Jo Nesbo - A Casa da Dor.pdf

736

Transcript of Jo Nesbo - A Casa da Dor.pdf

  • TraduoGrete Skevik

  • 2014

  • N371c

    14-08584

    CIP-BRASIL. CATALOGAO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    Nesbo, Jo, 1960-A casa da dor [recurso eletrnico] / Jo Nesbo; traduo Grete Skevik. - 1. ed. - Rio de Janeiro:

    Record, 2014.

    Traduo de: SorgenfriSequncia de: Garganta vermelhaContinua com: A Estrela do DiaboFormato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide WebISBN 978-85-01-10231-7 (recurso eletrnico)

    1. Literatura norueguesa (Ingls) 2. Livros eletrnicos. I. Skevik, Grete. II. Ttulo. III. Srie.

    CDD: 839.82CDU: 821.111(481)

    Ttulo original em noruegus:Sorgenfri

    Copyright Jo Nesb 2002

  • Editorao eletrnica da verrso impressa: Abreus System

    Texto revisado segundo o Novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa.

    Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo, no todo ou em parte, atravs de quaisquer meios.

    Direitos exclusivos de publicao em lngua portuguesa somente para o Brasiladquiridos pelaEDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina 171 - Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 2585-2000que se reserva a propriedade literria desta traduo

    Produzido no Brasil

    ISBN 978-85-01-10231-7

    PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTALCaixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro, RJ - 20922-970

  • Parte I

  • Captulo 1

    O Plano

  • Vou morrer. E no faz sentido. No era esse o plano, pelo menos no o meu.Pode ser que eu estivesse a caminho o tempo todo sem nunca ter me dadoconta. Mas o meu plano era outro. Era melhor. Fazia sentido.

    Estou olhando fixamente para dentro de um cano de revlver e sei que de lque ele vir. O mensageiro. O cocheiro. Tempo para uma ltima gargalhada. Sevoc v a luz no fim do tnel, pode ser a chama de uma arma. Tempo para umaltima lgrima. Poderamos ter feito algo bom dessa vida, voc e eu. Setivssemos seguido o plano. Um ltimo pensamento. Todos perguntam qual osentido da vida, mas ningum pergunta qual o sentido da morte.

  • Captulo 2

    Astronauta

    O velho fez Harry pensar em um astronauta. Os passos comicamente curtos, osmovimentos rgidos, o olhar sombrio e morto e as solas dos sapatos searrastando pelo piso de parquete. Como se estivesse com medo de perder ocontato com o cho e ser levado pelo vento, para o espao.

  • Harry olhou o relgio na parede branca sobre a porta de sada: 15h16. Dolado de fora da janela, na rua Bogstad, as pessoas passavam com a pressa dassextas-feiras. O sol baixo de outubro se refletiu no espelho retrovisor de um carroque abria caminho na rua movimentada.

    Harry se concentrou no velho. Usava chapu e um elegante casaco cinza queprecisava ser lavado. Por baixo, uma jaqueta de tweed, gravata e calas cinzasurradas com vinco marcado. Sapatos lustrosos com saltos desgastados. Umdesses aposentados que pareciam povoar o bairro chique de Majorstua. No erauma suposio. Harry sabia que August Schulz tinha 81 anos e fora outrora umcomerciante de roupas que morara sua vida inteira em Majorstua, exceto durantea guerra, quando morara numa caserna em Auschwitz. E os joelhos rijos eramresultado da queda de uma passarela de pedestres sobre a rua Ringveien, poronde ele passava nas suas visitas regulares filha. A impresso de um bonecomecnico foi ampliada pelos braos dobrados em ngulo reto nos cotovelos eapontados para frente. No antebrao direito pendia uma bengala marrom e amo esquerda segurava um formulrio de transferncia bancria, que ele jestendia ao jovem de cabelo curto no guich dois. Harry no via seu rosto, massabia que estava olhando o velho com uma mistura de pena e irritao.

    Agora eram 15h17 e finalmente chegou a vez de August Schulz. Harry soltouum suspiro.

    Stine Grette estava no guich um e contava 730 coroas para um menino de

  • gorro azul que tinha acabado de passar um boleto bancrio para ela. Umdiamante brilhava no seu dedo anelar esquerdo a cada nota que ela colocava nobalco.

    Harry no podia ver, mas sabia que direita do menino, em frente ao guichtrs, tinha uma mulher com um carrinho de beb que ela balanava,provavelmente bem distrada, j que a criana dormia. A mulher estavaesperando ser atendida pela senhora Brnne, que explicava em voz alta a umhomem no telefone que ele no podia debitar automaticamente sem que ousurio da conta houvesse assinado um acordo a respeito, e quem trabalhava emum banco era ela e no ele, portanto talvez pudessem encerrar a discusso porali mesmo.

    No mesmo instante, a porta da agncia bancria se abriu e dois homens, umalto e um baixinho, em idnticos macaces escuros, entraram apressados. StineGrette levantou o olhar. Harry olhou seu prprio relgio e comeou a contar. Oshomens se dirigiram ao canto onde estava Stine. O homem alto se movimentoucomo se pisasse em poas dgua, enquanto o baixinho tinha a ginga de quemarranjara msculos maiores do que podia conter. O menino de gorro azul se viroudevagar e deu uns passos em direo porta de sada, to entretido em contar odinheiro que nem notou os dois homens.

    Ol disse o homem alto para Stine. Aproximou-se e colocou uma maletapreta no balco com fora. O baixinho ajeitou um par de culos escuros

  • espelhados, deu um passo para a frente e colocou uma maleta idntica ao ladoda primeira.

    Dinheiro! chiou com voz fina. E abre essa porta!Foi como apertar um boto de pausa: todos os movimentos na agncia

    congelaram. A nica coisa que revelava que o tempo no estava parado era otrnsito l fora. E o mostrador de segundos no relgio de Harry, que agoramostrava que haviam se passado dez segundos. Stine apertou um boto embaixode sua mesa. Ouviu-se um zunido eletrnico, e o baixinho abriu a pequena portade vaivm com seu joelho.

    Quem tem a chave? perguntou. Depressa! No temos o dia todo! Helge! gritou Stine por cima do ombro. O qu? A voz vinha de dentro da porta aberta ao nico escritrio da

    agncia. Temos visita, Helge!Um homem de gravata borboleta e culos de leitura apareceu. Esses senhores querem que abra o caixa automtico, Helge disse Stine.Helge Klementsen olhou os dois homens de macaco que agora estavam

    atrs do balco. O homem alto olhava nervoso para a porta de sada, mas obaixinho olhava fixo para o gerente da agncia.

    Ah sim, claro arfou Helge Klementsen, como se de repente tivesse selembrado de um compromisso esquecido e irrompeu em uma gargalhada

  • retumbante, febril.Harry no mexeu um msculo, apenas deixou os olhos absorverem os

    detalhes dos movimentos e a mmica. Vinte e cinco segundos. Ele continuouolhando o relgio em cima da porta, mas no canto do campo de viso ele viu ochefe da agncia destrancar o caixa automtico do lado de dentro, retirar duasgavetas de metal compridas com cdulas de dinheiro e estend-las para os doishomens. Tudo aconteceu rpido e em silncio. Cinquenta segundos.

    Esses so para voc, pai! O baixinho retirou duas gavetas idnticas eestendeu-as para Helge Klementsen. O gerente engoliu, assentiu com a cabea,pegou as gavetas e colocou-as no caixa automtico.

    Tenha um bom fim de semana! disse o baixinho, esticou as costas epegou a maleta. Um minuto e meio.

    No to depressa disse Helge.O baixinho enrijeceu. O recibo... disse Helge.Por um longo momento, os dois homens olharam para o gerente pequeno e

    grisalho. Ento, o baixinho comeou a rir. Um riso alto de voz fina, com um tomestridente e histrico, como de pessoas que tomam anfetamina.

    Voc no achou que a gente ia embora sem deixar a assinatura? Entregardois milhes sem recibo? Imagina!

    Bem respondeu Helge Klementsen. Um de vocs quase esqueceu na

  • semana passada. H tantos novatos no transporte de dinheiro hoje em dia disse o

    baixinho enquanto ele e Klementsen assinavam e distribuam cpias amarelas ecor-de-rosa.

    Harry esperou at que a porta de sada houvesse se fechado atrs deles antesde olhar o relgio de novo. Dois minutos e dez segundos.

    Atravs do vidro da porta podia ver o carro branco com a logo do BancoNordea.

    O dilogo entre as pessoas na agncia recomeou. Harry no precisavacontar, mas contou assim mesmo. Sete. Trs atrs do balco e quatro na frente,incluindo o beb e o cara de macaco, que tinha acabado de entrar e estava namesa no meio da agncia para preencher o nmero da conta de um boletobancrio que Harry sabia ser para a agncia de viagens Saga.

    At logo disse August Schultz e comeou a arrastar os ps em direo asada.

    Eram exatas 15h21m10s e foi neste instante que tudo comeou para valer.

    Quando a porta se abriu, Harry viu a cabea de Stine Grette se levantar e baixarrapidamente. Depois levantou a cabea, dessa vez devagar. Harry olhou tambmpara a porta de sada. O homem que acabara de entrar tinha abaixado o zper do

  • macaco e retirado um rifle verde-oliva AG3. Um gorro azul-marinho cobria todoo seu rosto, exceto os olhos. Harry recomeou a contar do zero.

    Como uma boneca de pano, o gorro comeou a se mexer onde devia estar aboca:

    This is a robbery. Nobody moves.Ele no falou em voz alta, mas a pequena agncia silenciou como aps um

    tiro de canho. Harry olhou para Stine. Por cima do zunido distante de carros elepodia ouvir o clique suave de peas de arma lubrificadas quando o homemengatilhou o fuzil. O ombro esquerdo dela se abaixou visivelmente.

    Menina corajosa, pensou Harry. Ou talvez apenas estivesse morrendo demedo. Aune, o psiclogo que dava palestras na Escola de Polcia, disse que,quando uma pessoa fica com muito medo, para de pensar e age da forma comofoi programada previamente. A maioria dos funcionrios de banco apertava oalarme silencioso quase que em estado de choque, explicara Aune, e quandointerrogadas depois, muitas delas no lembravam se tinham acionado o alarmeou no. Como se estivessem no piloto automtico. Exatamente como umassaltante de banco que se programou para matar todos os que tentaremimpedi-lo disse Aune. A probabilidade de algum parar um assaltante menorse esse estiver com muito medo. Harry no se mexeu, tentou apenas ter umaideia dos olhos do criminoso. Azuis.

    O assaltante tirou uma mochila preta que deixou cair no cho entre o caixa

  • automtico e o homem de macaco que ainda estava pressionando a ponta dacaneta no ltimo lao do nmero oito. O homem de preto andou seis passos paraa pequena porta ao lado do balco, se sentou na beirada, jogou as pernas porcima e se posicionou bem atrs de Stine, que estava imvel, com o olhar fixo sua frente. Bom, pensou Harry, ela conhece as instrues. No est provocandouma reao ao encarar o assaltante.

    O homem colocou o cano do fuzil na nuca de Stine, se dobrou para a frente esussurrou algo no seu ouvido.

    Ela ainda no estava entrando em pnico, mas Harry viu o peito de Stinesubir e descer. Parecia que o corpo frgil lutava para receber ar sob a blusabranca repentinamente apertada. Quinze segundos.

    Ela pigarreou. Uma vez. Duas vezes. E por fim encontrou som nas cordasvocais:

    Helge. As chaves para o caixa automtico. A voz estava baixa e rouca,totalmente irreconhecvel daquela que havia expressado as mesmas palavras trsminutos antes.

    Harry no o viu, mas sabia que Helge Klementsen tinha escutado a frase deabertura do assaltante e j estava na porta do escritrio.

