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JOANINHA DOS OLHOS VERDES DE ANTÓNIO TORRADO DOSSIÊ PEDAGÓGICO

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JOANINHA DOS OLHOS VERDES

DE ANTÓNIO TORRADO

DOSSIÊ PEDAGÓGICO

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FICHA ARTÍSTICA de António Torrado

a partir de Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett

versão cénica e encenação João Mota

com João Grosso, José Neves, Manuel Coelho, Maria Amélia Matta, Bernardo

Chatillon, Joana Cotrim, Jorge Albuquerque, Lita Pedreira, Luis Geraldo, Maria

Jorge e Rita Figueiredo (ano 2012/2013 ESTC)

figurinos Carlos Paulo a partir dos figurinos do espólio do TNDM II de António

Alfredo, Helena Reis, José Costa Reis, Marta Carreiras e Ruy de Matos

desenho de luz José Carlos Nascimento

direção musical e assistência de encenação Hugo Franco

vídeo Pedro Macedo

produção TNDM II

M/12

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O ESPETÁCULO Livremente inspirada no episódio romanesco das Viagens na minha terra de Almeida

Garrett, esta peça tem como destinatário principal a juventude de hoje, que nela

encontrará motivos de identificação com muitos dos seus dilemas atuais. Os

primeiros amores, as opções de vida, os confrontos com as gerações precedentes

são, entre outros, os conflitos de suporte da peça. O apaixonadiço Carlos encontra

na prima Joaninha a sua Ofélia, mas ao amor que desponta opõe-se a figura de

aparência sinistra de um frade ou ex-frade, resistente a todas as mudanças. Que

levará Frei Dinis a semelhante obsessão? O liberalismo de Carlos obriga-o ao exílio.

Quando regressa tudo se alterara no seu pequeno núcleo familiar. O drama com

rasgos de melodrama já passara por ali. Mas tudo acabará em bem, isto é, na

glorificação irónica da nova nobreza, quando o antigo revolucionário Carlos for,

pressuroso, ocupar o seu lugar no coro dos recém-nobilitados barões.

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OS NOVELOS DO DESTINO

POR ANTÓNIO TORRADO

Reconhece-se Almeida Garrett como o grande renovador ou até refundador do

teatro português. Mas a ele se deve também a inauguração de um estilo narrativo

sustentado pela oralidade. A partir de Garrett, sobretudo o Garrett das Viagens na

minha terra, a prosa (e também a poesia!) ganhou fluência, ritmo, atrevimento,

frescura. A ambição de se “escrever tal e qual se fala” derrotou a de se “falar tal e

qual se escreve”.

Para que o autor do Frei Luís de Sousa alcançasse este novo patamar literário, terá

sido decisiva a sua familiaridade com o texto dramático. Desafetar a voz, através do

uso corrente de expressões colhidas no quotidiano, era o programa romântico que o

dramaturgo, poeta, romancista, cronista, orador, vivamente aplicou.

Não será por isso de surpreender que me tenha proposto destacar das Viagens na

minha terra o episódio romanesco de “A Janela dos Rouxinóis”, dando ao enredo a

oportunidade de falar por si e de outro modo que não só o da ficção narrativa. Por

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igual se justifica que o próprio Garrett, num tempo fora do tempo, intervenha em

corpo, tantas vezes contraditado pela urgência dos aconteceres por ele maquinados.

Condutoras ou conduzidas, as personagens tanto se enleiam nas linhas do destino

que do enovelado de interrogações saltam as deusas Parcas, de tesouras lestas,

prontas a intercetar a vida de quem quer que se lhes oponha. Que tais feiticeiras

lembrem as bruxas da inventiva shakespeariana suponho que não causará

escândalo. Destes e de mais atropelos só o teatro e as suas mágicas disformes serão

culpados.

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JOANINHA DOS OLHOS VERDES: UMA AMIZADE AMOROSA

POR JOÃO MOTA

Formou Deus o homem, e o pôs num paraíso de delícias; tornou a formá-lo a

sociedade, e o pôs num inferno de tolices. O homem — não o homem que Deus fez,

mas o homem que a sociedade tem contrafeito, apertando e forçando em seus

moldes de ferro aquela pasta de limo que no paraíso terreal se afeiçoara à imagem

da divindade — o homem assim aleijado como nós o conhecemos, é o animal mais

absurdo, o mais disparatado e incongruente que habita na terra.

