João Guimarães Rosa, Juan Rulfo e a crítica...

8

Click here to load reader

Transcript of João Guimarães Rosa, Juan Rulfo e a crítica...

Page 1: João Guimarães Rosa, Juan Rulfo e a crítica latinoamericana150.164.100.248/.../Jo%E3o%20Guimar%E3es%20Rosa.pdf · 1633 podem ser identificadas tanto na obra de Guimarães Rosa

1632

João Guimarães Rosa, Juan Rulfo e a crítica latinoamericana

Maria Virgínia Oliveira Maciel (USP)

Oralidade na narrativa: a questão da narração

O conto “Luvina” apresenta algumas questões curiosas quando em

comparação com o conto “Corpo fechado”, pois ambos são construídos por viajantes

que “estiveram lá”.

O conto de Guimarães Rosa é centrado na história de um doutor que vai ao

interior de Minas Gerais para trabalhar. Lá conhece o povoado e um morador

chamado Manuel Fulô que lhe conta variadas histórias nas quais sempre se sai como

herói. Ao longo do relato, o leitor vai se dando conta de que o tom de exagero de tudo

o que conta Fulô e quanto sua valentia é posta à prova para defender sua noiva de um

valentão foge e revela sua real personalidade.

Como em “Corpo fechado”, o narrador de “Luvina” é um narrador-viajante

que chega a viver em um determinado local, conhece-o e, ao retornar, reconstrói no

relato sua experiência de vida.

A estrutura do conto “Corpo fechado” é análoga à do romance Grande

sertão: veredas. Em ambos temos a presença de um “doutor” (letrado) que escuta e

transcreve as histórias do povo do sertão. Mas se no romance o “diálogo” entre o

doutor e o homem do campo desaparece, transformando-o em um monólogo, em

“Corpo fechado”, esse diálogo permanece na constituição do conto e vale para marcar

a influência que a voz do homem rural desempenha sobre o doutor-narrador.

Walter Benjamin, em seu ensaio “O narrador”, faz uma análise sobre as

particularidades dos narradores orais. Muitas das características por ele levantadas

Page 2: João Guimarães Rosa, Juan Rulfo e a crítica latinoamericana150.164.100.248/.../Jo%E3o%20Guimar%E3es%20Rosa.pdf · 1633 podem ser identificadas tanto na obra de Guimarães Rosa

1633

podem ser identificadas tanto na obra de Guimarães Rosa como na de Juan Rulfo. “E

entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das

histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos” (BENJAMIN, 1987, p.

198). As obras desses dois autores possuem um ritmo narrativo que muito se

assemelha às prosas caipiras contadas à beira do fogão ou às portas dos casebres.

O que podemos perceber no conto de Guimarães Rosa é que, de tanto

ouvir as histórias desse povo, o doutor assimila a seu relato a forma de narrar que

aprendeu desse mesmo povo (incluindo na sua narrativa até mesmo o exagero e a

enganação do discurso de Fulô).

Trazer para a literatura as características do discurso oral foi uma técnica

empregada por diversos autores. O que o texto de Benjamin apresenta como

questionamento fundamental é justamente a falência do narrador oral nas narrativas

impressas. Transformar em literatura, incorporar o discurso oral ao romance impresso

é uma forma de destruir, ou pelo menos, marcar o óbito dessa forma de produção, nas

palavras de Benjamin: “O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da

narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno” (BENJAMIN,

1987, p. 201). O livro, a produção impressa, dispensa a presença do contador de

histórias. Congela em um texto a interação entre os falantes no momento do relato

oral. Além de reduzi-lo a uma única experiência, enquanto as narrativas orais são

sempre diferentes quando contadas.

Para Benjamin, a narrativa tem origens remotas e corresponde a um tipo de

experiência que só se realiza com dificuldade no mundo atual. Sua perspectiva não é

a da cobrança de uma revalorização da narrativa no interior do romance. De fato, o

nascimento do romance moderno, como gênero, coincide com o declínio da narrativa,

independentemente da postura assumida pelos escritores, romancistas.

Os contos em questão trazem em si a ilusão da presença do contador de

histórias. Essa ilusão nos faz acreditar que dessa forma o relato oral estaria

Page 3: João Guimarães Rosa, Juan Rulfo e a crítica latinoamericana150.164.100.248/.../Jo%E3o%20Guimar%E3es%20Rosa.pdf · 1633 podem ser identificadas tanto na obra de Guimarães Rosa

1634

preservado, fora de perigo de extinção. Mas as ferramentas usadas para a escritura da

narrativa não são as mesmas usadas para as produções orais (a começar pelo veículo

de comunicação). O movimento antropológico dos dois autores de preservar a fala

autóctone dos moradores de suas regiões torna-se Phármakon1 — veneno e remédio

— para essas mesmas produções. A tentativa transculturadora de “resgatar” uma

cultura em “ruína”, movimento percebido tanto na obra de Juan Rulfo como na de

Guimarães Rosa, imortalizando, pelo relato, a cultura do sertão e as histórias de seu

povo, é também, ironicamente, uma forma de noticiar sua morte.