    Rpido, seno... Mal se podia distinguir a voz dela, e na pausa que seseguiu, tudo que se ouvia eram as solas dos sapatos de August Schultz searrastando pelo assoalho, como um par de baquetas rufando contra o couro de

  • tambores, em uma dana extremamente lenta.... ele me mata.Harry olhou pela janela. Provavelmente havia um carro l fora em algum

    lugar com o motor ligado, mas ele no podia v-lo. Apenas carros e pessoas quemais ou menos despreocupadas deslizavam em seu campo de viso.

    Helge... Sua voz suplicava.Vamos l, Helge, pensou Harry. Ele sabia bastante sobre o velho gerente da

    agncia. Sabia que tinha dois poodles, uma mulher e uma filha grvidarecentemente rejeitada esperando por ele em casa. Que estavam com as malasprontas para ir para o chal nas montanhas assim que Helge Klementsenchegasse em casa. Mas neste mesmo instante Klementsen sentiu como seestivesse embaixo dgua num sonho daqueles em que todos os movimentos solentos no importa o quanto tente se apressar. Em seguida reapareceu no campode viso de Harry. O assaltante tinha girado a cadeira de Stine, ficando atrsdela, mas de frente para Helge Klementsen. Como uma criana medrosa que vaidar comida para um cavalo, Klementsen estava com o corpo inclinado para trs ea mo com o molho de chaves estendida o mais longe de si possvel. Oassaltante sussurrou no ouvido de Stine ao girar a arma para Klementsen, quecambaleou dois passos para trs.

    Stine pigarreou: Ele disse para voc abrir o caixa automtico e colocar as novas gavetas de

  • dinheiro no saco preto.Helge Klementsen olhou hipnotizado para o fuzil apontado para si. Voc tem 25 segundos antes de ele atirar. Em mim. No em voc.A boca de Klementsen se abriu e se fechou como quisesse dizer alguma coisa. Agora, Helge disse Stine. O mecanismo da porta zuniu e Helge

    Klementsen bamboleou para o meio da agncia.Trinta segundos haviam se passado desde o comeo do assalto. August

    Schultz estava quase na porta de sada. O chefe da agncia caiu de joelhosdiante do caixa automtico e olhou o molho de chaves. Tinha quatro chaves.

    Tem vinte segundos soou a voz de Stine.A Delegacia de Polcia de Majorstua, pensou Harry. Esto entrando nos carros.

    Oito quarteires. O trnsito da sexta-feira.Com a mo tremendo, Helge Klementsen escolheu uma chave e enfiou-a na

    fechadura. Parou no meio. Apertou com mais fora. Dezessete. Mas... comeou ele. Quinze.Helge Klementsen retirou a chave e tentou uma das outras. Entrou, mas no

    conseguiu girar. Mas pelo amor de Deus... Treze. Aquela com fita adesiva verde, Helge.

  • Helge Klementsen olhou fixamente para o molho de chaves como se nunca otivesse visto antes.

    Onze.A terceira chave entrou. E girou. Helge Klementsen abriu a porta do caixa e se

    voltou para Stine e o assaltante. Preciso abrir mais uma fechadura antes de poder retirar a caix... Nove! gritou Stine.Helge Klementsen deixou escapar um soluo ao apertar os dedos em volta

    dos dentes das chaves como se fosse cego e os dentes fossem a escrita em braileque diria qual seria a chave certa.

    Sete.Harry prestou muita ateno. Nenhum carro de polcia ainda. August Schultz

    pegou na maaneta da porta de sada.Ouviu-se um zunido de metal quando o molho de chaves caiu no assoalho. Cinco sussurrou Stine.A porta se abriu e o barulho da rua entrou no banco. Harry pensou ter ouvido,

    l de longe, um tom conhecido e queixoso que abaixou. E subiu de novo. A sireneda polcia. A porta se fechou.

    Dois. Helge!Harry fechou os olhos e contou at dois. Pronto! gritou Helge Klementsen. Ele conseguira abrir a outra fechadura

  • e agora estava de ccoras puxando as gavetas que pareciam estar emperradas. S me deixe tirar o dinheiro! Eu...

    No mesmo instante ele foi interrompido por um grito estridente. Harry olhoupara o outro lado da agncia onde uma cliente observava aterrorizada oassaltante imvel com a arma encostada na nuca de Stine. A mulher piscou duasvezes e virou a cabea para o carrinho de beb, muda, enquanto o choro dacriana subiu a escala de tons.

    Helge Klementsen quase caiu para trs quando a primeira gaveta se soltoudos trilhos. Ele puxou para si o saco preto. Em seis segundos, todas as gavetasestavam nos sacos. Seguindo as instrues, Klementsen fechou o zper da sacolae se apoiou no balco. Tudo transmitido pela voz de Stine que agora soavasurpreendentemente firme e calma.

    Um minuto e trinta segundos. O assalto acabou. O dinheiro estava em umsaco no meio do cho. Em alguns minutos, o primeiro carro de polcia ia chegar.Em quatro minutos, outros carros de polcia teriam fechado as vias de fugaprximas ao local do assalto. Todas as clulas no corpo do assaltante deviamestar gritando que estava mais do que na hora de cair fora. Ento aconteceu algoque Harry no entendeu. Simplesmente no fazia sentido. Em vez de correr, oassaltante girou a cadeira de Stine de forma que ela ficou frente a frente comele. Ele se inclinou sobre ela e sussurrou-lhe algo. Harry se esforou para ver.Devia fazer um exame de vista um dia destes. Mas viu o que viu. Que ela ficou

  • encarando o assaltante sem rosto enquanto seu prprio rosto passava por umalenta transformao ao finalmente entender o significado das palavras que elesussurrara. As sobrancelhas finas e bem cuidadas desenharam dois S acima dosolhos, que agora pareciam pular para fora da sua cabea, o lbio superior sevirou do avesso e os cantos da boca foram puxados para baixo formando umacareta grotesca. O beb parou de chorar to subitamente quanto haviacomeado. Harry respirou fundo. Porque ele sabia. Uma natureza-morta, umaobra-prima. Duas pessoas flagradas no momento onde um acaba de comunicarao outro sua sentena de morte, o rosto encapuzado a apenas duas palmas dorosto nu. O carrasco e sua vtima. O cano do fuzil est apontando para o pescooe um coraozinho de ouro pendurado em um cordo fino. Harry no pde ver,mas mesmo assim sentia o pulso dela bater sob a pele fina.

    Um som abafado, queixoso. Harry agua o ouvido. Mas no a sirene dapolcia, apenas um telefone tocando na sala ao lado.

    O assaltante se vira e ergue o olhar para a cmera de vigilncia no teto atrsdo balco. Ele levanta uma das mos enluvadas com os dedos separados, depoisa fecha e mostra o indicador. Seis dedos. Seis segundos alm do tempo. Ele sevira para Stine de novo, pega o fuzil com as duas mos, segura-o na altura doquadril e levanta o cano do fuzil de forma a apontar para a sua cabea, seposiciona com as pernas um pouco afastadas para receber o coice. O telefoneno para de tocar. Um minuto e 12 segundos. O diamante brilha quando Stine

  • levanta a mo pela metade, como fosse se despedir de algum.So exatamente 15h22m22s no momento em que ele atira. O estrondo

    curto e abafado. A cadeira de Stine empurrada para trs enquanto sua cabeadana no pescoo feito uma boneca arrebentada. A cadeira cai. Ouve-se um somsurdo quando sua cabea bate no canto da mesa, mas Harry no pode mais v-la. Ele tampouco pode ver o anncio do Banco Nordea para se preparar para aaposentadoria, colado pelo lado de fora do vidro sobre o balco, que de repentehavia adquirido um fundo vermelho. Ele apenas ouve o telefone que continuatocando sem parar, raivoso e insistente. O assaltante se joga sobre o balco,corre para o saco no meio do cho. Harry precisa se decidir. O assaltante larga osaco. Harry se decide. Pula da cadeira. Seis longos passos. Chegou. E tira otelefone do gancho.

    Fala.Na pausa que se seguiu ele pde ouvir o som das sirenes da polcia na TV da

    sala, uma msica pop paquistanesa vinda dos vizinhos e passos pesados naescada parecendo ser da senhora Madsen. E suaves risos no outro lado. Risos deum passado longnquo. No em tempo cronolgico, mas mesmo assim distante.Como setenta por cento do passado de Harry, que em intervalos irregulares voltaem forma de vagos rumores ou pura inveno. Mas esta era uma histria quepodia confirmar.

    Ainda est com aquela pinta de macho, Harry?

  • Anna? Nossa, voc me impressiona.Harry sentiu um calor doce se espalhar no estmago, quase como usque.

    Quase. Pelo espelho, viu uma foto que ele tinha pendurado na parede oposta.Dele e da irm Ss, tirada em umas frias de vero fazia muito tempo, quandoeram pequenos. Sorriam como crianas que ainda acreditam que nenhum malpode acontecer a elas.

    E o que voc est fazendo nesta noite de domingo, Harry? Bem... Harry ouviu sua prpria voz automaticamente se tornar igual

    dela. Profunda demais, hesitante demais. Mas no era o que queria. No agora.Ele pigarreou e encontrou um tom de voz mais neutro:

    A mesma coisa que a maioria das pessoas faz. E isso ...? Assistindo a uns vdeos!

  • Captulo 3

    A Casa da Dor

  • Assistiu ao vdeo?A cadeira de escritrio gasta rangeu em protesto quando o Halvorsen se

    inclinou para trs e encarou seu colega nove anos mais velho, o inspetor policialHarry Hole, com uma expresso incrdula estampada no seu jovem rostoinocente.

    disse Harry, e passou o indicador e o polegar sobre a pele fina eempolada embaixo dos olhos vermelhos.

    O fim de semana inteiro? De sbado de manh a domingo de noite. Ento pelo menos se divertiu um pouco na sexta noite disse

    Halvorsen. Sim respondeu Harry, que tirou uma pasta azul do bolso do casaco e

    colocou-a na mesa em frente a Halvorsen. Li as transcries dosinterrogatrios.

    Do outro bolso, Harry tirou um saco cinza com caf colonial francs. Ele eHalvorsen dividiam o escritrio no final do corredor na zona vermelha, no sextoandar da delegacia de Grnland, e dois meses antes eles compraram umamquina de caf espresso Rancilio Silvia que ganhara o lugar de honra em cimado armrio do arquivo, sob uma foto emoldurada de uma menina sentada com aspernas em cima de uma mesa de escritrio. Seu rosto cheio de sardas esboavauma careta, mas fora tomado pelo riso. No fundo estavam as mesmas paredes

  • de escritrio onde a foto estava pendurada. Voc sabia que trs em cada quatro policiais no conseguem soletrar

    desinteressante corretamente? perguntou Harry e pendurou o seu casaco nocabide. Ou escrevem com z ou...

    Interessante. O que voc fez no fim de semana? Na sexta fiquei plantado dentro de um carro em frente residncia do

    embaixador americano por causa da denncia annima de uma bomba em umcarro. Alarme falso, claro, mas eles esto to nervosos esses dias que tivemosque ficar sentados l a noite toda. No sbado tentei de novo achar a mulher daminha vida. Domingo conclu que ela no existe. O que os interrogatriosdisseram sobre o assaltante? Halvorsen dosava o caf em um filtro duplo.

    Nada respondeu Harry, e tirou o pulver. Por baixo vestia uma camisetagrafite, que outrora fora preta, onde as palavras Violent Femmes estavam quaseapagadas. Ele afundou na cadeira com um gemido. No apareceu ningumque tenha visto o assaltante perto do banco antes do assalto. Um cara saiu daloja de convenincia 7-Eleven do outro lado da rua Bogstad e viu o assaltantesubir a rua da Indstria correndo. Ele o notou por causa do gorro. A cmera devigilncia do lado de fora do banco mostra o momento em que o assaltantepassa pela testemunha em frente a uma caamba, em frente ao 7-Eleven. Anica coisa interessante que contou e que no d para ver no vdeo, que o

  • assaltante mais adiante, na rua da Indstria, atravessa a rua duas vezes. Um cara que no consegue decidir em que calada deve andar. Para mim

    parece bastante desinteressante. Halvorsen colocou os filtros duplos no porta-filtro. Com s, t.