Almeida Garrett, Viagens na minha terra

Nunca fui muito favorável à apresentação de peças que reproduzissem o programa

das escolas. A função do Teatro não é ajudar os professores com os textos que os

alunos são obrigados a ler nas escolas mas, pelo contrário, complementar o ensino e

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dar a conhecer outros textos desses autores. Fizemo-lo recentemente com a peça Gil

Vicente na Horta, onde abordámos as Barcas, um texto do Programa de Português,

mas igualmente um conjunto de peças de referência de Gil Vicente. No caso de um

autor como Almeida Garrett, a peça que faz parte do Plano Nacional de Leitura é

Falar verdade a mentir. Ora aquilo que tentámos com este espetáculo foi justamente

o dar a conhecer aos alunos outro texto de Garrett. E, parece-me, nada melhor do

que partir do célebre romance Viagens na minha terra, um texto de leitura

obrigatória da nossa literatura.

Almeida Garrett foi uma personalidade de destaque da nossa sociedade. Homem de

grande cultura, cuja permanência em França e Inglaterra lhe permitiu conhecer o

movimento cultural europeu, Garrett desempenhou também um papel relevante no

programa de educação cultural setembrista, designadamente na renovação da

dramaturgia nacional: empenhou-se na criação da Inspeção Geral dos Teatros, do

Conservatório de Arte Dramática e do futuro Teatro Nacional. Garrett defendia ainda

algo que me parece essencial - não se pode falar de teatro sem se criar uma

dramaturgia própria de cada país.

Garrett vive ainda o período da Revolução Francesa, marcada pelos três célebres

princípios: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Toda esta conjuntura terá

certamente contribuído para que o escritor se tenha dedicado a um género muito

próximo do melodrama, tão presente no teatro moderno europeu e americano.

Em Joaninha dos olhos verdes, uma peça escrita por António Torrado a partir das

Viagens na minha terra, centramo-nos essencialmente no romance entre os primos

Carlos e Joaninha. Este pequeno núcleo é ainda constituído por uma avó, que vai

cegando, e por um frade, tio de Carlos, que contribui para o sustento da casa e cuja

verdadeira identidade se revelará no fim da peça. Esta é, portanto, a história de uma

amizade amorosa entre Carlos e Joaninha. Na peça, vemos ainda Carlos em fuga

para Inglaterra, local onde conhece três meninas que António Torrado coloca em

cena para nos relembrar as célebres Bruxas de Macbeth. O que é ainda

verdadeiramente interessante nesta peça é o facto de o próprio Almeida Garrett

aparecer na trama, quase como protetor de Carlos. Apenas Carlos o consegue ver e

ouvir durante a peça e Almeida Garrett surge neste texto com uma grande ironia,

que lhe era aliás própria. Garrett acaba assim por funcionar como um narrador para

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o público, que conta a História de Portugal, as guerras do absolutismo com o

liberalismo.

Ao nível da encenação, julgo que esta é uma peça que vive da interpretação dos

atores e da relação entre os mais novos e os mais velhos. O espaço é muito

despojado e conta com uma montagem de vídeos que retratam situações de guerra

e nos transportam para uma realidade infelizmente atual. A questão do amor e da

beleza da amizade amorosa entre os primos foi algo que me interessou aqui

explorar, assim como a inocência da Joaninha. Se entrarmos neste quadro bucólico,

encontraremos também alguma amargura e traições. Encontramos a própria

desilusão de constatar que os princípios da Liberdade, Igualdade e Fraternidade não

existem. A relação que temos entre os homens não é fraterna nem solidária.

Enquanto não nos conhecermos a nós próprios é difícil darmo-nos afetivamente ao

outro.

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ALMEIDA GARRETT POR MARIA HELENA SANTANA

"João Batista da Silva Leitão [mais tarde de Almeida Garrett], nasceu no Porto, em

1799. Aí passou a primeira infância, num caloroso ambiente burguês que lhe deixaria

gratas recordações. Aos 10 anos parte com a família para os Açores, onde inicia a sua

formação literária, sob a tutela do tio Frei Alexandre da Sagrada Família, bispo de

Angra.

Em 1816 ingressa na Universidade de Coimbra, para seguir estudos de Leis. A

vivência académica seria determinante na sua iniciação política e filosófica. Ainda

estudante, participa no movimento conspirativo que conduziria à revolução de 1820.

