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  • Educao & SociedadeISSN: [email protected] de Estudos Educao e SociedadeBrasil

    BRANDO, ZAIAOS JOGOS DE ESCALAS NA SOCIOLOGIA DA EDUCAO

    Educao & Sociedade, vol. 29, nm. 103, mayo-agosto, 2008, pp. 607-620Centro de Estudos Educao e Sociedade

    Campinas, Brasil

    Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=87314210015

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    Zaia Brando

    OS JOGOS DE ESCALAS NA SOCIOLOGIA DA EDUCAO*

    ZAIA BRANDO**

    RESUMO: A complexidade dos fenmenos sociais indica que uma re-alidade social no a mesma dependendo do nvel de anlise, propeRevel, em seus jogos de escalas. O artigo assinala que os dados agre-gados com os quais se constroem os indicadores socioeconmicos e asescalas de estratificao social com utilizao de surveys, centrais para aanlise de fenmenos escolares, oferecem certa iluso de objetividade,pois na vida real posies equivalentes nessas escalas resultam em expe-rincias sociais bastante distintas que s so apreendidas pelo trabalhode campo em nvel micro social. Exemplifica uma experincia de pes-quisa na perspectiva dos jogos de escalas no campo da Sociologia daEducao.

    Palavras-chave: Sociologia da Educao. Jogos de escalas. Micro emacro sociologia. Pesquisa em educao.

    THE GAME OF SCALES IN THE SOCIOLOGY OF EDUCATION

    ABSTRACT: As argued by Revel in his games of scales (Jeuxdchelles), the complexity of social phenomena indicates that a so-cial reality is not always the same, depending on the analysis level.This article emphasizes that the aggregated data used in the con-struction of socio-economic indicators and scales of social stratifica-tion using surveys, central for the analysis of educational phenom-ena, offer an illusion of objectivity, since equivalent positions onthese scales result in very different social experiences in real life,and require fieldwork strategies of research. The text presents the

    * Este artigo recebeu apoio da FAPERJ e do CNPq.

    ** Doutora em Educao e professora do Departamento de Educao da Pontifcia Universida-de Catlica do Rio de Janeiro (PUC-RIO). E-mail: [email protected]

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    example of a research experience in the field of sociology of edu-cation from the perspective of the game of scales.

    Key words: Sociology of Education. Game of scales. Micro and macrosociology. Research in education.

    ma formao superficialmente multidisciplinar nos cursos dePedagogia tem nos levado a muitos equvocos, quando nos vale-mos das referncias das Cincias Sociais para pesquisar proble-

    mas da educao. Um exemplo no campo da Histria da Educao foia hegemonizao, durante pelo menos uma dcada, da verso sobre ocarter conservador do movimento da Escola Nova no Brasil. O desco-nhecimento das discusses historiogrficas, que aqueciam o campo daHistria, impedia-nos de perceber as contradies que atravessavam oprocesso de profissionalizao do campo da educao no incio do s-culo XX e a impropriedade da interpretao simplista sobre o significa-do poltico-social daquele movimento no Brasil. Minha participao nodebate historiogrfico sobre a escola nova no Brasil e a familiarizaocom as alternativas de construo de uma histria-problema foram fun-damentais para a minha formao de pesquisadora.

    Posteriormente, meu encaminhamento para o campo da Sociologiada Educao exigiu um novo investimento em uma socializao discipli-nar, que evitasse mais uma vez as armadilhas da inocncia dos educado-res a respeito dos debates conceituais no campo das Cincias Sociais. Fa-zer escolhas, entre referncias terico-metodolgicas em disputa, optandopor aquelas mais adequadas aos problemas sob investigao, o grande de-safio que, ainda hoje, enfrenta o campo da educao. Nossa formao pou-co embasada nas tradies disciplinares cujo conhecimento permitiria origor na indisciplina Soares (1991)1 nos torna com freqncia refnsdos modismos que assolam o campo acadmico.

