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A ARTE ESCRITURAL DE UM “NARRADOR ORAL”: UMA ANÁLISE DOS JOGOS ENTRE ORALIDADE E ESCRITA NA OBRA DE JOSÉ SARAMAGO JOSÉ DÉRCIO BRAÚNA * “Mesmo não assinando o que escrevia, dava razão e ao mesmo tempo ampliava a célebre sentença de buffon, o estilo é o homem” e aqui faço meu corte, suspendo a frase, deixo-a amputada de seu último complemento, ao qual hei de voltar. Pois bem, o que antes ficou transcrito, disse-o um homem (homem escritural, assim o designo), de nome artur paz semedo (assim mesmo escriturado, em minúsculas, como o desejou seu conceptor), responsável funcionário de uma empresa de produção de armamentos, a produções belona s.a. (sigo respeitando a vontade de seu conceptor, desejoso de minúsculas, o que, bem sabemos, nada há de impedir ao entendimento, pois que, em fala ou leitura, se sua utilidade têm elas, ao bom compreender das coisas não se fazem uma impossibilidade). Habita, esse homem escritural, as páginas de Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas, último e inacabado romance (dele ficaram tão só três capítulos) de José Saramago (1922-2010), escritor português, Prêmio Nobel de Literatura 1998. Nessas páginas é que se diz, reproduz-se (e aqui, peço que se atente a essa palavra, que, pelo que intenta este texto, será ao seu final desmentida), “a célebre sentença” do naturalista, matemático e escritor francês Georges-Louis Leclerc (1707-1788), o conde de Buffon, a quem se atribui a máxima. (SARAMAGO, 2014: 33). E a que propósito vem a frase aqui trazida, perguntar-se-á? Creio que não custará perceber-se. A mim, a minha vista e meu ouvido leitores, a frase, palavra por palavra, ideia por ideia, poderia ser perfeitamente dita para caracterizar a arte escritural de José Saramago. “Mesmo não assinando o que escrevia”, a um leitor minimamente conhecedor da escrita do autor, a um ouvido leitor atento, uma só frase sua lida incita a que se recorra à máxima do conde de Buffon, a que se diga que “o estilo é o homem” (e não será demasiado zelo recordar: a frase, como está, ficou cortada, amputada de sua inteireza; ao ser restituída em sua inteireza o que se fará ao final deste escrito, reitero , espero poder demonstrar o porquê). Sigamos, pois. Detamo-nos um instante a ouvir (impropriamente dizendo, claro está) o dizer de José Saramago sobre a nascença de seu estilo. Folheemos seus diários essa * UFC, Doutorando, apoio Capes.

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A ARTE ESCRITURAL DE UM “NARRADOR ORAL”: UMA ANÁLISE DOS

JOGOS ENTRE ORALIDADE E ESCRITA NA OBRA DE JOSÉ SARAMAGO

JOSÉ DÉRCIO BRAÚNA*

“Mesmo não assinando o que escrevia, dava razão e ao mesmo tempo ampliava a

célebre sentença de buffon, o estilo é o homem” – e aqui faço meu corte, suspendo a frase,

deixo-a amputada de seu último complemento, ao qual hei de voltar. Pois bem, o que antes

ficou transcrito, disse-o um homem (homem escritural, assim o designo), de nome artur paz

semedo (assim mesmo escriturado, em minúsculas, como o desejou seu conceptor),

responsável funcionário de uma empresa de produção de armamentos, a produções belona s.a.

(sigo respeitando a vontade de seu conceptor, desejoso de minúsculas, o que, bem sabemos,

nada há de impedir ao entendimento, pois que, em fala ou leitura, se sua utilidade têm elas, ao

bom compreender das coisas não se fazem uma impossibilidade). Habita, esse homem

escritural, as páginas de Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas, último e inacabado

romance (dele ficaram tão só três capítulos) de José Saramago (1922-2010), escritor

português, Prêmio Nobel de Literatura 1998. Nessas páginas é que se diz, reproduz-se (e aqui,

peço que se atente a essa palavra, que, pelo que intenta este texto, será ao seu final

desmentida), “a célebre sentença” do naturalista, matemático e escritor francês Georges-Louis

Leclerc (1707-1788), o conde de Buffon, a quem se atribui a máxima. (SARAMAGO, 2014:

33).

E a que propósito vem a frase aqui trazida, perguntar-se-á? Creio que não custará

perceber-se. A mim, a minha vista e meu ouvido leitores, a frase, palavra por palavra, ideia

por ideia, poderia ser perfeitamente dita para caracterizar a arte escritural de José Saramago.

“Mesmo não assinando o que escrevia”, a um leitor minimamente conhecedor da escrita do

autor, a um ouvido leitor atento, uma só frase sua lida incita a que se recorra à máxima do

conde de Buffon, a que se diga que “o estilo é o homem” (e não será demasiado zelo recordar:

a frase, como está, ficou cortada, amputada de sua inteireza; ao ser restituída em sua inteireza

– o que se fará ao final deste escrito, reitero –, espero poder demonstrar o porquê).

Sigamos, pois. Detamo-nos um instante a ouvir (impropriamente dizendo, claro

está) o dizer de José Saramago sobre a nascença de seu estilo. Folheemos seus diários – essa

* UFC, Doutorando, apoio Capes.