    Voc no sabe muito sobre assalto a bancos, Halvorsen. E por que deveria? O nosso trabalho pegar assassinos. Os caipiras que

    cuidem dos ladres. Os caipiras? No reparou ao andar pela Diviso de Roubos? Dialetos interioranos por

    toda parte. Mas qual a dica quente? A dica quente o Victor. O treinador de ces? Em geral um dos primeiros a chegar ao local do crime, e um assaltante

    de banco sabe disso. Um bom co pode seguir um assaltante que anda a p nacidade. Mas se ele atravessar a rua e passarem carros onde ele cruzou, ocachorro perde a pista.

    E ento? Halvorsen apertou a tampa do caf e, por fim, girou-a, alisandosua superfcie, o que, alegava, distinguia os profissionais dos amadores.

    Isto fortalece a suspeita de que estamos lidando com um assaltanteexperiente. E s esse fato faz com que possamos focar em um nmero depessoas drasticamente menor do que teramos que fazer. O chefe da Diviso de

  • Roubos me contou... Ivarsson? No sabia que vocs eram de conversar. E no somos mesmo. Ele falou para o grupo de investigao de que

    participo. E disse que o negcio de assaltos em Oslo consiste em menos de cempessoas. Cinquenta delas so to estpidas, dopadas ou malucas que so pegasquase todas as vezes. A metade est presa, podemos esquec-las. Quarenta soprofissionais que conseguem escapar se algum os ajuda no planejamento.Ento, sobram dez realmente profissionais, aqueles que atacam caixas-fortes ecentrais de processamento. preciso um pouco de sorte para peg-los.Tentamos ficar sempre na cola desses dez. Os seus libis sero checados hoje. Harry lanou um olhar para Silvia, que bufou do armrio do arquivo. E nosbado falei com Weber da Criminalstica.

    Pensei que Weber tinha se aposentado este ms. Algum fez o clculo errado. Vai ser s no vero.Halvorsen riu. Ento deve estar mais rabugento do que nunca. Est sim, mas no por isso respondeu Harry. Ele e sua equipe no

    acharam nada de nada. Nada? Nenhuma impresso digital. Nenhum cabelo. Nem sequer um pedacinho de

    fibra de tecido de roupa. E, claro, as pegadas dos calados mostram que ele usou

  • sapatos novinhos em folha. De forma que nem d para comparar o desenho do desgaste com seus

    outros sapatos? Correto respondeu Harry. E a arma do assalto? perguntou Halvorsen ao balanar uma xcara em

    direo mesa de Harry. Ao levantar o olhar, viu que a sobrancelha esquerda deHarry estava apontada para cima, quase chegando ao cabelo louro com corteescovinha. Perdo. A arma do assassinato.

    Obrigado. No foi encontrada.Halvorsen sentou-se sua mesa e bebericou o caf. Ento, resumindo: um homem entrou em um banco cheio de gente em

    plena luz do dia, roubou dois milhes de coroas, assassinou uma mulher e saiuandando. Subiu uma rua, nem to cheia, mas com bastante trnsito, no centro dacapital da Noruega, apenas a centenas de metros de uma delegacia de polcia. Ens, profissionais da rgia polcia norueguesa, no temos nada?

    Harry assentiu com um lento balano de cabea. Quase nada. Temos o vdeo. Que voc memorizou segundo por segundo, se o conheo. Bem. De dez em dez segundos, acho. E os relatrios das testemunhas, voc j sabe de cor? S do August Schultz. Ele contou muitas coisas interessantes da guerra.

  • Mencionou uma lista de nomes de concorrentes no setor txtil que eramchamados bons noruegueses, e haviam participado do confisco daspropriedades da sua famlia durante a guerra. Ele sabe exatamente o que elesesto fazendo atualmente. Mas no percebeu que houve um assalto no banco,infelizmente.

    Terminaram de tomar o caf em silncio. A chuva batia na janela. Parece que voc gosta de viver assim disse Halvorsen de repente. De

    passar o fim de semana todo sozinho caando fantasmas.Harry sorriu, mas no respondeu. Pensei que tivesse desistido de viver como um eremita agora que tem

    obrigaes familiares.Harry lanou um olhar de advertncia para o seu jovem colega. No sei se assim que vejo as coisas disse devagar. Sabe, a gente

    nem mora junto. No, mas Rakel tem um filho pequeno, e a a coisa muda, no ? Oleg disse Harry e arrastou a cadeira para o arquivo. Eles foram para

    Moscou na sexta. ? Processo jurdico. O pai quer a guarda da criana. , estou lembrado. E esse cara, que tipo ele ? Bem... Harry endireitou o quadro torto em cima da cafeteira. Ele um

  • professor universitrio que Rakel conheceu quando trabalhava por l. Vem deuma famlia tradicional, podre de rica, que ela alega ter forte influncia poltica.

    Que conhece alguns juzes, certo? Com certeza, mas achamos que vai dar tudo certo. O pai louco de pedra,

    e todos sabem disso. Um alcolatra esperto com baixo controle dos impulsos.Voc conhece o tipo.

    Acho que sim.Harry levantou o olhar de repente, em tempo de ver Halvorsen apagar um

    largo sorriso.Era de conhecimento de todos na sede da polcia que Harry tinha problemas

    com a bebida. Ser alcolatra no motivo suficiente para demitir um funcionriopblico, mas comparecer bbado ao trabalho . A ltima vez que Harry teve umacrise foram aqueles l nos andares altos do edifcio que expressaram o desejo deafast-lo da corporao, mas o chefe da Diviso de Homicdios, Bjarne Mller,como de praxe, colocou uma mo protetora sobre Harry e alegou circunstnciasespeciais. Essas circunstncias especiais eram a moa na foto em cima damquina de espresso Ellen Gjelten, a colega, parceira e amiga ntima de Harry que fora assassinada com um basto de beisebol em uma trilha beirando o rioAker. Harry tinha se recuperado, mas havia uma ferida que ainda doa.Especialmente porque o caso, na opinio de Harry, ainda no estava solucionado.Quando Harry e Halvorsen encontraram provas tcnicas contra o neonazista

  • Sverre Olsen, o inspetor Tom Waaler foi quase que imediatamente na casa deOlsen para fazer a priso. Mas Olsen atirou na direo de Waaler que, em defesaprpria, atirou e matou Olsen. Essa ltima parte de acordo com o relatrio deWaaler. E nem o que encontraram no local, nem a investigao do SEFO (rgoEspecial de Investigao Policial) apontaram em outra direo. Por outro lado, omotivo do assassinato nunca foi esclarecido, alm do fato de que aparentementeele estava envolvido na transao ilegal que inundou Oslo de armas nos ltimosanos, e que Ellen tinha encontrado uma pista dessa transao. Mas Olsen eraapenas um mensageiro. A polcia no tinha nenhuma pista daqueles que de fatoestiveram por trs dos assassinatos.

    E foi para trabalhar no caso de Ellen que Harry pediu para voltar para aDiviso de Homicdios aps uma curta temporada como convidado do ServioSecreto no ltimo andar. Eles acharam bom se ver livre dele e Mller estava felizpor t-lo de volta no sexto andar.

    Ento vou subir ao Ivarsson da Roubos e Furtos com este aqui resmungou Harry e balanou a fita de VHS. Ele queria dar uma olhada comuma nova criana prodgio que tem l em cima.

    Ah ? Quem ? Uma mulher que veio da Escola Superior da Polcia neste vero e parece

    que j solucionou trs casos de roubo s olhando os vdeos. Nossa. bonita?

  • Harry soltou um suspiro. Vocs, jovens, so tediosamente previsveis. Espero que ela seja boa no

    que faz, o restante no me interessa. Tem certeza de que uma mulher? O senhor e a senhora Lnn talvez se divertissem chamando seu filho de

    Beate. J estou sentindo que ela bonita. Espero que no disse Harry e por hbito se abaixou ao passar no vo da

    porta com seu 1,95 metro. Por qu?A resposta veio no corredor: Todo bom policial feio.

    primeira vista, a aparncia de Beate Lnn no era indicao nem de uma coisanem de outra. Ela no era feia algumas pessoas at a chamavam de boneca.Mas isso era porque tudo nela era pequeno: o rosto, o nariz, as orelhas, o corpo.Antes de qualquer coisa, era plida. A pele e o cabelo eram to sem cor que fezHarry lembrar do corpo de uma mulher morta que ele e Ellen tinham pescado dedentro do mar. Mas, ao contrrio do corpo morto, Harry tinha uma sensao deque ele iria esquecer a aparncia de Beate Lnn to logo olhasse para o lado. E

  • parecia que a jovem no ia lamentar, pelo jeito que murmurou seu nomeenquanto Harry apertava sua mo pequena e mida antes de ela rapidamentepux-la de volta.

    Hole uma espcie de lenda aqui na polcia disse Rune Ivarsson, ochefe do setor, que estava de costas virado para eles e mexeu com um molho dechaves. No alto da porta de ferro na frente deles estava escrito com letrasgticas: Casa da Dor. E embaixo: Sala de reunies 508.

    No , Hole?Harry no respondeu. No havia motivo para duvidar em que tipo de lenda

    Ivarsson estava pensando. Ele nunca fazia muito esforo para esconder queachava que Harry Hole era uma vergonha para a polcia e devia ter sido afastadofaz tempo.

    Ivarsson conseguiu finalmente destrancar a porta e entraram. A Casa da Dorera uma sala especial que a Diviso de Roubos usava para estudar, editar ecopiar vdeos. Nela havia uma mesa grande ao centro, trs lugares para trabalhare nenhuma janela. As paredes estavam cobertas de prateleiras com fitas devdeo, uma dezena de cartazes de ladres procurados, uma tela grande em umadas paredes, um mapa de Oslo e diversos trofus de caadas a ladres bem-sucedidas. Ao lado da porta pendiam duas mangas de camisa com buracos paraolhos e boca. De resto, um computador cinza, monitores pretos, aparelhos deVHS e DVD, alm de um monte de outros tipos de mquinas cuja utilidade Harry

  • desconhecia totalmente. E o que eles encontraram no vdeo da Homicdios? perguntou Ivarsson e

    se deixou cair em uma das cadeiras. Ele pronunciou Homicdios com um segundoi exageradamente longo.

    Algo respondeu Harry e foi at a prateleira com o videocassete. Algo? No muito. Pena que no apareceram na palestra que dei na cantina em setembro.

    Todos os departamentos estavam representados, menos vocs, se bem melembro.

    Ivarsson era alto e longilneo e tinha um topete louro ondulado acima de umpar de olhos azuis. O rosto tinha os traos masculinos dos modelos de grifesalems, e ainda estava bronzeado depois de muitas tardes de vero na quadrade tnis e provavelmente uma ou outra sesso de bronzeamento artificial. RuneIvarsson era, em suma, o que a maioria chamaria de um homem bonito, e nesseaspecto substanciava a teoria de Harry sobre a conexo entre aparncia ecompetncia na polcia. Mas o que faltava de talento a Rune Ivarsson parainvestigao sobrava em termos de faro para poltica e construo de alianasdentro da hierarquia da polcia. Alm disto, Ivarsson tinha a autoconfiananatural que muitas pessoas interpretam erroneamente como capacidade deliderana. No caso especfico de Ivarsson, essa autoconfiana se baseava nica e

  • exclusivamente no fato de ele ser abenoado com uma cegueira total de limitesprprios, o que inevitavelmente o levaria mais para cima e um dia faria dele direta ou indiretamente o chefe de Harry. Em princpio, Harry no viu razopara lamentar que a mediocridade fosse chutada para cima e afastada dasinvestigaes, mas o perigo de pessoas como Ivarsson era que de repentepoderiam comear a achar que elas mesmas deveriam intervir e mandar notrabalho daqueles que de fato entendiam algo do assunto.