Paralelamente despontava, irreverente, a vocação literária: no ano seguinte surgia o

seu primeiro livro, O Retrato de Vénus, um ousado poema que lhe mereceu um

processo em tribunal.

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No período conturbado que se seguiu, o trajeto pessoal do escritor (já casado com

uma menina elegante, Luísa Midosi) entrelaça-se com a história política do

Liberalismo. A revolução foi um breve momento de entusiasmo liberal, logo desfeito

pela chegada ao poder da fação conservadora, que apoiava o Infante D. Miguel.

Garrett foi obrigado a deixar o País (entre 1823-26), situação que se repetiria pouco

tempo depois (1828-31), na sequência da abdicação de D. Pedro. No entanto, o

escritor encontra na circunstância penosa do exílio uma oportunidade

intelectualmente vantajosa. A permanência em França e Inglaterra permitiu-lhe

conhecer o movimento cultural europeu, na sua dimensão artística e ideológica. A

publicação (ainda em Paris) dos poemas Camões e Dona Branca – os primeiros

textos românticos portugueses – constitui o resultado mais simbólico e expressivo

dessa experiência.

O regresso a Portugal, em 1832, integrando a expedição liberal comandada por D.

Pedro, constituiu um momento heroico para o «poeta-soldado», que se incorpora no

Batalhão Académico; Garrett foi chamado a participar nas reformas legislativas do

novo regime, mas pouco depois afastado do poder, sob pretexto de missões

diplomáticas no estrangeiro. Voltará à cena política em 1836, no contexto da

«revolução de setembro», pela mão de Passos Manuel: faz parte das Cortes

Constituintes e ajuda a redigir a Constituição de 1838. Além de deputado,

desempenha também um papel relevante no programa de educação cultural

setembrista, designadamente na renovação da dramaturgia nacional: empenha-se

na criação da Inspeção Geral dos Teatros, do Conservatório de Arte Dramática e do

futuro Teatro Nacional; no mesmo espírito funda O Entreato – Jornal de Teatros e

leva à cena, com grande êxito, a peça Um Auto de Gil Vicente.

Durante os anos 40, sob o regime autoritário de Costa Cabral, Garrett destaca-se na

oposição; no entanto, o entusiasmo e o fervor militante vão-se exaurindo, perante a

instabilidade política, o materialismo triunfante e o próprio desvirtuamento do ideal

liberal. Descontente com o devir da revolução, afasta-se da vida pública em 1847.

Desse desencanto patriótico dão significativo testemunho algumas obras publicadas

neste período, o mais fecundo da criação literária garrettiana (O Alfageme de

Santarém, Frei Luís de Sousa, Viagens na Minha Terra e O Arco de Sant’Ana, por

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exemplo).

Em 1851 regressa ao Parlamento, já sob a acalmia política da Regeneração. Recebe

nesta derradeira fase da vida alguns gestos oficiais de consagração: é feito visconde,

em 1851 e nomeado Par do Reino, no ano seguinte; chega ainda a ocupar um cargo

ministerial (Negócios Estrangeiros), de que seria demitido pouco tempo depois.

Morreu em 9 de dezembro de 1854, depois de uma vida sentimental

romanticamente atribulada: um casamento juvenil mal sucedido, com Luísa Midosi;

a morte precoce da segunda companheira, Adelaide Pastor, que lhe deixa uma filha

ilegítima; e por fim uma paixão adúltera, com a Viscondessa da Luz, celebrada em

versos escandalosos.

Amante de prazeres mundanos, galante e apaixonado, foi sempre um conspícuo ator

do palco social romântico, sabendo reverter em seu favor a imagem de dandy

cosmopolita que sempre cultivou. No auge de uma carreira brilhante e de uma vida

intensamente fruída, Almeida Garrett podia justamente orgulhar-se da sua eclética

presença na cultura portuguesa de Oitocentos; de ser (palavras suas) «… um

verdadeiro homem do mundo, que tem vivido nas cortes com os príncipes, no

campo com os homens de guerra, no gabinete com os diplomáticos e homens de

Estado, no parlamento, nos tribunais, nas academias, com todas as notabilidades de

muitos países – e nos salões enfim com as mulheres e com os frívolos do mundo,

com as elegâncias e com as fatuidades do século.»