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espécie de “romance com uma só personagem” (SARAMAGO, 1997: 9). Cadernos de

Lanzarote, assim Saramago os chamou. É em suas páginas, ao dia 15 de fevereiro de 1993,

que encontramos, após duas narrativas de “histórias da aviação”, um seu dizer sobre “um

tema recorrente” acerca da sua criação literária, e que dizem respeito a sua “técnica literária”,

ou, como prefere, seu “estilo”. Escreve, aí, Saramago (SARAMAGO, 1997: 223):

Todas as características da minha técnica narrativa actual (eu preferiria dizer: do

meu estilo) provêm de um princípio básico segundo o qual todo o dito se destina a

ser ouvido. Quero com isto significar que é como narrador oral que me vejo

quando escrevo e que as palavras são por mim escritas tanto para serem lidas como

para serem ouvidas. [negrito meu]

Como lemos, no espelho de seu diário, o escritor José Saramago vê-se “como

narrador oral”; sua técnica, ou, para como ele dizer, seu estilo, que não raros estudiosos

classificam como “estilo peculiar” (ARIAS, 2003: 73), alia o ouvido à vista, tendo-se aí, nessa

aliança, algo de fundamental importância em sua escrita.

Mas como chegou a ele, e como o justifica? Numa longa entrevista concedida ao

jornalista e escritor espanhol Juan Arias, em Lazanrote, no princípio de 1998, Saramago nos

fala dessa nascença. Nela, nos pormenoriza sobre como chegou a seu estilo. Algo que teve

haver com uma necessidade de encontrar uma forma para um dizer. Ouçamo-lo (ainda que

transcrito, o que é já outro registro, bem sabemos) em seu diálogo com Juan Arias (in ARIAS,

2003: 73-74):

Estava a escrever um romance que se chama Levantado do chão, publicado em

1980, sobre os camponeses do Alentejo. Em 1976 estivera ali para recolher dados

sobre o romance que pensava escrever, embora ainda não o tivesse muito claro.

Depois de três anos de dúvidas, continuava sem saber como abordar o tema [...], de

modo que passei três anos sem saber como resolver esse problema.

O “problema” da forma, de sua inextrincável relação com o conteúdo. Algo

fundamental para um autor absolutamente sensível aos meandros da linguagem. “O que é

mais importante para si: o estilo da escrita ou a história que conta?”, lhe perguntaram. “Para

mim o mais importante de tudo é a linguagem”, respondeu ele, acrescentando, logo em

seguida (in SANTOS, 2010: 37-38):

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Mais do que a história, infinitamente mais do que a história. Uma história bem

construída é indispensável; aquilo tem de estar estruturado, tem de manter-se de pé.

Mas eu costumo dizer que, da mesma maneira que o corpo humano tem setenta por

cento de água, a literatura é setenta por cento de linguagem. E talvez durante a

minha vida de escritor não tenha tido consciência disso, embora de alguma forma o

estivesse praticando. Mas nos últimos tempos tornei-me consciente disso: o

fundamental é a linguagem.

Já em 1977, quando publica seu segundo romance, Manual de pintura e caligrafia

(sendo que o primeiro, Terra do pecado, de 1947, rejeitará), Saramago nos deixa ler suas

preocupações com a linguagem, entendendo-a, muito claramente, como mais (muito mais)

que um simples código de transmissão de algo. Leiamo-lo (SARAMAGO, 2001: 5-6):

Não quero pensar, por agora, naquilo que farei se mesmo esta escrita falhar, se, daí

para diante, as telas brancas e as folhas brancas forem para mim um mundo

orbitado a milhões de anos-luz onde não poderei traçar o menor sinal. Se, em suma,

for acto de desonestidade o simples gesto de agarrar num pincel ou numa caneta,

se, uma vez mais em suma (a primeira vez não o chegou a ser), a mim mesmo dever

recusar o direito de comunicar ou comunicar-me, porque terei tentado e falhado e

não haverá mais oportunidades.

Como se lê, já quando ainda não havia se tornado um nome reconhecido mundo à

fora, quando era ainda um escritor português conhecido pouco além de um meio mais restrito,

José Saramago era ciente da antiga certeza de que “quem trabalha forma trabalha o conteúdo,

quem trabalha o conteúdo trabalha a forma.” (SARAMAGO, 2010: 216). Era sabedor de que

o ato de escrever é bem mais que simples correr de mão sobre a página (ou o teclado), que

escrever é, como deixará dito em A jangada de pedra, “dificílimo acto”, “responsabilidade

das maiores” (SARAMAGO, 1988: 12).

Porém, para aqui tornarmos a sua confissão sobre a nascença de Levantado do chão,

a certeza da necessidade de uma forma não a fazia, em nome de tal necessidade, brotar,

espontânea, do material (anotações, entrevistas e mais gravações) recolhido junto aos

camponeses do Alentejo. Assim sendo, “depois de três anos de dúvidas” (1976 a 1979), como

declarou, decidiu por começar, ainda que sem a certeza de como faria. Sigamos a ouvi-lo (in

ARIAS, 2003: 73-74):

Então comecei a escrever como todo o mundo faz, com travessão, com diálogos,

com a pontuação convencional, seguindo a norma dos escritores. Na altura das

páginas 24 e 25, e talvez esta seja uma das coisas mais bonitas que me aconteceram

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desde que comecei a escrever, sem pensar, quase sem dar-me conta, começo a

escrever assim: interligando, interconectando o discurso direto e o discurso

indireto, passando por cima de todas as regras sintáticas ou de muitas delas.