    Perdemos algo importante? perguntou Harry, passando o dedo ao longodas etiquetas pequenas das fitas de vdeo.

    Talvez no respondeu Ivarsson. A no ser que tenha interesse nospequenos detalhes que solucionam casos criminais.

    Harry conseguiu resistir tentao de falar que ele no compareceu porqueficou sabendo de pblicos anteriores que era uma palestra arrogante cujo nicopropsito era divulgar que depois que ele, Ivarsson, assumiu a chefia da Divisode Roubos, a taxa de roubos a bancos solucionados aumentara de 35 por centoat algo em torno de cinquenta por cento. Sem mencionar que, por coincidncia,ao mesmo tempo que assumiu a liderana, o quadro do departamento foiduplicado, houve uma ampliao geral em termos de autorizao de mtodos deinvestigao e o departamento se livrou de seu pior investigador: Rune Ivarsson.

    Eu me considero razoavelmente interessado disse Harry. Ento meconte como solucionaram este. Ele retirou uma das fitas e leu a etiqueta em

  • voz alta: 20.11.94, Banco de Poupana NOR, Manglerud.Ivarsson riu. Com prazer. Ns os pegamos do jeito antigo. Eles mudaram de carro de

    fuga em um depsito de lixo em Alnabru e atearam fogo quele que deixaram l.Mas no queimou por inteiro. Encontramos as luvas de um dos assaltantes eidentificamos o DNA. Comparamos com amostras de velhos conhecidos quenossos investigadores apontaram como possveis autores depois de terem visto ovdeo, e um deles batia. O idiota ganhou quatro anos por ter dado um tiro noteto. Mais alguma coisa que queira saber, Hole?

    Ahm. Harry ficou mexendo com a fita. De que material veio o DNA? Eu j disse: batia. O canto do olho esquerdo de Ivarsson estremeceu. Legal, mas o que era? Pele morta? Uma unha? Sangue? Isso importa? A voz de Ivarsson estava aguda e impaciente.Harry disse a si mesmo que devia calar a boca. Que devia desistir desses

    projetos quixotescos. Pessoas como Ivarsson nunca aprendiam, no tinha jeito. Talvez no Harry se ouviu dizer. A no ser que estejamos

    interessados nos pequenos detalhes que solucionam casos criminais.Ivarsson manteve o olhar fixo em Harry. Naquela sala especial a prova de

    som, o silncio parecia fazer presso nos ouvidos. Ivarsson abriu a boca parafalar.

    Pelos dos dedos.

  • Os dois homens se viraram para Beate Lnn. Harry tinha quase esquecido queela estava l. Ela olhou os dois e repetiu, quase sussurrando:

    Pelos dos dedos. Aqueles cabelos nos dedos...Ivarsson pigarreou: Est correto que foi um pelo. Mas foi um pelo no precisamos entrar nos

    pormenores um cabelo do dorso da mo. No , Beate? Sem esperar pelaresposta, bateu com o indicador no vidro do seu relgio. Preciso ir. Divirtam-secom o vdeo.

    No momento em que a porta se fechou, Beate arrancou a fita da mo deHarry e no instante seguinte ela estava sendo puxada para dentro dovideocassete com um zunido.

    Dois pelos disse ela. Na luva esquerda. Do n dos dedos. E o depsitode lixo era em Karihaugen, no em Alnabru. Mas foram quatro anos mesmo.

    Harry olhou surpreso. Isso no foi algum tempo antes de voc vir trabalhar aqui?Ela levantou os ombros e apertou o play no controle remoto. s ler os relatrios. Ahm disse Harry, e estudou-a melhor pelo canto do olho. Depois se

    acomodou na cadeira. Vamos ver se este aqui deixou alguns pelos.O aparelho de vdeo zuniu de leve e Beate desligou a luz. No momento que se

  • seguiu, enquanto a tela azul ainda reluzia para eles, outro filme comeou apassar na cabea de Harry. Era curto, apenas uns dois segundos, uma cenabanhada na luz azul estroboscpica de Waterfront, uma boate fechada faz tempono cais de Aker. Na poca no sabia o nome da mulher com os olhos castanhossorridentes que tentara gritar algo para ele por cima da msica. Estavam tocandopunk caipira. Green on Red. Jason and The Scorchers. Ele colocou Jim Beam naCoca-Cola e no deu bola para o nome dela. Mas ficou sabendo na noiteseguinte, quando foram para a cama com o cavalo sem cabea na cabeceira,desatracaram e comearam a viagem inaugural. Harry sentiu o calor noestmago da noite anterior quando ouviu a voz dela no telefone.

    Voltou para o outro filme.O velho tinha comeado sua travessia no banco rumo ao balco, filmado de

    um novo ngulo a cada cinco segundos. Thorkildsen da TV2 disse Beate Lnn. No, August Schultz disse Harry. Estou falando da edio disse ela. Parece arte do Thorkildsen da TV2.

    Esto faltando alguns dcimos aqui e ali... Falta? Como pode ver...? De vrias maneiras. Preste ateno no fundo. O Mazda vermelho que voc

    v na rua em frente estava no meio da imagem em duas cmeras na hora demudar de ngulo. Um objeto no pode estar em dois lugares ao mesmo tempo.

  • Quer dizer que algum adulterou o filme? No. Tudo o que est nas seis cmeras dentro do banco e em uma no lado

    de fora gravado na mesma fita. Na fita original, os quadros mudam com muitarapidez entre todas as cmeras e s aparece um bruxuleio. Por isso, o filme temque ser editado para termos sequncias contnuas mais longas. s vezescontratamos uma pessoa da TV quando no temos algum para fazer o trabalho.E as pessoas de TV como esse Thorkildsen trapaceiam um pouco no cdigo dotempo para que fique mais bonito, com menos saltos. Uma neurose profissional,imagino.

    Neurose profissional repetiu Harry. Ocorreu a ele que era uma coisaestranhamente antiga para se ouvir de uma moa to jovem. Talvez no fosseto jovem como ele tinha imaginado. Alguma coisa tinha acontecido a ela assimque a luz foi desligada, a linguagem corporal ficou mais relaxada e a voz maisfirme.

    O assaltante entrou no banco e gritou em ingls. A voz parecia distante eabafada, como se estivesse embrulhada em um edredom.

    O que acha disso? perguntou Harry. noruegus. Ele fala em ingls para a gente no poder reconhecer seu

    dialeto, sotaque ou palavras tpicas que possam ter conexo com roubosanteriores. Ele usa roupas que no deixam fibras possveis de serem encontradasno carro de fuga, em esconderijos ou na prpria casa.

  • Mais alguma coisa? Todas as aberturas na roupa esto fechadas com fita crepe para ele no

    deixar vestgios de DNA, como cabelos e suor. Pode ver que a cala est lacradaem volta das botas e as mangas em volta das luvas. Aposto que ele tem fitacrepe em volta da cabea inteira e cera nas sobrancelhas.

    Um profissional, ento?Ela deu de ombros. Oitenta por cento dos assaltos a banco so planejados menos de uma

    semana antes e executados por pessoas sob efeito de lcool ou drogas. Esseassalto foi bem preparado e o assaltante parece sbrio.

    Como consegue ver isso? Se tivssemos iluminao perfeita e cmeras melhores, poderamos

    ampliar as fotos e ver as pupilas. Mas no temos isso aqui, ento estudo alinguagem corporal dele. Movimentos calmos, estudados, consegue ver? Se eletomou alguma coisa, no deve ser anfetamina nem coisa parecida. Rohypnol,talvez. a droga predileta deles.

    Por qu? Um assalto a banco uma experincia radical. Voc no precisa de

    anfetamina, o contrrio seria melhor. No ano passado teve um que entrou noBanco DnB na praa Solli com uma arma automtica, encheu o teto e as paredesde tiros e correu para fora sem dinheiro. Disse para o juiz que tinha tomado tanta

  • anfetamina que precisou extravasar de alguma maneira. Prefiro assaltantes quetomaram Rohypnol, por assim dizer.

    Harry balanou a cabea indicando a tela: Olha o ombro de Stine Grette no guich um. Agora ela est acionando o

    alarme. E o som da gravao de repente ficou muito melhor. Por qu? O alarme acoplado ao aparelho de vdeo e, quando acionado, o filme

    comea a rodar muito mais rpido. Isso nos d som e imagens melhores. Osuficiente para podermos analisar a voz do assaltante. E, nesse caso, ele falar emingls no o ajuda.

    to confivel como dizem que ? O som das nossas cordas vocais como uma impresso digital. Se dermos

    dez palavras em uma fita ao nosso analista de vozes na universidade NTNU emTrondheim, ele pode reconhecer uma voz com 95 por cento de acerto.

    Mas no com a qualidade do som antes de o alarme disparar, certo? Nesse caso no to eficaz. por isso que ele grita em ingls primeiro e depois, quando calcula que o

    alarme foi acionado, passa a usar Stine Grette para falar por ele. Exatamente.Eles ficaram em silncio estudando o assaltante vestido de preto que pulou o

    balco, colocou a cano do fuzil na nuca de Stine Grette e sussurrou algo em seuouvido.

  • O que acha da reao dela? perguntou Harry. Como assim? A expresso facial dela. Parece relativamente calma, no acha? No acho nada. Normalmente, expresses faciais do pouca informao.

    Imagino que ela esteja com pulso em torno de 180.Eles olharam Helge Klementsen se atrapalhar no cho em frente ao caixa

    automtico. Espero que esse a receba auxlio psicolgico apropriado disse Beate

    baixinho e balanou a cabea. Eu j vi pessoas ficarem psiquicamentealeijadas depois de passarem por um assalto desse tipo.

    Harry no disse nada, mas pensou que devia ser uma expresso que elaouvira de colegas mais velhos.

    O assaltante se virou e mostrou seis dedos. Interessante murmurou Beate, e anotou algo no bloco sua frente sem

    olhar para baixo. Harry acompanhou a jovem policial de soslaio e viu como elapulou na cadeira ao ouvir o tiro. Enquanto o assaltante saltava por cima dobalco, agarrava o saco e ia na direo da porta de sada, o queixo pequeno deBeate subiu e a caneta escorregou da sua mo.

    A ltima parte no colocamos na internet nem passamos para os canais deteleviso disse Harry. Veja, agora ele est na cmera do lado de fora dobanco.

  • Eles olharam o assaltante com passos largos atravessar a rua Bogstad nafaixa de pedestres com o sinal aberto antes de continuar subindo a rua daIndstria. E ento sumiu da tela.

    E a polcia? perguntou Beate. A delegacia mais prxima fica na rua Srkedalen logo depois do pedgio, a

    apenas oitocentos metros do banco. Mas mesmo assim levou mais de trsminutos entre o alarme ser acionado e eles chegarem. E a o assaltante tevequase dois minutos para se mandar.

    Beate olhou pensativa para a tela onde os carros e as pessoas passavamcomo se nada tivesse acontecido.

    A fuga foi to bem planejada quanto o assalto. O carro de fuga estava logodepois da esquina para que no fosse visto pelas cmeras do lado de fora dobanco. Ele teve sorte.

    Talvez disse Harry. Por outro lado, ele no parece ser uma pessoaque conta apenas com a sorte, parece?

    Beate deu de ombros. A maioria dos assaltos a banco parece bem planejada quando bem-

    sucedida. OK, mas neste, as chances de a polcia ser lenta eram grandes. Isso

    porque, na sexta, todas as patrulhas da rea estavam ocupadas em outro local,na...

  • ... residncia do embaixador dos Estados Unidos! exclamou Beate ebateu na testa. A ligao annima sobre a bomba no carro. Eu estava de folgana sexta, mas vi no jornal da noite. E, justo agora que todos esto to histricos,claro que iriam todos para l.