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A Obra

Ancorada no tempo histórico do Liberalismo, a obra literária garrettiana não pode

conceber-se alheada do contexto político e cultural que a motivou. Da mesma

circunstância decorre a orientação ‘iluminista’ e eticamente empenhada que desde

início o seu trajeto literário revestiu, por entender que «o poeta é também cidadão».

- A poesia lírica e narrativa dominaria a primeira fase da sua carreira, ainda oscilante

entre a lição do neoclassicismo convencional e a nova corrente romântica, de

inspiração nacionalista. Depois do controverso Retrato de Vénus (1821) publica, no

exílio, os poemas Camões (1825) e Dona Branca (1826) - textos fundadores do

Romantismo português – a que seguiria a coletânea Lírica de João Mínimo (1829).

Começou também nesta fase o trabalho de recolha e preparação dos textos do

cancioneiro tradicional português, fonte inspiradora dos poemas narrativos Bernal

Francês e Adozinda (1828). Só posteriormente viriam a lume os três primeiros

volumes do Romanceiro (1843; 1851), ainda hoje em parte inédito.

- A par da produção literária, o jornalismo ocupa neste período um lugar importante

na sua escrita. Garrett cedo se apercebeu do imenso poder democratizador da

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Imprensa nas sociedades modernas (enquanto formadora da opinião) e saberia tirar

excelente partido desse veículo privilegiado de socialização do público burguês. Já

em 1822 lançara um pequeno jornal mundano – O Toucador (destinado às

senhoras). No final dos anos 20 dirigiu dois periódicos de referência, O Português e O

Cronista. Mais tarde fundaria O Português Constitucional (1836) e o jornal teatral O

Entreato (1837). Datam também dos tempos do exílio dois importantes ensaios: Da

Educação (1829), um tratado de filosofia pedagógica dedicado à futura rainha D.

Maria II; e Portugal na Balança da Europa (1830), uma notável reflexão de índole

histórico-política.

A fase da maturidade (década de 40, sobretudo) seria particularmete fecunda, do

ponto de vista literário. Surgem nesta altura as obras maiores do Autor, abrangendo,

com notável versatilidade, a lírica, a narrativa e o drama.

- Garrett atribuía ao Teatro uma alta função civilizadora, e empenhou-se

intensamente na sua renovação. Queria uma produção nacional de qualidade,

suscetível de elevar o gosto e a cultura do público. A vocação dramatúrgica, revelada

na juventude (as tragédias Catão, Lucrécia e Mérope), conhece a partir de 1838 um

novo élan, com o êxito de Um Auto de Gil Vicente. Seguir-se-ia um conjunto de peças

que modelizam, em diferentes géneros, a sua eclética veia teatral: o drama histórico

– O Alfageme de Santarém, Frei Luís de Sousa, D. Filipa de Vilhena – e a comédia –

Falar verdade a mentir, Profecias do Bandarra, Um Noivado no Dafundo, entre

outras. Frei Luís de Sousa (1844) é reconhecidamente a que melhor realiza o seu

ideal de sobriedade artística: combinando o pathos da tragédia clássica e a

atualidade vivencial do drama familiar, permanece ainda hoje um texto modelar da

literatura dramática nacional.

- A poesia lírica, embora continue em certos aspetos datada, conhece também uma

renovada inspiração. Das duas coletâneas poéticas desta fase – Flores sem Fruto

(1845) e Folhas Caídas (1853), a última é sem dúvida a mais interessante, e onde

mais livremente se expande o individualismo romântico. Aos temas mais

convencionais – a divisão interior, a dialética mundo/espírito, o apelo de um

idealismo transcendente (O Amor, A Perfeição, Deus, como absolutos da inquieta

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alma poética) –, acrescenta-se uma nova e ousada expressão do amor, epitomizada

no famoso verso «Não te amo, quero-te!».

- Apesar de escassa, a obra romanesca de Garrett tem um rasgo inconfundível de

originalidade. Viagens na Minha Terra (1843/1846) pode considerar-se a primeira

narrativa moderna portuguesa: utilizando um estilo desenvolto e informal, em

diálogo permanente com o leitor, o autor realiza, à maneira de Stern, uma obra-

prima de ironia intelectual; sob o pretexto de uma crónica de viagem (que também

é), oferece-nos uma ampla e lúcida representação do tempo histórico e social do

Liberalismo. Idêntica estrutura digressiva e aparentemente desconexa caracteriza o

romance histórico O Arco de Sant’Ana (1845/ 1851), um texto polémico e repassado

de humor, cuja ação se reporta a uma revolta popular contra o bispo do Porto, no

século XIV. Ficaria inacabado um terceiro romance, Helena, bem como diversos

esboços narrativos deixados inéditos. Encontra-se ainda dispersa e carecendo de

estudos temáticos uma vasta produção fragmentária, de natureza literária,

ensaística e jornalística (em particular no domínio da crónica política, cultural e

mundana), bem como diversos discursos e textos de circunstância."