À altura da página 24, 25, o que se dera, segundo Saramago, foi que então passou a

escrever “como quem respira, como quem fala”, como dirá noutras oportunidades de diálogo

com jornalistas. O fato é que, “só podia escrever Levantado do chão se o narrasse de viva

voz.” Não no sentido de enunciar, em voz alta, alto e bom som, o que ia a escrever, mas um

narrar dentro da cabeça: “necessito estar a ouvir na minha cabeça a voz que ‘fala’.”

(SARAMAGO, 2010: 228, 232, 241). Em decorrência de tal necessidade, não teve mais que

fazer: careceu voltar ao princípio e refazer as 24, 25 primeiras páginas. E, depois, tirar dessa

nascença de um modo de escrita, de um estilo, algumas conclusões. Ouçamo-lo, ainda esta

vez, em sua conversa com Juan Arias (in ARIAS, 2003: 73-74):

A primeira é que, se então escrevesse um romance urbano, sobre algo que estivesse

a acontecer em Lisboa, por exemplo, as coisas teriam sido diferentes, mas estivera a

recopilar materiais num meio, o camponês, onde parte da cultura se transmite

oralmente. As pessoas contam as coisas, e no tempo de que estou a falar mais ainda,

porque quase todos eram analfabetos. Tudo se comunicava oralmente, os contos, as

lendas, os provérbios, toda a sabedoria de uma sociedade viva e articulada se

transmitia oralmente. O que chegava por escrito eram as leis do governo, algo que

eram obrigados a cumprir, não a ler. [negrito meu]

Pelas conclusões de Saramago, temos dito, pois, que sua forma de escrita, sua arte

escritural que digo, teve haver com os meios do viver das gentes sobre quem estava a escrever

(uma cultura camponesa, assente na oralidade); e ainda, que essa cultura era (é) viva; que num

mundo em que a escrita cumpria tão só foros de mando (a lei a ser obedecida), a oralidade

guardava outros modos de leitura do mundo; que eram uma “sabedoria”, não um déficit ou

negativa ausência de algo (a escrita). Era um saber; não no sentido formal, escolarizado e

escriturado do termo, mas um saber advindo da experiência; “um saber-que-não-é-saber,

como estar olhando uma árvore e compreender o que ela é sem conhecer uma palavra de

botânica...” (Apud DUARTE, 2006: 23).

Mas não se tratava de um ato de reprodução: da fala na escrita, algo a que Saramago

disse entender não ser possível, e que “esteticamente não seria aconselhável.” Em suas

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considerações sobre o seu fazer, o que sua arte escritural fez foi “introduzir no texto alguns

dos mecanismos da fala ligados à sua fluência, à organização dispersiva do discurso.”

Mecanismos (da fala), fluência (da escrita) e organização dispersiva (do discurso):

três pontos fundamentais sobre que se deve algo mais dizer.

E aqui penso valer a pena lermos o pensar de um historiador sobre o fazer da

literatura e sua relação com a oralidade. Num seu texto, intitulado “Absalom, Absalom!

História oral e literatura”, o historiador italiano Alessandro Portelli relata uma sua

experiência, enquanto professor, a fim de aproximar seus alunos da literatura. E que foi fazer

seus alunos lidarem com o romance Absalom, Absalom!, de 1936, do escritor norte-americano

William Faulkner (1897-1962), um romance “montado a partir da memória, de conjecturas e

de inferências”, de “estratificação de planos temporais”, numa escrita que se desenvolve por

meio de “longos períodos repletos de digressões e de parênteses”, fato que trazia ainda mais

dificuldades à leitura dos alunos, os quais viam a literatura como algo distante, fora de seus

interesses. Dizendo de seus objetivos, Portelli relata (PORTELLI, 2010: 231-232):

Eu esperava mostrar aos estudantes que a dificuldade não derivava tanto do

distanciamento entre a linguagem do livro e a linguagem cotidiana, mas sim das

muitas semelhanças entre elas. Onde se esperava o narrador onisciente e a

sequência cronológica da ficção convencional, se encontrava uma sobreposição

aparentemente caótica, comum ao discurso cotidiano, mas estranha quando

inserida em outro meio e contexto. Eu esperava, com isso, chamar a atenção dos

alunos também para o meio e para o contexto, para a especificidade da literatura,

recuperando talvez a reflexão sobre a linguagem literária como resultado de uma

leitura, não como um dogma prévio. [negritos meus]

Em minha leitura, estas palavras de Portelli guardam profícuo diálogo com as

considerações de Saramago sobre a inserção de mecanismos da fala na escrita. Pelo que disse,

temos então que chegou a seu estilo a partir de quando, sem se dar conta, principiou a

escrever “interligando, interconectando o discurso direto e o discurso indireto”, com isso

“passando por cima de todas as regras sintáticas ou de muitas delas”. A força torrencial do

que tinha a dizer vencera, ali, naquele instante, todos os diques e barreiras à correnteza do

pensar que se transformava em escrita.