    A objetividade possvel em Cincias Sociais

    Um extenso caminho foi necessrio s Cincias Sociais para que asnovas geraes de pesquisadores se reencontrassem com a inquietao deMax Weber, ao incio do sculo XX, sobre as condies de objetividadedo conhecimento nas cincias sociais. Este longo processo de reflexo eexperimentao de estratgias, na produo de conhecimento sobre o

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    mundo social, levou-nos a rever inmeras hipteses tericas e, neste mo-vimento, a revisar o prprio conceito de verdade cientfica. Teorias sopermanentemente postas prova pelas exigncias do mundo emprico,no restando mais espao para a pretenso das grandes teorias, nemtampouco para a arrogncia da ignorncia, denunciada por Bourdieu(1989a), como estratgia de tornar a necessidade em virtude, ou seja,de escolher uma abordagem por ignorar a forma de operar com outra.

    As novas sociologias descritas por Corcuff (1995) so construesde um conjunto de cientistas sociais que, ao longo do sculo passado,desenvolveram referncias terico-metodolgicas que procuravam supe-rar a oposio entre as macrossociologias (estruturas mais amplas) e asmicrossociologias (unidades sociais menores). O autor define duas dire-es nestas construes: (a) das estruturas sociais s interaes, onde lo-caliza Elias, Bourdieu e Giddens; e (b) das interaes s estruturas soci-ais onde esto situados Berger, Luckmann, Shultz, Cicourel, entreoutros. Segundo Corcuff (1995), esses autores cunharam um novo usoda noo de verdade cientfica dotada de um carter mais plural, his-toricamente situada e provisria que, no entanto, continue constituin-do um horizonte regulador do trabalho cientfico. Ou seja, colocaramem causa as epistemologias binrias construdas em torno da oposioverdadeiro/falso , abrindo espao a uma epistemologia dos domnios devalidade para o reconhecimento de proposies enunciadas dentro de re-gras acordadas na de rigor cientfico (Corcuff, op. cit., p. 116).

    A minha leitura do debate sobre o jogo de escalas, organizado porJacques Revel, significou um feliz encontro com uma perspectiva (na qualele se situa) que supera as falsas disputas, ainda hoje bastante fortes narea da educao, entre partidrias das macroanlises e das microanlises,em seus desdobramentos problemticos na produo dos pesquisadoresquanti e quali. No cabe, nesta interveno, aprofundar o equvocodas adjetivaes de qualitativa ou quantitativa s pesquisas, de livre cursona rea de educao. Muito menos retomar o velho e desgastado debatesobre a prioridade ao sujeito ou s estruturas na suposta superioridadetica e/ou poltica de uma ou outra abordagem. Aqueles que levam a s-rio as exigncias do conhecimento do mundo social h muito passam aolargo desses debates.

    Um dos aspectos mais relevantes da posio de Revel no debatesobre o jogo de escalas est no reconhecimento de que uma realidade social

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    no a mesma dependendo do nvel de anlise. As escalas de observao perspectiva area ou do nadador para Elias (1994), de fora e de longe ou dedentro e de perto, segundo Magnani (2005) , ao oferecerem ngulos dife-rentes de construo de objetos de pesquisa, no podem ser pensadas comoextremos de um mesmo contnuo; pois no se trata de um problemametodolgico, e sim de uma impossibilidade epistemolgica. A realidadesocial por demais abrangente e complexa para comportar a pretenso deum verdadeiro e definitivo olhar, a partir de uma abordagem supostamen-te mais abrangente. Na feliz metfora de Revel, a estrutura folheada do soci-al encontra na variao das escalas um recurso de excepcional fecundidadeque possibilita que se construam objetos complexos compatveis com adescontinuidade dos patamares em que se protagoniza a vida social (Revel,1998, p. 14).