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GARRETT E A HISTÓRIA

Garrett viveu a transição do século XVIII para o século XIX, a viragem do Portugal

velho para o Portugal novo sob a égide da revolução francesa. Garrett foi

protagonista e espectador de acontecimentos fundamentais na cultura, na política e

na sociedade portuguesas. Antes da revolução de 1820, que saudou com

entusiasmo, já se distinguira como paladino das ideias liberais. Dentro e fora do país,

combateu o absolutismo, participando na luta e na resistência. O exílio, o

desempenho de funções diplomáticas e outras atividades obrigaram-no a residir

alguns anos em Inglaterra, na França e na Bélgica. Foi um dos colaboradores de

Mouzinho da Silveira na redação e elaboração de tão polémica legislação, mas

decisiva para nos inserirmos na Europa: os decretos para a reorganização das

finanças públicas, da justiça e da divisão administrativa que modificaram o sistema

governativo. Colaborou com Passos Manuel, no período em que este impulsionou a

criação da Academia de Belas-Artes de Lisboa e do Porto. Pertence-lhe uma das

primeiras leis portuguesas para a definição da propriedade literária e do direito de

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autor, instrumento jurídico essencial para a dignificação e independência da criação

intelectual. “A ciência, a arte de governar, que hoje chamamos política, teve por

aliadas íntimas e indispensáveis as letras e as artes; é impotente sem elas, são

repugnantes e odiosos os seus esforços quando os não acompanham e suavizam

aquelas”. Em Garrett o intelectual e o político eram partes do mesmo todo, daí

participarem na mesma afirmação de cidadania. Sem ter escrito memórias, Garrett

confiou-as ao seu biógrafo e amigo Gomes de Amorim. Também se encontram em

sucessivos capítulos das Viagens na minha terra. Ali registou reminiscências dos

principais acontecimentos da primeira metade do século XIX: as invasões francesas,

as lutas liberais, os traumas do exílio, as consequências da máquina a vapor, a

construção de estradas macadamizadas, os preparativos para o caminho-de-ferro,

cujo primeiro troço, de Lisboa ao Carregado, seria inaugurado em 1856, dois anos

após a sua morte.

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IMAGENS DA MULHER NA LITERATURA PORTUGUESA OITOCENTISTA

POR CECÍLIA BARREIRA

A imagem da mulher na literatura oitocentista. Que abordagens possíveis?

Que territórios poderemos designar, que pistas, que interrogações, que ideias

distinguir? Mais: até que ponto a sobreposição da imagem do feminino através do

filtro de uma obra literária possibilita uma direcção de análise coerente e

estruturada?

Elegemos, sim, algumas particularidades sobre o modo de designação do corpo

feminino em obras de Almeida Garrett e Eça de Queirós, a fim de se reconhecerem

trilhos vários de interpretação. Se o local do feminino privilegia um certo

despojamento perante o tempo e a memória, articulando proximidades,

recalcamentos, repugnâncias, numa suprema transfiguração de verosimilhanças e de

relações lógicas, então viajemos pelo que do olhar masculino se reenvia para uma

interpelação dos padrões do desejo.

Uma preocupação nos reúne neste entrecho: que exemplos recolher da pluralidade

que se nos depara? Filtrar o essencial de uma teia dissimulada e quase

imperceptível, reter-lhe o insuspeitado enigma: eis a proposta desta breve incursão.

Em Garrett, o autor das Viagens na Minha Terra, o corpo não é nomeado numa

totalidade que transmita objectivamente o desejo. Pelo contrário, assiste-se a uma

dessexualização, que se efectua pela sucessiva autonomia conferida a partes

isoladas do corpo e pela introdução de um discurso moralizador e solenizado.