Também aqui, que outro historiador, também ele italiano, nos venha contribuir ao

pensamento: Carlo Ginzburg, a partir de seu texto “A áspera verdade – Um desafio de

Stendhal aos historiadores”, capítulo nono de seu O fio e os rastros. Aí, Ginzburg analisa um

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“procedimento formal específico” desenvolvido por Stendhal (1783-1842) em seu romance O

vermelho e o negro (1830). Trata-se do “discurso direto livre”, um procedimento pelo qual

“uma narrativa na terceira pessoa é bruscamente interrompida por uma série de breves frases

atribuídas a um dos protagonistas da narração”. Cita, em exemplificação, o seguinte trecho de

O vermelho e o negro: “Ela [Mademoiselle de la Mole] tinha vindo pegar um livro e tinha

ouvido tudo; e sentiu logo certa estima por Julien. Eis um que não nasceu de joelhos, pensou,

como aquele velho abade. Meus Deus! Como é feio.” Como se lê, sem recursos de pontuação

(travessão, aspas, itálico, etc.), algo (um pensamento) que pertence a um personagem é

exposto sem o recurso ao diálogo, a um falar entre dois personagens. Passa-se de uma escrita

em terceira pessoa a uma em primeira pessoa de modo abrupto, sem qualquer aviso (por meio

de pontuação) ao leitor. Para Ginzburg, era mesmo esse o objetivo de Stendhal: “desorientar o

leitor, imprimindo à narração um ritmo agitado, febril, baseado numa pontuação quebrada e

fragmentada, que introduz mudanças inesperadas de pontos de vista.” (GINZBURG, 2007:

170-188).

“Penso que consegui dotar o escrito de um caráter tão caótico como o discurso oral,

mediante o aproveitamento de certas mecânicas da fala”, disse Saramago. Em meu ato leitor,

aqui seu pensamento dialoga com o que, segundo Ginzburg, objetivou Stendhal com sua

escrita (que se queria em “ritmo agitado, febril”). Considerando os escritos de Portelli e

Ginzburg aqui trazidos, e lendo-os em diálogo de pensamento com as declarações de

Saramago, entendo justificada a observação de Ginzburg de que “os procedimentos narrativos

são como campos magnéticos: provocam indagações”. Nesse sentido, um “procedimento”

ficcional pode (e deve) ser percebido como uma busca do escritor para “responder” a

demandas que lhe são colocadas por seu tempo (pela história, pois), daí podendo se entender

ser a análise desses procedimentos “um desafio indireto lançado aos historiadores.”

(GINZBURG, 2007: 170-188).

E fluindo o pensar e a escrita, tornando às considerações de Saramago sobre seu uso

de “mecanismos da fala” na escrita, ele nos falou de fluidez: “a estrutura narrativa dos meus

livros procura aproximar a disciplina da escrita à espontaneidade da fala, da oralidade. Disso

resulta um discurso fluente, torrencial, um rio, longo, onde a corrente arrasta tudo que

encontra.” (SARAMAGO, 2010: 238). Em benefício da fluência, Saramago entendeu

perfeitamente possível abdicar das “muletas da pontuação”; atento observador e estudioso que

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foi, Saramago sabia perfeitamente que “a pontuação é algo relativamente recente” na história

da escrita; lembra-nos, a exemplo, que “os textos antigos não tinham pontuação”;

compreendeu ele que, quando se fala, não se usa pontuação: “falamos como se faz música,

com sons e pausas. Toda música, da mais sublime à mais disparatada, se faz igual, com sons e

pausas, e falar é apenas isso, uma sucessão de sons com pausas.” (in ARIAS, 2003: 74-76).

Não deixo de ler aqui, nesta fala de Saramago, aspectos muito próximos das considerações de

Ginzburg sobre Stendhal (sua “pontuação quebrada e fragmentada”).

Também das de Portelli. Que considera ser uma das “funções” da literatura

justamente a de “dissolver a rigidez material da escrita”, algo que se pode fazer a partir da

disponibilidade dessa arte escritural em abrir-se ao “intercambiar” com as “armas” dessa sua

outridade: a oralidade. (Como bem vamos lendo, é essa uma defesa contundente de

Saramago.) Todavia, há que se ter claro, pondera Portelli, que, “naturalmente, nem a literatura

nem a oralidade querem ou podem abolir inteiramente suas características intrínsecas. Podem

apenas integrá-las, explorar seus próprios limites e possibilidades, experimentar alternativas.”

(PORTELLI, 2010: 242-243).

E sigamos, tornemos à voz-em-escritura de Saramago, a sua percepção acerca da fala

e da escrita, suas liberdades e controles. Que tem haver com alguns fatos. Como o de que o

exercício da fala é algo cuja realização, por cada indivíduo, se dá de modo “inevitavelmente

pessoal”. Ao falar, um indivíduo “introduzirá pausas onde talvez outros não as pusessem”. Ou

seja, na fala o emissor exerce a sua liberdade, a qual, na escrita, passa a ser vigiada pelo

controle da pontuação. E é essa liberdade da fala, que na escrita se controla (ou se quer

controlar, pelo menos), que ele, Saramago, deseja, de algum modo, devolver, dentro do que

lhe é possível, a seu leitor. “O que quero é que o leitor participe”, que compreenda “as regras

do jogo” e aceite jogar (in ARIAS, 2003: 76).