    No acharam bomba nenhuma. Claro que no. um truque clssico plantar algo que prenda a polcia em

    outro lugar logo antes de um assalto.Ficaram sentados para ver a ltima parte da gravao, pensativos e em

    silncio. August Schultz estava esperando em frente faixa de pedestres. A luzverde ficou vermelha e verde de novo sem ele se mexer. O que estavaesperando?, pensou Harry. Uma irregularidade, uma sequncia extralonga comluz verde, uma espcie de onda de cruzamento de centenrios? Bem, logo viria. Adistncia, ouviu a sirene da polcia.

    Tem algo que no bate disse Harry.Beate Lnn respondeu com um suspiro cansado de velho: Tem sempre algo que no bate.O filme chegou ao fim e a tela foi tomada pela tempestade de neve.

  • Captulo 4

    Eco

    Neve?Harry gritou no celular ao subir a calada com passos largos. Muita disse Rakel em uma pssima ligao de Moscou logo seguida de

  • eco e estalidos ...uita. Al? Aqui est frio de congelar ...ar. Dentro e fora ...ra. E na sala de audincia? Quase no ponto de congelar l tambm. Quando morvamos aqui, a me

    dele at disse que eu devia pegar Oleg e me mudar daqui. Agora ela se sentacom os outros e me manda uns olhares cheios de dio ...dio.

    E como est o processo? Como vou saber? Bem. Para comear, voc advogada, e fala russo. Harry. Como 150 milhes de outros russos, no entendo patavina do

    sistema jurdico daqui ...qui. E Oleg, como est?Harry repetiu a pergunta mais uma vez sem obter resposta e levantou o

    aparelho para ver se a ligao tinha cado, mas os segundos estavam sendomarcados. Ele colocou o fone no ouvido de novo.

    Al? Al, Harry, estou te ouvindo ...do. Estou com saudades ...des. Por que est

    rindo? ...indo? Voc est se contradizendo. o eco.Harry j estava na porta da entrada, retirou a chave e abriu a porta do prdio.

  • Acha que estou amolando? Claro que no.Harry cumprimentou Ali, que estava tentando passar seus esquis pela porta

    do poro. Eu te amo. Ainda est a? Eu te amo! Al?Harry levantou o olhar desnorteado do celular morto e descobriu o sorriso

    largo do seu vizinho paquistans. , voc tambm, Ali murmurou ao digitar o nmero de Rakel de novo. O boto de rediscagem disse Ali. O qu? Nada. Avise-me se quiser alugar seu depsito no poro. Voc no est

    usando muito, est? Eu tenho um depsito no poro?Ali levou os olhos ao cu. H quanto tempo mora aqui, Harry? Eu disse que te amo.Ali olhou Harry perplexo.Harry avisou com a mo para Ali ficar quieto porque j tinha conseguido

    restabelecer contato de novo. Ele subiu a escada correndo com a chave na suafrente como se fosse uma varinha de condo.

  • Assim, agora podemos falar disse Harry quando entrou pela porta do seuapartamento, espartano, mas arrumado, quarto e sala, comprado por umapechincha no final da dcada de 1980, quando o mercado imobilirio estava napior. De vez em quando, Harry achava que ele tinha gastado sua sorte pelo restoda vida na compra daquele apartamento.

    Gostaria que estivesse aqui conosco, Harry. Oleg tambm sente sua falta. Ele disse isso? Ele no precisa dizer. Nesse ponto vocs so iguais. Ei, acabei de dizer que te amo. Trs vezes. Com o vizinho de testemunha.

    Sabe o que isso me custa?Rakel riu. Harry amava aquela risada, desde a primeira vez que a ouviu. E ele

    instintivamente sabia que faria qualquer coisa para ouvi-la sempre. Depreferncia todos os dias.

    Ele chutou os sapatos e sorriu quando viu que a secretria eletrnica nocorredor estava piscando, avisando que tinha recado. No precisava ter bola decristal para saber que era Rakel que havia ligado mais cedo. Ningum mais ligavapara Harry Hole em casa.

    Como sabe que me ama, ento? arrulhou Rakel. O eco tinha sumido. Sinto que fico quente no... Como chama? Corao? No, um pouco atrs e abaixo do corao. Os rins? O fgado? O bao?

  • isso, fico quente no bao.Harry no sabia ao certo se era choro ou riso que ouviu do outro lado. Ele

    apertou o boto play na secretria. Espero estarmos de volta daqui a 15 dias disse Rakel no celular antes de

    ser abafada pela secretria: Ol, sou eu de novo...Harry sentiu o corao dar um pulo e reagiu antes de ter tempo de pensar.Apertou o stop. Mas foi como se o eco das palavras pronunciadas pela voz

    levemente rouca e insinuante da mulher continuasse a ricochetar nas paredes. O que foi isso? perguntou Rakel.Harry respirou fundo. Um pensamento tentou alcan-lo antes que ele

    respondesse, mas chegou tarde demais: Apenas o rdio. Ele limpou a garganta. Assim que souber, avise em

    que avio vo chegar para eu pegar vocs. Claro que aviso disse ela com a voz surpresa.Uma pausa esquisita se instalou. Bem, vou ter que ir disse Rakel. Vamos nos falar l pelas oito hoje

    noite? Vamos. Quer dizer, no. Vou estar ocupado. ? Espero que seja algo agradvel, para variar. Bem disse Harry e respirou fundo novamente. Pelo menos vou sair

  • com uma mulher. Epa. Quem a sortuda? Beate Lnn. A nova policial na Diviso de Roubos. E qual a ocasio? Uma conversa com o marido de Stine Grette, a mulher que foi morta no

    assalto da rua Bogstad que lhe contei. E com o gerente da agncia. Divirta-se, a gente se fala amanh. Oleg quer dizer boa-noite.Harry escutou passos curtos correndo e a respirao animada no celular.

    Aps desligar, Harry ficou em p no corredor, olhando para o espelho em cima damesa do telefone. Se sua teoria estivesse certa, ele agora estaria vendo um bompolicial. Dois olhos vermelhos em cada lado de um nariz largo com uma rede finade veias azuis em um plido rosto anguloso com poros profundos. As rugaspareciam cortes de faca ocasionais em uma viga de madeira. Como tinhaacontecido? No espelho, viu a parede atrs de si com a foto de um jovem erisonho menino junto da irm. Mas no era beleza ou juventude perdida queHarry estava procurando. Porque o pensamento finalmente o alcanou. Eleprocurou nos prprios traos pelos sinais traioeiros, evasivos, covardes queacabaram de faz-lo quebrar uma das promessas que tinha feito a si mesmo: queele nunca nunca mesmo iria mentir para Rakel. De todos os rochedos no

  • mar e no eram poucos pelo menos a mentira no seria a rocha que iriafazer a relao naufragar. Mas, ento, por que tinha feito isso mesmo assim? Eraverdade que ele e Beate iriam encontrar o marido de Stine Grette, mas por queno tinha contado que depois ia encontrar Anna? Uma namorada antiga; mas eda? Tinha sido um caso rpido e tempestuoso que havia deixado algumasmarcas, mas nenhuma ferida aberta. Eles s iam conversar, tomar um caf,contar suas histrias do-que-aconteceu-depois. E irem cada um para o seu lado.

    Harry apertou o play na secretria para ouvir o restante da mensagem. A vozde Anna encheu o corredor:... Estou feliz por te encontrar no M hoje noite. Sduas coisas. Voc poderia passar no chaveiro da rua Vibe no caminho e pegaralgumas chaves que eu pedi? Esto abertos at as sete, e j avisei que esto noseu nome. E podia fazer a gentileza de vestir aqueles jeans de que eu gostava?

    Um riso profundo, levemente rouco. Era como se a sala vibrasse no mesmoritmo. Ela continuava a mesma, disso no havia dvida.

  • Captulo 5

    Nmesis

  • A chuva fazia listras compridas contra a noite de outubro prematuramenteescurecida na luz da lmpada externa sobre a placa de cermica, onde Harry leuAqui moram Espen, Stine e Trond Grette. Aqui era uma casa geminada nobairro de Disengrenda. Ele tocou a campainha e deu uma olhada ao redor.Disengrenda consistia de quatro fileiras de casas geminadas no centro de umgrande campo, cercado de blocos de apartamentos que lembravam Harry decolonos nas pradarias se defendendo contra ataques de ndios. E talvez fosseassim mesmo. As casas geminadas foram construdas na dcada de 1960 para acrescente classe mdia, e talvez os ento j definhados habitantes originriosentendessem que esses eram os novos conquistadores, eram essas as pessoasque iriam assumir a hegemonia do novo pas.

    Parece que no est em casa disse Harry e tocou a campainha de novo. Tem certeza de que ele entendeu que a gente viria hoje tarde?

    No. No? Harry se virou e olhou para Beate Lnn, tremendo de frio embaixo

    do guarda-chuva. Ela estava de saia e sapatos de salto alto, e, quando ela opegou em frente ao restaurante Schrder, ele pensou que parecia estar vestidapara um ch da tarde com as amigas.

    Grette confirmou o encontro duas vezes quando liguei disse ela. Masele parecia bastante... fora de si.

    Harry se esticou para olhar o outro lado da escada e colou o nariz na janela

  • da cozinha. Estava escuro l dentro e tudo o que viu foi um calendrio com a logodo Banco Nordea na parede.

    Vamos voltar disse ele.No mesmo instante, a janela do vizinho se abriu com um estrondo. Esto procurando por Trond?As palavras foram pronunciadas com o dialeto de Bergen, to carregado que

    os erres pareciam um descarrilamento de trens. Harry se virou e examinou orosto bronzeado e enrugado da mulher, que parecia sorridente e pesaroso aomesmo tempo.

    Estamos, sim confirmou Harry. Parentes? Polcia. Certo disse a mulher, perdendo o rosto de enterro. Pensei que vocs

    tivessem vindo para participar do luto. Ele est na quadra de tnis, o coitado. Na quadra de tnis?Ela apontou. No outro lado do campo. Ele est l desde as quatro da tarde. Mas est escuro disse Beate. E chovendo.A mulher deu de ombros. Deve ser a dor. Ela rolava tanto os erres que Harry comeou a pensar

    nos pedacinhos de papel que costumavam colocar nas rodas da bicicleta para

  • baterem nos raios quando ele era menino na cidade-satlite de Oppsal. Pelo seu dialeto, voc tambm cresceu na zona leste disse Harry

    enquanto ele e Beate caminhavam na direo que a mulher havia apontado. Ou estou enganado?

    No foi s o que Beate respondeu.A quadra de tnis ficava no campo, bem no meio entre os blocos de

    apartamento e as casas geminadas. Eles ouviram o som abafado de raquetecontra uma bola de tnis molhada e dentro da cerca de arame alta podiamvislumbrar uma figura sacar no anoitecer do outono que caa rapidamente.

    Ol! gritou Harry ao alcanarem a cerca, mas o homem l dentro norespondeu. S agora viram que ele estava vestido com o palet do terno, camisae gravata.

    Trond Grette?Uma bola acertou uma poa de gua escura, continuou girando, bateu na

    cerca e mandou para cima deles uma ducha fina de gua de que Beate seprotegeu com o guarda-chuva.

    Beate puxou o porto. Ele se trancou l dentro sussurrou. Hole e Lnn da polcia! gritou Harry. Marcamos um encontro,

    podemos... Merda! Harry no tinha visto a bola antes de ela bater na cerca eficar presa no arame dois centmetros frente do seu rosto. Ele enxugou a gua

  • dos olhos e olhou para sua roupa. Parecia envernizada com gua sujaavermelhada. Automaticamente, Harry se esquivou quando viu o homem jogaroutra bola.