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Joaninha, paradigma do que poderia constituir um ideal de beleza, consubstancia a

perfeita dissociação em relação à matéria. Na qualquer suspeita de uma frivolidade,

de uma sensualidade pressentida, numa subtracção a esse estádio virginal a que as

mulheres devem obedecer e se resguardar, incólumes ao pecado e à indigência,

imediatamente se repõe uma ordenação que não suscite dúvidas. Aliás, quem peca

pela exuberância física só poderá ser redimido, no confronto com uma moral e um

itinerário de culpas, pela absoluta renúncia, pela indelével ausência do corpo que se

transporia ou se exibe. O apaziguamento advirá de uma ocultação do sexo,

fantasmizado no olhar do(s) outro(s).

Mas salientemos com algum pormenor a descrição da imagem física de Joaninha nas

Viagens. O primeiro indício é já em si tranquilizante. À simetria da paisagem

corresponde uma «simetria de proporções no corpo» de Joaninha. É curioso

assinalar que a ambiência do Vale de Santarém se reconhece num todo harmónico

onde cores e sons se equilibram e se integram. Não se faz apelo a nenhum conflito,

ou a algo que estorve este devastador e impressionado quadro de magia. Em

Joaninha, a elegância do porte é «nobre», o desembaraço «modesto» e a

flexibilidade «graciosa».

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A adjectivação utilizada funciona claramente numa castração da pulsão erótica. Se a

pele se denuncia «branca», tal brancura é imediatamente sugerida numa «modesta

alvura da cera». A cada enunciação de caracteres físicos corresponde uma valoração

ética. A boca, por exemplo, «pequena e delgada», inspira ao autor uma reflexão

sobre o comportamento feminino. Isto é, a propósito da boca de Joaninha, o autor

refere-se, por situação antinómica, a «certas boquinhas, gravezinhas e

espremidinhas pela doutorice que são a mais aborrecidinha coisa e a mais pequinha

que Deus permite fazer às suas criaturas fêmeas». À mulher não cabia o sentido

opinativo, a dúvida, o manuseamento do verbo. Pelo contrário, pediam-se-lhe a

submissão e uma pose discreta de fada do lar.

Mas prossigamos a descrição. As sobrancelhas da protagonista eram pretas e

«desenhavam-se numa longa curva de extrema pureza». E os contrastes,

nomeadamente o da alvura da pele perante a cor negra dos cabelos, remetem para

um esvaziamento de uma qualquer sensualidade. Os olhos poderiam restituir essa

impressão sensual a um todo tão teimosamente vocacionado para a ascese. Mas

também aí a vertente censória se faz sentir quando se indica que esses olhos não

eram «daquele verde traidor da raça felina», tão-pouco «daquele verde mau e

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distinguido».

«Eram verdes, verdes, puros e brilhantes como esmeraldas». Para compor o quadro

adianta-se, pudicamente, que a cor do vestido era azul-escuro, num cinto e avental

pretos. Recondução a um estádio de inexpugnável pureza, quase feérica, onde a

desordem desencadeada pela pose felina da mulher-sexo se não insinua. A pureza

torna-se significado de recusa do corpo. O olhar que deseja, de tanto purificar,

rarefaz-se de intenção, reduz-se impotente ao deslumbramento moral. Mutilamento

do desejo? Também Joaninha preenche um ideal inautêntico ao pertencer a um

tempo-memória que nem sequer se evoca em alucinação. Antes se projecta em

sonho, num todo alegórico e imaginário. A mulher identifica-se com a perdição e o

Diabo. Joaninha, pelo contrário, através de uma conduta angélica, assemelha-se a

um qualquer ser híbrido entre criança, terra e gente. Funde-se em paisagem e cor.

Encontra-se desprovida de um real autêntico. Aliás, as personagens femininas na

ficção garrettiana são, no geral, graves, solenes e impolutas. Quase trágicas. Aptas

ao sacrifício, tornam-se vítimas de um destino maldito. A emergência deste

sentimento de culpa prende-se ainda com a linguagem do corpo.

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Porque nele se desperta a sedução pelo interdito. Joaninha esvazia- se perante o

olhar do desejo; Madalena do Frei Luís de Sousa consagra a culpa por uma

lembrança de desejo (pensá-lo é incorrer em pecado) e Maria, que se esvai em

sangue, penaliza-o ao ponto de o desterrar, de o transcender. Ausentes do corpo,

acarretam desagravos, interrompem-se no vazio que resguardam, fogem de medos,

presságios e inimigos que desconhecem.

Renunciam e morrem.

Análise Social, vol. XXII (92-93), 1986-3.°4.°, 521-525.