Outro mecanismo da fala que Saramago declara lhe ser caro diz respeito à não

linearidade de sua escrita – “certas tendências, que reconheço e confirmo (estruturas barrocas,

oratória circular, simetria de elementos)” (SARAMAGO, 1997: 223) –, recurso que o tem

feito ser caracterizado como um autor de escrita barroca. José Saramago seria um escritor

barroco, ele assim o entende: “Sou um escritor barroco e a minha frase avança numa espécie

de linha cicloide. Não vai em linha reta.” (SARAMAGO, 2010: 232). Não é uma frase que se

detém, antes se expande. “Sinto um prazer grande em conduzir a frase, ou em deixar-me levar

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por ela” (in VASCONCELOS, 2010: 17); como “um rio, longo, onde a corrente arrasta tudo

que encontra”, como antes já referido; uma espécie de busca por dizer tudo, dizer

continuamente, uma escrita em fluxo ininterrupto. “Gostaria de não interromper nunca a

minha escrita, nem com sinais de pontuação nem com capítulos, que tudo fosse simultâneo, o

mesmo que ocorre com a realidade: o carro que passa, o fotógrafo que faz uma foto, o vento

que mexe os galhos.” (SARAMAGO, 2010: 239).

Uma outra mecânica da fala a caracterizar o estilo escritural saramaguiano diz respeito

a seu gosto pela digressão. “Tenho uma tendência digressiva”, confessou não poucas vezes

ele. “O meu estilo, para chamá-lo assim, sempre foi muito digressivo. Sou incapaz de narrar

uma coisa em linha reta.” Mas não se trata de descaminho, adverte-nos ele: “não é que me

perca no caminho”. Trata-se antes de querer saber o que guardam os desvios: “se encontro um

desvio, entro por ele e depois volto por onde ia.” (SARAMAGO, 2010: 237-242). O que,

decerto, trará um novo olhar sobre o caminho por que se ia. Trata-se de perceber o desvio

como ganho, não como perda. Ou ainda: compreender certa e inevitável perda de rigor

cronológico e de concisão narrativa como ganho reflexivo. Como deixou escrito num

romance, “a concisão não é uma virtude definitiva, às vezes perde-se por falar muito, de

acordo, mas quanto não foi ganho por se ter dito mais do que o suficiente.” (SARAMAGO,

1988: 261).

Aliás, neste tocante, novamente entendo haver um concordante diálogo entre os

pensamentos de Saramago e de Alessandro Portelli, que, a respeito dessas questões, pondera:

“concluímos que o relato ‘natural’ não tem ordem cronológica rigorosa: a manipulação da

cronologia é a operação através da qual o narrador exerce sua subjetividade, sua reflexão

sobre os fatos narrados” (PORTELLI, 2010: 235). E como não será difícil a qualquer leitor de

José Saramago perceber, “sempre houve nos meus romances [de Saramago] um gosto pela

reflexão, em todos eles isso acontece.” (in VASCONCELOS, 2010: 91).

Assim, vemos preponderar no escritor Saramago o “gosto de meter na história que

estou [está] a contar coisas que nada têm que ver com ela”: “[...] e se nesta altura da conversa

posso fazer um comentário lateral [...].” (SARAMAGO, 1988: 122). Eis uma característica

que, para Saramago, se tem bons exemplos “na nossa [portuguesa] literatura”, sendo “o

melhor”, e o que mais o afeiçoa, Almeida Garrett: “Se há um antepassado meu direto na

literatura portuguesa, é um poeta, dramaturgo e romancista do século XIX que se chamou

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Almeida Gerrett. Meu gosto pela digressão o recebi desse autor.” (SARAMAGO, 2010: 237-

242).

Percebamos bem: Garrett e “mecanismos da fala”, o escrito e o oral, a literatura e o

mundo; para Saramago, tudo isso pode estar na literatura, que deve permanecer sempre aberta

a contribuições, jamais fechada, dogmática. E aqui não resito a reler Portelli: “Eu esperava

[...] chamar a atenção [...] para o meio e para o contexto, para a especificidade da literatura,

recuperando talvez a reflexão sobre a linguagem literária como resultado de uma leitura, não

como um dogma prévio.” (PORTELLI, 2010: 232).

Mas o que traz esse gosto, pela digressão? Para Saramago, trata-se de um afastar-se

para ver por outras miradas; assim procedendo, abre-se a narrativa: “deixar abrir a narrativa às

contribuições, à ajuda, ao enriquecimento, a essa espécie de fervor paralelo que resulta da

associação de ideias”, eis o que esse gosto pela digressão pode propiciar. Algo, decerto,

privilegiado pelo fato de outro gosto de Saramago: o do ensaio. Não raras vezes já declarou

ele que talvez não seja propriamente um romancista, mas antes um escritor que faz “ensaios

com personagens” (in BASTOS, 1996: 40, 37):

Creio que, além do meu modesto gosto por contar histórias, o romance, para mim,

hoje [1995], é o modo que encontrei para fazer passar umas quantas preocupações,

ou, se quiseres, nalguns casos, obsessões minhas. Às vezes, tudo isso me leva a

interrogar-me sobre se serei, de facto, um romancista, ou se os meus livros não

serão, no fundo, ensaios com personagens.