    Trond Grette! O grito de Harry fez eco entre os blocos de apartamentos.Eles viram uma bola de tnis fazer uma parbola contra as luzes do bloco deedifcios antes de ser engolida pela escurido e cair em algum lugar no campoaberto. Harry se virou para a quadra de novo, em tempo de ouvir um gritoselvagem e ver uma figura vir ribombando contra ele no escuro. Saiu fascaquando a cerca de arame catou o jogador de tnis em pleno ataque. Ele caiu, selevantou, pegou impulso e pulou contra a cerca novamente. Caiu, se levantou eatacou.

    Meu Deus, enlouqueceu murmurou Harry. Automaticamente, deu umpasso para trs quando um rosto branco com olhos esbugalhados de repente seiluminou bem na sua frente. Foi Beate quem ligou a lanterna e a direcionou paraGrette, que estava pendurado na cerca de arame. O cabelo preto e molhadogrudava na testa branca, e parecia que seu olhar procurava alguma coisa em quese prender ao deslizar pela cerca feito lama em uma janela de carro, at pararinerte no cho.

    O que fazemos agora? sussurrou Beate.Harry triturou algo entre os dentes, cuspiu na mo e viu na luz da lanterna

    que era cascalho vermelho da quadra de tnis.

  • Liga para uma ambulncia enquanto eu pego o alicate no carro respondeu Harry.

    Ento, deram algo para ele relaxar? perguntou Anna.Harry balanou a cabea afirmativo e bebericou a Coca-Cola.A clientela jovem da zona oeste estava empoleirada em banquinhos de bar

    em volta deles tomando vinho, bebidas transparentes e Coca light. M era como amaioria dos bares em Oslo urbano de forma convencional e ingnua, mas tinhaalgo simptico que levou Harry a pensar em Diss, aquele menino bem-educado eesperto na sua classe do segundo grau que descobriram ter um pequeno livroonde anotava todas as grias que os meninos espertos usavam.

    Acabaram de levar o coitado ao hospital. Conversamos um pouco com avizinha de novo e ela nos contou que ele estivera l todas as noites treinandosaques desde que a mulher foi assassinada.

    Nossa. Por que ser?Harry deu de ombros. No to estranho que as pessoas fiquem psicticas ao perderem algum

    dessa forma. Algumas pessoas simplesmente reprimem tudo e fazem de contaque o morto ainda est vivo. A vizinha disse que Stine e Trond Grette formavamum par excelente em dupla mista e que eles treinavam na quadra de tnis quase

  • todas as tardes durante o vero. Estava apenas esperando a mulher devolver o saque ento? Talvez. Nossa! Pede um chope para mim enquanto vou ao toalete?Anna girou, desceu da cadeira e desapareceu rebolando para dentro do bar.

    Harry tentou no olh-la. Ele nem precisava, j tinha visto tudo. Ela tinhaadquirido um par de rugas em volta dos olhos, uns fios brancos naquele cabelopreto e cheio, mas de resto continuava a mesma. Os mesmos olhos pretos com oolhar levemente fugidio sob as sobrancelhas unidas, o mesmo nariz alto e finosobre os lbios vulgarmente carnudos e as bochechas cncavas que lhe davamuma expresso esfomeada. Talvez no pudesse ser considerada bonita, seustraos eram duros demais, mas o corpo esbelto ainda tinha curvas suficientespara que Harry visse pelo menos dois homens nas mesas do restauranteperderem o fio da meada quando ela passou.

    Harry acendeu outro cigarro. Depois de Grette, visitaram Helge Klementsen, ogerente da agncia, mas isso no resultou em muito material para trabalhar. Eleainda estava em uma espcie de estado de choque. Estava sentado em umacadeira, no apartamento pequeno na rua Kjelss, olhando alternadamente opoodle que corria entre suas pernas e a mulher que corria entre a cozinha e asala, com caf e os biscoitos mais secos que Harry jamais havia comido. Aescolha da roupa de Beate acabou combinando melhor com a residncia da

  • famlia Klementsen do que os jeans surrados e as botas de Harry. Mas em geral,Harry era quem conversava com a nervosa senhora Klementsen sobre o volumeincomum de chuva deste outono e a arte de fazer biscoitos, sempreinterrompidos pelos passos pesados e os soluos altos do andar de cima. Asenhora Klementsen explicou que a sua filha Ina, coitada, estava grvida de seismeses de um homem que tinha acabado de zarpar. De fato, ele era marinheiro, etinha partido para o Mediterrneo. Harry segurou o riso e quase cuspiu osbiscoitos sobre a mesa, e foi s ento que Beate tomou a palavra e interrogoucom calma Helge Klementsen, que tinha desistido de seguir o cachorro com oolhar, j que ele tinha acabado de sair pela porta da sala.

    Que altura calcula que o assaltante tinha?Helge Klementsen olhou para ela, pegou a xcara de caf e levantou at meio

    caminho da boca, onde precisou esperar, j que no podia beber e falar aomesmo tempo:

    Alto. Dois metros, talvez. Ela era sempre to pontual, a Stine. Ele no era to alto, senhor Klementsen. Um e noventa, ento. E estava sempre bem-arrumada tambm. E que roupa ele estava usando? Algo preto, de borracha, acho. Neste vero foi a primeira vez que ela tirou

    frias de verdade. Na Grcia.A senhora Klementsen bufou.

  • De borracha? perguntou Beate. , e gorro. De que cor, senhor Klementsen? Vermelha.Nesse ponto, Beate tinha parado de anotar e logo depois estavam no carro a

    caminho da cidade de novo. Se os juzes e os jris soubessem da pouca confiabilidade dos testemunhos

    relativos a roubos desse tipo, no deixariam a gente us-los como material deprova disse Beate. quase fascinante o erro que os crebros das pessoasconseguem reconstruir. Parece que o medo os empresta culos com que veemmais armas, assaltantes maiores e mais escuros e segundos mais longos. Oassaltante levou um pouco mais de um minuto, mas a senhora Brnne, a mulherno guich prximo entrada, alegou que ele ficou l por quase cinco minutos. Eele no tinha dois metros de altura, mas 1,79 metro. A no ser que usassepalmilhas, o que tampouco incomum entre os profissionais do ramo.

    Como pode calcular a altura exata? Pelo vdeo. Voc mede a altura contra o vo da porta no momento em que

    entra. Eu estive na agncia hoje e marquei com giz, tirei novas fotos e medi denovo.

    Na Homicdios a gente deixa esse tipo de medio para a equipe tcnica. Medir alturas com vdeo um pouco mais complicado do que parece. Os

  • tcnicos erraram, por exemplo, em trs centmetros no assalto ao Banco DnB narua Kaldbakken em 1989. Por isso prefiro tirar as medidas eu mesma.

    Harry ficou olhando para ela e se perguntou se deveria questionar por que setornara policial. Mas perguntou se ela podia deix-lo em frente ao chaveiro narua Vibe. Antes de descer, tambm a indagou se ela tinha reparado queKlementsen no tinha derramado uma gota da xcara cheia at a borda quesegurou no ar durante todo o interrogatrio dela. Mas a resposta foi no.

    Voc gosta desse lugar? perguntou Anna e se deixou cair na cadeira denovo.

    Bem... Harry deu uma olhada em volta. No bem o meu estilo. Nem o meu disse Anna, e pegou sua bolsa e se levantou. Vamos para

    o meu ap. Acabei de pedir um chope para voc. Harry olhou para a tulipa com

    espuma. to chato beber sozinha disse fazendo careta. Relaxa, Harry. Vem.L fora a chuva tinha parado e o ar frio e recm-lavado cheirava gostoso. Voc lembra aquele dia de outono quando fomos de carro para o vale

    Maridalen? perguntou Anna, dando o brao a Harry e comeando a andar. No respondeu Harry. Claro que lembra! Naquele seu Ford Escort miservel que nem dava para

    abaixar os assentos.

  • Harry deu um sorriso torto. Ficou vermelho exclamou Anna com entusiasmo. Ento tambm deve

    lembrar que estacionamos o carro e entramos na floresta. E todas as folhasamarelas, eram como uma... Ela apertou seu brao. ... como uma cama.Uma cama enorme e dourada. Ela riu e deu-lhe uma cutucada. E depois tiveque te ajudar a pegar aquele cadver de carro. Voc j se livrou dele, no?

    Bem respondeu Harry. Est na oficina. Vamos ver. Ai, ai. Agora voc fala dele como um amigo que teve que ir ao hospital por

    causa de um tumor ou coisa assim. E emendou baixinho: Voc no devia terdesistido to facilmente, Harry.

    Harry no respondeu. aqui disse ela. Pelo menos isso voc lembra? Estavam parados

    em frente a um porto azul na rua Sorgenfri.Harry gentilmente soltou seu brao. Escute, Anna comeou, e tentou ignorar seu olhar de advertncia.

    Tenho uma reunio com os investigadores na Homicdios amanh bem cedinho. Nem tente disse ela e abriu o porto.Harry se lembrou de algo, meteu a mo no bolso do casaco e estendeu um

    envelope amarelo para ela. Do chaveiro. Ah, a chave. Deu tudo certo?

  • O cara atrs do balco estudou minha identidade cuidadosamente. E tiveque assinar. Cara esquisito. Harry olhou o relgio de novo e bocejou.

    So rigorosos para entregar chaves-mestras disse Anna depressa. Poisessa serve para o prdio inteiro, o porto, a porta do poro, o apartamento,tudo. Soltou um riso curto e nervoso. Eles precisaram de um pedido porescrito do condomnio para fazer essa chave de reserva.

    Entendo disse Harry. Ele balanou nos calcanhares e respirou fundo paradizer boa-noite.

    Ela foi mais rpida. A voz estava quase suplicante: S um caf, Harry.

    Era o mesmo candelabro que pendia do teto sobre a mesma moblia de jantar nasala espaosa. Harry achou que se lembrou de as paredes serem claras brancas, talvez amarelas. Mas no tinha certeza. Agora eram azuis e a salaparecia menor. Talvez Anna quisesse encolher o vazio. No era fcil para umapessoa sozinha preencher um apartamento com trs salas e dois grandes quartoscom um p-direito de trs metros e meio. Harry lembrou que Anna contara quesua av tambm tinha morado l sozinha. Mas que ela no ficara muito tempo,porque era uma cantora de pera famosa e viajava o mundo inteiro enquantopodia cantar.

  • Anna desapareceu na cozinha e Harry deu uma olhada na outra sala. Era nuae vazia, exceto por um cavalo do tamanho de um pnei islands no meio do chocom quatro ps de madeira e dois arcos por cima das costas. Harry se aproximoue passou a mo por cima do couro marrom e liso.

    Voc comeou a fazer ginstica olmpica? gritou Harry. Est falando do cavalo com arcos? gritou Anna de volta da cozinha. Pensei que fosse um aparelho para homens. E . Tem certeza de que no quer uma cerveja, Harry? Absoluta gritou. Mas srio, por que tem este aparelho?Harry deu um pulo quando de repente ouviu a voz dela bem atrs de si: Porque gosto de fazer as coisas que os homens fazem.Harry se virou. Ela tinha tirado o pulver e estava no vo da porta. Uma das

    mos descansava no quadril, a outra estava esticada para cima no vo. Harryconseguiu, a duras penas, evitar olhar para Anna com desejo.

    Comprei da Associao dos Ginastas de Oslo. Vai ser uma obra de arte.Uma instalao. Igual ao Contato, de que deve estar lembrado.

    Quer dizer aquela caixa na mesa com cortinas na frente em que deviaenfiar a mo? E que tinha um monte de mos artificiais l dentro para dar umaespcie de aperto de mo?

    Ou tocar. Ou flertar. Ou rejeitar. Elas tinham um sistema de aquecimentoque as deixavam na temperatura do corpo, o que deu o toque especial, no

  • lembra? As pessoas achavam que havia algum escondido embaixo da mesa.Venha, deixe-me mostrar outra coisa para voc.

