do país. A
impossibilidade desse “outro” falar acabou por dar a esses autores a possibilidade de
suprir essa ausência, de assumirem o papel de “intérpretes”. Mas até que ponto esses
“intérpretes” são válidos? A necessidade do termo “intérprete” já não denuncia a
impossibilidade de comunicação, ou mesmo, a existência de dois mundos que se
estranham?
Muitos dos livros produzidos por autores latino-americanos surgiram após
uma viagem ao interior de seus países. Essa viagem de “descobrimento”, que ia em
busca da voz dos povos esquecidos, foi o mote da escritura de Grande sertão:
veredas, Cem anos de solidão, Os sertões e muitos outros.
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A postura antropológica de Guimarães Rosa, que em alguns momentos
precisa explicar nomes e situações peculiares desse povo do sertão, esconde e revela
as práticas hierárquicas que dominam nossa sociedade. A necessidade de explicar os
nomes e conceitos, como acontece no conto “Corpo fechado” com o termo “valentão”,
parece que acentua ainda mais o abismo que separa o popular e o erudito no cenário
literário latino-americano.
A crítica de Ángel Rama apontava para as características antropológicas de
Guimarães Rosa, Juan Rulfo e dos demais autores transculturadores. (As categorias
da transculturação foram elaboradas a partir do termo inspirador do antropólogo
Fernando Ortiz.) No entanto, a crítica de Rama deixa a desejar por não perceber as
fissuras ainda existentes entre o culto e o popular que jamais poderiam ser unidas
pelas obras dos autores latino-americanos. Isso porque a própria necessidade da
viagem antropológica revela o abismo existente entre esses dois mundos.
Segundo Antonio Cornejo Polar existe um embate, nem sempre sutil, entre
o universo da oralidade e o da escrita, sobretudo num espaço onde esse conflito
metaforiza o embate entre o conquistador e o conquistado. Para ele, o que se passa
entre Atahualpa e o padre Vicente Valverde em Cajamarca, no que o crítico chama de
Crônica de Cajamarca, seria o grau zero de interação entre a voz e a letra e marca
não somente as diferenças extremas entre as duas, mas ainda “tornam evidentes sua
mútua alienação e sua recíproca e agressiva repulsão” (CORNEJO POLAR, 1994, p.
220).
No episódio em Cajamarca, em que Cornejo Polar descreve o que estava
em jogo, além da vida de Atahualpa, é a disputa entre o livro e a escrita (a Bíblia) e a
oralidade. Essa disputa, segundo ele, permanece viva nas diversas produções latino-
americanas; essas duas formas de discurso se repelem desde o primeiro encontro e
esse movimento de repulsa “pressagia a extensão de um campo de enfrentamento
muito mais profundo e dramático” (CORNEJO POLAR, 1994, p. 221).
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Atahualpa, ao ser confrontado com a Bíblia, procura “ouvir” dela a verdade,
mas um livro não fala, e diante do silêncio daquele objeto que, segundo os
conquistadores, trazia a verdade, Atahualpa a atira ao chão. O conflito espelhado
nessa crônica revela que a escrita ingressa nos Andes (e em toda a América Latina)
“não tanto como um sistema de comunicação, mas no horizonte da ordem e da
autoridade, quase como se seu único significado possível fosse o poder” (CORNEJO
POLAR, 1994, p. 237).
Ora, esse mesmo objeto de repulsa — o livro — que, como nos lembra
Cornejo Polar, marcou para sempre a memória do povo indígena e se tornou símbolo
na morte de Atahualpa, é agora utilizado pelos autores latino-americanos para retratar
e dar voz a esse mesmo povo. O que deixa os seguintes questionamentos: Pode esse
objeto que traz em seu cerne a ambigüidade do conflito inicial da colonização
representar esses povos? A repulsa a esse objeto pôde ser superada pelos nativos e
seus descendentes? As produções literárias conseguem realmente uma “paz” entre
esses dois discursos? Em que sentido a produção literária é menos autoritária do que
os escritos colonizadores? A literatura pode ser realmente “libertadora” para esses
povos ou apenas mais uma forma de dominação?
Conclusão
Este trabalho teve como objetivo principal apresentar alguns aspectos
críticos fomentados pelas produções literárias desses dois autores, tentando
apresentar novas perguntas que não as já postas pelo modelo transculturador.
Segundo Alberto Moreiras, os problemas da teoria transculturadora de
Ángel Rama se dão, principalmente, no que diz respeito à origem e intencionalidade
dessa crítica. Moreiras aponta que a transculturação nasce da crença ideológica e
sugere a aceitação da modernização como verdade e destino do mundo. Para Rama,
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o fato de a cultura dominada ser capaz de se inscrever na dominante representa um
sucesso, um movimento que merece a celebração e, portanto, a não inscrição seria
um fracasso. No entanto, o que procuramos demonstrar é que, nem sempre, as obras
e os autores transculturadores visualizam a inserção como um “sucesso”, como algo a
ser celebrado.
Os finais trágicos de “Sarapalha” e Pedro Páramo parecem apontar para
outros caminhos, que não a celebração. Também parece ser significativo o silêncio
literário ao qual Juan Rulfo se submeteu após a publicação de seu romance. Para nós,
esse exílio literário parece ser semelhante à postura de José Maria Arguedas ao se
suicidar no fim de seu romance El zorro de arriba y el zorro de abajo. Moreiras lê a
postura de Arguedas da seguinte forma: “José Maria Arguedas deu-nos talvez um
exemplo paradigmático da tradição latino-americana desta transculturação final da
transculturação — sua derrocada, que vem a ser, em última análise, sua possibilidade
teórica mais própria” (MOREIRAS, 2001, p. 228).
O crítico compreende que a atitude tomada por Arguedas ao dar cabo de
sua vida é, na verdade, uma possibilidade teórica. Essa chave de leitura nos
possibilitou voltar os olhos para as obras de Rulfo e Rosa e pensar a respeito dessa
derrocada do modelo transculturador. Se Arguedas, ao dar fim em sua vida, também
deu uma resposta ao modelo transculturador, possivelmente essa resposta já estava
sendo encenada (ou prenunciada?) em outras obras, e foi o que tentamos provar.
Referências
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Paulo: Edusp, 2001.
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BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1987.
p.197-221.
CORNEJO POLAR, Antonio. O condor voa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000.
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 1991.
ECHEVARRÍA, Roberto González. Mito y archivo — una teoría de la narrativa
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MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença: a política dos estudos culturais latino-
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2006.
______. A política da nostalgia: um estudo das formas do passado. São Paulo:
Nankin, 2006.
ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
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RULFO, Juan. Toda la obra. Madrid: Colección Archivos, 1992.
1639
SCARPELLI, Marli Fantini. Heterogeneidade, transculturação, hibridismo: a terceira
margem da cultura latino-americana. In: CHAVES; MACÊDO. Literaturas em
movimento: hibridismo cultural e exercício crítico. São Paulo: Arte e Ciência Editora,
2003.
Nota
1 Jacques Derrida, “A farmácia de Platão” (1991). Derrida, lendo Platão, aponta as ambigüidades da escritura em sua constituição; segundo ele, a escritura traz sempre em si um significado e seu duplo oposto, a escritura se constitui enquanto remédio e veneno para a memória. A tentativa dos escritores transculturadores de “salvaguardarem” a oralidade em suas produções carrega em si também este duplo: é remédio, mas, ao mesmo tempo, veneno para as culturas orais.