Ensaio: nomenclatura de um gênero literário; mas aberto, livre, em verdade “um

espécime literário de contorno indefinível”, dotado de algumas características basilares: o

“auto-exercício da razão” (liberdade de pensar); o “encerrar experiências” (um “saber que se

destila da vida”); a criticidade (uma “necessidade” do gênero, por essência antidogmático).

Trata-se, assim, de um tipo de texto que se escreve a pensar, ou pensa-se a escrever; escreve-

se, assim, “para divisar melhor o que [se] pensa”. É também texto de uma necessidade: a da

beleza: “o ensaio oferece antes de tudo uma sensação de beleza”; ou de dupla-e-una beleza

num só corpo textual: “a beleza da expressão literária e a beleza da verdade que exprime”, a

“verdade intelectual” indissociada “da perfeição da forma” (MOISÉS, 1985: 175-178).

Considerando essas buscas de marcas de identidade do gênero ensaio, aqui colhidas

em Massaud Moisés, creio que elas muito contribuem para que se reflita sobre a auto-

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interrogação de Saramago sobre o seu fazer literário, sobre o seu (possível) ensaísmo com

personagens. Pelo que lemos logo antes, Saramago tem boa razão em sua ponderação.

Mas há mais a se considerar sobre a questão. E é o próprio Saramago a isto apontar,

numa de suas últimas entrevistas, concedida ao jornalista e escritor português José Rodrigues

dos Santos, em outubro de 2009. Nela, à propósito da pergunta de seu entrevistador sobre “o

que seria para si um bom romance”, Saramago remete a Kafka, que teria declarado (ele não

tem a certeza) que um bom romance “deve ser uma acha capaz de romper o mar gelado da

nossa consciência”. E, para tanto, o romance muito teria mudado desde sua nascença. No

entender de Saramago, e ao contrário daqueles que reiteradamente lhe declaram a morte, a

extinção, o romance vive. O que se deu foi que “o romance abriu-se”, eis como entende.

Abriu-se a quê?, perguntar-se-á (pergunta Saramago, para logo responder): “abriu-se à poesia,

abriu-se ao drama, abriu-se ao ensaio, abriu-se à filosofia.” (in SANTOS, 2010: 39-40).

Uma abertura que o tem permitido dizer muito, dizer tudo e de todas as formas. Não

por acaso Jacques Derrida, numa sua longa entrevista, concedida em 1989 a Derek Attridge,

diga de seu entendimento da literatura como um “tipo de objeto que permite dizer tudo”; ela

(sua instituição) dá ao escritor a licença “para dizer tudo o que queira ou tudo o que possa”,

entendendo que esse “dever de irresponsabilidade” bem pode ser sua “forma mais elevada de

responsabilidade” (a acha buscando romper o mar de gelo das consciências). E o que se

entende por esse poder dizer tudo? Um pouco mais detidamente, Derrida nos fala (DERRIDA,

2014: 49-53):

O espaço da literatura não é somente o de uma ficção instituída, mas também o de

uma instituição fictícia, a qual, em princípio, permite dizer tudo. Dizer tudo é, sem

dúvida, reunir por meio da tradução, todas as figuras umas nas outras, totalizar

formalizando; mas dizer tudo é também transpor [franchir] os interditos. É liberar-

se [s’affranchior] – em todos os campos nos quais a lei pode se impor como lei. A

lei da literatura tende, em princípio, a desafiar ou a suspender a lei. Desse modo,

ela permite pensar a essência da lei na experiência do ‘tudo por dizer’. É uma

instituição que tende a extrapolar [déborder] a instituição.

Em meu ato leitor e reflexivo, o dizer tudo, a extrapolação, o transbordar, o liberar-se

apontados por Derrida estariam próximos da abertura do romance colocada por Saramago.

Não por acaso, na sequência de sua argumentação sobre o abrir-se do romance

contemporâneo, Saramago nos diga de como essa abertura levou a uma transformação

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fundamental, e que, como entendo, mais ainda aproxima seu pensar do de Derrida. Em sua

avaliação do estado atual do “gênero”, “o romance – de acordo com as transformações por

que passou recentemente e continua a passar – deixou de ser um gênero para se transformar

num espaço literário.” Um espaço que, a pensarmos com Derrida, extrapola suas próprias

delimitações; um espaço sem bordas ou fronteiras, um espaço imenso. Como um mar. Eis a

imagem final proposta por Saramago (in SANTOS, 2010: 40-41):

[O romance] Deixou de ser um gênero classificado e dando a ideia de que fica

definido para todo o resto do tempo. Não: modificou-se, alterou-se, encontrou, por

instinto ou fosse porque fosse, portas de entrada. No fundo, para lhe dar uma

imagem, é como se o romance fosse o mar e recebesse água dos seus afluentes, e

que esses afluentes fossem, como eu digo, a poesia, o drama, o ensaio, a filosofia,

tudo isso. O romance tornou-se outra coisa.