    Ele a seguiu at a sala no fundo onde abriu as portas de correr. Depois pegoua mo dele e o puxou para dentro do escuro. Quando acendeu a luz, Harry ficouno comeo s olhando a lmpada. Era de ferro dourado em forma de uma figurade mulher que em uma das mos segurava uma balana e na outra uma espada.As trs lmpadas estavam localizadas na ponta da espada, na balana e na suacabea, e, quando Harry se virou, viu que cada lmpada estava iluminando umatela a leo. Duas estavam penduradas na parede, ao passo que a terceira, queainda no estava pronta, se encontrava sobre um cavalete com uma paleta detintas amarelas e marrons presa no canto inferior esquerdo.

    So retratos, no v? Claro. Estes so os olhos? apontou ele. E a boca aqui?Anna inclinou a cabea. Se quiser. So trs homens. Algum que eu conheo?Anna olhou Harry pensativa e demoradamente antes de responder: No, no acho que os conhea, Harry. Mas pode conhec-los. Se realmente

    quiser.Harry examinou melhor os quadros. Me conte o que est vendo.

  • Vejo meu vizinho com um par de esquis. Vejo um cara saindo do fundo dochaveiro enquanto eu estou saindo. E vejo o garom no M. E Per Stle Lnning.

    Ela riu. Sabia que a retina inverte as coisas de modo que o seu crebro primeiro

    recebe uma imagem espelhada? Se for para ver as coisas como realmente so, necessrio v-las refletidas em um espelho. Assim teria visto pessoas bemdiferentes nos quadros. Seus olhos brilhavam e Harry no conseguiuargumentar que a retina vira as imagens de ponta-cabea e no espelha nada.

    Esta vai ser a minha obra-prima definitiva, Harry. Aquela pela qual vou serlembrada.

    Estes retratos? No, eles so apenas uma parte da obra toda. Ainda no est pronta. Mas

    aguarde. Ahm. J tem nome? Nmesis respondeu baixinho.Ele a olhou de forma interrogativa e seus olhares se cruzaram. Como a deusa, voc sabe.A sombra caa em um lado do rosto dela. Harry desviou o olhar. Ele tinha

    visto o suficiente. A curva de suas costas pedindo um parceiro para danar, ump um pouco frente do outro, como se no houvesse decidido se ia ou vinha, opeito subindo e descendo e o pescoo pequeno com a veia grossa onde achou

  • que podia ver o pulso bater. Ele sentiu calor e uma leve tontura. O que foi queela tinha dito? No devia ter desistido to facilmente. Tinha dito mesmo?

    Harry... Preciso ir disse ele.

    Ele puxou o vestido por cima da cabea dela e a mulher, rindo, caiu para trs nolenol branco. Ela soltou a fivela do cinto dele enquanto a luz turquesa, quebrincava por entre as palmeiras balanando no descanso de tela no laptop naescrivaninha, ondulava por sobre diabinhos e demnios boquiabertos, querosnavam dos fantsticos entalhes da cabeceira da cama. Anna havia contadoque era a cama da sua av, que estava l por quase oitenta anos. Ela o mordeuna orelha e sussurrou palavras em uma lngua desconhecida. Depois, parou desussurrar e cavalgou nele enquanto gritou, riu, rezou e invocou espritos, e elequeria que no acabasse nunca. E logo antes de ele gozar, ela parou de repente,segurou seu rosto entre suas mos e sussurrou:

    Meu para sempre? Mas nem morto ele riu e virou-a para ficar por cima. Os demnios de

    madeira riram para ele. Meu para sempre? Sim gemeu e gozou.

  • Quando silenciou o riso e eles estavam deitados, suados, mas aindaentrelaados em cima do colcho, Anna contou que a cama fora um presentepara sua av de um nobre espanhol.

    Aps um concerto que ela fez em Sevilha, em 1911 disse e levantou acabea para que Harry pudesse colocar o cigarro aceso entre seus lbios.

    A cama tinha chegado a Oslo trs meses mais tarde, trazida pelo navio avapor Eleonora. As coincidncias, e mais um pouco, quiseram que o capitodinamarqus a bordo, Jesper alguma coisa, se tornasse o primeiro amante de suaav mas no o primeiro amante naquela cama. De fato, Jesper tinha sido umhomem muito apaixonado e, de acordo com sua av, a razo da falta da cabeado cavalo no topo da cabeceira da cama. Fora mordido pelo capito Jesper emestado de xtase.

    Anna riu alto e Harry sorriu. O cigarro acabou e eles transaram ao ranger doestrado de fibras vegetais que fez Harry imaginar que estivessem em um navio eno houvesse ningum no leme, mas estava tudo bem assim.

    Isso foi h muito tempo, e foi a primeira e a ltima noite que ele tinhapassado sbrio na cama da av de Anna.

    Harry se virou na cama de ferro estreita. Eram 3h21 no rdio-relgio sobre amesa de cabeceira. Ele soltou um palavro. Fechou os olhos e deixou ospensamentos retornarem devagar Anna e ao vero nos lenis brancos dacama da av. Na maior parte do tempo, ele esteve embriagado, mas as noites

  • que lembrava eram cor-de-rosa e deliciosas, tipo cartes-postais erticos. Atsua declarao final quando o vero acabou tinha sido um clich gasto mas cheiode paixo e sentimentos calorosos:

    Voc merece algum melhor do que eu.Nessa poca, ele bebia tanto que s podia ter um fim possvel. E em um dos

    seus momentos lcidos, decidiu no lev-la na queda. Ela o xingou na sua lnguaestrangeira e jurou que um dia ia fazer o mesmo com ele: tirar-lhe a nica coisaque amava.

    Fazia sete anos e o caso todo tinha durado apenas seis semanas. Depoisdisso, ele s a encontrara mais duas vezes. Uma vez em um bar onde ela vieraat ele com lgrimas nos olhos e pediu que fosse para outro lugar, o que ele fez.E outra vez em uma exposio onde Harry tinha levado sua irmzinha, Ss. Eletinha dito que iria ligar, mas no ligou.

    Harry se virou para o relgio de novo. Eram 3h32. Ele a tinha beijado. Estanoite. Assim que estivera seguro em frente porta de vidro rugoso doapartamento dela, ele se inclinou para dar um abrao de boa-noite, o que virouum beijo. Simples assim. Pelo menos simples. E 3h33. Mas que merda! Quandofoi que ele se tornara to sensvel para ficar com a conscincia pesada por terdado um beijo de boa-noite em uma antiga namorada? Harry tentou respirarfundo e com calma, concentrou seus pensamentos em possveis vias de fuga darua Bogstad pela rua da Indstria. Entrar. Sair. Entrar de novo. Ele ainda sentiu o

  • cheiro dela. O peso doce do seu corpo. O discurso insistente da sua lnguaspera.

  • Captulo 6

    Pimenta-Malagueta

  • Os primeiros raios de sol varreram de leve a colina de Ekeberg, por baixo daspersianas erguidas at a metade da sala de reunio da Homicdios, e se enfiaramentre as dobras da pele dos olhos cerrados de Harry. No final da mesa compridaestava Rune Ivarsson com os ps afastados, balanando para cima e para baixoos sapatos com as mos nas costas. Atrs dele havia um trip com folhasgrandes onde estava escrito BEM-VINDOS em letras maisculas vermelhas. Harryimaginou que era algo que Ivarsson tinha aprendido em um seminrio sobreapresentaes. Agora ele fazia uma tentativa fraca de esconder um bocejoquando o chefe da Diviso de Roubos comeou a falar.

    Bom-dia a todos. Ns, as oito pessoas em volta desta mesa, constitumos ogrupo de investigao do assalto na rua Bogstad na sexta-feira.

    Do assassinato murmurou Harry. Como disse?Harry se endireitou na cadeira. O maldito sol o cegava qualquer que fosse a

    posio. Acho correto partir do fato de que foi um assassinato e basear a

    investigao nisso.Ivarsson mostrou um sorriso torto. No para Harry, mas para as outras

    pessoas em volta da mesa. Pensei que ia comear apresentando vocs, mas o nosso amigo aqui da

    Homicdios j comeou. O inspetor Harry Hole foi gentilmente cedido pelo seu

  • chefe Bjarne Mller, j que sua especialidade assassinato. Homicdio disse Harry. Homicdio. esquerda de Hole temos Torleif Weber, do Departamento

    Criminal, que lidera as investigaes no local do crime. Como a maioria sabe,Weber o nosso melhor farejador. conhecido por suas habilidades analticas eintuio certeira. O chefe de polcia disse uma vez que gostaria de levar Webercomo co quando fosse caar nos fins de semana.

    Risos em volta da mesa. Harry nem precisava olhar para Weber para saberque ele no estava rindo. Era raro Weber sorrir, pelo menos para algum de queele no gostava, e ele no gostava de quase ningum. Especialmente do grupomais novo dos chefes, que na opinio de Weber eram todos, sem exceo,incompetentes e ambiciosos, sem amor profisso ou corporao e, por issomesmo, mais ligados burocracia, ao poder e influncia que podiam alcanaraps uma breve apario na corporao.

    Ivarsson sorriu e se sacudiu, contente como um capito em alto-mar,enquanto esperava os risos silenciarem.

    Beate Lnn novata nessa situao. nossa especialista em anlise devdeos.

    Beate ficou escarlate. Beate filha de Jrgen Lnn, que trabalhou durante vinte anos na diviso

    que ento se chamava Roubos e Homicdios. Nesse sentido, parece no ficar para

  • trs do seu lendrio pai. Ela j contribuiu decisivamente para vriosesclarecimentos. No sei se j mencionei, mas, nos ltimos anos aqui na Roubos,a porcentagem de soluo de casos de aproximadamente cinquenta por cento,o que em termos internacionais considerado...

    J mencionou isso, Ivarsson. Obrigado.Dessa vez, Ivarsson olhou diretamente para Harry quando sorriu. Um sorriso

    rgido de rptil que arreganhou os dentes at os maxilares nos dois lados. Emanteve o mesmo sorriso enquanto apresentou os outros. Harry conhecia doisdeles. Magnus Rian, um jovem do fiorde de Tomre que havia passado meio anona Homicdios e deixado uma boa impresso. O outro era Didrik Gudmundson, omais experiente investigador ao redor da mesa e o segundo no comando dadiviso. Um policial calmo e metdico com quem Harry nunca teve problemas. Osdois ltimos tambm eram da Homicdios, os dois com o sobrenome Li, masHarry constatou de imediato que eles dificilmente seriam gmeos univitelinos.Toril Li era uma mulher alta e loura com boca estreita e rosto fechado, enquantoOla Li era um baixinho ruivo com rosto redondo e olhos sorridentes. Harry oshavia encontrado nos corredores vezes o suficiente para muitos acharem naturalque ele os cumprimentasse, mas essa ideia nunca havia passado pela cabea deHarry.

    A maioria aqui j deve me conhecer terminou Ivarsson. Em todo caso,

  • sou delegado-chefe da Diviso de Roubos e fui encarregado de comandar essainvestigao. E em resposta sua pergunta inicial, Hole, esta no a primeiravez que investigamos assaltos que tiveram como resultado a morte de civisinocentes.

    Harry se esforou para se conter. De verdade. Mas o riso de crocodilo nopermitiu.

    Com uma porcentagem de soluo um pouco abaixo de cinquenta tambm?Apenas uma pessoa em volta da mesa riu, mas riu bem alto. Era Weber. Me desculpem. Parece que esqueci de dizer isto sobre Hole disse

    Ivarsson sem sorrir. Ele tem talento para a comdia. Um verdadeiro talento,ouvi dizer.

    Um segundo de silncio embaraoso. At Ivarsson soltar uma gargalhadacurta e retumbante, e ouvirem-se risos aliviados socapa em volta da mesa.

    OK, vamos comear com um curto resumo. Ivarsson virou a folha dotrip. Sob o ttulo CRIMINALSTICA a folha estava em branco. Ele tirou a tampade uma caneta de feltro e se colocou pronto para escrever. com voc,Weber.