A voz e a letra na narrativa latino-americana: questões sobre a transculturação

narrativa

Guimarães Rosa foi tomado pelos críticos como intérprete da realidade

brasileira. Os personagens criados pelo mineiro foram tomados como representações

da população do interior de Minas Gerais.

O fato de Guimarães Rosa ser tomado como um “intérprete do Brasil”

revela um problema sociocultural. É preciso um representante “qualificado”, um

homem das letras, para dar voz a esse “outro”, que habita o interior do país. A

impossibilidade desse “outro” falar acabou por dar a esses autores a possibilidade de

suprir essa ausência, de assumirem o papel de “intérpretes”. Mas até que ponto esses

“intérpretes” são válidos? A necessidade do termo “intérprete” já não denuncia a

impossibilidade de comunicação, ou mesmo, a existência de dois mundos que se

estranham?

Muitos dos livros produzidos por autores latino-americanos surgiram após

uma viagem ao interior de seus países. Essa viagem de “descobrimento”, que ia em

busca da voz dos povos esquecidos, foi o mote da escritura de Grande sertão:

veredas, Cem anos de solidão, Os sertões e muitos outros.

Page 4: João Guimarães Rosa, Juan Rulfo e a crítica latinoamericana150.164.100.248/.../Jo%E3o%20Guimar%E3es%20Rosa.pdf · 1633 podem ser identificadas tanto na obra de Guimarães Rosa

1635

A postura antropológica de Guimarães Rosa, que em alguns momentos

precisa explicar nomes e situações peculiares desse povo do sertão, esconde e revela

as práticas hierárquicas que dominam nossa sociedade. A necessidade de explicar os

nomes e conceitos, como acontece no conto “Corpo fechado” com o termo “valentão”,

parece que acentua ainda mais o abismo que separa o popular e o erudito no cenário

literário latino-americano.

A crítica de Ángel Rama apontava para as características antropológicas de

Guimarães Rosa, Juan Rulfo e dos demais autores transculturadores. (As categorias

da transculturação foram elaboradas a partir do termo inspirador do antropólogo

Fernando Ortiz.) No entanto, a crítica de Rama deixa a desejar por não perceber as

fissuras ainda existentes entre o culto e o popular que jamais poderiam ser unidas

pelas obras dos autores latino-americanos. Isso porque a própria necessidade da

viagem antropológica revela o abismo existente entre esses dois mundos.

Segundo Antonio Cornejo Polar existe um embate, nem sempre sutil, entre

o universo da oralidade e o da escrita, sobretudo num espaço onde esse conflito

metaforiza o embate entre o conquistador e o conquistado. Para ele, o que se passa

entre Atahualpa e o padre Vicente Valverde em Cajamarca, no que o crítico chama de

Crônica de Cajamarca, seria o grau zero de interação entre a voz e a letra e marca

não somente as diferenças extremas entre as duas, mas ainda “tornam evidentes sua

mútua alienação e sua recíproca e agressiva repulsão” (CORNEJO POLAR, 1994, p.

220).

No episódio em Cajamarca, em que Cornejo Polar descreve o que estava

em jogo, além da vida de Atahualpa, é a disputa entre o livro e a escrita (a Bíblia) e a

oralidade. Essa disputa, segundo ele, permanece viva nas diversas produções latino-

americanas; essas duas formas de discurso se repelem desde o primeiro encontro e

esse movimento de repulsa “pressagia a extensão de um campo de enfrentamento

muito mais profundo e dramático” (CORNEJO POLAR, 1994, p. 221).

Page 5: João Guimarães Rosa, Juan Rulfo e a crítica latinoamericana150.164.100.248/.../Jo%E3o%20Guimar%E3es%20Rosa.pdf · 1633 podem ser identificadas tanto na obra de Guimarães Rosa

1636

Atahualpa, ao ser confrontado com a Bíblia, procura “ouvir” dela a verdade,

mas um livro não fala, e diante do silêncio daquele objeto que, segundo os

conquistadores, trazia a verdade, Atahualpa a atira ao chão. O conflito espelhado

nessa crônica revela que a escrita ingressa nos Andes (e em toda a América Latina)

“não tanto como um sistema de comunicação, mas no horizonte da ordem e da

autoridade, quase como se seu único significado possível fosse o poder” (CORNEJO

POLAR, 1994, p. 237).

Ora, esse mesmo objeto de repulsa — o livro — que, como nos lembra

Cornejo Polar, marcou para sempre a memória do povo indígena e se tornou símbolo

na morte de Atahualpa, é agora utilizado pelos autores latino-americanos para retratar

e dar voz a esse mesmo povo. O que deixa os seguintes questionamentos: Pode esse

objeto que traz em seu cerne a ambigüidade do conflito inicial da colonização

representar esses povos? A repulsa a esse objeto pôde ser superada pelos nativos e

seus descendentes? As produções literárias conseguem realmente uma “paz” entre

esses dois discursos? Em que sentido a produção literária é menos autoritária do que

os escritos colonizadores? A literatura pode ser realmente “libertadora” para esses

povos ou apenas mais uma forma de dominação?