    Desigualdades sociais e desigualdades escolares: os desafios pesquisaem educao

    Os processos de produo das desigualdades sociais esto no cernedas preocupaes das Cincias Sociais e impactam fortemente a pesquisano campo da Sociologia da Educao. Collins (2000), um dos mais im-portantes socilogos americanos, props uma reflexo sobre os princpi-os de estratificao situacional, a partir da qual problematizou o esta-tuto de realidade objetiva pretendido pelos levantamentos estatsticosderivados dos surveys. Para ele, as hierarquias desenhadas pela distribui-o dos grupos, em categorias ocupacionais, podem ocultar entre ou-tras variveis comumente utilizadas nas investigaes das desigualdadessociais diferenas importantes de riqueza, educao.

    Os dados agregados com os quais se constroem os indicadoressocioeconmicos e as escalas de estratificao social oferecem certa ilusode objetividade, medida que na vida real posies equivalentes nessas es-calas resultam em experincias sociais bastante distintas. o caso, porexemplo, de anos ou nveis de escolaridade significando condies de dis-puta bastante desiguais no mercado de trabalho, conforme o contextomicrossituacional. Seis anos de estudo podem significar vantagens adicio-nais na disputa de um emprego, em uma pequena empresa ou no interior,mas inviabilizar o trabalho em uma multinacional ou numa metrpole.

    As escalas de prestgio das ocupaes2 usuais nos estudos deestratificao social colocam empresrios, diretores de empresa, industriais

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    e profissionais liberais nos nveis mais elevados. No entanto, nas situaesda vida social os padres de prestgio dessas posies se atualizam de for-ma bastante desigual, quer do ponto de vista da deferncia, da renda, oudo poder.

    Para Collins (2000), as macrodistribuies produzidas pelos surveysdevem ser submetidas a uma srie de estudos que permitam avaliar asvariaes a que esto sujeitas nos contextos microssituacionais. Afirma ele:

    (...) os dados micro-situacionais tm prioridade conceitual. Isto no querdizer que os macro-dados nada signifiquem; mas, estatsticas globais e da-dos de surveys no oferecem um retrato acurado da realidade social, ano ser quando interpretados no contexto de seu enraizamento micro-situacional. (Collins, op. cit, n. 18, p.16)

    O tema do sucesso/fracasso escolar no Brasil, no campo da Sociolo-gia da Educao, foi durante muito tempo abordado principalmente pelaanlise de trajetrias escolares. Entretanto, as ltimas dcadas foram cen-rio de um significativo avano na produo de dados macrossociais sobre odesempenho escolar dos sistemas de ensino, oferecendo assim uma outraescala de observao de um dos principais problemas da educao. Entre-tanto, entre as abordagens de carter mais fenomenolgico (com base nasrepresentaes dos atores sociais e utilizando, sobretudo, depoimentos eentrevistas) e as abordagens macrossociais avaliao de coortes de idades,fluxo de estudantes por sexo, cor ou segmentos (fundamental, mdio, su-perior) h como que um vcuo emprico, preenchido normalmente maispor inferncias residuais dessas perspectivas, do que por anlises ancoradasem material emprico especfico.

    Uma experincia de pesquisa utilizando o jogo de escalas

    A pesquisa emprica s tem sentido se admitirmos de ante-mo que a realidade mais complexa que a teoria, o que im-plica, necessariamente, que o trabalho de campo faa surgirnovas questes no contempladas no corpus abstracto geral.

    (Teixeira Lopes, 1996, p. 91)

    Na tentativa de fazer a ponte entre estas duas abordagens, o progra-ma de pesquisa do SOCED/PUC-RIO vem estudando os processos de produ-o da qualidade de ensino em escolas de prestgio na cidade do Rio deJaneiro.

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    Numa primeira etapa, fundamentada no escopo terico da obrade Bourdieu, a equipe desenvolveu um survey composto de trs questio-nrios (pais, professores e alunos) com o objetivo de levantar as caracte-rsticas mais gerais dos agentes educacionais envolvidos nesses processos.Os questionrios foram aplicados nas nove escolas (duas confessionais,duas pblicas, duas alternativas e uma judaica). No primeiro momentode explorao dos dados produzidos a partir do survey, focalizamos as ca-ractersticas mais gerais dos perfis e das prticas sociopedaggicas dosagentes estudados que nos indicaram a circularidade virtuosa com que asescolas investigadas produziam a imagem de qualidade de ensino desta-cada anualmente pela mdia. Neste momento, j nos chamavam a aten-o certas caractersticas diferenciais entre as instituies, que exigiriampara uma melhor compreenso um outro nvel de abordagem.