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REPRESENTAR O GÉNERO FEMININO

POR MARIA JOÃO BRILHANTE

Em 1949, Simone de Beauvoir surpreendeu o mundo com a publicação de uma obra,

ainda hoje incontornável, sobre o feminino como segundo sexo. Justificava-a com a

necessidade de denunciar o processo histórico que conduziu à construção da

diferença sexual atribuída à mulher na cultura ocidental. Pela primeira vez se

concebia o género feminino como culturalmente construído e não como essência

biológica, e se questionava o papel de Outro imposto à mulher na relação com o

homem.

Por seu turno, num texto de carácter introdutório4 ao conceito de “gender” e à sua

pertinência para os estudos literários, Myrna Jehlen ironicamente assinalava a

descoberta, feita, nos anos 90, pelos linguístas e críticos literários, de que as suas

análises estavam marcadas por concepções relativas à distinção entre sexos, desse

modo e impensadamente impostas à leitura dos textos.

À constatação de que língua e sociedade conformavam uma ideia de género,

sucedeu-se a interrogação sistemática das implicações que tiveram na “condição

feminina” a representação literária e artística do feminino ao longo dos tempos e a

leitura crítica dessa representação. De facto, estudar representações do feminino

nas artes e nas letras implica reconhecer sinais e figuras da posição masculina

dominante sobre o feminino e a mulher que com frequência se insinua no lugar do

leitor ou observador e determina, reforçando-a, a construção social da relação entre

os sexos.

Implica, também, analisar textos e imagens como estratégias de diferenciação que

pressionam homens e mulheres a sinalizarem o género a que se supõe deverem

pertencer. Finalmente, pede um trabalho sistemático de des-naturalização dessa,

entre outras, categoria do “carácter humano”, pondo a nú a construção

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sociolinguística que a constitui.

Também Bourdieu chamou a atenção para o trabalho histórico de

deshistoricização/naturalização de oposições que são atribuídas a uma ordem

cósmica e a consagram e que assentam em mecanismos estruturais e estratégias de

perpetuação da dominação masculina, manifestada, por exemplo, através de

representações, com uma forte invariante transhistórica, do feminino. Por isso, a

divisão entre os sexos funciona como esquema “de percepção, de pensamento e de

acção” imposto por instituições (família, igreja, estado, escola, segundo Bourdieu)

cujas transformações têm de ser estudadas pelo poder que detêm na construção

social dos géneros. (...)

Num mundo realmente edificado sobre os valores masculinos em que, quer a ordem

do pensamento, quer as práticas de delimitação social dos papéis atribuídos à

mulher (mesmo se a partir de certa altura por ela conquistados) se restringem

muitas vezes a construir variações em torno da androcentrada supremacia física

masculina, das diferenças anatómicas, reproduzidas ad aeternum através de

metáforas e símbolos, permanece maioritariamente válida a imagem idealizada da

mulher (na literatura oitocentista, anjo ou demónio, como veremos), a “construção

social naturalizada” de que fala Bourdieu, mesmo quando ambiguidades e paradoxos

a vêm perturbar. Digamos que é nela e contra ela que hoje se representa ou se

interroga o género feminino, mas nunca radicalmente à margem de uma apriorística

essência feminina, nem das “oposições homólogas das divisões tradicionais” entre

feminino e masculino (dentro/fora, mole/duro, fraco/forte, baixo/alto,

fechado/aberto, etc.). A menos que nos desloquemos para o território da ficção

científica ou de universos utópicos povoados de seres andróginos, assexuados ou de

sexualidade híbrida que se vêm espalhando com sintomáticas repercussões no

imaginário fantasmático de alguns grupos sociais, mas também de modo mais

explícito nas manifestações de alguma moda, sempre atenta às dinâmicas sociais de

imposição de princípios genéricos (do ponto de vista masculino sobre o feminino).

Os “gender studies”, vertente dos estudos culturais que veio enquadrar o trabalho

crítico e político dos movimentos feministas e homossexuais, procuraram alargar o

campo da reflexão, recorrendo muitas vezes a criações literárias e artísticas

enquanto representações, para nelas analisar o funcionamento da diferenciação

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genérica. A partir daí, tornou-se incontornável assinalar a poderosa distinção entre

género e sexo que decorre da questionação feminista à invisibilidade do género

ocultado pela natureza sexual do ser humano.