Conclusão

Este trabalho teve como objetivo principal apresentar alguns aspectos

críticos fomentados pelas produções literárias desses dois autores, tentando

apresentar novas perguntas que não as já postas pelo modelo transculturador.

Segundo Alberto Moreiras, os problemas da teoria transculturadora de

Ángel Rama se dão, principalmente, no que diz respeito à origem e intencionalidade

dessa crítica. Moreiras aponta que a transculturação nasce da crença ideológica e

sugere a aceitação da modernização como verdade e destino do mundo. Para Rama,

Page 6: João Guimarães Rosa, Juan Rulfo e a crítica latinoamericana150.164.100.248/.../Jo%E3o%20Guimar%E3es%20Rosa.pdf · 1633 podem ser identificadas tanto na obra de Guimarães Rosa

1637

o fato de a cultura dominada ser capaz de se inscrever na dominante representa um

sucesso, um movimento que merece a celebração e, portanto, a não inscrição seria

um fracasso. No entanto, o que procuramos demonstrar é que, nem sempre, as obras

e os autores transculturadores visualizam a inserção como um “sucesso”, como algo a

ser celebrado.

Os finais trágicos de “Sarapalha” e Pedro Páramo parecem apontar para

outros caminhos, que não a celebração. Também parece ser significativo o silêncio

literário ao qual Juan Rulfo se submeteu após a publicação de seu romance. Para nós,

esse exílio literário parece ser semelhante à postura de José Maria Arguedas ao se

suicidar no fim de seu romance El zorro de arriba y el zorro de abajo. Moreiras lê a

postura de Arguedas da seguinte forma: “José Maria Arguedas deu-nos talvez um

exemplo paradigmático da tradição latino-americana desta transculturação final da

transculturação — sua derrocada, que vem a ser, em última análise, sua possibilidade

teórica mais própria” (MOREIRAS, 2001, p. 228).

O crítico compreende que a atitude tomada por Arguedas ao dar cabo de

sua vida é, na verdade, uma possibilidade teórica. Essa chave de leitura nos

possibilitou voltar os olhos para as obras de Rulfo e Rosa e pensar a respeito dessa

derrocada do modelo transculturador. Se Arguedas, ao dar fim em sua vida, também

deu uma resposta ao modelo transculturador, possivelmente essa resposta já estava

sendo encenada (ou prenunciada?) em outras obras, e foi o que tentamos provar.

Referências

AGUIAR, Flávio; VASCONCELOS, Sandra Guardini T. (Orgs.). Ángel Rama. São

Paulo: Edusp, 2001.

Page 7: João Guimarães Rosa, Juan Rulfo e a crítica latinoamericana150.164.100.248/.../Jo%E3o%20Guimar%E3es%20Rosa.pdf · 1633 podem ser identificadas tanto na obra de Guimarães Rosa

1638

BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1987.

p.197-221.

CORNEJO POLAR, Antonio. O condor voa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000.

DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 1991.

ECHEVARRÍA, Roberto González. Mito y archivo — una teoría de la narrativa

latinoamericana. México: Fondo de Cultura Económica, 2000.

MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença: a política dos estudos culturais latino-

americanos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

NATALI, Marcos Piason. Além da literatura. Literatura e Sociedade, n. 9, p. 30-43,

2006.

______. A política da nostalgia: um estudo das formas do passado. São Paulo:

Nankin, 2006.

ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

______. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.

______. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1985.

RULFO, Juan. Toda la obra. Madrid: Colección Archivos, 1992.

Page 8: João Guimarães Rosa, Juan Rulfo e a crítica latinoamericana150.164.100.248/.../Jo%E3o%20Guimar%E3es%20Rosa.pdf · 1633 podem ser identificadas tanto na obra de Guimarães Rosa

1639

SCARPELLI, Marli Fantini. Heterogeneidade, transculturação, hibridismo: a terceira

margem da cultura latino-americana. In: CHAVES; MACÊDO. Literaturas em

movimento: hibridismo cultural e exercício crítico. São Paulo: Arte e Ciência Editora,

2003.

Nota

1 Jacques Derrida, “A farmácia de Platão” (1991). Derrida, lendo Platão, aponta as ambigüidades da escritura em sua constituição; segundo ele, a escritura traz sempre em si um significado e seu duplo oposto, a escritura se constitui enquanto remédio e veneno para a memória. A tentativa dos escritores transculturadores de “salvaguardarem” a oralidade em suas produções carrega em si também este duplo: é remédio, mas, ao mesmo tempo, veneno para as culturas orais.