    O retorno ao campo em trs dessas escolas (uma confessional, umaalternativa e uma pblica) ofereceu-nos condies de contrastar o perfilgeral delineado a partir dos dados agregados, com o material empricoderivado da observao do cotidiano escolar em sua dinmica situacional.De dentro e de perto, as dimenses materiais e simblicas dos contextoseducacionais compem outras imagens sobre as redes de interaes (ver-ticais e horizontais) com que as escolas investigadas produzem a imagemde qualidade de ensino.

    Construmos assim outro corpus emprico com condies de esbo-ar conjuntos de valores e formas de desenvolvimento do currculo comque cada instituio desenvolve as habilidades escolares, que consoli-dam estilos e disposies cognitivas diferenciadas que operam como se-los da escolaridade nas diferentes instituies. Estes selos so reconheci-dos no mercado escolar e adquirem valores sociais e simblicos distintos,que no so visveis nas anlises de desempenho escolar produzidas pelossurveys educacionais.

    Procuramos delinear a auto-imagem institucional (representaesdos estudantes, pais, direo, professores e equipes pedaggico-adminis-trativas), os organogramas reais traados a partir do fluxo das aes dosagentes institucionais, as lideranas e estilos de gesto, o clima escolar, asprticas curriculares e a distribuio do tempo escolar, a utilizao de es-paos especficos como bibliotecas, laboratrios, salas ambientes, audit-rio, capelas etc. , as relaes interinstitucionais, os trabalhos sociais comas comunidades prximas, as atividades extracurriculares e as estratgias

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    de divulgao da imagem institucional (nas pginas das escolas nainternet, em folhetos, na mdia...) etc.

    Temos operado assim de forma a combinar um olhar mais geralcom outro mais prximo, potencializando a ampliao do corpus da pes-quisa a partir das novas hipteses geradas pelo material derivado de umjogo de escalas (Revel, 1998). Este trnsito entre escalas de observaoexigiu, inclusive, uma reavaliao das referncias terico-metodolgicascom as quais temos trabalhado (marcadamente dentro da tradio da so-ciologia de Bourdieu) e levou-nos a recompor o desenho terico-meto-dolgico da investigao, para que respondesse melhor aproximao dasconfiguraes socioeducativas das escolas. Para essas anlises institucionaisno recusamos, como Bourdieu, uma interlocuo com a tradio intera-cionista (Goffman, Becker, assim como, mais recentemente, TeixeiraLopes). Entretanto, procuramos no desconhecer os contextos scio-hie-rrquicos em que se desenvolvem as interaes sociais.

    Nesse sentido, e mantendo a riqueza da tenso inerente ao jogode escalas, nosso horizonte terico-metodolgico se orientou por umecletismo controlado que permitisse transitar pelas perspectivasdelineadas pelo jogo de escalas e oferecesse condies de construir inter-pretaes mais flexveis e densas sobre a ao educativa das escolas.

    Durante todo o processo de investigao, temos alternado numaespcie de jogo de espelhos o foco de anlise, do mbito micro aomacrossocial, projetando:

    ora uma viso panormica das posies relativas das institui-es no campo escolar e no espao social (Bourdieu) que con-tribua para a compreenso/interpretao das suas estratgias nomercado escolar;

    ora uma aproximao das lentes em condies de delinear commaior preciso as motivaes e os movimentos dos agenteseducativos nos tempos e espaos escolares (perspectivasinteracionistas).