Tornou-se um dizer-de-tudo, onde tudo pode estar, onde tudo pode ser convocado à

fala escritural da página. Em suma: um mar a que tudo aflui. E se o romance se tornou esse

imenso mar a que tudo aflui, no caso de José Saramago esse mar se torna ainda mais

alimentado de afluências, as mais diversas, dado seu gosto ensaístico (essa forma informe e

livre a que tudo também aflui, como lemos). E no mar da escrita saramaguiana, a oralidade é

um dos grandes afluentes. “As pessoas contam as coisas”, disse-nos Saramago; mesmo

aqueles que não dominam o código da escrita, são portadores de uma “sabedoria”, viva

(reitere-se), que se transmite oralmente (in ARIAS, 2003: 73-74). Neto de camponeses

analfabetos, ainda que muito cedo tendo ido viver no meio urbano, Saramago tomou por seu

lugar de pertença um outro, rural: a sua Azinhaga, a aldeia a que sempre voltava, o lugar das

“pequenas memórias”, chão em que muito cedo deixou deitar raízes (SARAMAGO, 2006).

E tão fortes que quando essa criança que foi era já homem de boa idade feito, com

seus já setenta e seis anos, no dia do recebimento de sua maior honraria (é como se

considera), o Prêmio Nobel de Literatura 1998, na fala que fez então, começou-a justamente

por dizer de seus avós analfabetos da aldeia: “O homem mais sábio que conheci em toda a

minha vida não sabia ler nem escrever.” (SARAMAGO, s/d: 7). Um homem cujo viver

provavelmente passaria ao silêncio absoluto do esquecimento não fosse a circunstância, a

possibilidade de escrita que um seu descente pôde ter. Transformar essas gentes comuns em

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personagens, dar-lhe uma existência literária é, para Saramago, “uma espécie de justiça

poética” (in VASCONCELOS, 2010: 63).

E no diálogo entre esses mundos (a oralidade e a escrita) operado por Saramago, um

proceder não pode deixar de ser considerado: o seu exaustivo e reiterado recurso à

proverbialidade popular. Pela leitura de sua obra, não há como não considerá-lo “um amador

de provérbios, adágios, anexins e outras máximas populares, desses já raros” (SARAMAGO,

2000: 243).

Mas que de já se diga: o uso que dele faz Saramago assenta na dinamicidade, na

vivacidade que enxerga na “sabedoria” popular. Sempre de modo crítico e a serviço de sua

arte escritural. Afinal, é ele sabedor de que as frases feitas tem seus perigos, como deixou

assente em A jangada de pedra: “mais vale segurar o boi pelos cornos, disse-o sem reparar no

que dizia, as frases feitas têm destes perigos, quando não damos suficiente atenção ao

contexto.” (SARAMAGO, 1988: 291).

E Saramago não se desatenta ao contexto. Ao contrário, toma-o como elemento crucial

na explanação ao leitor de sua percepção sobre o que está sendo dito. Em seu uso, “a relação

provérbio/contexto é tão forte como recíproca, o que significa a completa adequação do

provérbio à situação narrada e a confirmação do provérbio através do contexto.” (DUARTE,

2006: 91). Uma confirmação que não significa sua concordância com aquilo que o provérbio

diz. Muitas vezes a confirmação se dá justamente para, de seguida, ser submetida à apreciação

crítica do autor/narrador. A título de pequeno exemplo, temos um que podemos lê-lo em O

ano da morte de Ricardo Reis: “se é verdade que na ocasião se faz o ladrão, também se pode

fazer a revolução” (SARAMAGO, 2003: 55). No uso que faz Saramago da proverbialidade

popular, o contexto se faz a marca da historicidade que vem desafiar o estabelecido, num

entendimento de que o tempo habita na palavra (seja ela dita ou escrita), sendo justamente

essa presença que desmente a fixidez e que abre espaço para a mudança (para a história, pois).

A esse uso feito por Saramago, Helena Vaz Duarte, estudiosa do autor nesse aspecto,

conceitua-o como “popularizante”, entendendo por tal termo “a apropriação consciente e

intencional de temas ou formas populares por um autor culto”, não se tratando de uma mera

utilização para fins de imitação, mas antes um “aproveitamento profundo”, no qual se

promove “intercomunicação e permeabilidade entre os dois tipos de discursos” (popular e

culto), de tal modo que, no caso da escrita de Saramago, dá-se uma perfeita “adequação da

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linguagem popular, tal como surge nos romances [...] à realidade ficcionada” (DUARTE,

2006: 29-31).

Para dar visibilidade a essa verve saramaguiana pelo recurso à proverbialidade

popular, Helena Vaz Duarte apresenta-nos em seu estudo uma contabilização desses usos,

cobrindo um leque de onze romances, publicados entre 1980 e 2005 (DUARTE, 2006: 36):

Título do romance Número de ocorrências

Levantado do chão 81

Memorial do convento 97

O ano da morte de Ricardo Reis 77

A jangada de pedra 81

História do cerco de Lisboa 84

Evangelho segundo Jesus Cristo 58

Ensaio sobre a cegueira 73

Todos os nomes 33

A caverna 53

O homem duplicado 61

Ensaio sobre a lucidez 59

Num uso que se dá sob dois registros, conforme classificação da autora: os provérbios

utilizados em sua forma fixada (escritos na sua forma advinda da oralidade) e os provérbios

usados sob formas recriadas por Saramago. Em ambos os casos, todavia, por meio de

mecanismos diversos (associação de ideias, comentários metadiscursivos, reformulações

parafrásicas, expansões com desconstrução de sentido, entre outros), o escritor Saramago faz

uso de estratégias de escrita que o permitem apropriar-se, fazer uso à sua maneira e para sua

intenção, do registro proverbial tomado do patrimônio linguístico popular. “Parece-nos”,

aponta-nos Helena Vaz Duarte, que, em Saramago, “o uso dos provérbios ajuda a realizar a

desconstrução da verdade instituída.” (DUARTE, 2006: 37).