    Karl Weber se levantou. Era um homem baixo com juba e barba branca. Suavoz era um ronco ameaador em baixa frequncia, mas bastante claro.

    Serei breve. Fique vontade disse Ivarsson e encostou a caneta no papel. Leve o

  • tempo que precisar, Karl. Serei breve porque no preciso de muito tempo resmungou Weber.

    No temos nada. Certo disse Ivarsson e baixou a caneta. O que quer dizer exatamente

    com nada? Temos as pegadas de um par de tnis Nike novinhos em folha, tamanho

    45. A maior parte desse assalto parece to profissional que a nica coisa que mediz que provavelmente no o tamanho que ele normalmente usa. O projtilfoi analisado pelos rapazes da balstica. munio padro de 7,62 mm para umAG3, o mais comum no reino da Noruega, j que est em todas as casernasmilitares, arsenais e casas onde moram oficiais ou soldados da reserva destepas. Em outras palavras, impossvel de rastrear. Fora isso, como se ele nuncativesse estado l dentro. Ou l fora. Verificamos possveis pistas l tambm.

    Weber se sentou. Obrigado, Weber, foi... Eh, esclarecedor. Ivarsson abriu outra folha onde

    estava escrito TESTEMUNHAS. Hole?Harry desceu mais um pouco na cadeira. Todos os que estavam no banco durante o assalto foram interrogados

    imediatamente depois, e ningum contou qualquer coisa que no estivesse nasgravaes de vdeo. Quer dizer, eles lembram uma ou outra coisa que ns

  • sabemos com certeza estarem erradas. Uma testemunha viu o assaltante sumirsubindo a rua da Indstria, ningum mais viu nada.

    O que nos traz ao prximo ponto, que so os carros de fuga disseIvarsson. Toril?

    Toril Li foi para a frente e ligou o projetor onde j estava uma transparnciacom um apanhado geral sobre os carros que foram roubados durante os trsltimos meses. Em dialeto carregado da Costa Oeste mostrou quais eram osquatro carros que ela achava mais provveis de serem usados numa fuga, porserem marcas e modelos comuns, em cores claras e neutras, e novos o suficientepara que o assaltante estivesse confiante de que no iria deix-lo na mo.Principalmente um dos carros, um Volkswagen Golf GTI que estivera estacionadona rua de Maridal, era interessante porque fora roubado na noite anterior aoassalto.

    Quase sempre, os ladres roubam os carros de fuga o mais prximo dohorrio do roubo para que no constem na lista dos policiais no momento daocorrncia explicou Toril Li. Ela desligou o projetor e apanhou a transparnciaao voltar para seu lugar.

    Ivarsson balanou a cabea. Obrigado. De nada sussurrou Harry para Weber.O ttulo da prxima folha era ANLISE DE VDEO. Ivarsson tinha colocado a

  • tampa na caneta. Beate engoliu em seco, bebeu um gole do copo sua frente epigarreou antes de comear com o olhar fixo na mesa:

    Medi a altura... Fale um pouco mais alto, por favor.Sorriso de rptil. Beate pigarreou de novo. Medi a altura do assaltante me baseando no vdeo. Ele tem 1,79 metro.

    Verifiquei com Weber, que est de acordo.Weber balanou a cabea afirmativamente. timo! gritou Ivarsson com um nimo forado na voz, arrancou a tampa

    da caneta e anotou: ALTURA 1,79m.Beate continuou sua fala mesa: Acabei de falar com Aslaksen na NTNU, o nosso analista de voz. Ele

    analisou as cinco palavras que o assaltante falou em ingls. Ele... Beate lanouum olhar preocupado para Ivarsson que estava de costas, pronto para anotar. ... disse que a qualidade da gravao est ruim demais. No deu para usar.

    Ivarsson deixou cair seus braos ao mesmo tempo que o sol desapareceuatrs de uma nuvem e o grande retngulo de luz na parede atrs deles sedesvaneceu. O silncio na sala de reunio era absoluto. Ivarsson respirou fundo ese balanou ofensivamente nos dedos dos ps.

    Felizmente guardamos o trunfo para o final.O chefe da Diviso de Roubos mostrou a ltima folha no trip. AGENTES

  • SECRETOS. Para aqueles de vocs que no trabalham na Diviso de Roubos talvez seja

    preciso explicar que os agentes secretos sempre so os primeiros que trazemosquando temos gravaes de vdeo de um assalto. Em sete de dez casos, uma boagravao pode revelar a identidade do assaltante se for um velho conhecidonosso.

    Mesmo estando mascarado? perguntou Weber.Ivarsson balanou a cabea, afirmativo. Um bom agente capaz de desmascarar um velho conhecido pela estatura

    fsica, linguagem corporal, voz, maneira de falar durante o assalto, todas aspequenas coisas que voc no pode esconder atrs de uma mscara.

    Mas saber quem no basta investiu o segundo comandante DidrikGudmundson. Temos que...

    Exato interrompeu Ivarsson. Temos que ter provas. Um assaltantepode at soletrar seu nome em frente cmera de vigilncia, mas se estivermascarado e no deixar provas tcnicas, estamos legalmente impotentes.

    Ento, quantos dos sete que vocs reconhecem so condenados? perguntou Weber.

    Alguns respondeu Gudmundson. De qualquer maneira, melhor saberquem cometeu o assalto mesmo que continue livre. Assim aprendemos algosobre o padro e o mtodo dele. Na prxima vez ns o pegamos.

  • E se no houver uma prxima vez? perguntou Harry. Ele notou como asveias grossas bem acima das orelhas de Ivarsson se incharam na hora que eleriu.

    Querido perito em homicdios disse Ivarsson, ainda risonho. Se vocolhar em volta, ver que a maioria est rindo da sua pergunta. Porque umassaltante que j deu um golpe bem-sucedido, sempre sempre! vai atacarnovamente. a verdadeira lei da gravidade dos assaltos. Ivarsson olhou pelajanela e se permitiu mais uma gargalhada antes de bruscamente se virar noscalcanhares. Se j terminamos a aula de hoje, talvez esteja na hora de ver setemos algum suspeito. Ola?

    Ola Li olhou para Ivarsson, sem saber se ia se levantar ou no, mas decidiupor fim ficar sentado.

    Eu tambm estava de planto no fim de semana. O vdeo ficou pronto eeditado s oito na sexta noite, e eu chamei os agentes que estavamtrabalhando para assisti-lo no Casa da Dor. Aqueles que no estavam de plantovieram no sbado. No total, 13 agentes passaram por l, o primeiro na sexta soito e o ltimo...

    Muito bem, Ola disse Ivarsson. Apenas conte o que acharam.Ola riu nervoso. Soou como um exasperante grito de gaivota. Ento? Espen Vaaland est de licena mdica disse Ola. ele quem conhece

  • a maioria dos assaltantes. Vou tentar faz-lo vir amanh. Est tentando dizer o qu?Os olhos de Ola danavam rapidamente em volta da mesa. Pouca coisa disse baixinho. Ola ainda relativamente novato disse Ivarsson e Harry viu como a

    musculatura do maxilar estava comeando a trabalhar. Ola exige umaidentificao com cem por cento de certeza, o que louvvel. Mas um poucodemais quando o assaltante...

    O assassino. ... est mascarado da cabea aos ps, tem estatura mediana, fica calado,

    tenta se movimentar atipicamente e tem sapatos grandes demais. A voz deIvarsson subiu. Ento, d-nos a lista completa, Ola. Quem est na lista dospossveis suspeitos?

    No h nenhum na lista. Mas claro que h algum! No h disse Ola Li e engoliu seco. Est tentando nos dizer que ningum tinha uma sugesto, que todos os

    nossos voluntrios, ratos do submundo que apostam sua honra em socializardiariamente com os piores bandidos de Oslo, agentes zelosos que entre nove dedez casos sabem dos rumores que dizem quem dirigiu o carro, quem carregou odinheiro, quem estava fazendo guarda na porta, de repente nem querem dar um

  • chute sequer? Bem, eles chutaram respondeu Ola. Seis nomes foram mencionados. Ento bota para fora, homem. Verifiquei todos os nomes. Trs esto presos. Um deles tinha sido preso

    quando o assalto foi cometido. Um est em Pattaya, na Tailndia, e j verifiquei.E havia um que todos os agentes mencionaram, por ter estatura parecida eporque o assalto foi to profissional: era Bjrn Johansen, do bando dos Tveita.

    E...?Ola parecia querer deslizar na cadeira e sumir embaixo da mesa. Ele estava no Hospital de Ullevl sendo operado por um aures alatae na

    sexta.

    Auris alatae? Orelhas de abano suspirou Harry e enxugou uma gota de suor da

    sobrancelha. Ivarsson parecia que ia explodir. Quantos quilmetros j fez? Acabei de completar 21. A voz de Halvorsen retumbou entre as paredes.

    Estavam quase a ss na sala de ginstica no poro da delegacia, no incio datarde.

    Pegou um atalho? Harry apertou os dentes e conseguiu aumentar afrequncia das pedaladas um pouco. J tinha uma poa de suor em volta da

  • bicicleta ergomtrica dele, enquanto a testa de Halvorsen continuava quase seca. Ento, vocs esto totalmente sem nada? perguntou Halvorsen

    respirando regular e calmamente. A no ser que haja algo no que Beate Lnn disse no final, no temos

    grandes coisas. E o que foi que ela disse? Ela trabalha com um software que faz uma foto tridimensional da cabea e

    do rosto do assaltante com base nas fotos do vdeo. Com gorro? O programa usa a informao recebida das imagens. Luz, sombra,

    depresses, salincias. Se o gorro estiver muito apertado, fica mais fcil parafazer uma imagem parecida com a pessoa que est embaixo. Ser, de qualquermaneira, apenas um esboo, mas Beate diz que ela pode us-lo para compararcom fotos de suspeitos.

    Com aquele programa de identificao do FBI? Halvorsen se virou paraHarry e notou com certa fascinao que a mancha de suor que tinha comeadono peito agora tinha se espalhado pela camiseta inteira.

    No, ela tem um programa melhor disse Harry. Quanto fez? Vinte e dois. Que programa ? Girus fusiforme.

  • Microsoft? Apple?Harry bateu com o indicador na testa escarlate. O software que todos temos. Fica no lobo temporal do crebro e sua nica

    funo reconhecer rostos. S faz isso. aquele pedacinho que faz com que agente possa distinguir entre cem mil diferentes rostos de pessoas apenas umadzia de rinocerontes.

    Rinocerontes?Harry cerrou os olhos para tentar remover o suor com um piscar. Foi um exemplo, Halvorsen. Mas Beate Lnn um caso bem especial. O

    fusiforme dela tem umas duas voltas a mais que faz com que ela se lembre detodos os rostos que viu na vida inteira. E no quero dizer apenas as pessoas queela conheceu ou com quem conversou, mas os rostos atrs de culos de sol quepassaram por ela em uma multido na rua 15 anos atrs.

    Est brincando. No. Harry endireitou a nuca enquanto recuperou o flego para

    continuar: S se sabe de uns duzentos casos iguais ao dela. DidrikGudmundsen disse que ela fez um teste na Escola Superior de Polcia e bateutodos os programas de identificao conhecidos. A moa um arquivo defisionomia ambulante. Quando ela pergunta onde vi voc antes? pode tercerteza que no apenas um truque para cantar voc.

    Nossa. O que ela est fazendo na polcia? Com um talento desses, quero

  • dizer?Harry deu de ombros. Talvez voc esteja lembrado daquele investigador que foi morto durante

    um assalto a banco em Ryen nos anos 1980? Foi antes do meu tempo. Ele estava por perto por acaso quando o alarme foi acionado, e como ele

    foi o primeiro a chegar, entrou no banco desarmado para negociar. Ele foi ceifadopor um fuzil au