    Os dados construdos a partir do survey so relacionados com dadosmais gerais produzidos pelo sistema de avaliao do INEP (SAEB, ENEM,entre outros), sempre que estas comparaes ajudam a elucidar as especi-ficidades dos casos estudados. Neste caso, a abordagem relacional com todoo equipamento conceitual proposto por Bourdieu e as referncias sobre

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    estratificao e mobilidade social no Brasil, dos trabalhos de Pastore eSilva (2000), continuam vlidas para a interpretao dos aspectos dis-tintivos dos perfis agregados dos agentes e instituies.

    As caractersticas das prticas pedaggicas e desempenho dos alunosem uma turma, uma escola ou em um sistema escolar seguramente tmsido bem delineadas pelos surveys e podem ser analisadas em sua relativaautonomia em cada uma dessas instncias; o desenvolvimento dos mode-los multinveis de anlise estatstica tornou-se importante instrumento norefinamento do trabalho com os macrodados. Possibilita abordar de ma-neira adequada o carter hierarquizado (no aleatrio) da distribuio dosalunos, turmas e escolas pelos subsistemas escolares (municipal, estadual,privado). Apesar de todos esses avanos, a anlise dos processos escolaresna perspectiva da estratificao situacional proposta por Collins continua aser instrumento fundamental para uma compreenso mais densa dos pro-cessos de produo de qualidade de ensino.

    No caso do trabalho de campo, como j indicado, na tradiointeracionista da Escola de Chicago e, sobretudo, na perspectiva dasinteraes simblicas e da metfora teatral de Goffman que procuramosanalisar as redes de interao institucionais (direo/coordenaes, assimcomo professores/funcionrios, professores/alunos, alunos/alunos e pais/escola...). Os resultados do programa de Pesquisas do SOCED so divulga-dos semestralmente no Boletim SOCED on-line,3 desde 2005.

    O processo de redimensionamento do ncleo terico

    (...) as teorias so programas de pesquisa que requerem,no o debate terico, mas a sua utilizao prtica capaz deas refutar ou de as generalizar, ou melhor, de especificar ede diferenciar sua pretenso generalidade.

    (Bourdieu, 1992, p. 56-7)

    A obra de Bourdieu tem sido, como assinalamos, uma refernciacentral para aqueles que, como ns, investem em trabalhos de pesquisaem que teoria e empiria encontram-se profundamente articuladas. Noconcebemos, no entanto, um primeiro momento de construo de umquadro terico, ao qual sucedeu um trabalho de campo coerentementearticulado viso terica adotada. Muito pelo contrrio, temos desen-volvido a estratgia sugerida por Bourdieu que implica trabalhar com e

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    contra os autores (e teorias), a partir de um processo em que o objeto deinvestigao construdo atravs de uma espcie de quebra-cabea teri-co-emprico e, portanto, exige uma reconstruo terica ad hoc consis-tente com os problemas que surgem do campo.

    Norbert Elias outra referncia indispensvel para pensar a ma-triz relacional a partir da qual se constri a vida social, e nela as institui-es. Seu clssico ensaio, A sociedade dos indivduos, publicado em 1937 discorrendo sobre o equvoco das perspectivas unilaterais para apreen-der o fluxo do mundo social , tem sido amplamente retomado pelossocilogos contemporneos numa demonstrao inequvoca da perti-nncia do seu enfoque para a compreenso da complexidade do tecidosocial. Segundo ele, um dos maiores limites ao avano do conhecimentosocial era a ausncia de modelos conceituais que permitissem compreenderde que modo um grande nmero de indivduos compe entre si algo maior ediferente de uma coleo de indivduos isolados (o princpio durkheiminiano),ou seja, como se estabelecem os vnculos entre os indivduos e a sociedade.

    A teoria da Gestalt j oferecera um forte argumento a respeito decomo o todo incorpora princpios que no podem ser delineados pelo exa-me das partes isoladamente. Um conjunto de jovens em uma sala de aula(turma) constitui uma realidade social diferente de um grupo de jovensnuma competio esportiva ou numa reunio social. Os agentes sociais emuma instituio escolar tambm formam um corpo social com caractersti-cas singulares que no podem ser desenhadas a partir da mera agregaodos indivduos, nem mesmo dos subgrupos que formam a instituio turmas, coordenaes, corpo docente, equipe tcnico-administrativa etc.

