Joao Cezar de Castro Rocha o Guarani
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Transcript of Joao Cezar de Castro Rocha o Guarani
O guarani: gradações infinitas
João Cezar de Castro Rocha
Em 1857 José de Alencar publicou O guarani em folhetins no Diário do Rio de
Janeiro. O romance provocou uma verdadeira comoção: os leitores esperavam
impacientemente o capítulo do dia, reunindo-se em locais públicos, a fim de partilhar as
novas aventuras dos protagonistas. O longo romance é dividido em quatro partes.
Na primeira, “Os aventureiros”, descreve-se o cenário da ação, às margens do rio
Paquequer, imortalizado na célebre passagem: “saltando de cascata em cascata,
enroscando-se como uma serpente, vai depois espreguiçar-se na várzea e embeber no
Paraíba”. A trama se desenvolve no solar do nobre português D. Antônio de Mariz,
figura histórica da segunda metade do século XVI. Sua família convive com homens
livres em busca de fortuna – os “aventureiros”.
A segunda e a terceira partes, respectivamente “Peri” e “Os aimorés”, giram em
torno de tramas paralelas. De um lado, surge o grande vilão: o frade carmelita Ângelo di
Luca. Ao apoderar-se do segredo das minas de prata, assume a identidade de Loredano,
tornando-se um dos “aventureiros”. No fundo, pretende assassinar D. Antônio de Mariz
para assenhorear-se de tesouro ainda mais valioso: Cecília, su filha. De outro lado,
aparecem os Aimorés, uma “nação degenerada”, composta de “bárbaros que se
alimentam de carne humana”, dispostos a vingar a morte da filha do líder,
acidentalmente alvejada por D. Diogo, herdeiro do nobre. A ferocidade dos Aimorés
reforça a caracterização de Peri: “um cavalheiro português no corpo de um selvagem”.
Na última parte, “A catástrofe”, na iminência da vitória dos Aimorés, D.
Antônio de Mariz adota um recurso radical: provoca a explosão do solar. Desse modo,
embora sacrifique sua família, triunfa sobre os inimigos. O apocalipse só não é
completo porque Peri salva a Ceci, enfrentando um dilúvio de proporções míticas:
“Tudo era água e céu”. Numa das cenas mais marcantes do romance brasileiro, o índio e
a moça branca terminam literalmente à deriva: “A palmeira arrastada pela torrente
impetuosa fugia... E sumiu-se no horizonte”.
O argumento novelesco favorece o milagre da multiplicação de episódios em
que Peri deve proteger a Cecília contra Loredano, os Aimorés, os animais da floresta –
até contra os quatro elementos. Tal leitura destaca a submissão do índio; afinal, para
servir à moça, ele jamais hesita: “Peri vai vingar sua senhora; vai se separar de tudo
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quanto ama”. Movimento de renúncia levado ao paroxismo pela virgem dos lábios de
mel.
Contudo, proponho que se recupere outra dimensão do romance; dimensão que
ilumina tanto seu errático remate, quanto a própria trilogia indianista. Recorde-se a
eloqüente descrição: “Essas sombras das árvores que se estendem pela planície; essas
gradações infinitas da luz pelas quebradas da montanha”.
“Gradações infinitas”: eis o segredo da composição de O guarani. O Paquequer,
majestoso rio de “beleza selvática”, na verdade é “vassalo e tributário” do rio Paraíba. A
posição de D. Antônio de Mariz reverbera a mesma condição, pois, embora senhor
absoluto em suas terras, na época da União Ibérica, deve aceitar o domínio espanhol.
Porém, fiel às tradições portuguesas, resolve exilar-se em sua propriedade. É, assim,
senhor e servo. A duplicidade contamina inclusive a arquitetura do solar, que contava
com “uma espécie de escada de lajedo feita metade pela natureza e metade pela arte”.
O próprio Peri, sempre tão submisso, sabe ser soberano. Ele decide não
acompanhar a Cecília “na taba dos brancos”. O motivo é cristalino: “Lá o selvagem
seria um escravo dos escravos; e quem nasceu o primeiro, pode ser teu escravo; mas é
senhor dos campos, e manda aos mais fortes”. Cecília não se separa do índio, abandona
a civilização, preferindo antes permanecer junto a Peri, “no deserto, no meio das
florestas”. A mais completa tradução da dialética hegeliana do senhor e do escravo!
Em O guarani Alencar traz à superfície a complexidade dos primórdios da
civilização brasileira. Num extremo encontram-se os brancos; no outro, os índios. Entre
os dois pólos multiplicam-se diferenças e oposições. De um lado, a nobreza de D.
Antônio de Mariz; de outro, a vilania de Loredano – entre ambos, “gradações infinitas”:
a correção de Álvaro; a fidelidade de Aires Gomes; a ambição de alguns aventureiros; o
arrependimento de outros. De um lado, o cavalheirismo natural de Peri; de outro, a
ferocidade dos Aimorés – entre ambos, a hospitalidade dos goitacazes.
Por fim, insinua-se a figura perturbadora de Isabel, filha bastarda de D. Antônio
de Mariz com uma índia. A mestiçagem não representa a promessa da mediação
conciliadora. Pelo contrário, eis como a morena se define: “Filha de duas raças inimigas
devia amar a ambas; entretanto minha mãe desgraçada fez-me odiar uma, o desdém com
que me tratam fez-me odiar a outra”.
Em lugar de dirimir o conflito, as “gradações infinitas” tornam a situação mais
explosiva. No final do romance, o contraste do fogo – causado pelo incêndio do solar –,
e da água – resultante de um autêntico dilúvio –, reitera a ausência de mediações. Em
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Iracema, Alencar retornou ao primeiro encontro do branco com uma índia; e, em
Ubirajara, ao período pré-cabraliano. Desse modo, reduziu a complexidade da
formação social, mas não pôde suprimir nem a melancolia de Iracema, tampouco a
instabilidade de Ubirajara.
O impasse da trilogia indianista esclarece a força seminal de O guarani. Sob a
aparência do encontro amoroso de Peri e Ceci, Alencar propõe uma ácida reflexão
acerca da ausência de mediações pacificadoras. Mais do que romance de fundação da
nacionalidade, O guarani é o exame do dilema brasileiro. Em 1857 – ou em 2007.
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