E também a denunciar as injustiças que essas verdades cristalizadas pela repetição,

sem bem olhadas de perto, podem guardar. É como o faz o narrador/autor em Levantado do

chão (SARAMAGO, 2013: 355):

No geral do latifúndio, os homens e as mulheres têm seu tempo regateado de vida,

espanta-se a gente de como alguns vão a velhos, e muito mais quando, passando,

encontramos um que à vista é ancião e ouvimos dizer que tem quarenta anos, ou

esta mulher murcha e com a face encorreada, ainda não fez trinta, afinal viver no

campo não dá vida acrescentada, são invenções da cidade, é como aquele

regradíssimo ditado, Deitar cedo e cedo erguer, dá saúde e faz crescer, tinha graça

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vê-los aqui com a mão no cabo da enxada e os olhos no horizonte à espera do sol ou

derreados das cruzes ansiando por um anoitecer que nunca mais chega, o sol é um

desgraçado, cheio de pressa de sair e com tão pouca de se apagar. Como os

homens. [negrito meu]

E essa atenção cuidada à palavra, segundo Saramago, reside na consciência de que

“por baixo da pele da linguagem, aparentemente imparcial e isenta, ficou a matéria turva do

comportamento que por desvios se disfarça.” Em termos de linguagem, “afinal, nada é

simples. Uma frase numa página de jornal, meia dúzia de palavras insignificantes, impessoais

– e vai-se a ver, há nelas motivo de sobra para reflexão.” (SARAMAGO, 1996: 85-87).

“Percebeu o leitor?” (SARAMAGO, 1996: 85-87). Para José Saramago, por que “nada

é simples”; tudo pode ser visto e dito doutra maneira. Desde sua longa maturação pela busca

de uma forma para dizer sobre as vidas das gentes do Alentejo em Levantado do chão (que

lhe consumiram mais além de três anos, de 1976 a 1979), até seu último e inacabado romance

– Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas, ficado a princípio por sua morte, em

junho de 2010 –, Saramago foi contumaz utente do método que recomendou a seus leitores:

“pegue nas palavras, pese-as, meça-as, veja a maneira como se ligam, o que exprimem,

decifre o arzinho velhaco com que dizem uma coisa para a outra – e venha cá dizer se não se

sente melhor depois de as ter esfolado.” (SARAMAGO, 1996: 85-87). Não é acaso que,

nessas últimas páginas escritas (de Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas), leiamos

seu dizer, recorrendo ao saber popular, que “o estilo é o homem”.

E eis que tornamos ao princípio, às palavras com que iniciamos esta escrita e às quais

prometemos voltar, para dar-lhes a integridade de uma amputação que, ali, ao princípio,

fizemos à frase. “O estilo é o homem, mas é também a mulher” (SARAMAGO, 2014: 33), eis

a emenda feita por Saramago à frase feita, ao dito já pronto e repetido. Ao seu estilo, tomou as

palavras, as pesou e mediu, viu como se ligavam e o que diziam, e achou por bem emendá-

las; trazê-las do tempo sem tempo da repetição ao tempo saturado de agora em que fala.

Como se lê, efetivamente, o estilo é o homem e é a mulher.

Podendo ser ainda mais; podendo mesmo ir além da espécie (homem/mulher), há

quem o diga. Disse-o o historiador alemão Peter Gay. Escreveu esse senhor do saber histórico

que “o estilo é um centauro” (GAY, 1990: 17). E como se deve imaginar, o corpo do centauro

não é “um corpo cómodo” (SARAMAGO, 1994: 109-127). Difícil (doloroso, talvez seja essa

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uma melhor palavra) há de ser a união de dois distintos corpos num uno ser; reunir “o que a

natureza como que decretou que se mantivesse apartado” (GAY, 1990: 17): o homem e o

animal (SARAMAGO, 1994: 109-127), a forma e o conteúdo (GAY, 1990: 17).

A imagem utilizada por Peter Gay, que aqui a entrelaçei à escrita saramaguiana (uma

minha centauria frásica), metaforiza, assim, a proposição de que ao entrelaçar forma e

conteúdo, o estilo se constitui numa síntese: é “a um só tempo individual e social, privado e

público, uma combinação de modos herdados, elementos tomados de empréstimo e

qualidades exclusivas.” (GAY, 1990: 25). O estilo é o homem (e a mulher, não esqueçamos),

e o homem (e a mulher) é ser “composto de várias dimensões”. Lançar olhos ao estilo

escritural de um autor, se com sensibilidade e atenção o fizermos, nos permitirá, a partir desse

“vetor”, melhor compreendermos “as pressões complexas” que uma arte escritural pode

deixar ler (GAY, 1990: 191-192).

O estilo é o homem (e a mulher), de acordo, pois. Assim sendo, por que nele não se

encontrariam as marcas do tempo e os tramados da história?

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