    A interdependncia das pessoas na teia social tratada por Eliascomo uma cadeia ininterrupta de aes que associam os indivduos emuma trama complexa de relaes, ligando-os a diversos grupos, osquais, por sua vez, podem ser interdependentes ou no. esse conjun-to de possibilidades de ligaes, significativamente diferentes, que con-fere uma flexibilidade s relaes sociais que muitas vezes d a ilusode poderem ser compreendidas na dinmica (restrita) das interaesface a face, prprias s abordagens interacionistas, supondo a essas umgrau de autonomia que dificilmente elas podem alcanar.

    Os dois autores Bourdieu e Elias formam as referncias te-rico-metodolgicas mais gerais, a partir das quais temos ousado cami-nhar na direo de um ecletismo controlado que d conta dos desafios

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    postos pelo jogo de escalas com o qual temos desenvolvido o programade pesquisas do SOCED, produzindo um material emprico diversificadopara a formulao de hipteses sobre a constituio dos habitus escolaresnas instituies investigadas.

    No interior das diferentes instituies, os indivduos desempe-nham funes distintas e simultneas4 constituem-se como subjetivi-dades coletivas e constituem-nas em coletividades especficas , numprocesso permanente de interinfluncias: impondo a sua presena (acres-centando-se ao grupo, influindo na dinmica coletiva) e submetendo-ses foras do grupo (representaes, prticas, hbitos, regras de conv-vio...). As abordagens interacionistas, que esto longe de significar umconjunto homogneo, foram de fundamental importncia para o desen-volvimento das anlises dos microssistemas. Weber j havia acentuado,em seus ensaios de sociologia compreensiva, a atividade social comocomportamento significativo orientado pelos outros. As significaes de-vem ser partilhadas para que as atividades sejam reguladas, e esta parti-lha se efetua a cada vez, em situaes particulares. Analisar interaes im-plica a anlise das microssituaes nas quais elas ocorrem, procurandocompreender o contexto simblico e material que as sustenta e que, nor-malmente, deixa uma boa margem improvisao, o que exige uma per-manente ateno para as peculiaridades de cada caso estudado.

    Trabalhamos, no entanto, cientes a respeito dos limites das pers-pectivas interacionistas. Elas podem subestimar o papel relativamenteautnomo que podem ter as estruturas na definio das condies (soci-ais) em que se realizam as interaes (Durand & Weil, 1989, p. 180).Coser (1975, apud Durand & Weil, 1989) critica a tendncia das abor-dagens interacionistas de se limitarem observao direta dos quadrosinterativos, negligenciando os fatores latentes em favor dos contedosmanifestos. Ele ressalta que a verdade da interao no dada pela pr-pria interao, pois os agentes ocupam posies em um espao objetivode propriedades em que determinadas regras se impem a eles. No sepode reduzir uma poeira de atividades individuais a um todo coerente, re-cusando-se a analisar o efeito de imposio do poder assegurado pela me-diao das instituies (idem, ibid., p. 181).

    Somente operando com um permanente jogo de espelhos, que ofe-rea um conjunto de flashes descontnuos das escalas de observao, podea Sociologia da Educao enfrentar o desafio de compreender as relaes

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    entre desigualdades sociais e desigualdades escolares para qui traar es-tratgias mais adequadas ao projeto de qualidade de ensino com equidadesocial.

    Recebido em novembro de 2007 e aprovado em abril de 2008.

    Notas

    1. Soares (1991) fala da importncia do domnio disciplinar como condio para saltar asfronteiras disciplinares nas tentativas de desenvolver dilogos interdisciplinares.

    2. Ver, a respeito, Arajo & Scalon (2005), Ribeiro (2007), Santos (2002).

    3. O leitor pode consultar os cinco nmeros do Boletim SOCED no endereo:

    4. Como, por exemplo, filhos/alunos, pais/professores, colegas/alunos, professor/coordenadoretc.

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