Por outro lado, se o género não existe fora da acção do sujeito, ele é de igual modo

socialmente construído e repetido, legitimando o quadro binário dominante. Por

conseguinte, existem directivas relativamente ao género que se manifestam e são

confirmadas ou interrogadas apenas quando o sujeito age social e publicamente. No

entanto, é esse agir que constrói o género e também a associação entre género e

sexo.

Como afirma Judith Butler, “If the ‘reality’ of gender is constituted by the

performance itself, then there is no recourse to an essential and unrealized ‘sex’ or

‘gender’ which gender performances ostensibly express.” Todavia, a acção que

constrói o género, constrói igualmente a ideia (ou “social fiction”, como dirá Butler)

da interioridade psicológica do género e mesmo, de uma essência sexual.

Mulher e Feminino na escrita romântica e em Garrett

“Joaninha não era bela, talvez nem galante sequer no sentido popular e expressivo

que a palavra tem em português, mas era o tipo da gentileza, o ideal da

espiritualidade. Naquele rosto, naquele corpo de dezasseis anos, havia, por dom

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natural e por uma admirável simetria de proporções, toda a elegância nobre, todo o

desembaraço modesto, toda a flexibilidade graciosa que a arte, o uso, a conversação

da corte e da mais escolhida companhia vêm dar a algumas raras e privilegiadas

criaturas no mundo. Mas nesta foi a natureza que fez tudo, ou quase tudo, e a

educação nada ou quase nada.

(....) Joaninha porém tinha os olhos verdes; e o efeito desta rara feição, naquela

fisionomia à primeira vista tão discordante, era na verdade pasmosa. Primeiro

fascinava, alucinava, depois fazia uma sensação inexplicável e indecisa que doía e

dava prazer ao mesmo tempo: por fim pouco a pouco, estabelecia-se a corrente

magnética tão poderosa, tão carregada, tão incapaz de solução de continuidade, que

toda a lembrança de outra coisa desaparecia, e toda a inteligência e toda a vontade

eram absorvidas.” (Viagens na minha terra, cap.XII)

Este excerto, por demais conhecido dos leitores entusiastas da prosa garretiana, tem

sido inúmeras vezes citado e comentado e se aqui o reproduzo é pelo modo

exemplar como constrói o paradigma romântico da feminilidade, como naturalize

essa feminilidade e a dissocia de um feminino dito “artificial”, resultante da

educação, que na economia da narrativa (e na construção da heroína), vem, note-se,

servir de padrão à sobrevalorização da natureza: como se o narrador nos dissesse

que, por vezes, (raras vezes) a natureza é capaz de uma perfeição só comparável à

que é produzida pela cultura mais refinada. O destaque atribuído aos olhos verdes,

tradicional e simbolicamente reconhecidos como traiçoeiros e perigosos (e a

descrição dos efeitos sensuais provocados pelos olhos de Joaninha é eloquente),

confirma também a excepcionalidade da protagonista, através do contraste entre

um desvio da natureza e o padrão culturalmente dominante de beleza (os olhos

negros). A representação romântica da mulher quer construir uma ideia de feminino

como lugar de contradições, mistérios indecifráveis, contrastes fatais entre espírito e

corpo, ascese e desejo. “Musas desencadeadoras do que há de melhor, por vezes de

pior, no homem, as heroínas dos grandes textos românticos não deixam de ser assim

figuras idealizadas e ideais.” Estas palavras de Graça Videira Lopes resumem a

perspectiva masculina que, na escrita romântica, se transmite ao representar-se a

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mulher e o seu papel na relação com o homem, perspectiva bem ilustrada, creio,

pelos versos seguintes:

“Se tu conversas co’as flores/ Se cismas, a olhar sem ver,/ Pastora sonhas pastores,/

Amando sem no saber;/ Dize, dize, pastorinha:/ Tu lidas nisto sozinha.” (A Pastorinha

de João de Lemos). (...)

As figuras femininas na literatura, e não apenas romântica, parecem muitas vezes

possuir uma autonomia e um poder sobre os seus parceiros masculinos que advêm

dessa idealização produtora de uma (des)ordem aparentemente contrária aos reais

papéis e lugares que lhes cabem fora da ficção. Anjos ou demónios são, nesse caso,

representadas como manipuladoras e, cume da idealização, capazes de converter a

diferença (doçura, fraqueza, intimismo, sensibilidade) em vantagem sobre o Outro

masculino.

Universidade Aberta, março, 2006.

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